segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Algumas palavras de Frank Borzage


[O realizador de Humoresque e Get-Rich-Quick Wallingford, um criador nato, um realizador de filmes instintivo, acredita que não há caracterização suficientemente genuína no ecrã, hoje. Os espectadores gostam de ver equivalentes de si próprios no ecrã, e não heróis e heroínas altamente glorificados, é a sua teoria.]

Foi feita referência anteriormente, nestes capítulos, ao número de homens capazes e hábeis, ainda não postos à prova em relação ao alcance da sua experiência emocional, que estavam ansiosamente à espera pela oportunidade para saltar para a ribalta com uma obra-prima pictórica. Só durante um pouco mais do que estes últimos doze meses, foi dada a oportunidade a dois desses homens e ambos provaram o seu valor, emergindo das suas experiências como realizadores cujos nomes representam o melhor dos filmes. De e sobre um destes homens, Rex Ingram, já ouvimos.

O outro é Frank Borzage, que no curto espaço de um ano deu ao público de cinema Humoresque e Get-Rich-Quick Wallingford, ambos sucessos artísticos e financeiros. O Sr. Borzage é obviamente um realizador nato, ou seja um criador nato, um artista nato. As qualidades podem-se observar nele só num encontro casual. É fácil de ver que aqui está um homem com excelentes bases de experiência pessoal para o servir na sua arte. E o Sr. Borzage é um dos que subscrevem a teoria exposta no primeiro capítulo deste livro; de que sem bases plenas de experiência emocional um realizador nunca poderá ascender ao cume do seu ofício.

O método de trabalho do Sr. Borzage pode não ser distintamente individual à sua pessoa mas, pelo menos, nenhum outro realizador afirmou tão claramente o que acredita ser um dos segredos para fazer bons filmes. O Sr. Borzage acredita que há uma história por trás de todas as caras que vê. Incapaz de descobrir qual é exactamente esta história, vai-se basear parcialmente na própria cara. A cara vai-lhe dizer certas coisas, o resto será fornecido pela imaginação.

"A caracterização é o que faz os filmes cativantes," diz o Sr. Borzage, "Caracterização verdadeira, sincera. Não há dela que chegue no filme comum de hoje em dia. Há ajuste em demasia com as coisas da superfície, as coisas superficiais. A maioria dos realizadores não vai fundo que chegue para dentro das personalidades com que está a lidar.

"Eu acredito em desenvolver todas as personagens que existem na minha história, não importa quão pequenas, se esse desenvolvimento se provar interessante. E com interessante não quero dizer o interesse do sangue e da tempestade. Uma personagem não precisa de ter cometido um homicídio ou ter traído um amigo, ou de ter ganho uma batalha numa guerra ou na política para ser interessante. São as pequenas coisas comuns na vida dessa personagem que podem ser atiradas para o ecrã e feitas interessantes, cativantes, vivas.

"O meu objectivo é desenvolver personagens no ecrã que toda a gente numa plateia reconheça. Quero que um homem diga quando vê uma personagem num dos meus filmes, 'Bem, aquele é mesmo como o Johnny Jones,' ou quero que diga, 'Céus, eu próprio fiz a mesma coisa, ontem.' Esse é o tipo de personagem que nos dá um sucesso no ecrã. Uma personagem que toda a gente reconhece e ama imediatamente. Em cada cara que vejo encontro uma história. Não parece difícil. A história está mesmo ali em cima, facilmente visível. Pode-se pegar nela e fazer algo real e vital disso. E com cara não quero dizer a cara, literalmente, quando se trata de realizar filmes. Aí, com cara, quero dizer as personagens na minha história.

"Tantas vezes e até na melhor das histórias, escrita pelo melhor dos escritores e preparada pelo melhor dos escritores de continuidade, me parece que foram negligenciadas oportunidades para o desenvolvimento da personagem. Provavelmente é porque a maioria dos autores não se apercebe quão longe se pode ir no ecrã para desenvolver a caracterização. Ainda pensam em termos da página impressa. Não sabem bem como pensar nos filmes.

"E, portanto, se uma personagem mais pequena pode ser desenvolvida sem apinhar o interesse do enredo e as personagens importantes (e as personagens mais pequenas podem certamente ser desenvolvidas desta forma) ora, então, eu quero sempre fazê-lo e faço-o mesmo.

"Digo outra vez que é nestas personagens modestas, singelas e comuns que jaz o verdadeiro interesse para a maioria do público. O filme comum lida com um herói e uma heroína que não são pessoas normais. Geralmente são muito superiores em tudo o que fazem. A maior parte dos produtores e dos realizadores acreditam que o público gosta de pessoas assim e nunca de outro tipo porque sempre as foi ver no ecrã e continua a fazê-lo. Esta gente superior está na maioria das peças e filmes e histórias que nós vemos e lemos.

"Mas pare-se, simplesmente, e veja-se quando é que as personagens singelas e comuns elevadas a posição de importância num filme ou numa peça, capturaram os corações de milhares e milhões. Refiro-me às peças, Lightnin' e The First Year e a Humoresque, o filme. Aqui estavam pessoas singelas e de todos os dias, tal como todos nós, e é exactamente por serem como todos nós que gostamos mais deles do que de heróis de capa e espada em filmes modernos de aventuras e de olhos demasiado arregalados e das heroínas bonitas de filmes que, supostamente, deviam representar a vida.

"Claro que um filme dramático com pessoas comuns lá dentro é a coisa mais difícil de escrever do mundo. Isto é, parece sê-lo devido à sua escassez. No entanto, talvez os escritores trabalhem com a ideia de que o público quer heróis e heroínas fantasticamente heróicos porque acreditam que as pessoas gostam de se ver a si próprias como gostavam de ser. É uma teoria sólida e sem dúvida que é responsável pela popularidade do filme comum mas eu acho que as pessoas gostam mesmo de se ver tal como são. Há histórias, e histórias dramáticas na vida real das pessoas, mas claro que são difíceis de encontrar. Está muito bem dizer que há drama na vida do homem que entrega o leite e nas vidas dos que estão no apartamento ao lado do nosso. Está mesmo lá. Mas que se encontre! É o que eu tento fazer e é o que tento fazer nos meus filmes. Talvez isso os torne um bocadinho diferentes dos filmes do costume."

O Humoresque do Sr. Borzage e o seu filme mais recente baseado na peça de Cohan e nas histórias de Chester, Get-Rich-Quick Wallingford, são testemunhos silenciosos das suas ideias sobre a criação de filmes no que diz respeito ao desenvolvimento de personagens. Humoresque continha alguns dos estudos de personagem  mais perspicazes jamais projectados. A primeira metade, que lida com a vida judaica em família num gueto da cidade de Nova Iorque era dotada de gemas de verdadeira caracterização, reconhecível como uma representação verdadeira das famílias judaicas da zona leste. Muita desta caracterização foi extraída do trabalho da autora, Fannie Hurst, e o Sr. Borzage é o primeiro a reconhecer este facto, e muito mais foi fornecida pelo próprio realizador. A maneira como ele construiu a personagem do pai judeu, por exemplo, incutindo nele a quantia adequada de simpatia, humor e características raciais, é um tributo duradouro do seu trabalho.

Há uma história interessante que diz respeito a Humoresque e que foi contada muitas vezes. O filme tinha custado uma data de dinheiro e foi visto com particular interesse por toda a gente do estúdio em que foi feito, de William R. Hearst até ao mais simples aderecista. Foi uma espécie de experiência.

Quando estava finalmente concluído e pronto para ser mostrado ao público os chefes da organização decidiram não o lançar! Tinham medo dele! Porquê? Bom, porque lidava unicamente com personagens judias, não continha o tipo comum de narrativa de um filme, em resumo, era algo bem afastado do tipo de filme habitual. Portanto aqueles que o patrocinaram tremiam por que o filme pudesse falhar e tremeram ao ponto de decidir que não devia ser lançado de todo.

E então alguém se chegou à frente e começou a defender o filme. Pode ter sido o Sr. Borzage. Mas quem quer que tenha sido, o filme foi para uma sala e começou a quebrar recordes desde a primeira exibição. E tal foi o caso com uma série dos melhores filmes produzidos. O Nascimento de Uma Nação e The Miracle Man foram considerados falhanços antes de serem lançados por aqueles que é suposto saberem. Nunca fariam um tostão. E todos esses três filmes esvaziaram bolsos para os seus patrocinadores!

O Sr. Borzage tem algumas palavras a dizer sobre o tema da realização, o que também o marca como um homem de quem se podem esperar maiores sucessos no futuro. "Todo o tipo de filme," diz ele, "quer seja um drama, um melodrama, uma comédia ou uma farsa pode ser tratado da mesma forma no que diz respeito à caracterização. Com isto eu quero dizer que todos estes tipos de filmes são baseados principalmente na sinceridade da sua caracterização. Se estivesse a fazer filmes de slapstick, prestava tanta atenção à caracterização como faço agora. Olhe-se para Chaplin. A caracterização, a verdadeira caracterização, está no âmago do seu sucesso. É o que faz dos seus filmes, mais do que meras comédias, obras-primas da arte do cinema.

"Quando ao melodrama, acho que é um tipo de entretenimento imensamente menosprezado. Claro que o velho melodrama, o tipo referido depreciativamente como "ten, twenty, thirty" continha pouco mérito além da sua habilidade para emocionar. Aí não havia caracterização tirando aquela que brotava das próprias situações. As situações criavam as personagens, fiel às regras do melodrama. Mas nos filmes, agora, temos as velhas situações melodramáticas ajustadas de forma decente com caracterizações genuínas. Os críticos são inclinados a rebaixá-los e a chamá-los de ordinários. Mas não parecem perceber a ideia de que a vida é feita largamente de melodrama. As situações mais grotescas surgem na vida todos os dias. Leiam os jornais, falem com os vossos amigos e vejam se não tenho razão. As coincidências são abundantes na vida de toda a gente. E, no entanto, quando estas situações verdadeiras para com a vida são transferidas para o ecrã, são às vezes gozadas por serem 'melodrama.'

"Se isto é verdade, então a vida é toda uma piada e embora alguns humoristas sustentem esta ideia, eu não sou dos que acreditam nisso."

Peter Milne, in « Motion Picture Directing: The Facts and Theories of the New Art », Falk Publishing, Nova Iorque, 1922, pp. 110-119