"Permitam-me, antes de ir buscar o plano, uma pequena introdução ou contextualização. Punch-Drunk Love, para mim um dos "maiores filmes mais subvalorizados", é mais uma obra-prima de Paul Thomas Anderson, que alega que "came right off my stomach". É de uma genuinidade, uma crueza e uma sinceridade que se sentem com a ligeira vibração e a intensa iminência de uma afiada lâmina, trémula, a uma gotícula da nossa veia. Imagino que a ingestão de um refresco no imediato final do filme cause uma sensação bastante similar à mesma acção quando precedida por uma forte, inesperada e fresca dose de mentol. Porque esta história, estes actores (Adam Sandler e Emily Watson) e esta estética são isso mesmo: rompantes, incrivelmente originais, brisas geladas. Anderson alia o seu dotado perfeccionismo kubrickiano à irreverência formal francesa dos anos 60, julgo eu que com particular enfoque em Shoot the Piano Player, de Truffaut, e conta a sua versão da história de amor trágico-cómica, por um lado ainda mais aguçada nas suas próprias preocupações humanas (a solidão e a redenção, nomeadamente), por outro, com um finíssimo balanço entre o realismo e o bizarro.
Estive indeciso entre escolher o primeiro ou o segundo plano e acabei por optar por este último, que introduz precisamente o tal balanço de que falo. O silêncio geral, apenas polvilhado pelo trânsito distante, e a luz fria e tosca, a princípio acinzentada, dão-nos a madrugada fria e sonolenta. Dentro de si, a personagem, num caminhar pesado e lento, aborrecido e solitário como desde logo o senti (claro que já condicionado pelo plano anterior). Mas é precisamente quando a câmara roda sobre ele, contra a sua pose, que simbolicamente nos envolvemos numa mística do eventual objecto da sua curiosidade, que mais se intensifica quando, além, só há o nada e um céu de um cor-de-rosa apocalipticamente sentimental. Chega, aliás, a vislumbrar-se o contraste entre o vermelho e o azul que vai pautar toda película, incluindo em deliciosos efeitos de lens flare. E avançamos em steadycam, um dos recursos mais utilizados pelo realizador, com a atmosfera já misteriosa, calada, com o avançar oscilado. E tudo isto nos cria rugas entre os olhos; tudo isto é estranho. Dois intrometidos pares de luzes, que ameaçam dar início à rotina de uma estrada usual. Mas eis que, como acordar com o som do tiro com que o desastrado invasor não nos soube atingir, um perturbante e surpreendente estrondo, um espalhafatoso capotar de um carro, a cidade que acordou de rompante; ou Barry; ou o filme; ou nós. Bizarro, dream-like reality. Magnífica a forma como, em tão pouco tempo, sem uma linha de diálogo, Paul Thomas Anderson cria uma atmosfera e um tom que não só vão com sucesso enformar todo o filme como se tornarão a sua mais forte imagem de marca, num dos maiores filmes da década de 2000 e, igualmente, um dos mais injustamente esquecidos (se lhe valeu a melhor realização em Cannes, foi completamente ignorado pela Academia, por exemplo)". (Diogo F.)
O Próximo convidado é o Gabriel Passos.