sexta-feira, 28 de junho de 2019

GENTLEMAN JIM (1942)


por Miguel Marías

Hoje os Corbett não lutam. Já não há famílias de imigrantes irlandeses buliçosos em São Francisco da Califórnia dispostos a conquistar o novo mundo e a trepar pela escada social usando a astúcia, a comédia ou os punhos. James J. Corbett (Errol Flynn) foi a sua apoteose: desrespeitoso para com os presunçosos, impaciente diante dos obstáculos e alérgico à uniformidade, sempre respeitou as regras do marquês de Queensberry (mesmo sem as conhecer, e sobretudo fora do ringue); por isso o apelidaram de Gentleman, porque ainda que não fosse um gentil-homem —qualificação que rejeitava, identificando-a com piralvilhos ou lorpas— ganhou a pulso o título de cavalheiro, no seu sentido mais amplo e nobre, menos convencional e social. Refiro-me ao personagem interpretado por Flynn no desbordante filme da Warner de 1942, mais do que ao verdadeiro campeão de boxe, sobre o qual dificilmente terei outros testemunhos dignos de fé do que o dos guionistas Vincent Lawrence e Horace McCoy e do cineasta Raoul Walsh. Mas não é por isso que vou cair na armadilha de sustentar que este filme é um documentário exemplar, que se serve da biografia ficcionada de um vencedor para perpetrar uma apologia do que os incompetentes mais temem, objetivo que me parece distante tanto dos resultados como das presumíveis intenções dos seus autores: suspeito que para Walsh os recém-chegados fossem os novos ricos que compõem a boa sociedade, e que Jim lhe parecesse un pícaro arrivista —desejoso de subir e chegar ao topo— perfeitamente respeitável. É assim que chega a pensar a orgulhosa Alexis Smith e não é em vão que o personagem mais nobre e primitivo do filme, o campeão saliente, John L. Sullivan (Ward Bond), se possa retirar com o consolo de não se ver humilhado pela compaixão de Corbett, que o trata espontaneamente de igual a igual, como um veterano do qual se sabe o digno substituto. Esperemos que Walsh tenha um herdeiro. 


quinta-feira, 27 de junho de 2019

THEY DIED WITH THEIR BOOTS ON (1941)


por Miguel Marías

Os finais trágicos e as mortes de protagonistas abundam em poucos dos grandes pioneiros como em Walsh. Não é de estranhar, portanto, que se tenha tornado um mestre das despedidas. Recordemos não apenas o seu adeus impetuoso ao cinema, (A Distant Trumpet), mas sobretudo — talvez as mais belas cenas da sua longa carreira — a do novo campeão e do derrotado John L. Sullivan em Gentleman Jim e o de Custer e da sua esposa —«Passear a seu lado durante a vida foi muito agradável, senhora»— em They Died with their Boots On, cenas subtis e delicadas, prodígios de ritmo e modulação dignos de Ford ou Mizoguchi. 

They Died with their Boots On representa em toda a sua esplêndida plenitude uma época do cinema americano em que o épico era rei e o entusiasmo, a vitalidade e o humor se aliavam sem esforço aparente à lucidez, a amargura e a tragédia. Raoul Walsh foi foi um dos paladinos máximos deste cinema, porque acreditava na possibilidade do triunfo moral para além da morte. O Custer de Walsh não é o general George Armstrong Custer da história nem o da lenda, e ainda menos o da desmitificação rancorosa, mas sim mais um rosto do herói pícaro que esse actor menosprezado que foi Errol Flynn encarnou como ninguém. Entre Homero e Xenofonte, Walsh convida-nos a asistir à ascensão e queda de um cavalheiro do Sul e de um farsante, um soldado da União tão indisciplinado como atrevido, um defensor dos índios, que morreu a matar Sioux por causa dos especuladores e dos corrompidos, que foi nobre inimigo e amigo incorruptível, e que alcançou a glória cinematográfica a cavalgar a galope na direcção da morte.

Não é de estranhar que um filme tão cheio de vigor e energia, entusiasmo e espírito aventureiro, alento épico e picardia, sentido narrativo e beleza plástica, se conte entre os mais caluniados da história do cinema.