sexta-feira, 26 de abril de 2024

BONNIE E CLYDE, de Arthur Penn


por Nuno de Bragança

Houve quem perguntasse que espécie de filme pretendeu fazer o autor de Bonnie and Clyde. Tratava-se de uma pessoa muito ponderada e que parecia inquieta, não só por ter o vício das arrumações como por se encontrar baralhada com o filme.

Como eu estava perto, ouvi a resposta. E porque me pareceu uma boa resposta, fixei as linhas gerais e vou tentar reproduzi-la:

«Meu velho», disse o respondente. «Você lembra-se da novidade de filmes como The Roaring Twenties, do Walsh, ou The Asphalt Jungle, do Huston? Pois sabe o que isso quer dizer? Muito simplesmente que você tem mais anos em cima do pêlo do que pensa, porque essa novidade, hoje, é passado.

«Você viu neste Bonnie and Clyde coisas dignas dos melhores filmes negros norte-americanos (todas as cenas de violência e perseguição, por exemplo; toda a montagem delas; e a movimentação de objectos dentro dos planos de grande conjunto filmados para as cenas de perseguição). Por outro lado, encontrou ligeireza ritmada do vaudeville fílmico com que os americanos, por razões de sobrevivência, entre outras, satirizam e satirizarão (espera-se) o american way of life.

«Você vem positivamente chocado por esbarrar num verdadeiro filme negro verdadeiramente colorido, e adivinho que está quase a dizer asneiras como «que história é essa de abordar figuras do milieu como quem está frank-capreando uma família quase inglesa?»

«Poderia responder-lhe com palavras duras e difíceis, tais como «quem é bandido é homem (e vice-versa)». Poderia recordar-lhe a irrupção de certo cinema europeu nas ex-coutadas de Hollywood (lembra-se de Touchez pas au Grisbi, do Becker?). Poderia - em resumo - arremessar-lhe com este bule à testa, e talvez devesse fazê-lo, porque pressinto o cartesianismo aos saltos dentro do seu bojo.

«Limitar-me-ei, contudo, a chamar a sua atenção para o final de outra obra desconcertante: Jesse James, de Nicholas Ray. Assim como, no final a que me refiro, se passava directamente (no mesmo plano, com movimento de câmara) da cena da morte do Jesse para o cantar dessa morte por interposto cego de guitarra, e se demonstrava desse modo que a era dos pistoleiros do Oeste só podia já ser re-vivida (em balada, entenda-se; assim, digo eu, Bonnie and Clyde assinala que é já só em mito recreado que hoje se pode fazer algo em louvor e simplificação do significado moral de certas personagens dos assaltos dos anos 30.

«Não franza a alma e não transpire. Reveja a conversa cinematográfica do jovem casal com a família desapossada pelo BANCO. Reveja o recurso - por parte dos bandidos em fuga e feridos - ao pão e água a que a conjuntura keynesiana condenava alguns migrantes. Recorde o alcance de planos desses quando cotejados com certas obras com relevo na cultura americana (U.S.A., As Vinhas da Ira - que importa que Dos Passos e Steinbeck hoje estejam tão mortos que até cheiram mal?). Tenha presentes as personagens que, no filme em questão, encarnam A LEI, e releia o primeiro livro do Chessman ou a Epístola aos Hebreus de S. Paulo.

«Deixe-me acabar, que é para já. A última coisa que lhe queria assinalar é a primeira que eu assinalei: Bonnie and Clyde, reune numa mesma fórmula os frutos de toda uma tradição de comédia e violência que até há pouco os cineastas americanos mantinham dormindo em canteiros separados, para gáudio solitário do tio Buñuel. Deste canteiro de casal resulta uma criança excelente, que dá sinal de vida num cinema que passa a vida a fingir que morre. E se você me objectar que talvez Arthur Penn não premeditou a fecundação a que me refiro, disparo contra si as palavras de Renoir, mais ou menos isto: «Comment arrive-t'on à un enfant magnifique? Bien, on va dejeuner dans un champ, on boit un peu, on chante beaucoup et on finit par se rouler sur l'herbe. Et soudain, le voilà qui est fait, l'enfant magnifique!»

«Desculpe, deixe-me acrescentar um último pormenor, como diria o meu velho amigo Vítor. Bonnie and Clyde, na certeira e adequada juventude de que se reveste, consegue ainda sublinhar que a onda de crime que hoje obriga os nova-iorquinos a irem para a cama às oito da noite nada tem de comum com o excesso de energias históricas que foi a explicação de alguns pistoleiros do Oeste, e de alguns gangsters. Boa noite e pazoviet, como se diz ou devia dizer na Ucrânia.»

in «O Tempo e o Modo», n.º 56, 1.ª Série, Janeiro de 1968.

Flashback a The Chase, 1965


por Robin Wood

Este ensaio representa um flashback em dois sentidos. O sentido secundário: escrevi um capítulo sobre The Chase num pequeno livro dedicado a Arthur Penn publicado há cerca de quinze anos, nos dias da minha inocência crítica (ou ignorância culposa, como quiserem)—inocência, acima de tudo, de conceitos de ideologia, e de qualquer tipo de posição política claramente definida. O sentido maior: o filme foi lançado alguns anos antes do período com que este livro [Hollywood from Vietnam to Reagan] se preocupa. A minha avaliação de The Chase não mudou, mas o meu sentido do tipo de importância a atribuir-lhe mudou um bocado: vejo-o agora como um trabalho seminal, que antecipa muitos dos grandes desenvolvimentos que ocorreram no cinema de Hollywood durante a década que se seguiu à sua produção, portanto um ponto de partida apropriado para esta investigação. O presente relato vai diferir do anterior, não só na abordagem mas na ambição. Aí o objectivo (no âmbito de um estudo descomplicadamente autorista) era fornecer uma apreciação de The Chase como “um filme de Arthur Penn,” apesar da natureza obviamente colaborativa do projecto e apesar das próprias reservas explícitas do seu autor, marcando uma fase num desenvolvimento pessoal. Aqui, reafirmando ao mesmo tempo a minha admiração pelo filme (e pela obra de Penn em geral—Night Moves está entre os mais belos filmes de Hollywood dos anos 70), utilizo-a em parte como pretexto para um conjunto de questões mais alargadas que são fundamentais para este livro: estabelecer uma atitude muito mais complexa em relação à teoria do autor; introduzir alguns conceitos críticos/teóricos fundamentais à minha posição actual, que se vai reflectir particularmente em suposições sobre “realismo” e o “realista”; iniciar uma discussão sobre as diferenças (especificamente, as diferenças ideológicas, embora obviamente todas as diferenças num sentido mais amplo sejam ideológicas) entre o cinema clássico de Hollywood e o moderno (pode-se tomar 1960 como um ponto de referência conveniente, embora de certa forma arbitrário). 

Pode-se começar com a atitude do próprio Penn para com o filme e com o mito burguês do “artista” que nos faria atribuir-lhe uma importância definitiva: o mito do artista como um ser superior, doando ao mundo obras que são o resultado das suas intenções conscientes e sobre as quais (pelo menos se forem bem sucedidas) se assume que tem controlo. Pode parecer supérfluo, depois de duas décadas de estruturalismo, semiótica e psicanálise, atacar mais uma vez “a falácia da intencionalidade”, mas ela não morre facilmente, como estará ciente qualquer pessoa envolvida em educação cinematográfica. Se o realizador diz que o filme dele é mau, como é que o crítico pode afirmar que é bom? Se o realizador alega total desconhecimento de certas camadas de significado no seu trabalho, então como é que essas camadas de significado podem existir sem ser na imaginação do crítico? Se o realizador (“o artista”) diz que não teve controlo nenhum sobre um dado filme, então como é que pode valer a pena defender esse filme? Uma das principais preocupações da estética do século vinte tem sido responder progressivamente, e de facto descartar, tais questões: primeiro, através da utilização “primitiva” da psicanálise (o artista não se apercebe dos seus próprios impulsos inconscientes), uma utilização que se mostrou perfeitamente compatível com (e assimilável na) estética tradicional; depois, através de conceitos de ideologia marxistas (onde se separam a estética moderna e a tradicional), revelando toda uma gama de pressupostos culturais, tensões, e contradições que actuam através de códigos, convenções, e géneros, largamente fora do alcance do controlo do artista; finalmente, através da utilização sofisticada da teoria psicanalítica que procura explicar, não apenas o “caso” individual, mas a própria ideologia, a construção do sujeito dentro dela, a relação entre sujeito e espectáculo.

No entanto mantém-se um sentido importante em que a produção de uma obra é um acto intencional—(claro que podem estar envolvidas as intenções de vários ou de muitos)—e a presença perceptível de "impressões", “assinaturas,” “toques” autorais, etc., permanece um dos símbolos mais nítidos da especificidade de um texto em particular. O erro do autorismo primitivo residia na sua redução do potencial interesse de um filme à sua assinatura autoral, de forma a que um filme só merecia uma análise se pudesse ser mostrado que era característico (estilisticamente, tematicamente) de Ray, Mann, ou Hawks, por exemplo: o resto era “interferência,” “um argumento insanável,” atribuíveis à imposição de projectos inadequados ou ao mercantilismo desorientado de produtores. Ao discutir agora filmes de Hollywood, eu prefiro falar da “intervenção” de um realizador num dado projecto (mesmo que o projecto tenha sido da sua escolha, mesmo que também tenha escrito o argumento), vendo-o mais como um catalisador do que um criador. Há um nível no qual The Chase é palpavelmente “um filme de Arthur Penn”: o nível da representação. O âmago da obra de Penn, a fonte da sua energia, sempre foi o seu trabalho com os actores, e a vivacidade à superfície do filme, e muita da sua intensidade e complexidade emocional, resulta da capacidade de resposta à sua intervenção de um elenco magnífico. Reconheço isto desde já porque não é um nível com o qual a presente discussão se vá preocupar explicitamente, devendo no entanto afectar certamente qualquer leitura do filme de formas que podem ser demasiado oblíquas para serem definidas com precisão. Basta dizer que se The Chase tivesse sido realizado por um Michael Winner ou um J. Lee Thompson, por mais ressonante que fosse o projecto, é provável que nunca teria chamado a minha atenção. 

Quando à rejeição parcial de The Chase por parte de Penn, a perspectiva do crítico sobre um filme é provavelmente muito diferente da do cineasta. Penn trabalhou em colaboração estreita na elaboração do argumento, primeiro com Lillian Hellman, depois com Horton Foote; estabeleceu e manteve uma relação maravilhosa com os actores. Aquilo que tornou a experiência do filme desagradável ao ponto de ele ainda estar quase traumatizado pela sua memória foi o facto de lhe ter sido negado o direito de montar. Ele atribui uma importância concreta à montagem—o processo de “extrair” o filme do “material em bruto.” Do ponto de vista dele, negar-lhe o direito a montar é efectivamente destruir o filme, fazer com que já não seja verdadeiramente seu: torna-se, nas suas próprias palavras, “um filme que não posso assumir.” Ele tem duas queixas específicas. Para começar, na primeira tomada os actores seguiam o guião; depois, ao entrar nos seus papéis, tornavam-se mais livres e mais espontâneos e (especialmente no caso de Marlon Brando) começavam a improvisar, para que as tomadas posteriores fossem muito mais desenvolvidas, com Brando em particular a dar uma interpretação aparentemente extraordinária. O montador (agindo presumivelmente sob instruções de Sam Spiegel, o produtor) regressava ao guião e às primeiras tomadas na maior parte dos casos, descartando o resto (embora alguns dos impromptus de Brando permaneçam na montagem final). Em segundo lugar, o efeito pretendido do final foi destruído pela mudança das duas últimas cenas feita pelo montador: a cena em que Anna (Jane Fonda), à espera fora do hospital, é informada da morte do amante era suposto anteceder a cena em que Calder (Brando) e a esposa Ruby (Angie Dickinson) se vão embora de carro. 

Regressarei mais tarde à questão do final. Quanto à primeira queixa, The Chase tal como o temos é acima de tudo um filme de conjunto; se o papel de Brando se destaca dos restantes, é devido à posição da sua personagem no interior da diegese (a sua autoridade e o seu isolamento como xerife). A interpretação de Brando nas tomadas descartadas era sem dúvida notável, mas as interpretações de Brando tendem a ser muitas vezes tão notáveis que desequilibram seriamente o filme. Isto acontece, na minha opinião, em O Último Tango em Paris e em The Missouri Breaks do próprio Penn; embora Penn não concorde, eu acho que isto pode ter acontecido em The Chase. Em termos mais gerais, Penn queixa-se que o montador escolheu tomadas inferiores do início ao fim: “Não é do conteúdo verbal das improvisações que eu sinto tanto a falta mas da qualidade de interpretação que estava presente nas tomadas 'improvisadas' interpretadas de forma mais solta. A falha nas escolhas do montador não está na aderência dele ao texto—escrito pelo menos por três e talvez por quatro pessoas—está na escolha cega e cerrada dele da tomada mais convencional em vez daquelas que são excêntricas, bizarras e pouco ortodoxas.” Uma vez que o material que Penn rodou está inacessível (e talvez já inexistente) eu não posso comentar sobre isto, para além de dizer que o filme tal como o temos demonstra efectivamente que as piores tomadas e as "mais convencionais" de Penn são dez vezes mais empolgantes que as melhores de muitos realizadores. 

Também se deve ter em conta a atitude de Penn em relação a Hollywood. Um intelectual de Nova Iorque com um olho na Europa, ele mostra pouco interesse positivo nos géneros de Hollywood por si próprios: na melhor das hipóteses são veículos para fazer “afirmações significativas,” na pior obstruções para serem atacadas e destruídas. Mostra pouca noção de que os géneros—o western, o melodrama, o filme de terror—são inerentemente ricos em significado potencial. O seu comentário de que The Chase é “um filme de Hollywood, não um filme de Penn” foi obviamente pretendido como depreciativo. Eu acho que diz bem mais do que ele pretendia—que as camadas de significado que Penn parece desconhecer no filme estão intrinsecamente vinculadas, determinadas, ao seu lugar na evolução dos géneros e às alterações ideológicas que essa evolução decreta. É como filme de Hollywood que vou discutir aqui The Chase

No sentido de alcançar o tipo de perspectiva sobre os filmes que é impossível (ou pelo menos altamente improvável) para quem os faz, quero introduzir conceitos extraídos do trabalho de dois esteticistas distintos mas influentes de várias formas. 

Em Art and Illusion, E. H. Gombrich apresenta uma das afirmações clássicas sobre a representação—sobre a relação entre a arte e a realidade. Ele cita, com autorização qualificada, a definição de obra de arte de Zola como “um canto de natureza visto através de um temperamento” e prossegue a “investigá-la melhor.”[1] É insuficiente tratar a representação como realidade mediada simplesmente pelo artista individual: há muitos outros factores que contribuem para a mediação. Básica é a escolha de ferramentas e materiais. Dois paisagistas, tentando reproduzir fielmente a mesma cena, um utilizando um lápis duro, outro trabalhando a óleo, vão oferecer duas versões muito diferentes da realidade diante deles; os seus diferentes suportes vão influenciá-los a vê-la de forma diferente, o primeiro vendo tudo em termos de linhas e formas, o segundo em termos de massa e de cor. É fácil extender isto ao cinema e à sua tecnologia disponível. A realidade que o ecrã oferece de forma tão sedutora é mediada em todos os pontos pela escolha da câmara, das lentes, e da focagem; pode-se desenvolver o argumento para incluir a montagem e o movimento de câmara. Mas isto também não é só uma questão de disponibilidade: igualmente importantes são as convenções dominantes dentro de um dado período. Mesmo ao nível da tecnologia e do método de rodagem/montagem, O Caçador (1978) não pode ser My Darling Clementine (1946); tente-se fazer um filme clássico de Hollywood a preto e branco nos anos setenta, e a impressão global será de afectação (A Última Sessão, 1971). 

Mas aquilo que mais me interessa aqui, pela sua relação com os géneros, tipos de personagens e convenções narrativas de Hollywood, é a percepção de Gombrich do grau a que a arte depende da disponibilidade de “esquemas” (padrões estabelecidos, fórmulas, estereótipos), e o grau a que a natureza do trabalho em particular é determinada pelo esquema particular à disposição do artista. Gombrich fornece inúmeros exemplos da história da arte, dos quais selecciono dois. 
A primeira ocorrência deste tipo talvez date de há mais de três mil anos, dos inícios do Império Novo no Egipto, quando o faraó Tutemés incluiu na sua crónica desenhada da campanha na Síria um registo de plantas que tinha trazido para o Egipto. A inscrição, embora um pouco mutilada, diz-nos que o faraó declara que estas imagens são “a verdade.” Mas os botânicos acharam difícil concordar sobre que plantas se possam ter concebido com estas representações. As formas esquemáticas não são suficientemente diferenciadas para permitir uma identificação segura.[2] 
A implicação é que as ilustrações, embora extraídas intencionalmente da vida, foram altamente influenciadas pelos esquemas dos desenhos de plantas disponíveis. 
Quando Dürer publicou a sua famosa xilogravura de um rinoceronte, teve de se apoiar em testemunhos em segunda mão que preencheu com a própria imaginação, coloridos, sem dúvida, pelo que tinha descoberto sobre a mais famosa das bestas exóticas, o dragão com o seu corpo blindado. No entanto foi demonstrado que esta criatura semi-inventada serviu como modelo para todas as representações do rinoceronte, mesmo em livros de história natural, até ao século dezoito.[3]
Gombrich passa a citar a afirmação de James Bruce de que a sua ilustração de 1789 de um rinoceronte, “concebida a partir da vida,” contrasta com a de Dürer (“maravilhosamente mal executada em todas as suas partes”) e para mostrar que a imagem de Bruce ainda deriva, no entanto, da tradição de Dürer e não da “natureza.”[4] Gombrich conclui que “aquilo que é familiar vai permanecer sempre o ponto de partida para a rendição do que não é familiar... Sem algum ponto de partida, algum esquema inicial, nunca conseguiríamos controlar o fluxo da experiência. Sem categorias, não conseguimos classificar as nossas impressões.”[5] 

A utilidade disto—devidamente alterado e expandido para englobar movimento e narrativa, sendo o termo “esquemas”, que cobre personagens e padrões narrativos com termos como “géneros” e “ciclos”, substituído pelas "categorias" de Gombrich—ao explorar uma arte tradicional como o cinema de Hollywood devia ser clara. Acima de tudo, oferece uma correcção inestimável a todas essas noções ingénuas do “realista” (seja de forma meramente descritiva ou, como é quase invariavelmente o caso, valorativa) que ainda perduram teimosamente. Sempre que cineastas ou críticos reivindicam um novo realismo, faríamos bem em lembrar o rinoceronte do Sr. Bruce, adoptar um certo cepticismo, e examinar a obra em questão em relação aos esquemas disponíveis. Um conhecido (não um espectador casual, mas uma pessoa com uma posição de responsabilidade na cultura do cinema) informou-me uma vez com confiança que Mandingo (1975) tem de ser um mau filme porque mostrava uma plantação e mansão sulista em estado de degradação, e “na realidade” elas eram extremamente bem preservadas. Deixando de lado o pressuposto de um absolutismo que não permite qualquer excepção (todas as mansões sulistas?), um comentário destes confunde de forma ingénua o género altamente convencionado do melodrama (em relação ao qual, somente, o filme pode ser devidamente compreendido) com uma qualquer noção vaga de reconstrução documental, assumindo, com a mesma ingenuidade, a superioridade deste último método. A mansão degradada de Mandingo relaciona-se com um dos esquemas mais importantes e duradouros da cultura americana, a “casa terrível,” cuja linha de descendência pode ser traçada de Edgar Allan Poe (“A Queda da Casa de Usher”) a Tobe Hooper (Massacre no Texas, 1974).[6] O filme para a televisão The Day After (1983) representa uma instância imediatamente tópica deste equívoco no momento de redacção. Foi amplamente publicitado, e geralmente recebido, como se oferecesse um retrato “realista” do rescaldo da guerra nuclear. Pode ser exacto o suficiente (embora por certo repreensivelmente discreto) na informação que oferece sobre os efeitos físicos do ataque nuclear; como narrativa, no entanto, baseia-se extensivamente nos filmes-catástrofe dos anos 70, tanto na estrutura geral como em estratégicas narrativas específicas e detalhadas. Os críticos que repararam nisto vêem-no como invalidando o filme, na minha opinião de forma bastante injustificada: “aquilo que é familiar vai permanecer sempre o ponto de partida para a rendição do que não é familiar.” O próprio The Chase foi brutalmente estraçalhado pela maior parte dos críticos no seu lançamento devido aos seus alegados exageros: “o Texas não é mesmo assim”—uma percepção que é tão desorientada como irrelevante. 

Neste momento vou listar alguns dos esquemas tradicionais que estruturam The Chase, utilizando como marco conveniente Young Mr. Lincoln (1939) de Ford—conveniente porque é provável que seja familiar para os leitores, porque partilha tantos dos esquemas do filme mais recente, e porque não há obviamente questão nenhuma de qualquer ligação directa entre os dois filmes, indo a noção dos esquemas muito para além de qualquer questão de influência. 
1. “A Lei,” personificada numa figura de autoridade masculina, o indivíduo superior e carismático (Lincoln; o xerife Calder). 
2. A Mulher como suporte e inspiração do herói (Ann Rutledge; Ruby). 
3. Os jovens inocentes, acusados de homicídio, carecidos da protecção e da defesa da figura de autoridade (os irmãos Clay; Bubber Reeves). 
4. Os linchamentos públicos—os habitantes da cidade, normalmente “cidadãos respeitáveis”—que tentam invadir a cadeia. 
5. A mãe do(s) acusado(s) (Sra. Clay; Sra. Reeves) e a ansiedade dela pela segurança do(s) filho(s). 
6. A jovem mulher do acusado (Hannah; Anna), também preocupada com a sua segurança. 
7. A Religião (o apelo de Lincoln à Bíblia na cena do linchamento; A Sra. Henderson e o seu reiterado “Estou a rezar por ti”). 
8. A imagética fálica que liga a violência à sexualidade (o aríete do grupo de linchamento; os jogos repetidos e explícitos com as conotações das pistolas—”Com as pistolas todas que tens para aqui, Emily, não me parece que houvesse espaço para a minha”).
9. Os livros e a aprendizagem como emblemas do progresso (o Blackstone de Lincoln; o modelo da universidade apresentado a Val Rogers no seu aniversário). 
10. O emblema de uma felicidade/inocência perdida (a memória de Ann Rutledge; o edifício em ruínas de The Chase. Como o paralelo aqui é um tanto frágil e impreciso, aduzirei dois exemplos para além de Young Mr. Lincoln: o “Rosebud” de O Mundo a Seus Pés [1941] e “o rio” de Escrito no Vento [1956]). 
Por esta altura torna-se claro que Gombrich não é suficiente. Antes de examinar em detalhe as implicações da recorrência destes esquemas por mais de um quarto de século (claro que eles se podem remontar a tempos anteriores e adiante no presente), temos de passar para além dele, expondo as suas limitações. Talvez se possa dizer que elas se expõem a si mesmas, na passagem que vem directamente no seguimento da última frase que eu citei: “Sem categorias, não conseguimos classificar as nossas impressões. Paradoxalmente, revelou-se que importa relativamente pouco quais são estas primeiras categorias.”[7] 

Se aqui a ausência de qualquer dimensão política, de qualquer conceito de ideologia e de esquemas enquanto personificações concretas, não é imediatamente óbvia, isso é porque Gombrich limita inteiramente os seus exemplos à flora e à fauna; se ele tivesse incluído exemplos de representações da forma humana (o nu, por exemplo), a ausência não podia ter sido tão facilmente coberta com o pressuposto da neutralidade. Para Gombrich, aparentemente, os esquemas não têm significado inerente de importância, são marcadores abstractos que o artista pode usar como quiser. A insustentabilidade de uma posição destas torna-se ainda mais óbvia quando a aplicamos a formas narrativas mais amplas como o romance e o cinema. De facto, a tendência de Gombrich, geralmente, é despolitizar a arte e a estética. Ele acaba o capítulo a que eu tenho recorrido (“Truth and the Stereotype”) observando que “a forma de uma representação não se pode divorciar do seu propósito e dos requisitos da sociedade em que dada linguagem visual se dissemina,” mas nunca dá continuidade às implicações de tal percepção de forma eficaz. Está na altura de nos virarmos para Roland Barthes, o Barthes de Mitologias

O conceito de "mito" em Barthes pode ser definido por meio do famoso exemplo que ele oferece. Numa barbearia, na altura das revoltas argelianas e das tentativas de supressão, ele pegou numa cópia da Paris-Match; na capa estava um soldado negro, de uniforme, a olhar para cima, presumivelmente para a bandeira francesa, e a fazer a continência. Uma simples imagem que transmite, à superfície, uma simples afirmação: aqui está um soldado negro a fazer a continência à bandeira. Mas para além da simples afirmação (o nível de denotação), este simples significante contém uma abundância de significado sub-reptício (o nível de conotação): os negros têm orgulho em servir a mãe-pátria, a França; eles são dignificados e enobrecidos, e as suas vidas ganham sentido, com este serviço; o imperialismo é justificado, mesmo admirável, já que traz ordem, civilização, e disciplina (incorporados no uniforme) às vidas das raças súbditas (sendo os “nativos” desleixados, indisciplinados e infantis por definição). Por outras palavras, a imagem simples, aparentemente inocente, e “real” (os soldados negros, no fim das contas, fazem realmente a continência à bandeira do país que servem) comunica de forma insidiosa e a um nível inconsciente uma afirmação política (aqui profundamente reaccionária).[8] 

Assim, é necessário acrescentar o conceito de mito de Barthes ao inestimável conceito de esquemas de Gombrich—grosso modo, esquemas com a sua dimensão política restituída, a imagem como fomentadora de ideologia. Aplicando a noção de mito aos esquemas recorrentes do cinema de Hollywood, reconhece-se o pleno significado da questão óbvia de que não existe relação directa entre Young Mr. Lincoln e The Chase. Aquilo que está em jogo é muito mais do que uma semelhança específica baseada no acaso ou na influência entre dois filmes feitos com cerca de vinte e cinco anos de diferença: os esquemas pertencem à cultura e contêm significados culturais que os dois filmes inflectem de formas variadas, sendo as inflecções determinadas não apenas por dois autores mas pela rede histórico-cultural complexa no seio da qual eles trabalham. 

Podemos considerar agora os dez esquemas, partindo da posição de que ambos os filmes (veículos de mito dos períodos clássico e pós-clássico, respectivamente) se preocupam centralmente com a América. 
 
1. A figura de autoridade masculina, o Pai simbólico, depositário e aplicador da Lei, combina mitos de individualismo e supremacia masculina que são centrais para a democracia capitalista, adoptando as funções de controlo e de contenção. No filme de Ford, Lincoln reprime o grupo de linchamento (que não assalta a prisão), resolve posteriormente o crime e salva as vidas dos irmãos Clay, reconstitui a família, e sai do filme para se tornar presidente dos Estados Unidos. Em The Chase, Calder não consegue controlar a multidão (os cidadãos respeitáveis descontrolados assaltam a prisão e fazem-no em picadinho), não consegue salvar a vida do jovem, e sai de carro da cidade derrotado em todas as frentes. Lincoln sabe desde o início por uma espécie de Graça Divina que vai ser bem sucedido, apresentando-se a si mesmo com confiança (apesar da sua inexperiência total) à Sra. Clay como “o seu advogado, minha senhora”; todas as asserções de confiança de Calder se revelam infundadas (por exemplo, a sua garantia a Lester da segurança da prisão, onde “não vamos ter nenhum dos nossos cidadãos a incomodar-te”: Lester é brutalmente espancado na sua cela pelo cidadão soberano da cidade, Val Rogers). Lincoln, acima de tudo, mantém o controlo sobre si próprio; Calder até isso perde, sucumbindo finalmente à histeria e violência que tudo permeiam no seu espancamento do homem que abate Bubber Reeves. O colapso da confiança na autoridade patriarcal também é inflectido de várias formas na apresentação de Val Rogers e do Sr. Reeves, cuja tentativa ineficaz e de última hora para estabelecer contacto com o filho tratando-o por “Charlie” proporciona um dos momentos mais comoventes do filme. 

2. Em Young Mr. Lincoln, Ann Rutledge morre mas perdura como o apoio mortal do protagonista (é a decisão “dela”—o galho que cai na direcção da sepultura—que o manda estudar Direito). O mito da mulher como apoiante/inspiração/redentora do homem é obviamente de longa data; The Chase não a desafia explicitamente, apresentando Ruby como inteligente, compreensiva, e (acima de tudo e suficientemente) uma esposa. No entanto, o mito apenas faz sentido em relação com o mito do patriarca: se a autoridade carismática e legal do herói se torna inválida ou ineficaz, o mito da mulher-como-apoiante desaba com ele. Daí a ênfase no desamparo de Ruby: trancada fora da cela onde Val Rogers espanca Lester, ela é posteriormente trancada fora da sala onde os cidadãos respeitáveis lhe espancam o marido e no final é incapaz de conter Calder quando ele se rende à epidemia de violência inútil. Quando Lincoln abandona o filme sob a orientação espiritual de Ann para se tornar presidente, Calder abandona a cidade sob a supervisão de Ruby (“Calder. . . . vamos embora”) para conduzir—para nenhures. A própria última fala de Ruby relaciona-se de forma significativa com um motivo obstinadamente recorrente do cinema americano, a fala (dita invariavelmente pelo homem à mulher) de “Vamos para casa” (ou variações da mesma: “Eu vou-te levar para casa,” “Podemos ir para casa,” etc.). Aqui, o homem já não tem a autoridade para a proferir, e já não resta casa alguma para onde ir. 

3. Em Young Mr. Lincoln, a inocência dos jovens acusados é inequívoca: os irmãos, representando simples virtudes “varonis”, são centrais para a idealização da família de Ford, sendo a celebração da vida em família central para o filme. A inocência de Bubber é bem mais equívoca: se ele escapa à fealdade e à corrupção generalizadas da sociedade, a sua principal característica é confusão a todos os níveis, como demonstrado por Emily a descrever o seu olhar “como se tudo estivesse a correr mal e ele não consegue simplesmente perceber porquê.” Se Matt Clay representa a confiança nos valores do passado pioneiro americano, Bubber, embora entre as personagens mais positivas do filme, representa uma incerteza em relação aos valores de qualquer futuro americano possível. 

4. Ford apresenta o grupo de linchamento essencialmente como bons cidadãos cujas energias (que arranjam escape, inicialmente, nas celebrações do Dia da Independência) ficam temporariamente fora de controlo. Precisam de ser lembrados do que está “certo”—de um conjunto fixo e absoluto de valores ratificado por texto bíblico—diante do qual se reafirma a sua inteireza básica. A violência deles é um dado adquirido, um facto da natureza que não exige explicação, tão inquestionável como a moralidade que a reprime. Este dualismo tão simples tornou-se impossível em The Chase: a violência é apenas a eclosão lógica da corrupção, da frustração e do aprisionamento da sociedade. Efectivamente, já não se pode dizer aos cidadãos para irem para casa para a cama (eles dificilmente saberiam para que cama ir); não há textos nem moral absoluta alguma aos quais se possa recorrer. Além disso, a constituição do grupo de linchamento é agora bastante diferente. Em Lincoln é composto por um proletariado terra-a-terra e vigoroso ainda em contacto espiritual próximo com os construtores de cabanas originais; em The Chase é composto pelas classes dominantes, a média-alta afluente e a média em ascensão, com o patriarca abastado Val Rogers (que é virtualmente dono da cidade) entre elas. A própria posição de Calder, ao contrário da de Lincoln, está também comprometida: ele deve a sua nomeação como xerife a Rogers e, por mais que possa lutar para preservar a sua integridade pessoal, nunca lhe é permitido esquecer o facto. 

5.  A idealização da maternidade por Ford é central para Young Mr. Lincoln e para a ideologia que encarna. A mãe é reverenciada como o pilar sobre o qual a família, e portanto a civilização, se constrói, e nunca tem de se perguntar a si mesma, como a Sra. Reeves, “Onde é que eu errei?” Ao mesmo tempo, não tem voz, nem potência, no mundo do dinheiro, da lei e da autoridade dominado por homens. A sua simplicidade (a garantia da sua sacralidade e força moral) é várias vezes sublinhada: não sabe ler ou escrever. Pela altura de The Chase, a confiança neste papel central de apoio esfacelou-se. Dado o número enorme de personagens com todas as idades no filme, é espantoso que haja apenas uma mãe: a Sra. Reeves, histérica, ineficiente, sistematicamente irracional e finalmente rejeitada pelo filho. Esta queda da confiança na figura da Mãe (o núcleo espiritual da civilização, para Ford) aponta directamente para uma queda de confiança na estrutura familiar e, além disso, nas relações sexuais tradicionais em geral. 

6. Decorre da veneração da mãe por Ford que não haja nada em Young Mr. Lincoln a questionar a rectidão e a santidade do casamento: Hannah, esperando de forma ansiosa, obediente e passiva pelo desfecho do julgamento, é apenas a Abigail Clay da geração seguinte. Podemos colocar contra isto Anna Reeves e a incerteza em relação aos laços de casamento tradicionais introduzidos através da relação dela tanto com Bubber como Jake Rogers. O eventual compromisso dela com Bubber carrega uma força moral considerável (tal como a sua participação activa e contundente nos acontecimentos), mas não tem nada que ver com a santidade dos laços de casamento: ela percebe que é Bubber quem precisa mesmo dela. 

7. Em Young Mr. Lincoln, a Bíblia (e o seu posterior substituto, o Farmer’s Almanac—Deus e a Natureza concebidos como um só) é a sanção derradeira, e a autoridade de Lincoln é vista como concedida por Deus; em The Chase, a religião é reduzida aos murmúrios desamparados, absurdos e irritantes da menina Henderson, que é representada como louca. Já não sustenta nem valida o sistema; tornou-se marginal ao ponto da irrelevância. 

8. A ligação entre a violência e a sexualidade masculina, que é implícita e provavelmente inconsciente em Young Mr. Lincoln, é totalmente explícita em The Chase. A obra de Ford está constantemente preocupada com as maneiras pelas quais as energias “em excesso” podem ser controladas de forma segura (trabalho comunitário, danças e celebrações comunitárias, brigas cómicas comunitárias), advindo muita da sua complexidade do facto de tanto a energia como as formas de controlo serem altamente valorizadas. Pela altura de The Chase, todo o sentido do valor da cultura em nome da qual o controlo é aplicado foi posto em causa, e as energias em si são vistas como corrompidas. Oponham-se às danças de Ford—celebração de energia e comunidade—as três festas de The Chase, que culminam e se fundem com o caos destrutivo do espectáculo de fogo-de-artifício num ferro-velho: jogos sexuais, eclodindo em jogos de violência, que escalam por sua vez para verdadeira violência que acaba em colapso total e irreparável.

9. O progresso de Lincoln no filme de Ford é estimulado pela sua aprendizagem a partir de livros que lhe foram cedidos pela família Clay: ele é guiado para o seu destino como presidente por Ann Rutledge e pelos Comentários de Blackstone, pelas mulheres e pela natureza, a lei e a aprendizagem. Em The Chase, o conceito de progresso pela aprendizagem foi rebaixado a demonstrações de caça ao estatuto (as bolsas financeiras competitivas para a universidade) e hipocrisias (a afirmação de que “só através da aprendizagem é que o progresso é possível” proferida como um lugar comum vazio). 

10. Os emblemas de Hollywood por uma perda de inocência/felicidade sugerem uma descida constante para o desencanto. Ainda que morta, Ann Rutledge torna-se no amparo espiritual da carreira de Lincoln; o “Rosebud” de Kane simboliza não só uma infância perdida mas também uma vida alternativa e talvez mais gratificante não corrompida pelo poder. Em 1956 “o rio” de Escrito no Vento representa apenas a ilusão de uma felicidade passada (mesmo em crianças, as personagens nunca foram realmente felizes). Em The Chase, o emblema de uma inocência infantil vista de forma nostálgica transformou-se numa cabana esquelética e irreparavelmente em ruínas. 

The Chase equivale a uma das afirmações mais completas e que tudo embarcam do colapso da confiança ideológica que caracteriza a cultura americana durante todo o período do Vietname e torna-se um factor determinante fundamental do cinema de Hollywood no final dos anos 60 e nos anos 70. Alcança isto como filme de Hollywood: o deslocamento ideológico registado na utilização dos dez esquemas que apresentei vai muito para lá de quaisquer comentários sócio-políticos evidentes (sobre a posição dos negros, etc.), que, tal como Penn, eu acho um tanto grosseiros e óbvios (embora eles dêem o seu contributo à estrutura como um todo). É o primeiro filme do “apocalipse americano”, o primeiro filme em que a desintegração da sociedade americana e da ideologia que a sustenta (representada em microcosmo pela cidade) é apresentada como total e definitiva, sem esperança ou reconstrução possíveis. A força ideológica de todos os dez esquemas disponíveis assumidos por Ford em Young Mr. Lincoln (e nele celebrados como mitos) é aqui posta em causa a título definitivo. 

No entanto, o trabalho do filme não é meramente negativo: a partir do colapso, há um novo movimento positivo, ainda que extremamente vulnerável e tentativo, que se começa a manifestar. Isto vê-se de forma mais clara na atitude que o filme define em relação à sexualidade e à organização sexual. A questão “Acreditas na revolução sexual?” é explicitamente levantada no diálogo, e parece apropriado concluir uma discussão sobre The Chase tentando definir a resposta que o filme proporciona. São dramatizadas três atitudes para com as relações sexuais em The Chase, duas das quais são definidas de forma muito clara, permanecendo a terceira provisória e um tanto confusa. 

1. A monogamia patriarcal tradicional: os Calders, o Sr. e a Sra. Briggs, o Sr. e a Sra. Reeves. A relação dos Calder parece ser endossada pelo filme—é apresentada como forte, estável, e mutuamente apoiadora. Mas se a autoridade patriarcal é destronada, a força ideológica da relação cai logicamente com ela. O filme estabelece paralelos fascinantes entre os Calders e os Briggs: enfatiza-se a monogamia de ambas as relações, juntamente com a subordinação da mulher ao homem; a esterilidade de ambos é tornada explícita (Ruby pergunta-se se deviam ter adoptado crianças, a Sra. Briggs pergunta-se se é pior ter filhos ou não os ter); Calder e Briggs são os dois únicos que respeitam a lei (O cáustico “assim somos dois” de Calder). Os Calders são apresentados de forma positiva, os Briggs de forma negativa—pólos opostos da estrutura de valores do filme. Isto torna ainda mais interessante a sensação de que os segundos são uma reflexão sombria dos primeiros. Há um momento maravilhoso em que os dois principais mundos sexuais do filme fazem um contacto passageiro, o momento em que Briggs (com a mulher a reboque, como habitualmente, segurada ao braço dele) comenta a Emily fora de casa dela sobre o comportamento “permissivo” da sua festa (“Mudar de parceiros?”) e acrescenta “Mas nós somos antiquados, eu e a minha esposa.” Quando o diz, a Sra. Briggs olha fixamente para ele com um semblante que beira o ódio patológico: isto simboliza de forma brilhante a repressão da monogamia patriarcal e as frustrações das mulheres no seu interior. O casal Reeves parece oferecer o inverso disto com a mulher como parceiro dominante mas é mais precisamente uma variação do mesmo: toda a energia emocional da Sra. Reeves foi deslocada para cima do seu filho varão, daí a sua histeria quando ele “dá para o torto.” Se os Calders são vistos como heróicos, o sentido geral do filme revela-os como defensores de um sistema que se tornou obsoleto. No final, a única coisa que conseguem fazer é conduzir para longe das ruínas. 

2. Permissividade: a “revolução sexual” como é entendida pelos Fullers, Stuarts, etc., tomando a forma de intriga adúltera esquálida e furtiva levada a cabo como um fim em si mesma, por aborrecimento, frustração, ou um desejo de ajustar contas com o próprio cônjuge, com uma forte insistência no falocentrismo (Edwin “não tem uma pistola”; Damon obviamente tem). Se é verdade que o filme rebaixa implicitamente a monogamia tradicional, também ataca abertamente esta permissividade como meramente destrutiva e motivada pela destrutividade, mais do que por quaisquer impulsos de preocupação, ternura ou generosidade. A permissividade, no entanto, não passa claramente do reverso da moeda (sugerido pela troca entre Briggs/Emily a que nos referimos anteriormente)—o resultado lógico do desmoronamento das proscrições repressivas e artificiais. 

3. A atitude dramatizada no triângulo Bubber-Anna-Jake. Durante o episódio no ferro-velho, tentam os três elaborar o que é potencialmente uma nova moralidade (é significativo que o filme coincida aproximadamente com o crescimento do movimento hippie): uma nova moralidade genuína, por oposição à imoralidade fomentada (“permitida”) pela antiga moralidade. Central para isso é o reconhecimento por parte de Anna de que é capaz de amar dois homens ao mesmo tempo, a sua relativa autonomia de escolha, decisão e acção (única entre as mulheres do filme), e a aceitação por Bubber dela e de Jake (a sua esposa e o seu melhor amigo) como amantes. Isto tanto vai contra a monogamia tradicional, ao rejeitar a sua repressão legalizada e imposta artificialmente, como contra a permissividade, ao rejeitar a sua crueldade e falocentrismo egoístas. A monogamia e a permissividade baseiam-se ambas numa obsessão com a sexualidade (uma com a sua contenção, a outra com a sua expressão supostamente livre): em ambos os acordos, o sexo torna-se o critério central pelo qual é julgado o comportamento, ficando restringida a noção de fidelidade ou infidelidade ao simples acto do concúbito. A história Bubber-Anna-Jake aplica o destronamento tentativo do acto sexual, sem diminuir de todo a importância da sexualitidade como comunicação humana. Sugere que a sexualidade não é incompatível com a amizade, com a partilha e com uma preocupação humana sem restrições. Significativo em relação a isto é a incapacidade total da geração mais velha em compreender ou prever o comportamento e a motivação das personagens mais jovens. Daí que Val Rogers assuma sem hesitação que Bubber vai matar Jake quando descobrir que ele e Anna são amantes; daí que a Sra. Reeves não consiga encontrar outra palavra para Anna que não seja “puta.” Anna—a sua actividade, a sua autonomia e a sua recusa em permitir a si própria ser definida por uma relação com um homem—está na essência do movimento positivo tentativo e incerto do filme. 

Aqui reside a adequação do final tal como está, mesmo que não sancionado pelo realizador do filme, uma adequação tanto no interior como no exterior da ficção. Os Calders vão-se embora de carro, derrotados. O filme abandona-os para terminar em Anna Reeves, a personagem, ainda capaz de aprender, reflectir, evoluir, e Jane Fonda, a actriz, a ir na direcção da sua problemática carreira futura, tanto cinematográfica como política. Como o jovem Sr. Lincoln, ela sai do enquadramento, deixando para trás um filme e uma sociedade que já não a conseguem conter facilmente.

[1] E. H. Gombrich, «Art and Illusion: A Study of the Psychology of Pictorial Representation» (Nova Iorque: Pantheon/Bollingen Foundation, 1960), 64. Inédito em Portugal.
[2] Ibid., 78. 
[3] Ibid., 81. 
[4]. Ibid., 80–81. 
[5] Ibid., 82, 88. 
[6] Para um tratamento mais abrangente, veja-se a análise de Andrew Britton de Mandingo in «Film: The Complete Film Criticism of Andrew Britton», editado por Barry Keith Grant (Detroit: Wayne State University Press, 2009), 252–72. O ensaio apareceu originalmente in «Movie 22» (Primavera de 1976): 1–22. Inédito em Portugal.
[7] Gombrich, «Art and Illusion», 88. 
[8] Roland Barthes, “Myth Today,” in «Mythologies», traduzido e editado por Annette Lavers (Nova Iorque: Hill and Wang, 1972), 116. Editado em Portugal pela Edições 70 em 1979, com tradução e prefácio de José Augusto Seabra.

in «Hollywood from Vietnam to Reagan», Columbia University Press, Nova Iorque, 1986. 

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Perseguição Impiedosa


por Jorge Silva Melo

O ritual do Western funde-se com o ritual do thriller no espaço comum que pode ser a tragédia (é Penn que declara que o western é o «quadro perfeito para um tema de tragédia grega»; cf. «Le Western», col. 10/18, pg. 276) para servir como que de método de inquérito ou questionário: assim é no deambular expiatório do Sheriff (Brando como inflexível representante da lei: private joke?) num huis-clos que também e portanto é um microcosmos (como o palco o é para e por A Orestíada ou para o Soulier de Satin) que se nos descobre o carácter sagrado de um sábado à noite, ritual e desgastado rompimento de um horário numa cidade em que o tempo é a existência de uma repetição: em que a festa de sábado é esse mesmo quotidiano que se pretende abandonar e que fica desse modo projectado numa outra dimensão. O desequilíbrio (e, portanto, a tragédia) dá-se quando o olhar cheio de som e de fúria, ou seja de paixão, traz a memória a esta cidade destituída de passado, e a faz nascer, absurda, consequentemente. Se por vezes nos situamos mais frente a uma cuidada dissecção de cadáver (de tal modo o ritual se aproxima e por vezes se esquece no lugar comum não recolocado) é porque talvez nós nos esqueçamos também da extrema vitalidade deste olhar de Penn aqui, creio, mais importante pela violência do que pela lucidez;

in «Um Ano Passado em Lisboa: Na Espera de El Dorado», O Tempo e o Modo, 1ª Série, nº 50-54, Junho-Julho-Agosto-Setembro-Outubro de 1967.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024