quarta-feira, 30 de dezembro de 2015
sexta-feira, 25 de dezembro de 2015
quinta-feira, 24 de dezembro de 2015
domingo, 20 de dezembro de 2015
domingo, 29 de novembro de 2015
Allan Dwan: Matar para Viver. Culturalmente incorrecto
por Jorge Silva Melo
Não há, hoje em dia, em Lisboa, mais do que quatro pessoas (e eu conheço as outras três) que esta noite sairiam de casa para ver, numa sala de cinema, um filme de Allan Dwan. A menos que essa eventual projecção fosse patrocinada por uma qualquer autoridade cultural. Provavelmente, até houve gente a ver o extraordinário A Batalha de Iwo Jima um dia destes na Cinemateca. Mas é por ser na Cinemateca, não por ser de Dwan.
Não há, em Lisboa, mais do que quatro pessoas, não haverá muitas mais em Paris, como não haverá em mais sítio nenhum. E não é de hoje. Tirando o breve parêntese de todas as curiosidades que foram os anos 60, nunca foi possível um aproveitamento cultural de um "autor" como Dwan. Porquê? Por ter trabalhado, segundo os manuais, em mil e seiscentos filmes? (Não, não há nenhum zero a mais.) Por ter feito filmes medíocres, como os que realizou com a terrível Shirley Temple?
Dele se diz sempre que é o mestre da eficácia narrativa e da economia, que provavelmente foi o realizador que melhor fez a ponte entre os pioneiros e os clássicos e, mais tarde, entre estes e os modernos. Isto se diz - mas quem terá visto mais do que cinco ou seis filmes seus, sabendo que são realizados por ele? Duas pessoas, três, em Lisboa (e eu conheço-as).
Já é um lugar comum dizer que o seu último filme, O Mais Perigoso Homem Vivo é tão belo e tão moderno como Alphaville; sim, Slightly Scarlet e Black Narcissus de Michael Powell são filmes irmãos; sim, The Restless Breed, pequeno western sem um tostão é considerado um grande filme; sim, Iwo Jima é um reconhecido filme de guerra. Mas é como se fossem filmes soltos, acasos de uma obra que ninguém conhece, pontas de um iceberg que ninguém desenterra, obra que toda a gente diz respeitar, mas que ainda não foi - felizmente? - recuperada pelos vários mecanismos culturais desta sociedade que, tendo esvaziado o "político", nos enche agora os ouvidos com o "cultural".
O problema é que não é preciso tomar nenhum elevador de Santa Justa para aceder aos filmes de Dwan. O seu cinema é primitivo, as suas técnicas transparentes, a sua arte pressupõe apenas um mundo de homens de boa vontade que com o Bem se identifiquem, a sua narração é linear, os seus tempos são meticulosamente medidos, os seus filmes económicos e equilibrados.
"Gosto de trabalhar" foi o que Dwan respondeu a quem lhe perguntou "Como é isso de ter trabalhado tanto?". E a sua arte é só isso (como todas as artes?): uma insistente, contínua transformação das matérias-primas, uma repetição sem fim dos mesmos gestos, das mesmas palavras, uma irredutível prática de artesanato, um cinema apenas cinema e tão grande.
Vindo do mudo e dos filmes de uma bobine, este homem cuja primeira longa-metragem data (provavelmente) de 1914 (Richelieu) e que trabalhou com Griffith no Intolerância, com Fairbanks (é dele o Robin dos Bosques) e com as irmãs Gish, e que vai dirigir Swanson em três dos seus grandes êxitos (é dele a Zaza), conhece um período de alguma instabilidade no início do sonoro (os filmes com a parva da Shirley Temple) e encontra, em 1945, um estúdio (a Universal) e um produtor de génio (Benedict Bogeaus) com quem irá assinar uma dúzia de pequenas produções (e obras-primas) que por cá estreavam, ora no Olímpia, ora no Coliseu (nos meses de Verão), ora no Politeama, ora no Aviz, para ficarem uma semana no cartaz, sem críticas, sem prestígio, sem estrelinhas, e depois continuarem carreira, com cópias riscadas e fotogramas perdidos, pelas salas de bairro, até morrerem na memória dos espectadores, confundidos com outros filmes, esquecidos, cançonetas de um só Verão.
Matar para Viver (The River's Edge) é um desses filmes. Filme barato, produzido em poucas semanas (terá sido rodado em duas, é o que consta, mas eu desconfio), filme de cowboys para plateias plebeias, filme de sentimentos simples, de intriga reconhecível e, tanto quanto me lembro, transparente e extraordinário. E com a sempre maravilhosa Debra Paget.
Um filme que, diz-se num dicionário, "é uma espécie de regresso aos westerns iniciais". Sim, para Dwan, o cinema é, nos finais dos anos 50, o mesmo que foi no mudo: uma arte sim, arriscada, inventiva, trabalhosa - mas uma arte plebeia. Os seus filmes (que, se têm modesto orçamento, não deixam de ser ambiciosos) são destinados às pessoas que procuram uma sala de cinema para se emocionarem com os simples e eternos combates entre o Bem e o Mal, entre o justo e as ciladas, entre o Homem e a Mulher, as simples histórias de homens em perigo. Por isso, tiros, murros, cavalgadas, bombardeamentos, navalhadas, são as figuras de que ele necessita para construir um mundo, um mundo de cinismo e de inocência, este mundo traiçoeiro em que vivem as personagens de Slightly Scarlet ou as de Matar para Viver (1957).
Irei hoje revê-lo, num pequeno écran de televisão, entrecortado de publicidade, descolorido, e comigo sentado num sofá. Eu, que antes o vi numa sala plena de vida, de homens transpirados que mandavam bocas para os heróis do filme ("olha o gajo!", "prega-lhe mas é um beijo!"), numa cópia riscada, que a meio se calhar se partiu, e numa projecção pela certa desfocada.
Agora, essa arte plebeia, que é dela? À medida que o "cultural" transforma a arte numa tia encaracolada que não transpira, esmagada pelo peso de milhões de catálogos e retrospectivas, a arte transparente e transpirada de Dwan dir-se-ia ter morrido. Por isso só haveria duas ou três pessoas que hoje iriam a uma sala de cinema ver um filme seu. E a sala, outrora cheia, estaria hoje vazia. Porque o cinema morreu? Ou porque "a pequena burguesia planetária domina hoje o mundo"? (Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem?, livro obrigatório.)
Público, 15 de Março de 1995
in Século Passado, de Jorge Silva Melo
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
Maureen O'Hara, actriz:
How Green Was My Valley (1941), de John Ford
The Black Swann (1942), de Henry King
The Spanish Main (1945), de Frank Borzage
Rio Grande (1950), de John Ford
The Quiet Man (1952), de John Ford
The Long Gray Line (1955), de John Ford
Wings of Eagles (1957), de John Ford
On Quantum Mechanics and the Art of Observation.
"In some basic way, according to quantum mechanics, it's not possible for us to be impartial observers. We are participants in reality because we create it as we watch it. In quantum mechanics, this is on a very literal level, and it has to do with wave particle duality and what an object of matter is made up of. Sometimes it's one thing, and sometimes it's another.
The more you get into physics, the more bizarre it gets. I did a lot of studying after Big Trouble in Little China; I got into physics pretty heavily, especially quantum mechanics, and read a lot of books on it, and felt that there was something in the philosophy of quantum mechanics that would work in a horror film like Prince of Darkness—Prince of Darkness being a culmination for me of all the work I'd done in horror movies and of all the horror movies that I've seen, relating them also to science fiction. And I think it finally comes out to Five Million Years to Earth, which was the first movie that I know of that dealt with this kind of science fiction horror—this explanation for the occult. I did it on a little bit different basis, the devil coming alive in a church, bringing his father, the anti-God, back from the mirror world, which relates again to quantum mechanics and particle physics in terms of antimatter, reverse world.
But I could only dress up the story of Prince of Darkness with particle physics. I really couldn't show what it would be like. I'd love to do that someday, and have a character in a movie who has all the characteristics of the wave in particle physics. It would be really interesting to do. On the other hand, I realize that the audience and most of the public out there has no idea about the Uncertainty Principle. And if they do have an idea about it, they reject it because it's too complicated. You always run into a problem when you're dealing with something like this. It reminds me a lot of the beginning of Casablanca when you show a map and have a narrator tell you what's going on in this particular section of the world. You don't necessarily have to do that in a Vietnam story—you know you're in Vietnam, and here comes the story.
It's an old-fashioned way of dealing with the lowest common denominator, which is people who don't know anything about where Casablanca is, or what particle physics is, or what the Ark of the Covenant is. And you always run into that if you're going to deal with something that's not common knowledge among the audience like Love Story. I have run into those scenes myself, and it's very difficult. I think Nigel Kneale did exposition pretty well in his Quatermass movies. His characters would talk, but they wouldn't insult each other by saying things that the other already knew. And they would come to a conclusion by piecing together evidence. Those movies were always to me a scientific, Sherlock Holmes kind of situation where you had a Watson character who was a little less educated than Holmes: "I don't get it, what are you getting at, Holmes?" ... "I'm getting at this." And that seems to be what Quatermass did pretty well."
John Carpenter, in Order in the Universe - The Films of John Carpenter, de Robert C. Cunbow, pp. 180-81
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quarta-feira, 4 de novembro de 2015
Maureen O'Hara e a guerra dos sexos
Nunca houve, no cinema, guerras de sexos mais esplêndidas e implacáveis do que as travadas entre Maureen O'Hara e John Wayne. John Ford, que já tinha transformado esta "pastora audaz da religiosa Irlanda" na mineira amortalhada de um País de Gales patriarcal em How Green Was My Valley (O Vale era Verde, de 1941), inventou esse cocktail explosivo em Rio Grande (1950) e agitou-o até à última potência em The Quiet Man (O Homem Tranquilo, de 1952) e em The Wings of Eagles (A Águia Voa ao Sol, 1957). Muito mais cansados, muito mais frouxos, mas, mesmo assim, ainda bulhando com boas memórias e boas razões, voltaram em McLintock (McLintock, o Magnífico, Andrew V. McLaglen, 1963), sem Ford, mas cheios de marcas dele e em Big Jake (Eu Julgava-o Morto, Mr Jake, George Sherman, 1971).
Big Jake foi o último filme de Maureen FitzSimmons, baptizada Maureen O'Hara por um trio de padrinhos chamados Eric Pommer, Charles Laughton e Alfred Hitchcock para o filme do último, Jamaica Inn (A Pousada da Jamaica, de 1939), último, também, dos filmes que Hitchcock fez em Inglaterra, antes de partir para Hollywood. Maureen, nascida em Dublin, já tinha representado dois pequenos papéis em dois pequenos filmes ingleses com o nome de baptismo. Mas foi com Jamaica Inn que aos 19 anos (nasceu a 17 de Agosto de 1920) se tornou uma estrela e rumou, também, para Hollywood, a convite de Laughton, para fazer o papel de Esmeralda, a cigana de The Hunchback of Notre-Dame (Nossa Senhora de Paris, 1939), celebrada adaptação de William Dieterle do romance de Victor Hugo, em que Charles Laughton foi o Quasimodo.
Em Big Jake, Maureen, com 50 anos e Wayne, com 63, eram avós. A vibração ainda existente vinha dos ecos das zaragatas havidas 20 anos atrás. Zaragatas começadas em Rio Grande - o último e mais amargo dos painéis da trilogia que Ford dedicou à glória da cavalaria americana -, em que Maureen e o "Duke" eram casados há 20 anos, tinham um filho de 18 e já haviam sido maquilhados para parecerem ter 40 ou 50 anos, em vez dos 30 ou 40 que então tinham.
A acção do filme situava-se em 1880 e Kathleen Yorke (Maureen O'Hara) separa-se do marido 15 anos antes, em 1865, no fim da Guerra da Secessão. Ao jovem tenente Kirby Yorke (John Wayne) Kathleen não perdoara ser relegada para segundo lugar perante paixão maior dele: a cavalaria americana. Por ordem desta - ordens do general Sheridan - e por amor desta, John Wayne mandara incendiar as propriedades que a mulher tinha no Sul.
Quinze anos depois, Kirby Yorke, já tenente-coronel, comandava um posto avançado da cavalaria americana no Oeste. Entre os novos recrutas que recebeu de West Point vinha o filho (Claude Jarman Jr.) que não via desde os três anos. E, pouco depois do filho, chegou a mãe. Quando o casal ficou só, em ambiente de cortar à faca, Kathleen disse ao marido que a melhor maneira de acabar com o gelo era ele perguntar-lhe a que devia a honra de tal visita. Kirby respondeu que viu a honra essa manhã e que está muito crescida. E logo começa a guerra. Kathleen quer o filho de volta, já que a missão é especialmente perigosa. Wayne responde-lhe que a única especialidade dela continua a ser a de acreditar que há "special privileges for the special born". E acrescenta: "Still the same Kathleen". Contra-ataque de Kathleen: "Balas, destruições, ruínas - still the same Kirby."
E still the same continuaram até ao fim, na paz como na guerra.
Still the same continuaram na fabulosa história irlandesa do The Quiet Man. Era nesse filme que, quando John Wayne a via, chegado das Américas à Irlanda originária, perguntava a Barry Fitzgerald: "Is that real?" E o velho Barry respondia-lhe (o que eu gosto dessa frase): "Nonsense, man, it's only a mirage brought on by your terrible thirst".
A miragem chamava-se Mary Kate Danaher e, apesar de a sede dela por Wayne ser igual à de Wayne por ela, tentava desesperadamente manter o seu estatuto de donzela irlandesa. Entrou na cabana de Wayne e este agarrou-a para um beijo. Ela conseguiu soltar-se, mas, quando abriu a porta, o vento de Erin empurrou-a para dentro e para o corpo a que devia fugir. E a força do vento, a força de Wayne e a fraqueza dela (ou a força dela) conjugaram-se para o beijo mais espantoso que algum dia houve em cinema, só com possível comparação, em bem diverso contexto, com o beijo de cinco minutos de Cary Grant e Ingrid Bergman, ao telefone de Notorious. Like a sight.
Casaram-se, depois. O irmão de Mary Kate (Victor McLaglen) não esteve de acordo e recusou o dote. Se, para Wayne, isso não teve importância nenhuma, para Mary Kate foi a suprema humilhação. Enquanto Wayne não pagasse por ela, não teria "any piece of me, me, myself". E não teve. A cama desfeita do dia seguinte à noite de núpcias não ilustrou, como pensou Barry Fitzgerald, feitos impetuosos e homéricos de John Wayne. Impetuosa e homérica fora ela na pancadaria com que se recusou à cama e que deixou a cama em tal estado.
E apesar do desejo deles - do desejo de ambos - estar à altura de tais adjectivos, viveram como castíssimos esposos, lado a lado, até que Wayne se decidiu a portar-se segundo os códigos da mulher. Foi buscá-la ao comboio, arrastou-a como uma montada pelo chão de montes e vales e atirou-a como um saco à porta de casa do irmão, desafiando-o para a grande guerra. Uma tarde inteira andaram aos socos. Wayne ganhou e ganhou Maureen O'Hara, nesse final famoso e culminante, o mais belo final erótico de qualquer filme, que ainda hoje tanto ofende as quentes convicções de algumas feministas e o elísio pintasilguismo do dr. Prado Coelho.
Em The Wings of Eagles, a rival de Maureen é a Marinha. E, nesse filme, é ela vencida e abandona Wayne depois de este partir a espinha, deixando-o no hospital com Dan Dailey, a experimentar mil maneiras de voltar a mexer o dedo do pé. E quando - muito mais tarde - se prepara para capitular, os japoneses atacam Pearl Harbor e o Almirante Frank "Spig" Wead (John Wayne), inválido e de muletas, regressa aos navios, antes de ascender ao céu de corpo e alma. Pela primeira vez, como Wayne lhe diz: "Take your turn I take mine. You're just through."
Muito depois, no filme, olhando-lhe um retrato, diz, meio irónico, meio comovido: "Good-morning, Miss America". Essa teetian-haired darling (nome que John Wayne também lhe dá em The Wings of Eagles), muitas vezes fora chamada assim. Miss America ou The Queen of Technicolor. Por causa dos ruivíssimos cabelos, dos grandes olhos de perdiz amendoados e esverdeados, da testa altíssima, do colo imenso. Mas, se foi das mulheres mais bonitas que apareceram por Hollywood nos forties, para mim está sempre ligada a essas guerras dos sexos que tiveram o apogeu nos três filmes citados de Ford, mas vinham muito de trás.
Com ela aprendi - antes de me apaixonar por Joan Fontaine, como contei na última crónica - o curtíssimo caminho que vai dos grandes beijos às grandes bofetadas. Uns e outras deu e levou de Tyrone Power, Joel McCrea, Paul Henreid ou Douglas Fairbanks Jr. em filmes a que devo toda a minha educação sadomasoquista. Títulos como, respectivamente, The Black Swan (O Pirata Negro, Henry King, 1942), Buffalo Bill (As Aventuras de Buffalo Bill, William Wellman, 1944), The Spanish Main (O Terror dos Sete Mares, Frank Borzage, 1945) ou Sinbad The Sailor (Sinbad, o Marinheiro, Richard Wallace, 1947). Todos em technicolor, a cor de Maureen.
Não era em technicolor, mas num processo deliciosamente chamado trucolor by consolidated, que foi filmado Lisbon (Ray Milland, 1956), o filme que a trouxe a Portugal. Doze anos depois de eu a ter conhecido biblicamente no Pirata Negro, conheci-a em carne e osso num almoço em Queluz, em que ela era a "estrela" (nos braços de Ray Milland) e eu um figurante, pela primeira vez diante de uma câmara e diante dela. Mas, para meu grande desgosto, não houve beijos nem bofetadas e Maureen e Ray limitaram-se a uma conversa estúpida num filme estúpido. Fui a correr entrevê-la no cinema, no filme de Lubin sobre Lady Godiva, mas vestiram o cavalo e não a despiram a ela.
Que importa tudo isso e outras coisas péssimas que fez, nos anos 50 e 60, antes de casar com o general Blair (terceiro marido), o primeiro homem que sobrevoou sozinho o Oceano Glacial Árctico e o Pólo Norte? Para mim, esta mulher, que fez há dias 69 anos, é, e será sempre, a mulher que John Ford casou com John Wayne. Ou a mulher chamada Angharad que, em How Green Was My Valley do mesmo Ford, levantava a cortina da janela para ver passar Walter Pidgeon, que lhe havia de fazer as piores coisas pelas melhores razões. Ou essa outra irlandesa - Mary, Mary O'Donnell - que em The Long Gray Line (Uma Vida Inteira), mais uma vez de Ford (1955), passava uma tarde toda com Tyrone Power sem abrir a boca e quando a abriu foi para lhe dar um beijo. Ou a mulher de todos os piratas, de todos os pistoleiros, de todos os espadachins, de todas as guerras, de todos os sexos. Maureen, Maureen O'Hara.
E, à jovem luz de Maio, foi ela quem viu Wayne-Ulisses cavar a terra das rosas. E, à jovem luz de Maio, foi ela a Danae possuída em chuva de moedas por Wayne-Zeus.
in Muito Lá de Casa, de João Bénard da Costa
Big Jake foi o último filme de Maureen FitzSimmons, baptizada Maureen O'Hara por um trio de padrinhos chamados Eric Pommer, Charles Laughton e Alfred Hitchcock para o filme do último, Jamaica Inn (A Pousada da Jamaica, de 1939), último, também, dos filmes que Hitchcock fez em Inglaterra, antes de partir para Hollywood. Maureen, nascida em Dublin, já tinha representado dois pequenos papéis em dois pequenos filmes ingleses com o nome de baptismo. Mas foi com Jamaica Inn que aos 19 anos (nasceu a 17 de Agosto de 1920) se tornou uma estrela e rumou, também, para Hollywood, a convite de Laughton, para fazer o papel de Esmeralda, a cigana de The Hunchback of Notre-Dame (Nossa Senhora de Paris, 1939), celebrada adaptação de William Dieterle do romance de Victor Hugo, em que Charles Laughton foi o Quasimodo.
Em Big Jake, Maureen, com 50 anos e Wayne, com 63, eram avós. A vibração ainda existente vinha dos ecos das zaragatas havidas 20 anos atrás. Zaragatas começadas em Rio Grande - o último e mais amargo dos painéis da trilogia que Ford dedicou à glória da cavalaria americana -, em que Maureen e o "Duke" eram casados há 20 anos, tinham um filho de 18 e já haviam sido maquilhados para parecerem ter 40 ou 50 anos, em vez dos 30 ou 40 que então tinham.
A acção do filme situava-se em 1880 e Kathleen Yorke (Maureen O'Hara) separa-se do marido 15 anos antes, em 1865, no fim da Guerra da Secessão. Ao jovem tenente Kirby Yorke (John Wayne) Kathleen não perdoara ser relegada para segundo lugar perante paixão maior dele: a cavalaria americana. Por ordem desta - ordens do general Sheridan - e por amor desta, John Wayne mandara incendiar as propriedades que a mulher tinha no Sul.
Quinze anos depois, Kirby Yorke, já tenente-coronel, comandava um posto avançado da cavalaria americana no Oeste. Entre os novos recrutas que recebeu de West Point vinha o filho (Claude Jarman Jr.) que não via desde os três anos. E, pouco depois do filho, chegou a mãe. Quando o casal ficou só, em ambiente de cortar à faca, Kathleen disse ao marido que a melhor maneira de acabar com o gelo era ele perguntar-lhe a que devia a honra de tal visita. Kirby respondeu que viu a honra essa manhã e que está muito crescida. E logo começa a guerra. Kathleen quer o filho de volta, já que a missão é especialmente perigosa. Wayne responde-lhe que a única especialidade dela continua a ser a de acreditar que há "special privileges for the special born". E acrescenta: "Still the same Kathleen". Contra-ataque de Kathleen: "Balas, destruições, ruínas - still the same Kirby."
E still the same continuaram até ao fim, na paz como na guerra.
Still the same continuaram na fabulosa história irlandesa do The Quiet Man. Era nesse filme que, quando John Wayne a via, chegado das Américas à Irlanda originária, perguntava a Barry Fitzgerald: "Is that real?" E o velho Barry respondia-lhe (o que eu gosto dessa frase): "Nonsense, man, it's only a mirage brought on by your terrible thirst".
A miragem chamava-se Mary Kate Danaher e, apesar de a sede dela por Wayne ser igual à de Wayne por ela, tentava desesperadamente manter o seu estatuto de donzela irlandesa. Entrou na cabana de Wayne e este agarrou-a para um beijo. Ela conseguiu soltar-se, mas, quando abriu a porta, o vento de Erin empurrou-a para dentro e para o corpo a que devia fugir. E a força do vento, a força de Wayne e a fraqueza dela (ou a força dela) conjugaram-se para o beijo mais espantoso que algum dia houve em cinema, só com possível comparação, em bem diverso contexto, com o beijo de cinco minutos de Cary Grant e Ingrid Bergman, ao telefone de Notorious. Like a sight.
Casaram-se, depois. O irmão de Mary Kate (Victor McLaglen) não esteve de acordo e recusou o dote. Se, para Wayne, isso não teve importância nenhuma, para Mary Kate foi a suprema humilhação. Enquanto Wayne não pagasse por ela, não teria "any piece of me, me, myself". E não teve. A cama desfeita do dia seguinte à noite de núpcias não ilustrou, como pensou Barry Fitzgerald, feitos impetuosos e homéricos de John Wayne. Impetuosa e homérica fora ela na pancadaria com que se recusou à cama e que deixou a cama em tal estado.
E apesar do desejo deles - do desejo de ambos - estar à altura de tais adjectivos, viveram como castíssimos esposos, lado a lado, até que Wayne se decidiu a portar-se segundo os códigos da mulher. Foi buscá-la ao comboio, arrastou-a como uma montada pelo chão de montes e vales e atirou-a como um saco à porta de casa do irmão, desafiando-o para a grande guerra. Uma tarde inteira andaram aos socos. Wayne ganhou e ganhou Maureen O'Hara, nesse final famoso e culminante, o mais belo final erótico de qualquer filme, que ainda hoje tanto ofende as quentes convicções de algumas feministas e o elísio pintasilguismo do dr. Prado Coelho.
Em The Wings of Eagles, a rival de Maureen é a Marinha. E, nesse filme, é ela vencida e abandona Wayne depois de este partir a espinha, deixando-o no hospital com Dan Dailey, a experimentar mil maneiras de voltar a mexer o dedo do pé. E quando - muito mais tarde - se prepara para capitular, os japoneses atacam Pearl Harbor e o Almirante Frank "Spig" Wead (John Wayne), inválido e de muletas, regressa aos navios, antes de ascender ao céu de corpo e alma. Pela primeira vez, como Wayne lhe diz: "Take your turn I take mine. You're just through."
Muito depois, no filme, olhando-lhe um retrato, diz, meio irónico, meio comovido: "Good-morning, Miss America". Essa teetian-haired darling (nome que John Wayne também lhe dá em The Wings of Eagles), muitas vezes fora chamada assim. Miss America ou The Queen of Technicolor. Por causa dos ruivíssimos cabelos, dos grandes olhos de perdiz amendoados e esverdeados, da testa altíssima, do colo imenso. Mas, se foi das mulheres mais bonitas que apareceram por Hollywood nos forties, para mim está sempre ligada a essas guerras dos sexos que tiveram o apogeu nos três filmes citados de Ford, mas vinham muito de trás.
Com ela aprendi - antes de me apaixonar por Joan Fontaine, como contei na última crónica - o curtíssimo caminho que vai dos grandes beijos às grandes bofetadas. Uns e outras deu e levou de Tyrone Power, Joel McCrea, Paul Henreid ou Douglas Fairbanks Jr. em filmes a que devo toda a minha educação sadomasoquista. Títulos como, respectivamente, The Black Swan (O Pirata Negro, Henry King, 1942), Buffalo Bill (As Aventuras de Buffalo Bill, William Wellman, 1944), The Spanish Main (O Terror dos Sete Mares, Frank Borzage, 1945) ou Sinbad The Sailor (Sinbad, o Marinheiro, Richard Wallace, 1947). Todos em technicolor, a cor de Maureen.
Não era em technicolor, mas num processo deliciosamente chamado trucolor by consolidated, que foi filmado Lisbon (Ray Milland, 1956), o filme que a trouxe a Portugal. Doze anos depois de eu a ter conhecido biblicamente no Pirata Negro, conheci-a em carne e osso num almoço em Queluz, em que ela era a "estrela" (nos braços de Ray Milland) e eu um figurante, pela primeira vez diante de uma câmara e diante dela. Mas, para meu grande desgosto, não houve beijos nem bofetadas e Maureen e Ray limitaram-se a uma conversa estúpida num filme estúpido. Fui a correr entrevê-la no cinema, no filme de Lubin sobre Lady Godiva, mas vestiram o cavalo e não a despiram a ela.
Que importa tudo isso e outras coisas péssimas que fez, nos anos 50 e 60, antes de casar com o general Blair (terceiro marido), o primeiro homem que sobrevoou sozinho o Oceano Glacial Árctico e o Pólo Norte? Para mim, esta mulher, que fez há dias 69 anos, é, e será sempre, a mulher que John Ford casou com John Wayne. Ou a mulher chamada Angharad que, em How Green Was My Valley do mesmo Ford, levantava a cortina da janela para ver passar Walter Pidgeon, que lhe havia de fazer as piores coisas pelas melhores razões. Ou essa outra irlandesa - Mary, Mary O'Donnell - que em The Long Gray Line (Uma Vida Inteira), mais uma vez de Ford (1955), passava uma tarde toda com Tyrone Power sem abrir a boca e quando a abriu foi para lhe dar um beijo. Ou a mulher de todos os piratas, de todos os pistoleiros, de todos os espadachins, de todas as guerras, de todos os sexos. Maureen, Maureen O'Hara.
E, à jovem luz de Maio, foi ela quem viu Wayne-Ulisses cavar a terra das rosas. E, à jovem luz de Maio, foi ela a Danae possuída em chuva de moedas por Wayne-Zeus.
in Muito Lá de Casa, de João Bénard da Costa
terça-feira, 11 de agosto de 2015
terça-feira, 4 de agosto de 2015
"(…)In the car, Redford, scowling, complains at length about film critics and writers.
"Ah, nobody reads that shit," Newman scoffs. "But also, I guess it's kind of hard on journalists. I'm sure there are a lot of times in the Time/Life situations where you're sucked into a common form. The real bad ones, I gather, are the ladies magazines—Home Journal, Redbook—"
"It's funnythe critics for Time magazine, the movie critics there all seem interchangeable. It's because the style is so definite. They must impose a style."
"Hah!" Newman snorts. "I took off on Jay Cocks on the Cavett show. I did him in."
"Yeah, he's a punk, Cocks. He's one of those guys who's never been anywhere. He's never been to the Bahamas, and yet he wears leathers, long hair, you know
Again, those guys who want to be in Hollywood, I wish they'd just go and settle there and write a script or whatever it is they want to do."
"I said the worst thing about Cocks," Newman says with a ghoulish cackle. "I said he's cute. He writes cute. That's really got to set the guy on edge, you know. That must be the worst thing you could call a writer.
"The thing is, when they're really down on something, they—Take Gamma Rays, which I just did with Joanne [Woodward, Newman's wife]. Vincent Canby of the Times obviously hated the play. He hated the play so badly that he was stammering. He hated the play so much he couldn't see the movie. To the point where there was nothing in the picture. I shot it in Bridgeport, you know, and I filmed what was there. It's a terribly depressing little townthe mayor calls it the armpit of New England. But Canby had to hate everything about the picture, so in his review he even had to quarrel with my choice of where to shoot it. Whewsuch bullshit." Newman grimaces and drains off the last of his beer.
"Well, I think the end of us all is going to be Pauline Kael," Redford mutters darkly as the limo swings into the auto portal at the hotel. "She claimed that in the end of Jeremiah Johnson, I was giving the Indian the finger. The finger, for Christ's sake."
Newman laughs and stretches forth his hand: "In the last scene? When you were going like this?"
"Yeah, I just reached my hand out. That, she claimed, was the final blow, the final insult. When I read that, I realized that she was so out of line, she was so bent that she's probably a woman who ought to be locked up somewhere, you know. When you get that balled up, it's bye-bye time. (…)"
in The Redoubtable Mr. Newman, por Grover Lewis.
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sábado, 1 de agosto de 2015
terça-feira, 21 de julho de 2015
… E eu voltei a ver Rubens e fui à catedral de Antuérpia por causa de Cecil B. DeMille
Sei muito bem que fui ao Museu do Prado pela primeira vez no Verão de 1954, fazia eu seis anos. E sei que pedi à minha irmã que me comprasse dois postais, que nessa altura ainda eram a preto e branco. Um é de La Gallina Ciega, lindo cartão de Goya, daqueles com o céu cor de poeira, céu seco de Madrid. E o outro As Três Graças de Rubens, que durante muito tempo ficou numa estante azul que ainda ali está, onde eu ia amontoando o Coração de Amicis, as vidas de S. Luis Gonzaga ou Edison, a História de Mattoso I, Dickens e os programas do CCC (Centro Cultural de Cinema) que a mesma minha irmã desde o número um me trazia às quintas-feiras das sessões do Jardim Cinema.
Rubens terá sido, portanto, uma das minhas primeiras iluminações. Quando ainda nem a puberdade se aproximava. Sabe-se lá porquê, aquela carne toda daquelas três raparigaças da Flandres, muito amigas e rivais, tinha tocado cá fundo, prevendo já, se calhar, que também eu havia de ser gorducho e não saber qual das três moças devia escolher.
Seguiu-se a adolescência, a juventude, outros amores e também na pintura. E Rubens passou a ser, em quase todos os museus por onde andei - até às cãimbras - um pesado artista, cujos quadros, sempre enormes e sempre pendurados lá para cima de todos os torcicolos, enchiam os enormes corredores, que passaram a ser apenas um trajecto necessário até ao Ticiano que estava para além, à direita (no Prado), ou os primitivos italianos, ao fundo à esquerda (no Louvre ou no Dahlem). De vez em quando, lá parava perante um quadro, a Helene Fourment aqui da Gulbenkian, as da Alte Pinacothecke de Munique, sempre As Três Graças do Prado, e O Jardim do Amor, o Seleno embriagado (genial!) de Munique ou O Massacre dos Inocentes. E o Cristo na Cruz.
Mas, admirando este ou aquele, não havia meio de Rubens me voltar a entrar cá para dentro do coração. Lá reconhecia aquelas coisas que os catálogos mandam observar: o valor das composições (mas eu gostava era de Delacroix), percebia os valores cromáticos (mas o Ticiano…), o sentido do espaço (pois, mas o Tintoretto…). Talvez pela quantidade das obras - só no Prado são mais de oitenta -, talvez por ele "fazer de tudo e tanto" (retrato, cena religiosa, cena mitológica, cena histórica, paisagem, o diabo a quatro), parecia-me tudo obra de excelente fabbro, necessário, pela certa, à História da Pintura, mas não à vida que cá comigo vivia.
Até que, num dia de 1989, li um artigo de João Bénard da Costa sobre O Rei dos Reis de Cecil B. DeMille - realizador de cujos filmes sempre gostei muito, mas muito mesmo, e sempre a sós para comigo. Dizia o impressionista Bénard: "Se há cineasta rubensiano ele é Cecil B. (…) o mesmo sangue, ou melhor a mesma carne. Os temas de DeMille são os mesmos que Argan vê em Rubens: o mito, a história, a natureza, a alegoria, a fé. Argan disse das composições de Rubens o que se pode dizer das de DeMille: "Dinâmicas em espiral, feitas de oblíquas, curvas, órbitas, abismos abertos e massas concentradas em turbilhões. A cor formando torrentes impetuosas que regressam sem cessar, aliando os tons mais claros aos coloridos mais exuberantes. Futuro e passado que não dissolvem sensações mas as intensificam e aceleram numa posse do presente em que os sentidos têm um papel predominante" (…) DeMille conseguiu, através de uma poética e de uma retórica, reencontrar os valores de Rubens, ele também directo apreendedor de outro momento similar da história das formas. E, talvez, por isso, defendeu e revalorizou "imagens" ao serviço de uma dogmática, tentando provocar a piedade e o terror e vendo, como finalidade última delas, a capacidade de persuadir." (in "Os Filmes da Minha Vida/Os Meus Filmes da Vida").
Ora, eu semper gostara de DeMille. E exactamente por isso que Argan e Bénard diziam de Rubens. Lembro-me do Éden de Os Dez Mandamentos, do Olympia onde repunham sempre - e eu lá ia ver a Claudette Colbert a tomar banho - O Sinal da Cruz, do Chiado-Terrasse deste Sansão e Dalila e d'O Maior Espectáculo do Mundo. Lembro-me da troça que a gente culta - que eu sempre, graças a Deus, fui frequentando, na escola e nos cafés - fazia do seu cinema, considerado "pastelão", "americanada", exemplo máximo da grosseria do Novo Mundo contra a elegância do então muito apreciado tweed do cinema inglês. Mas eu gostava daquilo, que é que querem? Daqueles corpos semi-nus atormentados, daqueles turbilhões humanos, daquelas mulheres imponentes (sempre sonharei com Anne Baxter no Egipto ou com a sibilina elegância de Nina Foch), daqueles cenários vindos do circo Barnum e do "maior espectáculo do mundo", sempre corei ao ver os amores encarnados e azuis de Hedy Lamarr com Victor Mature, sempre fiquei preso a esse "prazer erótico de filmar a carne e o sangue, os corpos e a sua energia" (ainda Bénard da Costa, mas do "Catálogo dos Anos 50"). E tinha decidido, cá para mim, que, pronto, eu gostava muito mas não ia tentar convencer quem quer que fosse, pois "quem tem do cinema uma visão literária jamais pode aceder ao universo de um homem que foi simultaneamente um primitivo - um cinema que ainda não tinha descoberto a sua própria perspectiva - e um barroco - exercendo todas as ilusões da perspectiva sob o postulado da anulação dela." (Bénard da Costa, idem).
Foi numa Sexta-feira Santa de 1989 que, antes de pôr no gira-discos a Paixão de Bach/Klemperer (com instrumentos apócrifos, benza-o Deus), li o artigo. E fiquei parvo. Viria depois a descobrir que, já em 1981, no supracitado catálogo - e que, entre minhas mãos, já quase desfeito está - Bénard da Costa dizia o mesmo. E eu, que o lera e relera, não o tinha ouvido. Porque só percebi a poética necessidade de filiar DeMille no carnal e aéreo Rubens (Caliban e Ariel juntos, humana complexidade!) nessa sexta-feira em que, mais uma vez, um texto "sobre um filme" me fez ver. Ver a vida, ah!
Como o senhor Jourdain de Molière, que sempre, sem o saber, falara em prosa, também eu não sabia que, mesmo sem ver, já via e sempre frequentara Rubens, mesmo quando por ele, indiferente, passava. E veio-me uma imperiosa (e depois adiada) vontade de ir ver Rubens. Foi quando - e por causa do Herberto Helder, fui de comboio - fui a Antuérpia, gelada manhã de Janeiro de 1993. E entrei na Catedral, ainda a acabar as obras de restauro, e vi A Descida da Cruz. E foi um dos mais luminosos dias que comigo passei nestes últimos anos. Porque, mais uma vez, Bénard da Costa vendo, me tinha feito ver. E o que é bonito, mesmo nessa crónica, é esta frase com que justifica a filiação Rubens/DeMille: "Não me perguntem por que caminhos, que não lhes sei responder." Ah! Parece-me isto poesia, e era isso o que eu pensei que a crítica podia fazer - mas não há meio de fazer, que mundo é este?: "tornar obscuro o que é claro e claro o que é obscuro."
Volta a ser Páscoa, a tv este ano mostra-nos dois DeMille - o extraordinário Sansão e Dalila de todas as erecções e o celebérrimo Rei dos Reis que só vi em salões paroquiais de há muitos anos, na altura em que, na minha estante azul, imperavam As Três Graças. Provavelmente pensam que não gostam de DeMille, que se trata de um grosseiríssimo gringo, como eu cá para dentro de mim pensava que era Rubens, o corpóreo flamengo da pintura como persuasão e propaganda, e agora voltei a precisar tanto dele.
Mas vejam estes dois filmes: não foi sempre disto que gostaram no cinema? Deste esplendor dos corpos atormentados como nas pagelas em que nos mostravam o inferno? Não é este seu cinema a cúpula popular de toda uma poética da carne, pela qual calcorreámos salas e salas de museu e outras sex-shops? Não é esta tormenta da carne a que mais sonhos, noites e noites nos forneceu?
Rubens terá sido, portanto, uma das minhas primeiras iluminações. Quando ainda nem a puberdade se aproximava. Sabe-se lá porquê, aquela carne toda daquelas três raparigaças da Flandres, muito amigas e rivais, tinha tocado cá fundo, prevendo já, se calhar, que também eu havia de ser gorducho e não saber qual das três moças devia escolher.
Seguiu-se a adolescência, a juventude, outros amores e também na pintura. E Rubens passou a ser, em quase todos os museus por onde andei - até às cãimbras - um pesado artista, cujos quadros, sempre enormes e sempre pendurados lá para cima de todos os torcicolos, enchiam os enormes corredores, que passaram a ser apenas um trajecto necessário até ao Ticiano que estava para além, à direita (no Prado), ou os primitivos italianos, ao fundo à esquerda (no Louvre ou no Dahlem). De vez em quando, lá parava perante um quadro, a Helene Fourment aqui da Gulbenkian, as da Alte Pinacothecke de Munique, sempre As Três Graças do Prado, e O Jardim do Amor, o Seleno embriagado (genial!) de Munique ou O Massacre dos Inocentes. E o Cristo na Cruz.
Mas, admirando este ou aquele, não havia meio de Rubens me voltar a entrar cá para dentro do coração. Lá reconhecia aquelas coisas que os catálogos mandam observar: o valor das composições (mas eu gostava era de Delacroix), percebia os valores cromáticos (mas o Ticiano…), o sentido do espaço (pois, mas o Tintoretto…). Talvez pela quantidade das obras - só no Prado são mais de oitenta -, talvez por ele "fazer de tudo e tanto" (retrato, cena religiosa, cena mitológica, cena histórica, paisagem, o diabo a quatro), parecia-me tudo obra de excelente fabbro, necessário, pela certa, à História da Pintura, mas não à vida que cá comigo vivia.
Até que, num dia de 1989, li um artigo de João Bénard da Costa sobre O Rei dos Reis de Cecil B. DeMille - realizador de cujos filmes sempre gostei muito, mas muito mesmo, e sempre a sós para comigo. Dizia o impressionista Bénard: "Se há cineasta rubensiano ele é Cecil B. (…) o mesmo sangue, ou melhor a mesma carne. Os temas de DeMille são os mesmos que Argan vê em Rubens: o mito, a história, a natureza, a alegoria, a fé. Argan disse das composições de Rubens o que se pode dizer das de DeMille: "Dinâmicas em espiral, feitas de oblíquas, curvas, órbitas, abismos abertos e massas concentradas em turbilhões. A cor formando torrentes impetuosas que regressam sem cessar, aliando os tons mais claros aos coloridos mais exuberantes. Futuro e passado que não dissolvem sensações mas as intensificam e aceleram numa posse do presente em que os sentidos têm um papel predominante" (…) DeMille conseguiu, através de uma poética e de uma retórica, reencontrar os valores de Rubens, ele também directo apreendedor de outro momento similar da história das formas. E, talvez, por isso, defendeu e revalorizou "imagens" ao serviço de uma dogmática, tentando provocar a piedade e o terror e vendo, como finalidade última delas, a capacidade de persuadir." (in "Os Filmes da Minha Vida/Os Meus Filmes da Vida").
Ora, eu semper gostara de DeMille. E exactamente por isso que Argan e Bénard diziam de Rubens. Lembro-me do Éden de Os Dez Mandamentos, do Olympia onde repunham sempre - e eu lá ia ver a Claudette Colbert a tomar banho - O Sinal da Cruz, do Chiado-Terrasse deste Sansão e Dalila e d'O Maior Espectáculo do Mundo. Lembro-me da troça que a gente culta - que eu sempre, graças a Deus, fui frequentando, na escola e nos cafés - fazia do seu cinema, considerado "pastelão", "americanada", exemplo máximo da grosseria do Novo Mundo contra a elegância do então muito apreciado tweed do cinema inglês. Mas eu gostava daquilo, que é que querem? Daqueles corpos semi-nus atormentados, daqueles turbilhões humanos, daquelas mulheres imponentes (sempre sonharei com Anne Baxter no Egipto ou com a sibilina elegância de Nina Foch), daqueles cenários vindos do circo Barnum e do "maior espectáculo do mundo", sempre corei ao ver os amores encarnados e azuis de Hedy Lamarr com Victor Mature, sempre fiquei preso a esse "prazer erótico de filmar a carne e o sangue, os corpos e a sua energia" (ainda Bénard da Costa, mas do "Catálogo dos Anos 50"). E tinha decidido, cá para mim, que, pronto, eu gostava muito mas não ia tentar convencer quem quer que fosse, pois "quem tem do cinema uma visão literária jamais pode aceder ao universo de um homem que foi simultaneamente um primitivo - um cinema que ainda não tinha descoberto a sua própria perspectiva - e um barroco - exercendo todas as ilusões da perspectiva sob o postulado da anulação dela." (Bénard da Costa, idem).
Foi numa Sexta-feira Santa de 1989 que, antes de pôr no gira-discos a Paixão de Bach/Klemperer (com instrumentos apócrifos, benza-o Deus), li o artigo. E fiquei parvo. Viria depois a descobrir que, já em 1981, no supracitado catálogo - e que, entre minhas mãos, já quase desfeito está - Bénard da Costa dizia o mesmo. E eu, que o lera e relera, não o tinha ouvido. Porque só percebi a poética necessidade de filiar DeMille no carnal e aéreo Rubens (Caliban e Ariel juntos, humana complexidade!) nessa sexta-feira em que, mais uma vez, um texto "sobre um filme" me fez ver. Ver a vida, ah!
Como o senhor Jourdain de Molière, que sempre, sem o saber, falara em prosa, também eu não sabia que, mesmo sem ver, já via e sempre frequentara Rubens, mesmo quando por ele, indiferente, passava. E veio-me uma imperiosa (e depois adiada) vontade de ir ver Rubens. Foi quando - e por causa do Herberto Helder, fui de comboio - fui a Antuérpia, gelada manhã de Janeiro de 1993. E entrei na Catedral, ainda a acabar as obras de restauro, e vi A Descida da Cruz. E foi um dos mais luminosos dias que comigo passei nestes últimos anos. Porque, mais uma vez, Bénard da Costa vendo, me tinha feito ver. E o que é bonito, mesmo nessa crónica, é esta frase com que justifica a filiação Rubens/DeMille: "Não me perguntem por que caminhos, que não lhes sei responder." Ah! Parece-me isto poesia, e era isso o que eu pensei que a crítica podia fazer - mas não há meio de fazer, que mundo é este?: "tornar obscuro o que é claro e claro o que é obscuro."
Volta a ser Páscoa, a tv este ano mostra-nos dois DeMille - o extraordinário Sansão e Dalila de todas as erecções e o celebérrimo Rei dos Reis que só vi em salões paroquiais de há muitos anos, na altura em que, na minha estante azul, imperavam As Três Graças. Provavelmente pensam que não gostam de DeMille, que se trata de um grosseiríssimo gringo, como eu cá para dentro de mim pensava que era Rubens, o corpóreo flamengo da pintura como persuasão e propaganda, e agora voltei a precisar tanto dele.
Mas vejam estes dois filmes: não foi sempre disto que gostaram no cinema? Deste esplendor dos corpos atormentados como nas pagelas em que nos mostravam o inferno? Não é este seu cinema a cúpula popular de toda uma poética da carne, pela qual calcorreámos salas e salas de museu e outras sex-shops? Não é esta tormenta da carne a que mais sonhos, noites e noites nos forneceu?
Público, 13 de Abril de 1995
in Século Passado - Jorge Silva Melo
domingo, 19 de julho de 2015
GRIFFITH (quietly as usual): Where did you find that one, Mr. Walsh?
ME: In jail.
GRIFFITH (to Woods): Sign him up.
Raoul Walsh, em Each Man in His Time.
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sexta-feira, 3 de julho de 2015
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