segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Perguntas sobre o cinema americano


por Claude Chabrol, Jacques Doniol-Valcroze, Jean-Luc Godard, Pierre Kast, Luc Moullet, Jacques Rivette e François Truffaut

1) Que faz neste momento? Se estiver a preparar um filme, quais são as condições de produção?

2) Trabalha mais facilmente para a televisão ou em cinema? Porquê? 

3) Está satisfeito com as condições (produção-distribuição) nas quais fez os seus filmes mais recentes? Porquê? Se não, porquê? 

4) Qual é o seu projecto mais acarinhado? Está a pensar realizá-lo, e em que condições de produção? Se lhe impossível realizá-lo, porquê? O que é que o está a impedir? 

5) Trabalha com mais ou menos liberdade do que há dez anos? Os temas quentes (tanto morais como sociais) hoje em dia estão-lhe mais acessíveis? 

6) Hollywood mudou de há dez anos para cá? em que sentido?

*

1 - Estou a preparar um novo filme para a Columbia. Vai-se chamar Mickey One e será rodado na Costa Leste. As condições de produção são excelentes: sou totalmente responsável pelo filme e os únicos limites que me impõem são financeiros. Permite-me rodar com um pequeno orçamento e, enquanto o respeitar, a minha liberdade será absoluta no que diz respeito ao argumento e à escolha dos actores. A Columbia nem sequer está autorizada a ler o argumento sem o meu consentimento. São condições pouco habituais para o cinema americano, é o mínimo que se pode dizer. 
 
2 - Não trabalho para a televisão há cinco anos. A televisão é impossível nos Estados Unidos, porque é propriedade exclusiva dos anunciantes, a a visão deles do mundo é uma mistura de luxo, felicidade e água de rosas... em suma, uma mentira quase total. 
 
3 - O meu último filme, O Milagre de Anne Sullivan, foi realizado para a United Artists em Nova Iorque. Fiquei contente com as condições em que fizemos esse filme, mas não fiquei muito contente com o resultado. 

4 - O meu projecto mais acarinhado é o de realizar um bom film. Tenho a certeza que consigo arranjar os meios materiais necessários. Mais não tenho assim tanta certeza das minhas próprias capacidades. Sou livre, mas isso pode ser assustador. 
 
5 - Hoje em dia temos muito mais liberdade. É realmente mais fácil ser autorizado a abordar diversos temas. O que é mais difícil, é saber a verdade sobre esses temas. 
 
6 - Eu não ponho os pés em Hollywood há cinco anos. Não acho que tenha mudado de forma significativa. Consegue-se a liberdade para fazer filmes, mas nenhuma liberdade social, porque Hollywood é uma cidade que teve a inteligência de estabelecer a sua moralidade e os seus costumes ao nível mais venal. Por isso, as mudanças, em Hollywood, só podem ser superficiais. Em suma, não gosto dessa cidade, e não tenho vontade nenhuma de lá trabalhar.


in «Situation du cinéma americain», Cahiers du Cinéma nº 150-151, Dezembro de 1963 - Janeiro de 1964.

domingo, 1 de outubro de 2023

ENCONTRO COM JOÃO DIAS


Como é que o cinema chegou até ti? Começou na infância? Na adolescência? Quando é que decidiste que podia ser uma carreira? Foste para Filosofia primeiro, não foi? 
 
O primeiro contacto com o cinema foi numa sessão de Os 101 Dálmatas, no Quarteto. Era um miúdo, muito pequeno. É uma memória de sonho, que está na névoa, coisas de outra vida. Terão havido outras sessões de cinema mas que não deixaram lastro. Mais tarde, deveria ter uns treze anos, vivia em Miratejo, um subúrbio puro e duro, tão horrível quanto maravilhoso, e tinha uma namorada com entusiasmo por cinema. Abriu uma pequena sala no centro comercial e ela insistiu, «sexta-feira à noite podemos ir namorar, onde é que vamos?». Fomos ao cinema. E essa sessão foi dramática, porque a sala de cinema era o lugar onde a matilha do subúrbio se juntava para a festa rija, e as sessões eram passadas com a malta aos berros, aos pulos, a fazer tropelias, a dar umas quecas, a fumar… O filme era a desculpa para uma estranha festa pagã. Eu era um rapaz meio enfiado e aquilo causou-me uma impressão terrível. Aliás, hoje fala-se muito do cinema em sala e do cinema em casa, e procura-se estabelecer uma diferença afirmando que o cinema é um acontecimento social. Não é um argumento que me toque muito. Para mim, a experiência do cinema foi sempre mais a de uma solidão exuberante do que a de um acto social. Mais tarde, na Cinemateca, vi muito cinema, duas, três sessões por dia. Celebrava-se o centenário e havia uma programação muito intensa, cheia dos grandes clássicos. 
 
Quê, '96? 
 
Exactamente. Mas, mesmo aí, o cinema não passou a ser, para mim, um acto social. Depois do filme há sobretudo um movimento de recolhimento, de pensar no que acabou de acontecer. Bom, tinha ido estudar fotografia, mas aquilo não me oferecia resistência suficiente, e tinha aquele ímpeto de juventude de querer sempre algo mais… 

Mais desafiante? 

Mais desafiante, sim, uma coisa mais aventurosa. Foi dessa vontade de aventura que verdadeiramente vim dar ao cinema. No início, em filmes de outros. Primeiro o Edgar Pêra, onde descobri a montagem, num período muito intenso de trabalho, em que se laboravam 24 horas, em turnos. Ficava a trabalhar à noite, até o Edgar chegar de manhã. Aí há uma primeira experiência do cinema que não é a do espectador. A partir das dez da noite não se ouve ninguém e estás até às cinco da manhã numa solidão absoluta a trabalhar as imagens, a escolher, eventualmente a começar algumas colagens entre planos. Isto bate novamente na tecla de uma experiência solitária, muito silenciosa, quer dizer, um bocadinho mais próxima do imaginário que temos do poeta a escrever, o silêncio, o isolamento. 

Como é que conheceste o Pedro Costa e acabaste a trabalhar com ele? E que influência é que ele teve, o que é que aprendeste com ele? 

A certa altura fui estudar Filosofia, mas isso foi interrompido quando fui chamado para o serviço militar obrigatório. Fiquei lá oito meses e depois, por várias circunstâncias, já não consegui retomar o curso. Queria fazer os meus filmes. E surge um desafio para fazer um filme sobre o SAAL, que é um filme que tu conheces, e sobre o qual já escreveste, e muito bem. Esse filme sobre o SAAL foi produzido pelo Abel Ribeiro Chaves, que tinha um segundo andar nos Restauradores onde ele guardava equipamento, nuns andaimes montados e cheios de caixas. Eu fui pedir ao Abel um sítio para trabalhar e lá fiquei no meio dessas caixas a montar o filme. Entretanto, o Abel acolheu o Pedro Costa, que também precisava de um espaço para trabalhar. Começaram então a sair dali umas caixas, aquilo começou a ficar mais ajeitado e ali ficámos os dois, ele numa sala, eu noutra. Havia ali uma convivência de parceiros de escritório. Ele na sua mesinha, eu na minha mesinha, a fazer as nossas coisas e depois tínhamos aqueles encontros de quem se vai falando, não é? Isto durou bastante tempo e foi-se criando uma relação de alguma fraternidade operária, digamos assim. Entretanto, ele tem o Ne Change Rien para montar com a Patrícia Saramago. Queriam alguém para sincronizar o som, eu estava ali. Só aí começa verdadeiramente uma relação de trabalho. 

Não sei se queres falar um bocado sobre os filmes que te foram encomendados. O documentário sobre o concerto dos Genesis, As Ondas, o Promenade Le Corbusier… 

São trabalhos muito condicionados. Pela circunstância da encomenda. Não sou o que normalmente se entende como cinéfilo. Não estou constantemente a pensar nos filmes que vi, mas nos filmes que gostaria de fazer, numa relação obsessiva com as matérias, a luz, o som, a direcção de actores, isto e aquilo. Sempre percebi que me tinha que manter próximo disso, mesmo que através de filmes de encomenda. 

E o Operações SAAL partiu de ti, então? 

É uma encomenda, mas completamente aberta. A associação Extra-Muros queria promover filmes sobre acontecimentos estruturantes da revolução portuguesa, como a reforma agrária, as campanhas de alfabetização, o SAAL… e perguntaram-me se eu queria fazer um filme sobre algum destes temas. O meu pai tinha participado no SAAL, e por isso eu já tinha uma ideia, ainda que muito vaga, do que se tratava. Portanto, aquilo ligava-se ao meu pai e ainda para mais punha-se a questão da habitação. Durante a minha infância, até aos dez anos, havia uma grande instabilidade, pois vivíamos sempre a mudar de casa. Chegámos a viver um ano no parque de campismo de Monsanto. Por isso interessava-me o tema do SAAL, a ideia de conquistar uma casa. Ora, o Operações SAAL é feito ainda na ressaca do Pêra, no bom sentido, e é construído com estratégias que eu trazia do Pêra. Só depois de realizar este documentário começa o meu trabalho com o Costa, que me vai pôr do outro lado da lua. Sobretudo pela relação com uma certa ideia de organização… leninista. «A organização é a única arma do proletariado na sua luta pelo poder». E no Costa há muito isso. Quer dizer, sem a capacidade de organização que ele tem, não se concretizariam as forças poéticas que encontramos nos seus filmes. Sem organização, a sua poesia não chegava onde chegou. Ora, o Pêra tinha muito mais uma relação com um cinema directo vertoviano, do cine-olho e da manipulação na montagem. Havia uma coisa que ele dizia quando íamos filmar a um sítio qualquer, e que eu acho maravilhosa: «Entramos já com a câmara em punho, a filmar!». Portanto, ninguém entra com a câmara baixa a pedir licença. Não! Perguntam depois, se surgirem problemas. Entramos a filmar. Com o Costa as coisas não funcionam assim, há um trabalho de antecipação. Uma coisa extraordinária, e que posso afirmar em relação aos filmes que montei com o Pedro, é que não há planos filmados que estejam fora do filme. Um ou dois, são residuais. Todos eles têm a sua função num desenho que está pensado antecipadamente. O trabalho de montagem é a tentativa de restabelecer uma ordem que já existia. A montagem aqui não é um trabalho de descoberta, é um trabalho arqueológico para repor a forma que as coisas chegaram a ter em determinado momento. Por exemplo, uma das coisas que habitualmente se julgam emblemáticas no trabalho de um montador é o de descobrir qual deve ser o primeiro ou último plano do filme, ou descobrir qual é a estrutura. Um montador nos filmes do Pedro não faz nada disso. Este montador deve ter uma sensibilidade de um tipo especial, mas não para cumprir essas tarefas. 

Mas isso é engraçado, porque essa tensão está toda nas Operações SAAL. Tu atira-los uns aos outros, como se estivessem mesmo a discutir. Estás nas filmagens, mas depois na montagem... 

Na montagem é que se descobriu tudo, não é? Não tudo, mas quase tudo. Exactamente porque o SAAL deve muito ao trabalho com o Pêra, particularmente a um filme chamado O Homem Teatro. Estávamos no Porto a rodar este filme, que juntava situações encenadas com actores e uma série de entrevistas de pesquisa que ele fez a muita gente ligada ao TEP (Teatro Experimental do Porto) e ao António Pedro. Os actores deviam trabalhar de forma muito livre, com imenso improviso, mas para isso era necessário formar os actores sobre o que era o TEP. Então o Pêra pediu-me para trabalhar as entrevistas que fez, agarrar nos melhores momentos e alinhar uma montagem que contasse a história do TEP, e servisse aos actores como uma fonte de informação para que pudessem trabalhar os seus improvisos. Montei uma série de retalhos onde os testemunhos dos entrevistados se contrapunham, ou se continuavam. A experiência dessa montagem é uma aprendizagem que levo para o SAAL, onde ponho frequentemente os protagonistas a dialogar uns com os outros. Acho que é no teu texto sobre o SAAL que pela primeira vez se aponta isso, e que tu descreves muito bem. Não deixo as frases completas, interrompo abruptamente o discurso para poder chocar com outro discurso, usando trechos de testemunhos para a construção de um testemunho novo. E sempre com a ideia de não fechar o assunto, como tu apanhas muito bem no teu texto. O importante não é chegar a uma resposta, mas trazer ao de cima o conflito, a tensão, as zonas escuras, apontar os problemas. 

Trocaste a cidade pela aldeia, não sei se isso afectou a tua forma de trabalhar. Quer dizer, o que é que te permite fazer a aldeia que a cidade não permite? E pronto, porque é que vieste para o Fundão, no fundo? Para Atalaia do Campo. 

Sem querer ser indelicado com a aldeia e com a região que me acolhe, a minha vinda para cá começa por ser uma fuga de lá. Mas tive a sorte de vir parar aqui, de frente para a Gardunha, a um lugar onde existe uma relação muito especial com a serra, porque estamos virados para o anfiteatro sul e situados no melhor lugar da sala para ver aquele imenso ecrã, onde comecei a “projectar” uma série de coisas. Estava há muito tempo sem conseguir filmar. Ao longo desse tempo a minha ligação ao cinema permaneceu, em termos práticos, somente na montagem dos filmes do Costa. Mas em relação aos meus filmes havia um grande desânimo. A certa altura fartei-me e pensei que tinha de resolver este problema. Em Lisboa não é possível, os encargos são enormes e entretanto tivemos um filho, o Francisco. É preciso inventar uma solução radicalmente diferente. Ora, dois anos depois da minha chegada aqui, estou a terminar o meu primeiro filme de ficção, graças a uma bolsa de criação artística atribuída pela Câmara Municipal. Foi a primeira vez que tive um apoio institucional para filmar. Não cobriu, evidentemente, os custos do filme, mas ao longo de doze meses deu-me a segurança suficiente para pagar as contas e não ter de andar sempre a correr atrás deste ou daquele trabalho. Ainda estou numa fase de encantamento. 

E como é que nasce a ideia desse projecto? Como é que foste dar ao Cireneu e como é que pensaste em juntá-lo à Nossa Senhora? 

Só uma coisa, antes disso. A partir dum certo momento percebi que só me interessava trabalhar sobre aquilo que me fosse muito próximo. Percebi que só podia filmar criando raízes num lugar, numa comunidade de gente, mas também numa determinada paisagem. Também por causa daquela vida com a casa às costas de que te falei, sempre tive uma grande vontade de me fixar. Pensar que esta é a minha última casa e que vou ficar aqui até ao fim dos meus dias, é uma ideia que traz imensa alegria, esperança, confiança, e uma vontade muito grande de... começar outra vez. As primeiras duas ou três tentativas falharam. Tudo falhou, vinte anos sob o signo do fracasso. Agora dei-me a mim mesmo uma espécie de segunda vida. Este é o novo cenário e em breve poderei dizer que é meu, que sou de cá, e quando vou à janela da sala vejo o décor. Aqui, comecei por estabelecer uma relação com as pedras, porque tenho a Gardunha à minha frente. É como o poema do João Cabral de Melo Neto, “A Educação pela Pedra”. E comecei a subir à Gardunha, onde me deparei com um património especial, as morfologias graníticas da Serra da Gardunha. No meio da natureza intuímos sempre qualquer coisa de sobrenatural e de arrebatador. Eis o cenário, é aqui que quero começar a filmar, no meio destes rochedos silenciosos e inamovíveis. 

Dei o passo seguinte, fui às lendas. A personagem mais emblemática do culto mariano na região é a Senhora da Serra, que tem uma lenda fundadora muito importante e lugares físicos identificados. Por exemplo, uma lapa na Gardunha, que é o ponto de confluência desta lenda e um cenário maravilhoso. Há uma outra figura muito importante, conhecida aqui como o Robin dos Bosques da Serra da Gardunha, um tipo chamado Cireneu, que em certo momento da vida está em fuga da polícia e refugiado na serra. Ao apoio que obtinha da comunidade nas aldeias em redor, Cireneu retribuía de forma generosa. Li sobre isso uma história lindíssima. Cireneu encontra uma menina que vai pela serra com uma marmita para levar ao pai, que está a trabalhar na horta. «O que é que tu trazes aí?». A menina não se assusta, mostra-lhe a marmita e ele come metade do que lá está. Depois, devolve a marmita e diz: «Agora leva ao teu pai que deve estar com fome». E nisto, Cireneu põe nas mãos da menina dois brincos de ouro, certamente roubados numa das casas senhoriais das redondezas. O projecto inicial do filme imaginava um encontro entre a Senhora da Serra e o Cireneu. Este encontro era um ponto de partida para uma discussão em que as personagens seriam representantes de duas ortodoxias muito diferentes. Esta premissa do confronto entre ortodoxias mantém-se no filme, mas a personagem do Cireneu desapareceu, e a própria personagem da Senhora da Serra é já o resultado de uma reinvenção muito livre. 

Tem uma presença muito forte no filme, a Patrícia Guerreiro. Como é que pensaste nela para aparecer no filme? 

Quando eu vim para cá falei com uma amiga comum, a Leonor Noivo, que me disse que aqui muito perto vivia a Patrícia, actriz no seu filme “A Raposa”. Fui conhecê-la, falei-lhe do projecto, e ela aceitou ser a actriz do filme. Hoje é uma grande amiga e uma aliada de trabalho extraordinária. É uma actriz maravilhosa, cheia de talento, inteligente e sensível, que percebia sempre muito rapidamente tudo o que eu dizia e todas as minhas dúvidas. Sei também que este filme foi um acontecimento feliz para ela. Sou muito afortunado por tê-la sempre por perto. 

A sequência final é muito forte. A montagem é muito rápida, muito acentuada. Não sei como é que chegaste até aí, se já estava pensado antes. Que são muito espaçados, os planos, ao princípio, e depois no final... 

O filme é todo ele muito preparado. [João Dias pega em storyboards] Estava tudo planificado em desenhos e tem poucas coisas que resultem de descobertas na montagem. Essa sequência é filmada assim, antes de mais, porque tenho os meus pudores. Não foi fácil, querer filmar essa agressão e chegar a descobrir como a gostaria de filmar. 

Mas isso nestes casos aguça o engenho, também, não é? 

Sim, mas isso dizes tu. A minha responsabilidade é dizer porque é que aquilo é filmado assim, não é? Não podia fazer como nas outras sequências do filme, em que a câmara está numa escuta quieta e atenta da movimentação dos actores no espaço e das suas palavras. Não era possível fazer isso nesta sequência, porque implicava uma exposição dessa agressão com a qual não iria conseguir conviver. Procurei uma solução que trabalhasse apenas com pequenos sinais daquilo que queria encenar. Por isso se fechou o quadro e se interrompeu o fluxo do tempo, o mais possível. De tal forma que a relação com aquilo se tornasse mais distanciada, mais icónica, menos emotiva. 

Mas tem muito impacto, assim feita. Aliás, acho que tem mais impacto do que se fosse filmado mesmo a... 

Sim, isso eu não tenho dúvidas. Começa por uma resposta a um pudor meu, mas que não é ingénua. Não sou um cinéfilo, mas tenho uma ideia do que é a história do cinema e sei o que tem sido discutido em relação a este tipo de representações. Ver filmes foi importante para construir este. A maneira de estruturar aquela sequência estabelece uma relação com a história do cinema, com a história da montagem. 

E isto agora é o teu estúdio, a Serra da Gardunha. Vais fazer mais filmes aqui? 

A última coisa que queria era ir filmar para longe. E a Gardunha é bem mais do que aquilo que filmei, é vasta, há mais mistérios e paisagens, há outras Gardunhas, há outras coisas. Quero continuar com uma declinação deste cenário, mas que seja ainda este cenário. 

Nas tuas entrevistas à Ana Soares, nas duas, refere-se um projecto do turismo no Algarve. Não sei se ainda queres acabar isso? 

Gostaria muito. Em dez anos, de travessia do deserto, deixei alguns projectos documentais para trás, já filmados. Outros, que eram de ficção, não chegaram sequer a sair do papel. Esse, sobre a indústria do turismo de massas internacional, era um deles. Julgo que poderia agora regressar a esses filmes com uma segurança que não tinha antes. Há quinze anos atrás estaria sempre com receios. Agora só preciso das oportunidades para concretizar, como foi o caso do Senhora da Serra, que sinto como um primeiro filme. Julgo que é um filme justo, coeso, feito com meios muito humildes, mas preciso de voltar a filmar para ultrapassar aquilo que neste filme não ficou ainda bem resolvido. Há uma sensação de trabalho inacabado. 

Mas também se sente sempre isso em qualquer coisa, não é? 

Sim, estou a dizer uma banalidade, mas é verdadeiramente o que sinto. Há sempre um desespero… 

Mas esse, para o turismo, ainda tinhas que filmar mais coisas? 

Isso foi filmado há dez anos atrás, e estes últimos anos com o Costa deram-me uma noção diferente das coisas. Não no sentido de começar a seguir alguma cartilha, «Isto faz-se assim», ou «Isto não se pode fazer assim». Há quem se enrede nas cartilhas, eu fujo a sete pés. A questão é a de conseguir o domínio das matérias do cinema. Como se faz o plano? Variar as escalas, ou manter a mesma? Usar sempre a mesma óptica, ou ópticas diferentes? Como se trabalha o ritmo, como se monta? Como planificar? Dividir a cena em muitos quadros, ou cobrir pouco? Coisas muito chãs, de domínio da matéria-prima. Uma coisa de artesão. E é esse saber de artesão que eu sei que hoje domino. 

Acontece que esse filme sobre turismo não está filmado como deveria de estar. Além disso, era um filme ainda muito estruturado na ideia do documentário de pesquisa, para o qual queria trazer imensas coisas. Hoje em dia percebo que o processo é inverso, quer dizer, tens sobretudo de tirar. Tirar até ficares com o mínimo que permita que o filme se possa apresentar como um filme. Há certas coisas que são evidentes, não precisas de dizer nada por cima delas. Não precisas de comentário sociológico, científico, nem mesmo poético. Nesse filme sobre o turismo as imagens deveriam falar por si, ou a montagem deveria permitir que elas falassem por si. 

Nos blocos dos Encontros escolheste um filme a acompanhar a... 

Escolhi o Benilde ou a Virgem Mãe, do Oliveira. 

Porquê? 

Tinha visto os filmes do Oliveira, anos atrás, nomeadamente naquele período em que frequentava a Cinemateca. Era um realizador que me entusiasmava, mas não como acontece hoje em dia. No último ano revi estes filmes, na verdade, de um modo algo egoísta, focado no meu interesse pessoal enquanto realizador. Já havia uma admiração pelos filmes, mas agora há também um viés. Como é que se chega àquilo, quais são os métodos, como é que se jogam aqueles elementos? De que maneira aquilo está a falar comigo? O deslumbramento é o de uma aprendizagem. É o cinema que neste momento mais preciso para fazer os meus filmes. Acho que me perdi da tua pergunta. 

Pronto, porquê especificamente o Benilde

Um filme que não cheguei a escolher, mas que ponderei, foi o Divina Comédia. Por causa do combate entre as ortodoxias, muito evidente nos diálogos entre o Mário Viegas e o Luís Miguel Cintra. Acho entusiasmante a transposição de textos teóricos para diálogos entre personagens. Isso interessa-me muito. Mas acabei por escolher o Benilde ou a Virgem Mãe. A respeito do filme do Oliveira e do texto original do Régio, convocam-se sempre as clássicas questões sobre a sexualidade latente, um cristianismo em queda, lutas entre a ciência e a teologia. Mas no Benilde há ainda uma outra coisa, que é a caracterização de um estado de solidão radical. O que me tocou no filme é sobretudo a atmosfera emocional que resulta da caracterização do isolamento da personagem de Benilde, impossibilitada de criar uma relação com o outro. Não se trata dessa solidão que desejamos para poder trabalhar. É uma solidão imposta. Violenta e frustrante. No filme, essa caracterização é muito perturbante. O primeiro acto do filme termina com Benilde a perguntar: «Padre Cristóvão, você também não se me acredita?». E o padre Cristóvão, muito perturbado – derrotado, até –, diz-lhe, «Não sei nada do que se passa. Mas acredito-te, minha filha». Este momento de ligação ao outro, que é tão importante que a leva a cair aos pés do padre, não volta a acontecer mais no filme. A partir daí, é um constante fechamento, que começa logo a seguir com o interrogatório policial da tia, que acha que a gravidez dela se deve a um puro facto mundano. E não divino. A caracterização dessa experiência de solidão foi importante para tomar decisões sobre o que eu queria do Senhora da Serra, onde está em jogo o fracasso de uma tentativa de relacionamento e de intervenção no mundo. A situação de isolamento radical da personagem. Era esse desespero que eu gostaria de conseguir representar no meu filme.

Entrevista realizada a 30 de Maio em Atalaia do Campo para o Jornal dos Encontros Cinematográficos de 2023, também publicada no site do Jornal do Fundão.

sábado, 30 de setembro de 2023

SENHORA DA SERRA (2023)


Entre as frases que se repetem com nuances e novos sentidos no último filme de João Dias, também modelados pelos ventos e pelas sombras que se abatem sobre as suas personagens, está a pergunta “mas quando penso nos erros que cometeu ao longo da sua vida, o que faria ele se pudesse começar tudo de novo?” Não é coincidência que isso aconteça, pensando na mudança radical que o realizador e montador levou a cabo nos últimos dois anos. Abandonou Lisboa e as suas tropelias, abandonou métodos de trabalho antigos e concedeu a si próprio um recomeço artístico e pessoal nos sopés da Serra da Gardunha, em Atalaia do Campo. Quando nos falou disso e reviveu o momento, confessou-nos “uma vontade muito grande de começar outra vez. As primeiras duas ou três tentativas falharam. Tudo falhou, vinte anos sob o signo do fracasso. Agora dei-me a mim mesmo uma espécie de segunda vida. Este é o novo cenário e em breve poderei dizer que é meu, que sou de cá, e quando vou à janela da sala vejo o décor.” 
 
A Serra da Gardunha tem uma extensão de vinte quilómetros de comprimento por dez quilómetros de largura e chega à altura de 1227 metros, situando-se entre as cidades do Fundão e de Castelo Branco. Além de abarcar a aldeia histórica de Castelo Novo, ter sido palco de rituais pré-cristãos, conter os vestígios da antiga capela da Senhora da Penha e uma escadaria que dá até ao cimo da montanha, despontam nela uma série de pedras com formas muito intrigantes e misteriosas conhecidas como as morfologias graníticas da serra da Gardunha. Descritas como blocos fendidos, de fissuração poligonal, pias ou bolas de granito, chamadas até de “padarias” ou “côdeas de pão”, têm tantas formas como a imaginação lhes quiser dar. Caras e bustos, mesas e quartos, baleias e pássaros. Até quadros de Gustav Courbet. Portanto não é surpreendente que João Dias tenha escolhido os milenares mistérios da Gardunha como tema e como casa. 
 
E isto foi o que ele fez. Mudou-se com a companheira e o filho para uma casa na aldeia com vista privilegiada e assombrosa para a serra que ao longo dos séculos foi palco de peregrinações religiosas, políticas e bandoleiras. Mesmo ao lado de Póvoa da Atalaia, terra de Eugénio de Andrade. Convocou essas memórias lendárias e históricas, as figuras de Maria, Senhora da Serra, meninas crescidas de Alcongosta, delegados e militantes de partido, ladrões e ermitões, e reclamou a serra como o seu estúdio. Concorreu a uma bolsa de criação, conseguiu o apoio e arranjou o resto onde pôde para levar a cabo a sua produção. Graças a Leonor Noivo, realizadora de A Raposa, encontrou Patrícia Guerreiro, actriz principal desse filme que se retirara do cinema depois de trabalhar com João Botelho e Marco Martins, e fez dela a mãe de Jesus, perdida entre pedras em busca dos homens. Fê-la contracenar com Elsa Vaz, João Figueira, Vasco Rolão Preto e Lucas Melo, requisitando ainda os serviços do Coro da Soalheira e das Adufeiras do Paul. 

 Houve muitas tentativas teóricas e práticas, ao longo dos anos, de conciliar o comunismo e o cristianismo. Porque as palavras do Novo Testamento e a revolta de Karl Marx, no papel, não parecem de todo irreconciliáveis. As aventuras e o despojamento material de São Francisco de Assis e dos seus seguidores no século treze, contra a propriedade e contra os títulos, em comunidade itinerante e a pregar a palavra de Deus, também parecem estar de acordo com os preceitos do comunismo. No século XIX, o padre John Humphrey Noyes, influenciado pelas ideias do chamado Segundo Grande Despertar e pelas noções de “perfeição cristã” e “casamentos complexos”, fundou a comunidade de Oneida, baseada na partilha de toda a propriedade e em que todos os homens eram casados com todas as mulheres e os filhos eram de todos os membros da comunidade. Apesar de todos os erros, talvez seja possível ver nisto os germes duma mudança qualquer. 
 
E isto foi o que João Dias fez. Sempre com a menina de Alcongosta de Elsa Vaz a garantir a cada provação de Maria que a “humanidade perdura”, sempre com a senhora da serra de Patrícia Guerreiro a passar por cada homem repreendendo-o, “com palavras que eu não conhecia, mas que Deus semeava directamente nos meus lábios,” três grandes blocos narrativos que depois se entrecruzam nos rochedos e nas florestas. Um ermitão desiludido com a humanidade que deambula pelos montes em busca da Nossa Senhora e passa a ser o seu emissário. Um ladrão só com certezas que renuncia a toda a espiritualidade trocando-a pela carne e pelo que é palpável, concreto e imediato. Um grupo de comunistas que discute o futuro do seu partido e um delegado que, com as certezas ditadas pela sobrevivência política, só parece ter dúvidas. Filmados do raiar do dia ao cair da noite escura, pautados com canções e ritmos populares a solo ou em coro, introduzidos e encerrados pela lembrança da pequena máquina que os anima – o cinema – sobre os genéricos. 
 
Se tudo nos é negado, o que fazemos? A resposta de alguns, perseguidos pela autoridade mas abraçados pelo povo, foi renegar quem os negava. Fizeram o que não temos coragem ou desespero suficientes para fazer e simbolizaram a revolta e o tumulto interior de multidões reprimidas pelas chagas e pelas amarras do poder. Talvez fossem bastante menos como seres humanos do que aquilo que os fizemos ser – mitos – mas levaram nomes como Robin dos Bosques, José do Telhado, Jesse James, Corisco, Billy the Kid, Dadá, Jacques Mesrine, Lampião, Calamaty Jane, Ned Kelly, Claude Duval, Mary Frith ou Pancho Villa. E, na serra da Gardunha onde tudo conflui, Cireneu. Eles são o que quiçá nem o cristianismo nem o comunismo puderam prever ou controlar, a hipótese de dar corpo aos cânticos negros e ser uma peça solta na engrenagem, andar à vara larga do livre arbítrio sob pena de morte, não papar grupos nem partidos. Não acatar doutrinas. Baseado talvez nestas figuras, João Dias representou-as com o ladrão que anuncia a chegada do novo homem. 
 
E isto foi o que ele fez: enquadrou as suas personagens de forma trabalhada nos seus rochedos amórficos, usando o movimento e o espaço e os olhares dos actores como instrumentos para refazer esses enquadramentos, como na dança e discussão a três pela serra acima que culmina com o colapso de Maria. Filmou as árvores a balançar com o vento como se dum cataclismo incógnito se tratasse, encerrando em mistério e em elipse o plano daquela mão que se envolve no branco das roupas de Maria, meros planos à frente disposta a iniciar a revolução com sangue. E há uma repetição kuleshoviana das árvores ao vento, agora por definição com um novo significado. Fez de adufeiras um coro grego que comenta uma violação com ritmos primordiais e pagãos, fechando o quadro e a própria acção para não vermos nada mas sentirmos tudo. Antes de fazer cair a noite profunda mais profunda e sacar aquele que é provavelmente o mais belo plano do seu filme: o de Elsa Vaz encostada ou diluída na pedra dando finalmente corpo à voz hipnótica que nos tinha vindo a garantir ao longo destes sessenta e sete minutos que a vida continuava e que nós continuávamos, mas à qual ainda não tínhamos associado um grande pesar e um grande luto. A realização de que não houve nada mais justo nem mais triste do que descobrir um dia há milhares de anos que é possível dizer “isto é meu.” E que esse paradoxo talvez seja irresolúvel.

texto escrito para o Jornal dos Encontros Cinematográficos de 2023, também publicado no site do Jornal do Fundão.

domingo, 27 de agosto de 2023

SOBRE MICKEY ONE


por Louis Skorecki

Arthur Penn terá realizado apenas um bom filme, e um muito bom, um daqueles que o amigo Daney qualificava de grande filme doente, e que valem centenas de filmes demasiado salubres, compatíveis à partida com a ideia que fazemos deles. Chama-se Mickey One, e é inesquecível. Excessivo, estilizado, falhado, felliniano, lírico, irregular, Mickey One não se deixa esquecer. Anos mais tarde, continua a bater à porta da memória. Primeiro pela sua sublime banda-sonora: Eddie Sauter/Stan Getz na música, o que já não é pouco, são o clássico e o barroco que se conjugam num só fôlego, num apenas; não há volta atrás. Ghislain Cloquet na fotografia, noutras palavras o preto e branco imaculado de um tempo em que também o cinzento, toda a gama de cinzentos, existia. Um guião intimamente ligado aos seus actores (ou o contrário, já não sabemos). E ainda tantas outras coisas, indizíveis. Mickey One é um apelo veemente à paranóia, ou antes um apelo da paranóia, ardente, febril, que ocupa o tempo dum filme com o corpo de um comediante de stand up prestes a enlouquecer (Warren Beatty no seu melhor papel). O que é que o agita, a Mickey? Será mesmo perseguido (em certos momentos, duvida-se) pela máfia (na pessoa do misterioso Hurt Hatfield - 1918-1998 -, o actor genial de O Retrato de Dorian Gray de Albert Lewin, e sobretudo de O Diário de Uma Criada de Quarto, uma das obras-primas americanas de Jean Renoir). 
 
Raramente os sintomas, digamos para sermos rápidos os de Lenny Bruce ou de Phil Spector, foram tão bem encarnados. O regresso violento, o ódio de si próprio, o medo de si próprio… está tudo em Mickey One. Será verdade? Não sei nada, mas todo o ser humano minimamente honesto (que não tenha demasiado medo de si mesmo) reconhecer-se-á aqui. 
 
PS. Arthur Penn fez treze filmes. Esqueçam os outros doze. Esqueçam The Left Handed Gun (1958), a sua primeira longa-metragem torturada com tiques do Actor’s Studio, com um Paul Newman medíocre e epiléptico. Esqueçam O Milagre de Anne Sullivan (1962), melodrama hiper-realista igualmente embebido de tiques expressionistas. Esqueçam The Chase (1966). Esqueçam o demasiado célebre Bonnie e Clyde (1967), clipe demasiado longo cheio de poses e de languidez. Esqueçam Alice’s Restaurant (1969), com o deplorável Arlo Guthrie, que envelheceu tão mal, O Pequeno Grande Homem (1970), com o medíocre do Dustin Hoffman, ou Night Moves (1975), ou Missouri Breaks (1976), ou Quatro Amigos (1981), ou ainda Target (1985). Esqueçam todos estes filmes demasiado teatrais, demasiado trabalhados, demasiado preparados, para reter de Arthur Penn apenas este estranho Mickey One, OVNI americano com aparência de experimentação da Nouvelle Vague, cuja versão final parece ter sido literalmente massacrada no seu lançamento, em 1965. 

PS 2. Ouçam os dois inéditos dum mestre esquecido do rockabilly, Billy Lee Riley, que acaba de morrer, publicados pela Bear Family. Era um dos ídolos de Dylan, que tinha recuperado o seu muito actual "Reposession Blues", e que o tinha encorajado a voltar aos palcos. Ouçam também o último Robert Wyatt, "For The Ghosts Within". A versão dele de "What a wonderful world" é uma maravilha absoluta.

in «club skorecki», publicação de 14 de Outubro de 2010.

O MILAGRE DE ANNE SULLIVAN (1962)


Antes de ser filme, “The Miracle Worker” foi um episódio da mítica série de antologia “Playhouse 90” (difundida entre 1956 e 1960 na CBS e onde se revelaram talentos como Robert Mulligan ou John Frankenheimer; no episódio, os papéis de Anne Sullivan e Helen Keller couberam a Teresa Wright e Patricia McCormack, respectivamente), bem como uma peça de teatro estreada com as depois duas actrizes do filme, Anne Bancroft e Patty Duke, nos mesmos papéis. Tanto o episódio de televisão, como a peça, tiveram por trás as forças criativas de William Gibson, autor dos guiões, Arthur Penn, como realizador e encenador, e Fred Coe, como produtor. 
 
A história de Anne Sullivan e Helen Keller é conhecida. São crianças do século XIX e conheceram-se porque os pais da segunda, já bastante desesperados, e depois de lerem sobre a educação de Laura Bridgman, também surda e cega como a filha deles, consultaram um especialista em Boston para os aconselhar. Este encaminhou-os para Alexander Graham Bell, que na altura trabalhava com crianças surdas. E este encaminhou-os para a Perkins School for the Blind, que lhes mandou Anne Sullivan, então com vinte anos. Helen Keller tinha seis. Depois daquilo que foi descrito por quase toda a gente como “um milagre”, e numa altura em que o foco era mais sobre Keller e menos sobre Sullivan, Mark Twain entregou uma fotografia a Annie Sullivan em que lhe chamava “milagreira”[1]. O título da obra de Gibson, Penn e Coe é daí retirado. 
 
Saído da televisão, que nessa altura era um campo de experimentação e ensaios fabuloso para quem começava a trabalhar e para quem acabava a carreira, e no rescaldo da estreia da peça na Broadway, Arthur Penn era a escolha óbvia para realizar o filme. E ao realizá-lo, foi-se apercebendo instintivamente dos ajustes que tinha de fazer na transposição para cinema por forma a continuar a servir a estória e as interpretações. Os casos sintomáticos talvez sejam mesmo os dois grandes embates provocados pelas birras de Helen Keller à mesa. No primeiro, a câmara segue os movimentos abruptos das duas, culminando nas panorâmicas frenéticas que acompanham Bancroft a puxar Patty Duke violentamente para a cadeira, enquanto os planos se sucedem quase disparados para ilustrar a grande tensão entre a educadora e a sua discípula; no segundo, a montagem é mais pausada e os movimentos de câmara adequam-se ao crescendo da grande revelação e descoberta individual que equipara o signo ao significante, e que transforma a linguagem no instrumento dos nossos sonhos. A descoberta colectiva de que, afinal, não são só para quem ouve e para quem vê. Os tropeções, as chapadas, as quebras, os balbucios, os gritos, os toques e os empurrões equiparam-na a uma luta de vida ou de morte para atravessar o vale do silêncio e da escuridão. 
 
Houve quem acusasse Penn de ser demasiado barroco e expressionista, neste filme, mas se calhar foi só expressivo. Quando as personagens e os actores abrem o caminho, talvez não se possa ficar só atrás a assistir, é preciso arriscar estar errado, assumir as consequências, ir com eles até ao fim dum gesto inaudito e por mais desconfortável que este seja, esperar que seja lá que resida o princípio de todas as coisas. O berço da linguagem. A palavra inaugural. 

[1] Nas margens da fotografia de Samuel Clemens a fumar um cachimbo sentado, e além da assinatura, consegue-se ler “To Mrs. John Sullivan Macy with warm regard & with limitless admiration of the wonders she has performed as a miracle-worker.”

folha de sala escrita para a 284ª sessão do Lucky Star - Cineclube de Braga, a propósito do ciclo "Sou do Tamanho do que aprendo", 7 a 28 de Março de 2023.

terça-feira, 14 de março de 2023

TRÊS MILAGRES


por Nat Segaloff

“Sempre que me meto com esta estória,” diz o autor de The Miracle Worker, “sinto que estou na presença de qualquer coisa de sobrenatural.” A peça de William Gibson foi celebrada durante meio século  como uma fábula de amor, devoção e compreensão. Começou na televisão, foi um triunfo nos palcos, e tornou-se um clássico no cinema antes de se retirar para o reportório dos departamentos de teatro dos liceus. Aquilo que geralmente não se sabe é que a estória de Annie Sullivan e Helen Keller começou a vida como um ballet. 

Começou quando Gibson andava a encenar peças com pacientes no Riggs Center em Stockbridge, no Massachusetts, onde a esposa, a psiquiatra Margaret Brenman-Gibson, fazia parte da equipa. “Nessa altura, nós tínhamos um menestrel folk que se chamava Richard Dyer-Bennett,” afirma Gibson. “Ele e a mulher, Mel, apareceram—ela era dançarina, só que tinha tido algum tipo de acidente com a perna portanto estava reformada. She was a very uma miúda esperta. A Margaret dizia que ela era uma bruxa porque conseguia olhar para a forma como as pessoas se mexiam e tinha um retrato psicológico dessa pessoa. A Margaret pediu ao Riggs para contratar a Mel como fisioterapeuta como parte do programa de actividades. Eu tinha um grupo de teatro, e pensei que podíamos fazer um serão original de actos únicos. Achei que conseguia arranjar um guião para a dança.” 

Anos antes, Gibson tinha-se deparado com uma colecção das cartas que Anne Sullivan tinha escrito para casa em Boston quase todos os dias quando estava em Tuscumbia, no Alabama, a tentar educar a jovem Helen Keller. Keller tinha-se tornado mundialmente famosa por superar a surdez e a cegueira que a tinham atingido na infância. Mas pouca a gente sabia que tinha sido Annie Sullivan, uma licenciada de vinte anos do Perkins Institute for the Blind em Boston, ela própria com dificuldades de visão, a tornar-se a educadora de Keller. 

Gibson leu The Story of My Life[1] de Helen Keller pela primeira vez na escola primária, sem saber que a maior parte do manuscrito tinha sido suprimido. “O livro verdadeiro,” descobriu ele mais tarde, “consistia de três grandes secções: a primeira era a Story of My Life de Hellen; a parte do meio era um ensaio longo de John Macy[2] sobre as técnicas pedagógicas de Annie Sullivan na educação de Helen Keller; a terceira secção eram todas as cartas que Annie tinha escrito para o Perkins Institute. Não sei se alguém terá os materiais para desmentir isto, mas isto foi editado por John Macy, que era um homem letrado, portanto o livro deve ter sido ideia dele. E isso quer dizer que estas cartas, que são perpetuadas neste livro, tinham passado pelas mãos dele. Ora, pode-se lembrar de um escândalo em que se revelou que as cartas entre Sacco e Vanzetti talvez tivessem sido escritas por um jornalista de Boston. Para mim, é pouco provável que as cartas [de Sullivan] sejam puras. O John deve ter ‘ajudado.’ Mas retratam uma rapariga extraordinária numa estória extraordinária.” 

Aqui Gibson—um irlandês negro esguio que favorece a frontalidade—amolece. “Pensei várias vezes,” diz ele, quase relutantemente, “que a única prova na minha vida que me convence que existe um Deus é esta estória. Aqui temos esta criança aleijada em Tuscumbia—aqui temos esta jovem aleijada, com vinte anos, em Boston—e são precisas estas duas meias-vidas para fazer uma vida. Isto não podia ter acontecido se não fosse a intercessão de Jeová, certo? Isto veio tudo dessas cartas, quer sejam da Annie ou não. E os factos da vida dela são extraordinários, portanto eu acredito nas cartas. Foi isso que me motivou.” 

Sem The Miracle Worker, poucos iriam saber da contribuição de Sullivan, mas o triunfo de Keller sobre a adversidade continuava a fazer da sua a melhor estória. Efectivamente, como notou Annie causticamente quando aceitou um grau honorário da Temple University em 1932 e a imprensa se amontoou em torno de Helen, “Mesmo na minha coroação, a Helen é a rainha.”[3] 

Helen Adams Keller nasceu a 17 de Junho, 1880, na herdade do seu pai em Tuscumbia. O pai, o Capitão Arthur Keller, tinha feito parte do exército da Confederação, e a mãe, Kate Adams, era da família de Robert E. Lee. É desconhecida a enfermidade exacta que privou a rapariga da vista e da audição aos dezanove meses—as fontes sugerem meningite, escarlatina, ou difteria—mas o pai estava prestes a interná-la numa instituição quando a mãe assumiu o comando. Os Kellers—graças à intervenção de um médico de Baltimore e mais tarde de Alexander Graham Bell—entraram em contacto com a Perkins School em Boston. O director da escola, Michael Anagnos, sugeriu a recém-licenciada Annie Sullivan como a professora indicada para Helen, que tinha acabado de fazer sete anos. 

Aos vinte anos, Annie Sullivan já era uma sobrevivente. Quando tinha cinco anos apanhou tracoma, uma infecção crónica que marca progressivamente a córnea a cada reincidência dolorosa. Pela altura em que fez oito anos a mãe tinha morrido, e quando o pai, Thomas, não a pôde suportar a ela e ao irmão, Jimmie, ele entregou-os aos dois a uma casa de correcção em Tewksbury, no Massachusetts. Jimmie morreu no espaço de três meses, deixando Annie não apenas perturbada mas também desamparada, porque ele era os olhos dela. 

Quando tinha catorze anos, Annie assumiu o controlo do seu próprio destino. Alguns membros de uma comissão de estado tinham ouvido falar de condições na Tewksbury Almshouse, e durante a visita, Annie andou atrás deles. Quando estavam prestes a sair, abriu caminho até ao inspector-chefe e anunciou—há quem diga que exigiu—“Eu quero ir para a escola!” Numa resposta compreensiva rara ao pedido de uma jovem sob a tutela do Estado, a Bay State inscreveu-a em Perkins. Aí teve uma cirurgia ocular que lhe melhorou a visão ao ponto de ser capaz de ver texto. Quando chegou o pedido dos Kellers, Anagnos sabia que a aguerrida Sullivan seria a pessoa ideal para ajudar Helen. Em Março de 1887, enviou-a para Tuscumbia e para o encontro que mudaria inúmeras vidas. 

Gibson ficou fascinado com as cartas que Sullivan escreveu a Anagnos durante o seu período com Helen. Considera o dramaturgo, “foi como tirar doces a uma criança; a acção estava toda traçada nas cartas de Annie.” Os direitos para as cartas de Annie, no entanto, eram controlados pelo biógrafo dela, Nella Braddy Henney, um editor na casa de publicação Doubleday. Gibson enviou Seesaw para Henney, e Henney, impressionado, desimpediu os direitos. 

O momento foi fortuito; o ordenado combinado dos Gibson no Riggs estava-se a revelar insuficiente, portanto o escritor fez uma chamada apressada a Arthur Penn em Nova Iorque, onde este realizava "Philco Playhouse", para perguntar se a NBC precisava de material. Quando Penn disse que sim, Gibson enviou a dúzia de páginas de notas que tinha escrito para o bailado Dyer-Bennett que não se produziu. Intrigado, Penn juntou-se a Gibson, e delinearam juntos uma estrutura. Penn: “Eu dizia, ‘Aqui vamos parar para intervalo’ e ‘Aqui vamos parar para intervalo’ e inevitavelmente, como resultado de o adaptar aos requisitos da televisão, emergiu uma forma que era essencialmente uma peça em três actos, só que era em cinco ou seis actos para a televisão.” Os homens conceberam dois dispositivos narrativos que, embora simples, são apropriados: utilizar as cartas de Annie para Anagnos, e ter Annie a falar para si própria com a garantia de que a criança surda não a consegue ouvir. 

Penn conseguiu um adiantamento de $500 para Gibson e entregou orgulhosamente as páginas à NBC. “E depois,” suspira Penn, “eles disseram, ‘Nã; quem é que vai ver uma peça sobre uma rapariga cega e muda?’ Portanto eu disse, ‘Bom, vão-se foder—vou à CBS.’ A mesma resposta! Foi só na altura em que Martin Manulis teve o "Playhouse 90" e houve uma inteligência muito mais luminosa e mais receptiva e disse, ‘O que é que tens?’ que eu lha enviei e ele pegou nela.” 

A opção de $500 mudou para $10,000 assim que Manulis deu luz verde ao projecto, e Gibson viajou para a costa para rever o guião, consistente com o processo colaborativo de Penn e com a política pró-escritores de Manulis. A produção iminente forçou Penn e Gibson a focarem-se finalmente sobre aquilo que a peça era realmente. Acima e para além do óbvio—de que “o seu trabalho na vida era redimir uma vida perdida,” como Gibson o coloca—também era, de forma mais importante, constatou ele, sobre o poder que vem da linguagem. Sendo-lhe negada, Helen ficava isolada; sendo-lhe ensinada por Annie, ela ressurgia. Por isso mesmo é essencial ver (como muitos não vêem) que The Miracle Worker é sobre Annie Sullivan, e não Helen Keller. “De outro modo,” brinca Gibson, “chamar-se-ia The Miracle Workee.” 

Gibson aprendeu rapidamente os truques da televisão ao vivo, como estender uma cena entre intérpretes secundários para que a personagem principal pudesse correr pelo estúdio para a próxima cena começar, permitindo por vezes uma mudança de guarda-roupa durante o percurso. “Tal como para montar uma peça de teatro,” compara ele, “o período de ensaios era-me muito familiar, mas a mecânica física efectiva de os filmar era bastante recente. O Arthur estava sentado na sala de controlo a falar com os tipos das câmaras. Lembro-me que uma vez era suposto alguém subir um lance de escadas e o Arthur disse, ‘Falhámos!’ A câmara não tinha chegado lá a tempo. A televisão ao vivo era assim; era muito empolgante.” 

Ciente da simbiose entre "Playhouse 90" e Hollywood, Manulis escolheu Teresa Wright para o papel de Annie Sullivan e Patricia (Patty) McCormack, que tinha interpretado de forma memorável a personagem titular no filme de 1956 The Bad Seed, para o de Helen. “Tinha onze anos,” diz McCormack, que continuou a representar, “o que foi resultado de ainda parecer uma criança. Logo no ano seguinte, mudou tudo em mim, e parecia uma jovem mulher. Patty [Duke, que interpretaria Helen nos palcos e no filme] na verdade é um ano mais nova do que eu, mas é minúscula, portanto nessa altura podia fazer de menina para sempre.” (Duke tinha quinze anos quando fez o filme.) 

McCormack nota que este "Playhouse 90" era diferente de outros em que apareceu. “Nós começámos antes do período normal de ensaios porque aprendemos linguagem gestual. Também rodámos [em película] galinhas a chocar numa quinta.” Indo para o ar a 7 de Fevereiro de 1957, o programa também era protagonizado por Katharine Bard (Sra. Manulis) como Sra. Keller; Burl Ives como o Capitão Keller; John Barrymore Jr. como o irmão de Helen, James; e Akim Tamiroff como Anagnos. Logo no início, Penn coloca o espectador ao ponto de vista de Helen enquanto os pais e o doutor se debruçam sobre o berço dela maravilhados com a forma como ela recuperou da sua misteriosa febre cerebral. Mas não; os Kellers descobrem depressa que a filha deles nem sequer consegue ouvir os gritos deles ou ver um candeeiro agitado diante dos seus olhos. “Ela não te consegue ouvir!” lamenta-se a Sra. Keller. Combinado com um efeito de íris para baixo que estrangula o plano, é um começo económico e aterrador que nunca dá tréguas. 

Não é muito frequente que um programa de televisão, agora visto apenas em cinescópio rudimentar nos museus, retenha a sua força meio século depois de ir para o ar, só uma vez, a 7 de Fevereiro de 1957, mas The Miracle Worker mantém-se à altura. “Foi um enorme sucesso,” nota Penn. “Por uma das primeiríssimas vezes a CBS recebeu um volume de chamadas de todo o país sobre o programa.” 

É instrutivo constatar que a produção altamente competente não era inusitada, mas antes o nível normal de profissionalismo para os programas das cadeias de televisão da altura. Para as pessoas que trabalharam nele, The Miracle Worker era apenas outro trabalho. 

Mas não por muito tempo. Seis meses depois de Two for the Seesaw estrear e de Henry Fonda deixar o espectáculo, Penn e Gibson ficaram exultantes quando viram que a descoberta deles, Anne Bancroft, era capaz de carregar a peça sozinha. Tinha-se tornado uma estrela. Isto agradou a Gibson que, enquanto Seesaw estava em digressão para ensaios, chamou Penn de parte e anunciou-lhe que ia transformar The Miracle Worker numa peça de teatro. A resposta céptica de Penn foi “Estás maluco da puta da cabeça. O clímax da tua peça são duas mãos num palco grande, como é que vamos projectar o sentido disso para o público?” Gibson tranquilizou-o, “Confia em mim.” 

Veio à tona outra razão para o entusiasmo de Gibson quando Penn descobriu que o dramaturgo já tinha oferecido o papel de Annie a Bancroft: tinha ficado embeiçado por ela. “Estava de certa forma apaixonado pela Annie [Bancroft],” admite ele. “Nunca tivemos nenhum caso, mas tínhamos uma espécie de ligação intelectual que era como um caso, mas intelectual—e eu assimilei isso.” 

Coe foi contratatado como produtor, e a equipa de Seesaw ficou completa. Então surgiu outro problema. Gibson contou: “Quando Anne deixou Seesaw e foi directamente para os ensaios para The Miracle Worker, interpretou Annie Sullivan como se fosse Gittel, e eu disse ao Arthur, ‘Cometi um erro terrível.’ E ele disse, ‘Eu trato do assunto.’ Deu-lhe uma pronúncia irlandesa, um sotaque, que Annie Sullivan não tinha. Mas agora a Annie Sullivan tem um sotaque pelo mundo inteiro porque o Arthur estava a tentar livrar-se da Gittel em Anne Bancroft.”[4] 

A escolha de Patty Duke, que iria ser lançada para a fama com a peça, começou com um encontro pro forma no escritório de Penn. “Nós sentámo-nos e ele quis saber o que é que eu sabia sobre Helen Keller,” escreveu Duke na sua autobiografia. “Bom, o pobre homem, disse-lhe logo tudo o que havia para saber. Parecia ser uma criança extraordinariamente articulada que sabia tudo sobre frustrações e psiques e tudo o mais. Ele não fazia ideia de quão intensamente me tinha andado a preparar para essa questão durante um ano e meio. Ele perguntava-me, ‘O que é que dirias se fosses Helen Keller’ e eu retornava com ‘Não dizia nada.’ Penn provavelmente estava a pensar, ‘Esta miúda foi bem programada.’ Era caloroso e encantador e eu já tinha uma paixoneta por ele. 

“Depois de uma audição e duas chamadas, chegou o telefonema: ‘Okay, mas se ela crescer mais duas polegadas está fora.’” 

Duke admitiu a sua paixoneta de adolescente. “Achava que ele era simplesmente o homem mais elegante e mais atraente de sempre. Até adorava as roupas que ele vestia: calças caqui e uma camisa branca, e a forma como se apoiava com os sapatos de ténis brancos com um pé um bocado virado.[5] Passava por mim e o meu pequeno coração palpitava em absoluto. Eu costumava estragar tudo só para que ele viesse falar comigo e dar-me um bocado mais de direcção.”[6] 

Duke reparou que Penn usava sussurros e humor delicado  (“Duke, tu não és má para uma rapariga”) para a ajudar a encontrar a personagem e ganhar confiança. Pela estreia de 19 de Outubro de 1959 no Playhouse Theatre de propriedade independente (tal como a NBC, os dominantes irmãos Shubert não achavam que uma peça sobre uma rapariga muda e cega pudesse vender), Duke e Bancroft eram grandes amigas e perfeitamente compatíveis. The Miracle Worker desfrutou de uma carreira de vinte e um meses e 719 representações. 

A peça de teatro transforma poderosamente o drama televisivo numa experiência imediata e intimista. Depois do seu prólogo angustiante a história salta seis anos em frente para encontrar Helen como uma criança selvagem mimada pela família. Numa última acção para evitar o internamento num asilo, a mãe dela contrata Annie Sullivan, cuja vista foi recentemente recuperada, como professora de Helen. Annie assume o comando, para grande irritação do pai de Helen, e exige controlo absoluto sobre a rapariga altamente resistente. Num jantar de família em celebração da proeza de Helen em comer com uma colher e em dobrar o guardanapo—algo que Annie suspeita ter sido aprendido mas não entendido—Helen reverte de forma teimosa, e Annie limpa a sala de jantar. O confronto da “cena da mesa” transformou-se num evento celebrado todas as noites entre duas actrizes empenhadas, Bancroft e Duke. 

“Leva nove minutos—a maior parte das noites levava nove, por vezes talvez dez, às vezes onze—o que era a determinação total da oposição,” recorda o realizador. “É aí que se entra mesmo no cerne da coisa. A coreografia segue das profundezas da intenção e da intensidade, e o posicionamento no palco é interessante. Nessa cena, a Annie expulsa a família inteira. Fica sozinha com Helen. Eu tinha esta mesa enorme que tinha acomodado seis ou sete ou oito pessoas, agora apenas com duas pessoas. Dei-lhe início com a Anne a encarar o público, e parecia simplesmente flácido, sabes. E pensei, ‘Espera um minuto, espera um minuto, assim estou a falar sobre o público. Deixem-me falar sobre elas as duas.’ Portanto pus a Anne de costas viradas para o público. Helen começava ao lado dela. A Helen recusava-se a comer devidamente e arrastava-se para baixo da mesa, e a Annie ia a correr, apanhava-a, trazia-a de volta, e isso deu-nos uma espécie de energia elástica que fazia a cena andar. Se fôssemos capazes de ver as expressões todas desde o primeiro momento, isso iria revelar demasiado. Tínhamos de estar naquele modo do ‘Como é que resolvo esta?’, e a melhor forma era não ver a Annie a criar soluções. Ela observava simplesmente aquela criança, e se atirasse o guardanapo ao chão agarrava nele e punha-o no sítio. O Bill escreveu essa cena com muito cuidado. O crédito total para essa cena vai para ele. Ainda por cima, tivemos a bênção destas duas actrizes mesmo fantásticas, e elas não poupavam esforços nenhuns. Andaram com negras e feridas durante grande parte do tempo. Nunca faziam a mesma coisa duas vezes—nunca! Aquele pequeno arremesso subtil do guardanapo. Aquilo é uma pequena insurreição. Como é que vai ser respondida? E esse é o começo do final da peça.” 

É no penúltimo momento que, nas palavras de Gibson, “acontece o milagre.” Testando mais uma vez a têmpera de Annie, Helen esvazia de forma desafiadora um cântaro com água. Em resposta, Annie arrasta-a para a bomba no jardim para a voltar a encher. Enquanto Helen espera que o líquido corra, recorda-se subitamente das profundezas da memória de uma palavra que disse antes da doença lhe reclamar a audição: “waa-waa.” De forma milagrosa, liga o conceito do alfabeto que Annie lhe tinha andado a soletrar na mão com a realidade do mundo em seu redor. Em pouco tempo está a arrastar Annie ao longo do pátio a absorver a linguagem a velocidade relâmpago: Chão. Bomba. Degrau. Treliça

“Sra. Keller! Sra. Keller!” grita Annie, chamando os pais de Helen, “ELA SABE!” Helen corre até aos braços da mãe enquanto se chega a Annie para a palavra: “M-Ã-E.” Depois até ao pai para Annie soletrar “P-A-P-Á.” Finalmente Helen aponta para Annie, que soletra, “P-RO-F-E-S-S-O-R-A.” 

O público respondeu com lágrimas e aplausos, e The Miracle Worker foi um triunfo da Broadway. Nos Tonys de 1960 no Hotel Astor a 24 de Abril, sentado na mesa de Helen Hayes, Arthur Penn venceu o prémio para Melhor Direcção. Aceitou, dizendo sucintamente, “Sem polimentos, muito obrigado a todos.” Também aceitou o prémio de William Gibson para Melhor Peça com um gracioso “Queria que este fosse mesmo o meu prémio. É para William Gibson que não pôde estar cá esta noite, mas ele pediu-me para expressar um pensamento, que era que não podia certamente aceitar este prémio sem expressar primeiro a sua grande dívida para com as duas pessoas que realmente viveram o drama: Annie Sullivan e Helen Keller.” 

Anne Bancroft ganhou o prémio de Melhor Actriz numa peça de teatro, dizendo, “Há três razões porque acho que mereço isto, e elas são Fred Coe, Bill Gibson e Arthur Penn.” John Walters também ganhou o prémio de Melhor Técnico de Palco, e Patty Duke recebeu um Tony como Helen. George Jenkins foi nomeado como cenógrafo. 

No entanto, é como filme que The Miracle Worker perdura de forma mais memorável. Como reentrada ponderada de Penn para os filmes, a sua produção fornece uma pista em relação a como afirmava o seu poder sobre um sistema que iria manter sempre a uma certa distância. 

É também a única ocorrência em que o mesmo realizador orientou o mesmo material através de três meios diferentes, ajustando a sua visão para acomodar cada um deles e obtendo sucesso em todos no final. Isto é possível, disse Penn vivazmente à Variety enquanto se rodava o filme, “se se tiver um bom conteúdo e tempo de descanso entre as várias versões para trabalhar noutros projectos.”[7] 

O filme não era um dado adquirido. A boa notícia era que a United Artists estava interessada. A UA desfrutava do respeito dos cineastas porque lhes permitia fazer os seus filmes à sua maneira assim que a administração tivesse dado luz verde à produção. A má notícia era que a luz verde da UA especificava que Anne Sullivan devia ser interpretada ou por Elizabeth Taylor ou Audrey Hepburn. 

“Por essa altura,” diz Penn, “o Bill e o Fred e eu dissemos, ‘Escolhemos a Bancroft.’ A UA disse, ‘Oh, não, isso é impossível.’ Nós resistimos. O Bill foi firme como uma pedra. Aceitou menos dinheiro—consideravelmente menos—e nós resistimos por ela.” A lealdade de Gibson a Bancroft era igualada pela sua lealdade a Sullivan e a Keller, que ainda estava viva (morreu em 1968 com oitenta e sete anos de idade). Para fazer o filme à sua própria maneira, o trio montou a Playfilm Productions e rejeitou as escolhas da UA de Taylor ou Hepburn, pelas quais o estúdio teria garantido $2 milhões. Com Bancroft, a oferta caiu para $500,000.[8] O financiamento modesto tornou-se um problema, como Penn revelaria mais tarde num seminário do American Film Institute: “Quando excedemos, efectivamente, o orçamento muito modesto mesmo por uma pequena margem, as primeiras verbas saíram dos nossos salários ao ponto da Annie, o Fred Coe, e o Bill Gibson e eu, cada um de nós, penso eu, acabarmos com metade do salário para fazer o filme. Os salários não eram maus de início—eram $75,000 para cada um—acabámos com $37,500.”[9] 

O filme foi rodado em Middleton, Nova Jérsia, e no Big Sky Ranch em Simi Valley, na Califórnia, cuja combinação fez as vezes de Tuscumbia, com interiores no Hyde-Brown Studio na Twenty-third Street na baixa de Manhattan. A rodagem não decorreu sem algumas tensões, principalmente dentro do realizador, que ainda carregava as cicatrizes de ver The Left Handed Gun arrancado das mãos. No entanto, nesses três anos em diante, esse filme tinha conquistado reconhecimento na Europa e ele tinha desfrutado de cinco êxitos na Broadway, portanto sentiu-se seguro em desafiar os limites cinematográficos com The Miracle Worker

“Onde tínhamos vozes no palco vindas do passado de Annie,” descreve ele, “eu agora queria algo visualmente equivalente. Foi feito através de um processo muito complicado. Ampliámos a imagem até ao ponto em que a emulsão se decompunha até mal se discernir uma figura. Tínhamos que a ampliar trinta e duas vezes, portanto, para filmar um grande plano, utilizámos uma lente muito ampla do outro lado do estúdio e cortámos um ponto numa matte à frente do nosso visor, e esse ponto foi o que nós usámos. Sabíamos que esse ponto iria eventualmente preencher o ecrã quando o ampliássemos até essa altura. Construímos uma série de mattes para conseguir este plano ou aquele plano, e ampliávamos tudo para onde a imagem estava prestes a desaparecer.”[10] 

Tal como na Warner, a equipa da Playfilm também precisava de persuasão ocasional. “Eu aparecia para um plano e dizia, ‘Aqui vamos estar com uma dolly mas eu quero um braço giratório... ’ 

“‘Oh, não pode fazer isso, senhor.’ 

“‘Porquê?’ 

“‘Simplesmente não se faz; punha o público maluco.’ 

“‘Vamos pô-los malucos. Vamos fazer isso.’” 

Como resultado, The Miracle Worker torna-se a obra mais comovente de Penn. No entanto, traduzir a catártica “cena da bomba” para cinema, a princípio, angustiou o realizador. “Tinha-a visto uma centena de vezes em teatro,” explica ele, “e arrasou-me sempre ver que o público inteiro ficava em lágrimas. Quando a fui rodar, pensei, ‘não te precipites. Puxa a câmara para trás tal como estava. Mostra-nos a acção toda e vai estar distante—como estava no teatro.’ 

“Portanto fazemos isso, e eu consegui ver as rushes, e ficou terrível. Absolutamente terrível. Algo com que estava tão familiarizado como qualquer pessoa pode estar. E eu pensei ‘Porque é que ficou terrível?’ Porque nos pressionava para um papel de espectador em vez de um papel de participante. Aquilo que eu percebi nessa altura, pela primeira vez, foi que tinha de entrar e fragmentar aquele acontecimento. A mente de Helen, o rosto de Helen, o rosto de Annie, as reacções de Annie, ver qualquer coisa no rosto de Helen, água a pingar para a mão da criança, outro movimento na direcção dela, et cetera—fazer disso uma espécie de ‘quadros rebentados.’[11]

“Portanto voltei no dia seguinte e disse, ‘Amigos, vamos a isto. Vamos talhar isto em todos os momentos sensórios e vamos filmar isso por si só.’ Tínhamo-lo filmado originalmente num plano de cobertura em que ela atirava a jarra fora e dizia, ‘Waa-waa.’ Depois iam directas para o chão. Essencialmente, essa foi a experiência cinematográfica que me ensinou mesmo alguma coisa sobre filmes.” 

Penn e o director de fotografia Ernesto Caparrós decidiram que os espectadores deviam ficar com Annie e Helen movendo a câmara com elas à medida que descobrem o mundo através dos sentidos recentemente despertados de Helen. “Quando voltei para a rodar novamente a equipa estava à volta em pé e começaram a chorar,” diz Penn. “Esta equipa dura. Houve lágrimas, e por essa altura Caparrós percebeu que isto talvez se fosse tornar nalguma coisa. Quer dizer, estavam homens crescidos ali a chorar. De repente o Ernie, um cubano bastante cínico, teve a ideia—Prémio da Academia!—e desse momento para a frente foi, ‘Oh, tenho de iluminar as chombras—chiaroscuro.”[12] 

O montador Aram Avakian não só fez questão de ler o guião como de assistir às sessões de leitura para ganhar uma percepção mais orgânica do projecto. Ele lembrou que “Patty, então com 14 anos, como Helen Keller, tem apenas uma fala, ‘Wa-wa . . . ’ mas seja como for está presente. Ela preenche os pequenos papéis, de pessoas mais velhas, às vezes com sotaques carregados, uma grande mímica, e entre estar deitada ou sentada no chão, passando por exercícios incríveis, nunca ociosa, ocupando-se com tarefas físicas difíceis, com as pernas torcidas por baixo da anca, enlaçando as botas altas dela literalmente por trás das costas, os olhos cegos dela a fitar um canto escuro, alcançando tudo, os olhos vazios dela a nunca desviar-se daquele canto escuro. Entretanto, os outros lêem, toda a gente de forma literal, excepto Anne Bancroft, tendo criado e interpretado o papel durante mais de um ano, que se senta a tricotar, sem um guião à frente, audível por pouco mas firmemente articulada como Annie Sullivan.” Ele acrescenta, “No final da leitura: lágrimas nos meus olhos.”[13] 

Avakian, que antes tinha montado notícias e documentários, abordou The Miracle Worker com o cinismo de um jornalista. “Ele disse, ‘Este filme é sobre o quê?’” lembra Penn, “e eu entrei numa longa conversa sobre como é essencialmente linguagem, e a linguagem é a essência da civilização em que depois se pode expressar a experiência que nos ocorreu que se pode transmitir a outra pessoa que não esteve lá, e foi assim que a civilização se conseguiu construir... ’ et cetera. E ele disse, ‘Ah, queres fazer um bom filme!’O Aram era assim!” 

Penn usou o filme para redescobrir o meio do cinema. “Numa peça, quase tudo tem de ser articulado oralmente,” salienta ele. “Quando apareci para rodar o filme nunca me ocorreu que não precisávamos daquelas coisas todas; só precisávamos de o mostrar.” 

A banda sonora do filme reforça a experiência emocional. Tinha sido pedido ao compositor Laurence Rosenthal para criar música incidental para a versão teatral, mas Penn considerou que a peça não precisava disso e retirou-a durante as apresentações em Filadélfia. “Eles dispensaram-me,” brinca Rosenthal, acrescentando rapidamente, “quando decidiram fazer o filme, o Fred e o Arthur acharam que, embora se possa fazer uma peça de teatro sem música, não se pode realmente fazer um filme como este sem música.” Rosenthal voltou para musicar o filme: “O Arthur estava absolutamente determinado em nunca ceder a qualquer impulso que produzisse uma impressão de sentimentalismo. Não queria chorar as pedras da calçada; queria manter a coisa objectiva e verdadeira sob o pressuposto completamente correcto de que a própria estória está tão carregada de impacto emocional que não se tem de ceder a isso.” 

De forma instrutiva, a banda-sonora de Rosenthal simboliza o arco narrativo de Helen e Annie. “Aquilo que eu estava mesmo a tentar fazer era, de alguma forma, capturar o sentimento de viver num mundo de silêncio e escuridão,” diz ele, representando as duas mulheres pelo “vazio daqueles dois clarinetes e a série de progressões decrescentes e urdidoras que faz parte do tema.” Notavelmente, enquanto professora e discípula se unem no final do filme, os seus dois temas fundem-se. “Quando ela deixa os pais e volta para Annie e aponta para ela e quer saber, ‘Quem és tu?’ ‘Professora,’ nesse momento pode-se ver só a centelha duma lágrima a sair do olho de Helen. Lembro-me de Aram Avakian dizer, ‘Aquilo é uma lágrima de 1 milhão de dólares.’ É a primeira vez que se sente este tipo de emoção a vir da criança. O público fica sempre absoluta e completamente despedaçado com toda essa cena.” 

Que era exactamente o que Penn queria evitar, segundo Rosenthal. “Senti realmente que o Arthur estava tão absorto na ideia de que o filme não se devia tornar sentimental que continuava a segurar as rédeas da música,” diz ele, “e mesmo na cena da bomba, fiz da forma que ele queria; marcámo-la, e eu não concordei totalmente com a marcação. Ele disse, ‘Vamos tirar a música aqui.’” Fizeram-no, e a cena—tal como da primeira vez que Penn a rodou—ficou morta. Apercebendo-se disto, os criadores do filme agendaram outra sessão de composição e gravaram uma ponte musical. Os resultados, apesar do voto ascético de Penn, comoveram o público durante décadas. Mas primeiro tinha de se comover a United Artists. 

“A UA foi ambígua,” diz Penn. “Quando terminássemos a montagem, o cerimonial era mostrarmo-la a Arthur Krim e Robert Benjamin e a David Picker. Assim o fizemos, e eles disseram, ‘Dêem-nos uns cinco minutos.’ Eles saíram para a sala de entrada e voltaram e disseram, ‘Muito bem, vamos distribui-lo.’ Não muito depois disto, Penn e Gibson marcaram uma projecção para a estrela deles, que trouxe com ela o homem que se tornaria seu marido depois de uma corte de dois anos: Mel Brooks. 

The Miracle Worker foi vendido no modo de plataforma da altura: uma estreia em Nova Iorque a 23 de Maio de 1962, seguida de cidades-chave, e depois uma estreia alargada em cinemas de bairro a 28 de Julho de 1962. 

A conversa dos Prémios da Academia começou quase imediatamente e continuou até ao final do ano. Duke and Bancroft venceram, efectivamente, Óscares, e Penn, Gibson e a figurinista Ruth Morley receberam nomeações. Bancroft, no entanto, não pôde aceitar o dela em pessoa. Ia aparecer nos palcos em Nova Iorque em Mother Courage e viu a cerimónia na televisão com o noivo, Mel Brooks. A estatueta de Bancroft statuette foi aceite na sua ausência por Joan Crawford. 

Há, no entanto, uma nota de rodapé ignominiosa para a tripla coroa de The Miracle Worker. Em 1979, a NBC e a companhia de Melissa Gilbert, a Half-Pint Productions, refizeram a propriedade como um filme para a televisão. Desta feita Patty Duke, com trinta e dois, interpretou Annie, e Gilbert, da série popular da televisão "Little House on the Prairie", interpretou Helen. Foi realizado por Paul Aaron e produzido nominalmente por Fred Coe, embora rapidamente se tenha tornado aparente que Coe tinha sido contratado pelo nome, não pela competência. “Trouxeram o Fred e humilharam-no,” diz Penn categoricamente. “O Fred dizia, ‘Não, a cena não é assim,’ e eles diziam, ‘Então, o que raio é que ele está aqui a fazer?’ Ele era um homem muito orgulhoso e um produtor maravilhoso, e eles quebraram-lhe o espírito.” 

A 29 de Abril, com menos de uma semana para rodar o filme para a televisão, Coe foi levado para o hospital com um aneurisma da aorta. Morreu no dia seguinte, depois de nomear o produtor executivo Raymond Katz para o substituir. Tinha sessenta e quatro anos. 

Penn acredita que foi a forma como o pessoal da televisão tratou Coe que levou à sua morte. Mas a triste verdade é que ele já estava morto, destroçado pelo álcool, por um coração debilitado, e por ser relegado à sombra por uma indústria que tinha ajudado a criar e que já não reconhecia a dívida que tinha para com ele. Efectivamente, quando Cecil Smith do Los Angeles Times entrevistou Coe no exterior de Simi Valley para The Miracle Worker, o outrora dominante produtor avançou que a indústria tinha mudado ao ponto de “já não a reconhecer muito.”[14]

[1] Helen Keller, The Story of My Life (Nova Iorque: Doubleday, Page, 1903). 
[2] John Albert Macy casou-se com Anne Sullivan em Maio de 1905, e eles os três—Anne, John e Helen—viviam juntos em Wrentham, no Massachusetts. Geraram-se tensões com este acordo e as suas interdependências inconstantes são dramatizadas por Gibson em Monday After the Miracle (ver capítulo 15). 
[3] Dorothy Herrmann, Helen Keller: A Life (Chicago: University of Chicago Press, 1999). 
[4] Wood, Arthur Penn (revisto). 
[5] Os sapatos de ténis característicos de Penn foram o resultado de uma vez deslizar para fora do palco enquanto ensaiava uma peça. Daí em diante, o realizador favoreceu a tracção em relação à tradição. 
[6] Patty Duke, Call Me Anna (Nova Iorque: Bantam, 1987) 
[7] Weekly Variety, 16 de Agosto de 1961. 
[8] Sem saber que Penn e Gibson estavam a fazer o filme, François Truffaut tinha tentado comprar os direitos. Rejeitado, fez um filme similar em termos de temperamento, The Wild Child, em 1970, reclamando a Charles Thomas Samuels em Encountering Directors (1 e 3 de Setembro de 1970) que o filme de Penn era inferior à autobiografia de Keller porque Gibson o tinha escrito e produzido simultaneamente, enquanto defendia Penn por “traduzir a ideia de outro homem.” 
[9] Seminário no American Film Institute, 30 de Janeiro de 1970. 
[10] A juventude aterradora de Annie no asilo é evocada por material aumentado super-granuloso e áudio ecoante.
[11] Entrevista Schickel-Penn (interpolado). 
[12] Interpolado de Gary Crowdus e Richard Porton, “The Importance of a Singular, Guiding Vision,” Cineaste (1993). 
[13] Ross Baker, com Fred Firestone, eds., Movie People: At Work in the Business of Film (New York: World, 1972). 
[14] Citado in Krampner, Female Brando.

in «Arthur Penn - American Director», de Nat Segaloff, The University Press of Kentucky, Lexington, 2011.

sábado, 24 de dezembro de 2022

sábado, 17 de setembro de 2022

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Uma conversa sincera com o “Picasso da violência” do grande ecrã, controverso criador de A Quadrilha Selvagem e Cães de Palha


por William Murray 
 
Numa cena do filme de Sam Peckinpah A Quadrilha Selvagem, a quadrilha — um bando impiedoso de inadaptados — reúne-se em volta duma fogueira depois de um dia atarefado. Assaltaram um banco e mataram grande parte de um povoado enquanto escapavam, apenas para descobrir que o banho de sangue tinha sido cometido não pelo ouro que pensavam que tinham roubado mas por um saco de anilhas sem valor. Fazendo circular uma garrafa, falam sobre o que vai ser deles. William Holden, o líder, diz a Ernest Borgnine, “Esta ia ser a última, para mim. Ia-me retirar depois desta.” Borgnine responde, “Retirar para o quê?” Este é o tema do filme clássico de Peckinpah: homens desesperados com um modo de vida esgotado presos numa luta amaldiçoada e brutal contra uma nova ordem. 
 
Tem-se dito que Peckinpah partilha este sentimento do seu próprio anacronismo. Dustin Hoffman, estrela de Cães de Palha de Peckinpah, disse sobre ele: “eu penso em Sam como um homem fora do seu tempo. É irónico que esteja vivo agora, um pistoleiro num época em que estamos a voar para a lua.” E Peckinpah diz de si próprio: “Eu cresci num rancho, mas esse mundo desapareceu. Sinto-me desenraizado.” Esse rancho era no Madera County rural, na Califórnia, no sopé de uma montanha baptizada com o nome da sua família pioneira primitiva, e ele cavalgava, caçava e pescava por todo o lado. O pai era um juiz que governava a sua família com o mesmo autoritarismo que exercia em tribunal. Como Sam resistia a essa disciplina, foi enviado para a escola militar. Depois da graduação alistou-se nos Fuzileiros, fez uma comissão de serviço na China e regressou aos E.U. para se matricular na faculdade. Deixou a University of Southern California com um mestrado em Teatro e, no final dos anos cinquenta, começou a sua carreira como argumentista, depois realizador, de westerns para a televisão. Ao longo dos anos, escreveu dúzias de episódios de “Gunsmoke” e ajudou a criar duas séries de cowboys para a TV: “The Rifleman”, da qual se demitiu quando se tornou “um programa para crianças,” e a efémera “The Westerner”. 
 
Peckinpah conseguiu entrar no cinema em 1961, como realizador de The Deadly Companions, e seguiu isso com Ride the High Country e Major Dundee. Embora a sua carreira parecesse estar a progredir, estabeleceu rapidamente uma reputação de tirano com mau temperamento cuja presença produzia garantidamente plateaus conflituosos, orçamentos fora do controlo e prazos de finalização absurdamente tardios. (A sua vida privada tem sido igualmente volátil; ele foi casado uma série de vezes.) Como resultado, Peckinpah foi efectivamente banido da indústria até — depois de três anos de exílio — o produtor Phil Feldman arriscar e o contratar para filmar A Quadrilha Selvagem, o filme que estabeleceu a sua habilidade como realizador de primeira ordem e iniciou toda a conversa sobre o excesso de indulgência de Peckinpah na violência cinematográfica. A cópia de lançamento do filme foi sujeita a mais de 3500 cortes, mais do que qualquer outro filme a cores da história. No entanto, continuava a ser um dos filmes mais sangrentos alguma vez feitos, e o seu sucesso precipitou uma enchente de violência no grande ecrã que ainda não diminuiu. 
 
Depois de um filme muito menos sórdido, The Ballad of Cable Hogue — um insucesso crítico e comercial — Peckinpah fez Cães de Palha, o filme para o qual os críticos sentiram que ele se tinha estado a encaminhar ao longo da sua carreira; a sua obra-prima da violência. É a história de um jovem matemático americano, David Sumner (Dustin Hoffman), que recebeu uma bolsa de investigação e está a viver na Cornualha, em Inglaterra com a sua bela esposa inglesa. Ao longo do filme, David suporta a intimidação de cinco jovens da vila que contratou para reparar a sua garagem. Eles retribuem as instruções incertas de trabalho e as tentativas patéticas de bondade dele com condescendência e partidas sádicas, e olham de boca aberta para a esposa, que lhes provoca o desejo e eventualmente se torna a vítima bastante disposta de uma dupla violação. O tormento pessoal de David aumenta até à cena final de 30 minutos, quando, ao proteger um atrasado mental local que é procurado pelos mesmos homens pela suspeita de um crime sexual, lhes nega a entrada em sua casa e o ecrã se enche de sangue enquanto David os massacra a todos. 
 
As implicações mais negras de Cães de Palha — e o nível de violência no filme — provocaram exclamações contraditórias dos críticos. Escrevendo na Atlantic, David Denby chamou-lhe “um filme detestável mas muito emocionante.” A Pauline Kael da New Yorker foi mais longe, declarando-o “uma obra de arte fascista.” A Variety injuriou-o como “uma orgia de violência e perversidade sem paralelo…um banho de sangue que desafia a descrição detalhada.” Mas o crítico da Time, Jay Cocks, celebrou-o como “uma brilhante proeza cinematográfica… o filme talvez seja mais cínico do que realista. Mas se esta não é a forma como as coisas são, então é uma medida da habilidade de Peckinpah que, ao dar voz ao seu desespero, conseguiu fazer este pesadelo parecer o nosso.” 
 
Nunca houve qualquer tipo de consenso em relação a Peckinpah, mesmo entre os amigos — a maior parte dos quais esmurrou na boca numa ou noutra ocasião, geralmente sem aviso. Tanto pessoal como profissionalmente, diz um sobrevivente ainda amigável do seu soco certeiro, “o Sam é tão imprevisível como uma cobra.” Para descobrir o quão imprevisível ele é, e para saber se todas — ou alguma — das histórias sobre ele são verdade, a Playboy enviou o colaborador William Murray, que passou bastante tempo com Peckinpah, para o entrevistar. Murray relata: 
 
“O Sam é um grande farsante, bem como ligeiramente cabotino, e aprendeu a lidar com a imprensa dando aos jornalistas exactamente o que acha que querem ouvir. Resiste aos interrogatórios extensos escapando-se de nós, forçando-nos a fazer o nosso trabalho a correr. Eu conduzi a entrevista da praia em Malibu, na sala de uma casa alugada, durante uma festa, em vários bares, restaurantes, rulotes e em rodagem de exteriores em San Antonio e El Paso — onde ele estava a realizar o seu novo filme, Tiro de Escape, com Steve McQueen e Ali MacGraw. [McQueen também é a estrela do filme recentemente estreado de Peckinpah, Junior Bonner, a história de um cavaleiro de rodeo nas últimas.] 
 
“Vê-lo a trabalhar pode ser instrutivo. Raramente está em primeiro plano do que quer que se esteja a passar, mas sabemos, sem que nos tenha de ser dito, quem é que manda. Há algo de formidável nele. Normalmente veste Levis, uma camisa de gola aberta e um blusão — um homem esbelto e bem arranjado com os olhos escuros pequenos de um pistoleiro. O seu bigode cinza-ferro, o cabelo enfraquecido e as feições profundamente alinhadas fazem-no parecer mais velho do que os seus 46 anos; tem o rosto de um homem que lutou muitas batalhas — e perdeu algumas delas. Quando fala, mesmo enquanto dá uma ordem, expressa-se de forma tão suave que tende a atrair os ouvintes na sua direcção. Às vezes eles arrependem-se disso, porque aquilo que ele diz, bem como a forma como o diz, podem ser intimidantes. O truque é não vacilar — como aprendi quando nos sentámos para começar a gravar.” 
 
* * * 
 
PECKINPAH: Muito bem, vamos a isto. Prometo que faço o meu pequeno número. Mas não vou falar sobre violência. 
 
PLAYBOY: Então mais vale não começarmos. 
 
PECKINPAH: Por mim, tudo bem. 
 
PLAYBOY: Porque é que não queres falar sobre violência? 
 
PECKINPAH: Porque é a isso que toda a gente me está a tentar prender. Eles acham que a inventei. Acham que é só isso que eu sou. Acham que me excito quando as cabeças das pessoas nos meus filmes são rebentadas a tiro. Estou farto disso como a porra. 
 
PLAYBOY: Quando dizes “eles,” queres dizer os críticos? 
 
PECKINPAH: Quem mais? Vocês têm um primor aí na Playboy, um verdadeiro merdalha. Aquela crítica que o vosso homem escreveu sobre Cães de Palha era literalmente linguine. Não sabia que o Hefner andava a contratar groupies da New York Review, gajos que não sabem escrever ou olhar para um filme. 

PLAYBOY: Por acaso, o nosso colaborador gostou bastante do filme. Mas muitos críticos acharam que Cães de Palha era uma obra de arte, e a maior parte dos teus outros filmes foram bem recebidos. Talvez aconteça apenas que ninguém seja morno em relação ao teu trabalho. Ou te odeiam ou te adoram. 

PECKINPAH: De qualquer forma, quase nunca me compreendem. Para alguns, Cães de Palha era um trabalho de integridade mas não de grande inteligência. Para outros era um trabalho de enorme subtileza e inteligência considerável mas falhava por questões morais. Porra, o Cães de Palha é baseado num livro chamado The Siege of Trencher’s Farm. É um livro horrível com uma boa sequência de aventura e acção — o cerco em si. Contratam-te para pegar neste mau livro e fazer um filme a partir dele. Entregam-te um argumentista, o David Goodman, e um actor, o Dustin Hoffman, e dizem-te para fazer um filme. Dão-nos uma história para fazer e nós fazemo-la da melhor forma que sabemos, é só isso. Portanto o que é que é esta merda toda sobre integridade e sobre o filme não ser trabalho de grande inteligência? 
 
PLAYBOY: Pauline Kael chamou-te um artista apaixonado e sensual em conflito consigo mesmo, e escreveu na crítica dela sobre o Cães de Palha que é o filme em cuja direcção estiveste a trabalhar desde o início. Mas isso não é exactamente um elogio: Ela ficou horrorizada com o teu aval aparente da violência no filme e alega que consagraste o imperativo territorial e estás determinado em espalhar a palavra do Neandertal. 
 
PECKINPAH: Mais, mais, adoro! 
 
PLAYBOY: Também lhe chama “o primeiro filme americano que é uma obra de arte fascista.” 

PECKINPAH: Explica, por favor. 
 
PLAYBOY: Ela diz que o filme encena a velha fantasia masculina de que as mulheres só respeitam brutos e de que não existe tal coisa como a violação, que as mulheres são todas apenas pequenos animais a implorar por serem subjugados. 
 
PECKINPAH: A Amy, a rapariga interpretada pela Susan George no filme, é uma menina nova, desinformada, irritante e de corpo a ferver que tem muita coisa a seu favor, mas que ainda não cresceu. É esse o papel. Não foi uma tentativa de fazer uma afirmação sobre as mulheres em geral, por amor de Deus.  

PLAYBOY: Mas então e a cena da violação? A Amy está claramente a gostar da experiência, não está? Não estás a dizer, como Kael insinua, que é para isso que as mulheres servem — para serem usadas e desfrutadas? 
 
PECKINPAH: Bom, Pauline, presumo que isso faça parte. Mas eu não estou a rebaixar todas as mulheres nessa cena. A Amy está a gostar da experiência, sim. Ao princípio. A Kael não sabe nada sobre sexo? Dominar e ser dominado; a fantasia de ser tomado à força, também, é certamente uma das formas como as pessoas fazem amor. Não há fim para as fantasias do acto do amor, e esta é uma delas. Certo, a Amy está a gostar. Pelo menos com o primeiro hombre que a toma. O segundo é um pouco mais do que ela estava a contar, mas esse é um dos preços que paga por jogar o seu pequeno jogo. Há sempre um preço a pagar, doutor. 
 
PLAYBOY: Kael compara-te a Norman Mailer e diz que estão ambos no mesmo pacote machista, mas a diferença é que Mailer se preocupa com isso. Para ti, acha que é a base de tudo. 
 
PECKINPAH: Eu gosto da Kael; é uma moça aguerrida e gosto de beber com ela — coisa que fiz ocasionalmente—mas aqui ela está a partir nozes no rabo. Olha, e se me tivessem dado o Guerra e Paz para fazer em vez do Trencher’s Farm? Estou razoavelmente certo de que tinha feito um filme diferente.  

PLAYBOY: Mas foste tu próprio a escolher The Siege of Trencher’s Farm, não foste? 
 
PECKINPAH: Eu não escolhi nada. Nunca escolhi nenhum dos meus filmes. Excepto um, The Ballad of Cable Hogue. Esse foi o único filme que escolhi fazer. 
 
PLAYBOY: Conta-nos como é que funciona, então. Oferecem-te imensos projectos... 

PECKINPAH: Estou à procura de um trabalho. Sou uma puta. Vou para onde me enxotam. Mas sou muito boa puta. 
 
PLAYBOY: Seja qual for o material que te derem para trabalhar, tu depois transforma-lo no teu próprio filme. O toque de Peckinpah é certamente inconfundível. 
 
PECKINPAH: O toque de Peckinpah! Jesus! Lê a porra do livro. Vais morrer engasgado no teu próprio vómito. 
 
PLAYBOY: Quando dizes que és uma puta, não é uma meia-verdade na melhor das hipóteses? Se não fosses tão bom como és, ninguém te iria prestar qualquer atenção; há imensas putas por aí. 
 
PECKINPAH: Assim que me entregam qualquer coisa para fazer, eu depois pego no material e tento criar alguma coisa daquilo e, não querendo soar demasiado pomposo como a porra em relação a isso, aquilo que eu acrescento é o que vejo, como me sinto em relação à forma como as coisas estão ou ao rumo que estão a tomar. Mas tento contar uma história, acima de tudo, em termos do material que me dão, e muito raramente me deram uma peça decente de material. 
 
PLAYBOY: O que é que te interessou mais naquilo que se tornou o Cães de Palha
 
PECKINPAH: O que me excitou mesmo foi a quantia de dinheiro que me deram para o fazer. Começa-se com o dinheiro e depois de se ter isso em foco, tenta-se perceber o que raio se está a fazer. Neste caso, eu e o David Goodman falámos e tentámos fazer algo de válido a partir deste livro reles. Conseguimos. A única coisa que mantivemos foi o cerco em si. 
 
PLAYBOY: David Sumner, a personagem que Dustin Hoffman interpreta no filme, é um intelectual que está a fugir de si mesmo e se recusa a tomar uma posição em relação ao que quer que seja. Tu retrata-lo como uma espécie de verme. Quando toma mesmo uma posição, ela é insuportavelmente violenta e insinuas que ele se torna um homem através deste recurso à violência. E que ele gosta do caos. 

PECKINPAH: Totalmente errado. Não sei que filme é que viste. Há uma altura a meio do cerco em que o David quase vomita, sente-se tão doente, e diz, “Força, prime o gatilho.” Ele está doente daquilo, doente de si próprio, doente da violência que reconhece em si próprio. Não consigo acreditar que alguém possa perder isto no filme. Tinha acabado de usar um atiçador para matar um homem que o tinha tentado matar. Olha para o que fez com desespero e horror absoluto e nesse momento não se importa se vive ou se morre.  

PLAYBOY: Então e o último plano no filme, quando Hoffman se está a afastar de carro do local dessa carnificina? Houve um crítico que viu um olhar de satisfação no rosto dele quando diz ao retardado que já não sabe o caminho para casa. 
 
PECKINPAH: Não é satisfação de todo. Nem eu nem o Dustin o interpretamos dessa forma. O diálogo foi escrito enquanto se ia de carro para um exterior no último dia de rodagens. O David Warner tinha dado a deixa nos ensaios dizendo, “Não sei o caminho para casa.” Eu virei-me para o Dustin e disse, “E tu também não sabes, e esse é que é o sentido do filme.” “Sim,” disse ele, “e vou dizê-lo com um sorriso, porque a ironia é demais para ele o dizer a sério.” O Dustin quis fazê-lo dessa forma e tinha razão. 

David Sumner tinha reconhecido em si mesmo a enorme violência reprimida com que tinha andado a viver. E assim que saiu, não havia volta atrás. Estás a ver, ele preparou mesmo aquilo tudo. Podia-o ter impedido em qualquer de uma dúzia de vezes. Estava a testar a esposa; estava-se a testar a si próprio. Estava-se a manobrar a si próprio para uma situação em que seria forçado a libertar a violência dentro de si, como fazem muitos pretensos pacifistas e pessoas supostamente passivas. Lembras-te de ler sobre aquele miúdo que matou 45 pessoas do topo de uma torre num campus qualquer? Bolas, ali estava o aluno exemplar, o gajo porreiro, o líder dos escuteiros que era bondoso para a mãe e para animais pequenos. Se gostou ou não de matar aquelas pessoas todas não é a questão. A questão é que o fez. Tinha aquela violência toda dentro dele e subiu para a torre e deixou-a sair. Agora, ouve-se esta conversa toda sobre a violência em Cães de Palha e em alguns dos meus outros filmes, como se essa violência estivesse a contribuir para a violência da nossa sociedade. O que interessa é que a violência em nós, em todos nós, tem de ser expressada de forma construtiva ou vai-nos afundar. 

Eu sou um grande crente na catarse. Achas que as pessoas vêem a Super Bowl por pensarem que o futebol americano é um belo desporto? Tretas! Estão a praticar violência por procuração. Olha, a base antiga da catarse era uma purga das emoções por medo e piedade. As pessoas costumavam ir ver as peças de Eurípides e Sófocles e aqueles outros tipos gregos. Os intérpretes representavam-nas e o público ia para lá e como que as vivia com eles. O que é que é mais violento do que as peças de William Shakespeare? E a grande ópera? O que é que é mais sangrento do que uma grande ópera romântica? Pega numa trama, em qualquer trama — irmão mata irmão para dormir com a mulher dele, que depois mata o pai, e assim sucessivamente e assim sucessivamente. Querem-se divertir? Leiam os Contos de Grimm. Quando se assinalam coisas como estas aos tipos de Nova Iorque, eles dizem-nos que era tudo arte, o que é uma merda. Estas peças e óperas e histórias eram o entretenimento popular da altura. 
 
PLAYBOY: Mas eles não se interessavam tanto como tu nos detalhes físicos da violência. A violência nos teus filmes é executada de forma cuidadosa, super-realista e quase sempre em grande plano. 

PECKINPAH: Hoje em dia não se consegue tornar a violência real para o público sem lha esfregar no nariz. Nós assistimos às nossas guerras e vemos homens a morrer, a morrer mesmo, todos os dias na televisão, mas não nos parece real. Não acreditamos que aquilo são pessoas verdadeiras a morrer naquele ecrã. Fomos anestesiados pela comunicação social. O que eu faço é mostrar às pessoas como é mesmo — não tanto mostrando-a como é mas intensificando-a, estilizando-a. A maior parte das pessoas nem sequer sabe qual é o aspecto do buraco de uma bala num corpo humano. Eu quero que vejam qual é o aspecto. A única forma de eu conseguir fazer isso é não os deixando fazer vista grossa sobre a aparência das coisas, como se fosse o noticiário das sete da DMZ[1]. Quando as pessoas se queixam da forma como eu lido com a violência, o que estão mesmo a dizer é, “Por favor não me mostrem; eu não quero saber; e traz-me outra cerveja da geladeira.” 
 
PLAYBOY: Muitas pessoas querem pôr fim a tudo, na televisão ou nas telas de cinema, que possa contribuir para a violência pública do nosso tempo. Estão erradas? 
 
PECKINPAH: Eu acho que é errado — e perigoso — recusarmo-nos a reconhecer a natureza animal do homem. É disso que Robert Ardrey anda a falar naqueles três grandes livros dele, African Genesis, The Territorial Imperative e The Social Contract. Ardrey é o único profeta vivo nos dias de hoje. Há uns anos, quando estava a trabalhar na Quadrilha Selvagem, um amigo veio até mim com o African Genesis e disse que eu o tinha que ler porque o Ardrey estava a escrever sobre aquilo com que eu estava a lidar, que estávamos ambos no mesmo barco. Portanto depois de terminar A Quadrilha Selvagem eu li-o e pensei, uau, aqui está uma pessoa que sabe um par de segredos sórdidos sobre nós. Cães de Palha é sobre um tipo que descobre alguns segredos sórdidos sobre si próprio — sobre o seu casamento, sobre o sítio onde está, sobre o mundo à sua volta. Algumas pessoas não gostam de enfrentar esse tipo de coisa; provoca-lhes uma irritação. Estás a ver, arrancam os óculos de protecção a David Sumner. O homem disse que não se pode voltar para casa e o David também não pode. Pode continuar — podemos todos — mas não consegue voltar ao que era. Não sei o que poderia ser mais claro. 
 
PLAYBOY: E a mulher dele, a Amy? O que é que ela descobre sobre si própria? 
 
PECKINPAH: Bom, há dois tipos de mulheres. Há mulheres e depois há cona. Uma mulher é uma parceira. Se conseguimos percorrer uma certa distância por nós próprios, uma boa mulher vai triplicá-la. Mas a Amy é o tipo de mulher — e todos as vimos aos milhões — elas casam, têm alguma qualidade, mas são tão imaturas como a porra, tão ignorantes no que à vida diz respeito, como no que há de valor na vida, neste caso em relação ao casamento, que o destroem. A Amy é cona, sob a fachada de ser uma mulher. Talvez devido ao que lhe acontece, eventualmente se torne uma mulher. 
 
PLAYBOY: Estás a insinuar que Amy não se podia tornar mulher até David se tornar homem? 

PECKINPAH: Não, o David foi sempre um homem. Acontece apenas que não via profundamente o suficiente para dentro de si próprio. Não sabia quem era e de que fibra era feito. Todos intelectualizamos sobre o porquê de devermos fazer coisas, mas são os nossos instintos puramente animais que nos impelem a fazê-las o tempo todo. O David descobriu que tinha esses instintos todos e pô-lo doente, doente até à morte, e ao mesmo tempo teve estômago e bom senso que chegasse para se impor e fazer o que tinha de fazer. 
 
PLAYBOY: Mas a Amy foi o instrumento da auto-descoberta dele, não foi? Ela não o empurrou e estimulou a “agir como um homem”? 
 
PECKINPAH: Ela não sabia o que queria. Empurrou-o, como tu dizes, mas não de nenhuma forma construtiva. Para começar, ela estava a pedir a violação. Mas depois mal se conseguiu dispor a premir o gatilho para lhe salvar a vida a ele. Eu não sei se eles vão voltar a estar juntos. Pelo menos vão ter que lidar um com o outro num plano diferente. O que eu espero que ele faça é continuar naquele carro no final — não voltar para trás. Casou-se com a gaja errada, obviamente. Ela é cona, basicamente. O que eu favoreço são casamentos feitos no céu, e esse é o único sítio em que os casamentos devem ser realizados. E falando em violação, gostava de assinalar à menina Kael e a esses outros pretensos críticos que entrada das traseiras não significa necessariamente sodomia, como eles disseram nas críticas deles. No filme, Amy é tomada por um tipo com quem costumava andar e depois é tomada por trás por outro tipo de quem não queria nada por sítio nenhum. A dupla violação é um bocadinho mais do que ela estava a contar. De qualquer forma, imagino que a menina Kael e os amigos dela tenham complexos anais. Perfeitamente justificado nos tempos que correm. 
 
PLAYBOY: Se a Amy é uma cona, porque é que o David casou com ela? 
 
PECKINPAH: Vá, isso está abaixo de ti. A maior parte de nós casa com uma cona numa altura ou noutra. Uma rata esperta e sem escrúpulos pode sempre usar a aparência para convencer um pobre coitado qualquer a casar-se com ela. E no casamento, tantas vezes, especialmente se o homem se sente sozinho, vai vesti-la com as roupas das suas próprias necessidades — e se ela for muito jovem, vai-lhe fazer a mesma coisa a ele. Não olham mesmo para o que a outra pessoa é mas para o que querem que essa pessoa seja. De um momento para o outro a ilusão desvanece e eles vêem-se mesmo um ao outro e dizem, “Hey, o que é que se passa aqui?” Agora que o David se consegue ver a si próprio, também, pode começar a construir a vida dele. Quanto a ela, provavelmente nunca vai mudar. 
 
PLAYBOY: Soas como um homem que teve imensa experiência com conas. 
 
PECKINPAH: Não quereria que fosse de outra forma. Uma das vantagens de ser uma celebridade é que há uma data de cona atraente que antes não estava disponível para ti que de repente fica disponível. Abundam groupies e fode-estrelas e evidentemente que não se tem que casar com elas, embora uma data de pobres ingénuos o faça. 
 
PLAYBOY: Como é que justificas a atracção mútua entre estrelas e groupies
 
PECKINPAH: É a mesma coisa que atrai todos os homens para as mulheres, e vice versa. Os homens excitam-se essencialmente pela beleza física, o magnetismo, ou apenas talvez a forma como uma mulher se move e o tipo de ambiente em que se envolve. Mas o que atrai uma mulher para um homem é completamente diferente. Tem muito mais que ver com a posição em que um homem está na vida. Não estou a falar de dinheiro; estou a falar de sucesso. Estou a falar, mesmo, de território. Quanto e onde e quão seguro. É a ânsia humana mais básica. Olha para o comportamento de qualquer manada. Quem tem as vacas? O touro maior e mais forte. E a cada ano tem que derrotar todos os oponentes até algum eventualmente acabar com ele. Mas enquanto reina, é tudo da forma como quer. É o processo evolucionário mais básico e fascinante que existe. 
 
PLAYBOY: Os etólogos são capazes de concordar contigo, mas é pouco provável que o movimento de libertação das mulheres acredite em muito do que estás a dizer. 
 
PECKINPAH: Ignoro o movimento de libertação das mulheres. Sou pela maior parte das coisas por que elas são, socialmente bem como política e economicamente, mas não consigo entender porque é que têm que fazer tanta figura de parvos em relação ao assunto. Essas fufas camionistas e as malucas com o seu calçado de ténis e sacas de serapilheira — tenta-lhes só explicar alguns factos da vida. Como o facto de eu ter um pénis que se impulsiona para dentro de uma mulher e ela ter uma vagina para me receber. O acto básico masculino, pela própria natureza, inicia-se como um acto de agressão física, independentemente da quantidade de amor que eventualmente expresse, e o da mulher começa como um acto de passividade, de submissão. É um facto físico. Excepto para uma fufa camionista. Não que esteja a deitar abaixo o lesbianismo. Considero-me um dos maiores lésbicos masculinos no mundo. 

Estou-me nas tintas para o que se passa nas cabeças das pessoas; somos fisicamente construídos de certa forma e foi-nos concedido um conjunto de instintos a acompanhar a maquinaria. Diz isso a qualquer uma dessas aberrações do movimento de libertação e elas vão jurar que és um porco machista-chauvinista. O Cães de Palha é principalmente sobre aquilo que pode acontecer quando negamos os nossos instintos e impulsos básicos. Li algures recentemente que um tipo qualquer andava a ter problemas a safar-se com as mulheres de hoje porque metade das que levava para a cama começavam por lhe fazer exigências geográficas. Apresentam todo um plano sexual de combate antes de começarem. Querem isto e querem aquilo. Estão à espera que proporciones satisfação instantânea ao cumprir como uma espécie de acrobata computadorizado. Isso é logística, não é sexo — e sem dúvida que não é amor. No sexo, quando o fazemos apenas para nós ou para a outra pessoa, estamo-nos a masturbar ou a nós ou a ela. Qualquer boa puta sabe mais sobre sexo do que Betty Friedan. 
 
PLAYBOY: Gostas mesmo de putas? 
 
PECKINPAH: De todas as putas com quem estive — americanas, chinesas, inglesas, mexicanas, de qualquer nacionalidade — só não acabei nalgum tipo de relação pessoal calorosa com cerca de 10 por cento. Vivi com algumas boas putas. Elas levaram-me para casa ou levei-as eu. Fomos seres humanos juntos. Nunca pensei nessas mulheres como objectos para serem usados. Pus muito das relações que tive com putas na história de amor entre Cable Hogue e a sua puta, a Hildy. Eles tinham uma relação que era mais verdadeira e mais terna do que as da maior parte dos maridos e mulheres. O facto dela ser uma puta e de ir para a cama com homens por dinheiro não mudava nada. A maior parte das mulheres casadas fode pelo dinheiro associado. 
 
PLAYBOY: Independentemente da tua relação com as putas, o facto de te entenderes tão bem com elas não denota alguma necessidade da tua parte em te manteres tanto superior como emocionalmente não envolvido? 
 
PECKINPAH: É possível, mas creio que significa principalmente que gosto de uma mulher honesta, uma mulher que é honesta consigo mesma e com as pessoas de quem gosta. Não raramente, de uma forma ou de outra, ela acaba por se revelar uma prostituta. 
 
PLAYBOY: Agora que penso nisso, a maior parte das mulheres nos teus filmes têm sido prostitutas. 

PECKINPAH: Quando se encontra uma coisa boa, continua-se com ela. 
 
PLAYBOY: Como a violência. Sempre lidaste com ela, não foi? 
 
PECKINPAH: Um dos meus grandes temas. Mas se queres descobrir alguma coisa sobre violência neste país, deves falar com as pessoas nas nossas prisões, como eu tenho andado a fazer ultimamente a propósito do Tiro de Escape. Esses gajos acordam-te. Para eles é uma forma de vida, uma vida vivida de acordo com certos códigos. Há algumas coisas que se fazem e outras que não se fazem. Está tudo embutido no tecido das vidas deles, como estava para os tipos de A Quadrilha Selvagem. Eram pessoas que viviam não só pela violência como para ela. Mas todo o fundo da nossa sociedade foi sempre violento e ainda é. É um reflexo da própria sociedade. Sabes que houve pessoas que vieram ter comigo e me mandaram socos por estarem indignadas com a violência de A Quadrilha Selvagem? Esses pacifistas apareceram e tentaram-me mesmo bater. Não compreendiam quem eram. Na peça de George Bernard Shaw The Devil’s Disciple, um padre descobre a sua verdadeira natureza, que é a de um homem de acção, um homem de violência, e o homem de acção descobre que na verdade é um padre. Isto não te sugere nada? 
 
PLAYBOY: Talvez que tu próprio tenhas um bocado de padre. 
 
PECKINPAH: Isso mesmo. Algo que ver com as minhas origens, talvez. 
 
PLAYBOY: Achas que os pacifistas são desonestos consigo próprios ou desligados da realidade? Ou apenas pouco homens? 
 
PECKINPAH: Claro que não. O verdadeiro pacifismo é de homem. Na verdade, é a forma mais nobre de hombridade. Mas se um homem chega à nossa beira e nos corta a mão, não lhe vamos oferecer a outra. Se quisermos continuar a tocar piano, é melhor não. Não estou a dizer que a violência é o que faz de um homem um homem. Estou a dizer que quando a violência chega, não podemos fugir dela. Temos de reconhecer a sua verdadeira natureza, em nós próprios bem como nos outros, e fazer-lhe frente. Se fugirmos, estamos mortos, ou mais valia estarmos. 
 
PLAYBOY: Quando dizes que alguém é um homem a sério, que queres dizer com isso? 
 
PECKINPAH: Que não tem de provar nada. É ele próprio. O meu pai colocava-o doutra forma. Quando a altura chega, costumava dizer ele, resistimos e somos julgados. Pelo que está certo. Por algo que importa. É o teste derradeiro. Ou se cede até ao ponto em que nos destrói ou resistimos e dizemos, “Para o caralho.” É incrível quão poucas pessoas estão dispostas a fazer isso. Portanto se eu sou um fascista por acreditar que os homens não são iguais, então tudo bem, sou um fascista. Mas detesto o termo e detesto o tipo de argumentação que classifica esse ponto de vista como fascista. Eu não sou um anti-intelectual, mas sou contra os pseudo-intelectuais que rebolam na diarreia verbal deles como cães e lhe chamam propósito e identidade. Um intelectual que incorpore o seu intelecto em acção é um ser humano completo. Mas ficar de braços cruzados e dirigir as operações das bancadas é masturbação. 
 
PLAYBOY: David Sumner em Cães de Palha é o primeiro intelectual de que alguma vez fizeste herói de um filme. 
 
PECKINPAH: Ele não é um herói. É um vilão. Eu sou maluco por vilões. 
 
PLAYBOY: Era isso o que achavas das tuas personagens em A Quadrilha Selvagem? Foste citado a dizer que odiavas Pike Bishop, o papel de Bill Holden, e os seus companheiros, que eles eram perigosos e tinham que desaparecer; mas a forma como os tratas no filme parece-te contradizer. Exprime respeito e mesmo amor por eles e por aquilo que representam. 
 
PECKINPAH: Claro que os adorava. Eu adoro renegados. Olha, a menos que nos conformemos, que cedamos totalmente, vamos estar sozinhos neste mundo. Mas ao ceder, perdemos a nossa independência como seres humanos. Portanto eu escolho os solitários. Eu não passo de um romântico e tenho esta fraqueza por perdedores à grande escala, bem como um tipo de afeição furtiva por todos os desajustados e andarilhos no mundo. 
 
PLAYBOY: Os teus perdedores e desajustados não são conformistas a códigos obsoletos? 
 
PECKINPAH: Códigos obsoletos como coragem, lealdade, amizade, graciosidade sob pressão, todas as virtudes simples que se tornaram lugares comuns, certamente. Eles são tipos que ficaram sem território e sabem disso, mas também não se vão vergar; recusam-se a ser diminuídos por isso. Desempenham o seu papel até ao fim. 
 
PLAYBOY: Mas a verdade nua e crua sobre a fronteira não era que não havia código real nenhum — além da sobrevivência do mais forte? 
 
PECKINPAH: Pois, mas eu não faço documentários. Os factos sobre o cerco de Tróia, do duelo entre Heitor e Aquiles e tudo o resto, são muitíssimo menos interessantes para mim do que o que o Homero faz disso tudo. E, de qualquer forma, os meros factos tendem a obscurecer a verdade. Como continuo a dizer, sou basicamente um contador de histórias. Já nem sequer tenho a certeza no que acredito. Uma vez encenei uma peça do Saroyan em que uma das personagens perguntava a outra se era capaz de morrer por aquilo em que acreditava. O tipo respondeu, “Não, que posso estar enganado.” É aí que eu estou. Não me vou meter entre o meu público e a história. Odeio o sentimento numa sala de cinema de se estar mais consciente daquilo que o realizador está a fazer do que aquilo que está realmente no ecrã. 
 
PLAYBOY: É por isso que gostas de fazer westerns, porque o Oeste é quase a única mitologia que nós temos? 
 
PECKINPAH: Não, porra. Cheguei a isso naturalmente. A minha primeira memória é a de estar amarrado a uma sela quando tinha dois anos para uma cavalgada pelas terras altas acima. Estivemos sempre próximos das montanhas, sempre a voltar para elas. Quando o meu avô estava a morrer, quase que as últimas palavras dele foram sobre as montanhas. Passávamos nelas o Verão e nalguns Invernos estendia armadilhas pela neve. Adorávamos aquela terra, todos nós. O meu avô, Denver Church, tinha um rancho de gado de 4100 acres no sopé das Sierras, cerca de 25 milhas a leste de Fresno, e toda a família, os Peckinpah e os Church, tinha vagueado por essas terras desde que se mudou do Midwest em meados do século 19. Até temos uma montanha com o nosso nome. 
 
PLAYBOY: Usaste familiares teus como personagens nos teus filmes? 
 
PECKINPAH: Não, eles ficaram demasiado respeitáveis. Entraram no ramo imobiliário, em política, em direito. A minha mãe, que ainda anda bem presente, acredita de forma absoluta em duas coisas: a abstemia e a ciência cristã. O meu pai era juiz. Acreditava na Bíblia como literatura, e na lei. Era uma autoridade, e crescemos todos a pensar que ele nunca, mas nunca podia estar errado em relação ao que quer que fosse. Os nossos grandes temas à mesa de jantar eram a lei e a Bíblia e Robert Ingersoll. Quando ainda era miúdo, o pai obrigou-me a ir ao julgamento, no tribunal dele, de um rapaz de 17 anos acusado de violação. Achou que seria uma boa lição para mim. Foi, mas não pelas razões que ele pensava. Além de ser um juiz, o meu pai era provavelmente o pior criador de gado no ramo. Foi 13 vezes à falência. E nas montanhas, criava as próprias leis. Acreditava que não se caçava a menos que se comesse aquilo que se matasse. Mas afirmava que todos os animais nas suas terras eram seus para fazer o que quisesse deles. Eu tinha 20 anos quando soube que havia tal coisa como uma época de caça ou um guarda florestal, e tinha 30 quando comecei a prestar alguma atenção ao assunto. 

As pessoas e os lugares, naquela zona! A maior parte agora desapareceu. Hoje, Fresno é como uma pequena LA, e a região em redor está cortada com novas estradas e instalações de lazer e infestada com estes turistas e campistas merdeiros todos. Eu e o meu irmão Denny estivemos lá para os últimos momentos. Muitos dos anciões remontavam a quando o local tinha sido domínio de caçadores e armadores, índios, exploradores de ouro — os andarilhos e os trapaceiros todos. Agora tudo o que resta são os nomes para nos lembrar, e que nomes: povoados como Coarsegold[2] e Finegold[3], Shuteye Peak[4], Dead Man Mountain[5], Wild Horse Ridge[6], Slick Rock[7]. E os anciões também tinham as suas histórias para contar. Eu e o Denny cavalgávamos e pescávamos e caçávamos por toda aquela região. Pensávamos que íamos sempre fazer parte dela. Nos últimos anos já não tenho caçado, mas ando a pensar em voltar a fazê-lo. 
 
PLAYBOY: Concordas com o teu pai que é errado caçar a menos que se coma o que se mata? 

PECKINPAH: Sim, e também não se deve matar mais do que se consegue comer. Um veado sabe bem, mas também é um lindo animal. No entanto qualquer pessoa se dispõe a matar se tiver fome suficiente — mesmo aqueles que se recusam a caçar de todo, por razões morais. Um mordiscar na barriga é um grande equalizador de princípios. Claro que a maior parte dos homens só mata por princípio, e aí normalmente é o seu semelhante. Belo princípio. 
 
PLAYBOY: Achas que é possível, como um crítico disse uma vez sobre ti, que na verdade és um homem do século 19 e que estás a viver indirectamente pelo teu trabalho o período em que preferias ter vivido? 

PECKINPAH: Quando se está a fazer um filme, em primeiro lugar, o período importa menos do que aquilo sobre o que é. Tornamo-nos todas as personagens. Eu fui todas as personagens nos meus filmes. Os actores fazem o mesmo. Experimentam os papéis uns dos outros para ver se lhes servem, para os testar a eles e a si próprios, às vezes uns contra os outros. Mas de facto gostei desse período na vida americana. E gostei do período em que cresci, os anos trinta. Era uma América diferente. Não nos tinha acabado o espaço. 
 
PLAYBOY: Como fizeste o salto para o mundo do espectáculo com as tuas origens de WASP[8] pragmático e a tua dedicação aos espaços abertos? 
 
PECKINPAH: Por acaso. Tinha acabado de sair do Corpo de Fuzileiros depois da 2ª Guerra Mundial e não tinha nada de muito específico em mente. O Denny tinha ido para direito. A única coisa de que tinha a certeza era que não queria fazer isso. Voltei para a escola, para a Fresno State, porque não tinha nada melhor que fazer. Conheci lá a minha primeira mulher, a Marie, que queria ser uma actriz. A Fresno State tinha um departamento de teatro pequeno mas activo e um dia eu acompanhei a Marie a uma cadeira de encenação. Aquilo excitou-me imediatamente. Curti especialmente as peças de Tennessee Williams, e o meu grande projecto na escola foi uma versão de uma hora de The Glass Menagerie que adaptei e encenei. Imagino que aprendi mais com Williams do que com qualquer outro. É facilmente o maior dramaturgo da América. Ele sempre me comoveu imenso. Também encenei o Streetcar, bem como a maior parte das peças de um acto dele. É um artista tremendo e eu desejo-lhe sempre a maior sorte do mundo. Acho que aprendi mais sobre escrita a ter de cortar Menagerie do que com qualquer outra coisa que tenha feito desde aí. 
 
PLAYBOY: Escrever foi o que te abriu portas, não foi? 
 
PECKINPAH: Sim, mas foi um inferno, porque eu odeio escrever. Passo pelas torturas dos danados. Não consigo dormir e parece-me que vou morrer a qualquer minuto. Eventualmente, tranco-me a mim próprio em qualquer sítio, fora do alcance de uma arma, e avanço com o assunto de um grande impulso só. Sempre estive à volta de escritores e tinha amigos que eram escritores, mas nunca me tinha apercebido do diabo de montes de angústia que implica. Mas era uma forma de entrar. Eu cumpri a minha pena nesta indústria. Fui estafeta, assistente de palco. Varri os estúdios e assisti a algumas boas pessoas a trabalhar. Depois comecei a escrever e por fim a vender guiões para a TV. E passado um tempo decidi tentar a minha sorte nos filmes. Tinha sempre dois ou três projectos a andar ao mesmo tempo. Punha tudo o que tinha neles e vendia alguns e depois eles desapareciam. 

Escrevi dois belos guiões nesses tempos, e o que lhes aconteceu foi típico. Um, o Villa Rides, foi produzido com o Yul Brynner como protagonista. Era horrível. Eu passei muito tempo no México e conheço a história mexicana. O Brynner disse que eu não compreendia o México e o Villa Rides é o resultado das mudanças que eles fizeram. É um embuste. O outro guião tornou-se o One-Eyed Jacks, realizado e interpretado por Brando. Tinha adaptado a coisa dum romance de Charles Neider chamado The Authentic Death of Hendry Jones, baseado na verdadeira história de Billy the Kid. Era o trabalho definitivo sobre o tema, mas o Marlon estragou tudo. Ele é um actor dos diabos, mas por esses dias tinha de acabar como herói e essa não é a ideia da história. Billy the Kid não era herói nenhum. Era um pistoleiro, um verdadeiro assassino. 

Mas não quero mandar abaixo os actores. Alguns dos meus melhores amigos são actores. Foi o Brian Keith, que tinha trabalhado comigo na série “The Westerner”, que me conseguiu a primeira oportunidade de realizar um filme. Ele tinha sido contratado para protagonizar ao lado de Maureen O’Hara em The Deadly Companions e convenceu o produtor do filme, que por acaso era irmão da menina O’Hara, a aceitar-me. Não foi o melhor acordo do mundo: eu queria fazer um filme e este tipo queria fazer de mim gato-sapato. O guião precisava de imenso trabalho, mas diziam-me para ficar quieto no meu cantinho. O Brian sabia que estávamos em sarilhos, portanto entre nós tentámos dar à coisa algum sentido dramático. O resultado foi que as cenas dele funcionavam todas, enquanto que as dela ficaram todas sem vida. Descobri como eram os produtores, descobri. 
 
PLAYBOY: Sempre tiveste problemas com produtores. Há algum com quem tivesses gostado alguma vez de trabalhar? 
 
PECKINPAH: Um, talvez dois, e mesmo aí não muito. Não trabalho bem sob ordens das pessoas. Acho que tem de haver uma pessoa que faz um filme e essa pessoa tem que ser o realizador. Os produtores muitas vezes são apenas administradores e estão demasiado interessados em defender as suas próprias prerrogativas. Eu tenho mau feitio e não consigo suportar a estupidez, por isso estou sempre em guerra com esses gajos. Quero controlo sobre tudo, do guião à sala de montagem. E se não consigo o que quero das pessoas, ponho-as na alheta. O problema com os produtores é que não se lhes pode fazer isso. Todos os outros vêm e vão, num filme, mas o produtor e o realizador ficam com ele do princípio ao fim. O melhor produtor é um tipo que nos deixa fazer o nosso próprio filme. Não há muitos por aí. 
 
PLAYBOY: Que realizadores é que têm essa influência? 
 
PECKINPAH: O Kurosawa tem. O Fellini. Bergman. Mas nenhum americano tem. Alguns, como Kubrick e Nichols, acham que têm, mas não têm. Não é apenas uma questão do que nos acontece durante a rodagem e a montagem: é o que nos fazem assim que o filme está totalmente fora das nossas mãos. O Huston uma vez teve quase controlo total, mas estragou tudo com The Red Badge of Courage, quando se afastou da montagem do filme. De qualquer forma, eu sou um grande admirador dele. Todos os filmes de Huston tentaram não apenas contar uma história mas também fazer algum tipo de afirmação. Os filmes perfeitos deste tipo são A Relíquia Macabra e O Tesouro da Sierra Madre. Quem me dera conseguir fazer um filme tão bom. Comparado com John Huston, ainda estou no oitavo ano — mas estou a progredir. 
 
PLAYBOY: Nós ouvimos dizer que Huston não desistiu de Red Badge, que tinha outro compromisso. 

PECKINPAH: Bom, mesmo que tivesse desistido, não o culpava de todo. Isto não é uma brincadeira. Há demasiada coisa em jogo. E os bosques estão cheios de assassinos, de todos os tamanhos e de todas as cores. Eu não sabia disto tudo quando era só um escritor. Não conseguia suportar estar tão sozinho comigo mesmo, e foi trabalho muito, muito duro; mas escrever tem uma vantagem enorme em relação a realizar: Só temos de lidar com nós próprios: podemos escapar para as nossas fantasias e ser reis. O mundo de lá de fora, no que ao trabalho de um escritor diz respeito, limita-se a lidar com um agente e talvez um par de editores, alguns dos quais podem ser bem boas pessoas. Mas um realizador tem que lidar com todo um mundo absolutamente repleto de medíocres, chacais, parasitas e assassinos puros e simples. O desgaste é tremendo. Pode-nos matar. O que se diz é que nos podem matar mas não nos conseguem devorar. Isso é um disparate. Eu tive-os a devorar-me enquanto ainda andava por lá. O meu trabalho elementar é lidar com talento em termos de uma história e avançar com o assunto. Quem me dera que o resto fosse tão simples. Mas há aquela merda toda que vem antes e depois. 
 
PLAYBOY: Agora que os grandes estúdios já não controlam a indústria, tu e alguns outros realizadores de topo não têm muito mais liberdade para fazer o tipo de filmes que querem fazer? A chamada Nova Hollywood não é precisamente isso? 
 
PECKINPAH: Eu não estou a falar sobre Hollywood, nova ou antiga. Estou a falar é sobre dinheiro, doutor. É disso tudo que isto se trata. Ao contrário dum romancista, por exemplo, eu lido com um produto que custa vários milhões de dólares. Quando se lida com milhões, lidamos com pessoas no seu pior. Cristo, uma confrontação no velho Oeste não é nada comparada com as disputas internas que acontecem por causa de dinheiro. Para conseguir que os meus filmes fossem feitos, e especialmente no início, tive sempre que mentir e enganar e roubar. Foi a única forma de conseguir suportar a musculatura toda que estava por trás do peso do dinheiro. E mesmo na altura não consegui ganhar. A MGM viu o Ride the High Country como um filme de baixo orçamento feito às três pancadas que podiam atirar para as segundas metades das sessões duplas de Verão, e se eu tentasse falar com eles sobre o tema fundamental desse filme, que era a salvação e a solidão, eles despediam-me na hora. Mesmo assim, detestaram o que eu tinha feito, e expulsaram-me antes de conseguir terminar a montagem, a dobragem e a banda-sonora. Major Dundee, que tinha um bom homem, Chuck Heston, e que podia ter sido qualquer coisa, foi massacrado pelo estúdio e o produtor revelou-se uma doninha cujo verdadeiro talento era envenenar poços. O Marty Ransohoff despediu-me de The Cincinnati Kid passados apenas quatro dias. Apresentou ao meio profissional uma história de que eu estava a vulgarizar o filme ao injectar-lhe uma cena de nudez. Havia uma cena num quarto de hotel entre Rip Torn e uma rapariga que estava a interpretar uma pega lúgubre. Bom, nós trabalhámos nela e a cena ficou cada vez mais triste. Acontecia simplesmente que a rapariga se revelava estar nua por baixo do casaco. Era apenas um elemento numa cena muito maior. Mas aprendi uma coisa sobre o Marty: Tinha um ódio tremendo pelo verdadeiro talento. 

Passaram quase quatro anos até trabalhar de novo. Aguentei-me com biscates, dinheiro emprestado e o guião ocasional. Não conseguia contactar pessoas por telefone ou entrar pelo portão dum estúdio. Estava fora. Só quando Danny Melnick, que tinha visto High Country e gostado, me contratou para adaptar e realizar Noon Wine de Katherine Anne Porter para a televisão é que eu me vi de volta ao activo. E quando se espalhou a notícia de que eu tinha sido contratado, Melnick recebeu chamadas de pessoas que não só nunca tinham trabalhado comigo como nem sequer me conheciam. Tentaram todas adverti-lo contra mim. 

PLAYBOY: Porquê? 
 
PECKINPAH: Há muitos gajos nesta indústria que são demasiado bem pagos e se sentem culpados em relação a isso. Sou uma ameaça para eles. 
 
PLAYBOY: Ou talvez não tenhas simplesmente tentado fazer amigos na indústria do cinema. De qualquer forma, depois de Noon Wine, estabeleces-te mesmo a ti próprio. Isso não tornou as coisas mais fáceis? 

PECKINPAH: Nem por isso. Os meus dois filmes seguintes, A Quadrilha Selvagem e Cable Hogue, foram feitos mas foram praticamente dizimados. A Warner Bros. cortou A Quadrilha Selvagem aos pedaços e tem de se ir à Europa para ver o filme em algo parecido com a versão que eu fiz. Cable Hogue foi descartado entre múltiplas estreias apesar do facto de as pessoas terem começado a prestar alguma atenção ao meu trabalho e de A Quadrilha Selvagem ter feito imenso dinheiro para o estúdio. Antes de começar com Cães de Palha, tinha cinco filmes prontos, nenhum dos quais visível onde quer que fosse neste país fosse de todo ou como algo parecido com a forma que eu queria que estivesse. O que eu tinha feito tinha sido massacrado ou descartado. O pior que pode acontecer a um romancista é que o livro dele fique esgotado, mas pelo menos sobrevive algures, nas bibliotecas, na sua forma original. Há pessoas por todo o lado, dúzias delas, que eu gostava de matar, muito literalmente matar. Sabes, investimos do nosso tempo e cumprimos as nossas penas e estes gajos aparecem e destroem-nos. Eu vou deixar de trabalhar para gente que faz isso. 
 
PLAYBOY: Então em que direcção vais a partir daqui? 
 
PECKINPAH: Em termos logísticos ou espirituais? 
 
PLAYBOY: Os dois. 
 
PECKINPAH: Em termos logísticos, tudo o que quero agora do meu trabalho é saúde e felicidade para a minha preciosa família, como o coloca Williams em The Glass Menagerie. Isso quer dizer que vou continuar a trabalhar. Tenho dois guiões em mãos, de momento, mas ambos precisam de trabalho. Todos os guiões precisam de trabalho. 
 
PLAYBOY: Porque é que sentes que precisas sempre de re-escrever? 
 
PECKINPAH: Seja quão bom um guião for, temos que adaptá-lo às necessidades dos actores. 
 
PLAYBOY: E as tuas próprias necessidades? Todos os teus guiões, sejam originais ou adaptados de um livro, têm um estilo característico, um tipo de linguagem única, que os identifica como teus. 

PECKINPAH: O toque de Peckinpah outra vez? Bom, algumas pessoas acham que os meus filmes são bastante medonhos, incluindo o vosso crítico de cinema, que eu gostava de ver a cortar um bico de estanho e ir apanhar merda com as galinhas. 
 
PLAYBOY: Nós passamos-lhe a mensagem. Tu pareces ser bastante vulnerável ao que as pessoas pensam de ti. 
 
PECKINPAH: Eu acho que o papel do crítico é muito importante para os filmes, e é por isso que fico com tanta raiva quando os críticos não percebem os bons filmes e alinham com merdices, como fizeram com o filme do Bogdanovich, A Última Sessão, que era uma chatice total, e ignoram algo como Two-Lane Black-top, que eu achei que era uma potencial obra de arte. A Última Sessão era pseudo-artístico, punhov-teironov e uma verdadeira chatice pegada. Uma noite era suposto ir jantar com Ben Johnson, que estava soberbo no filme, mas sabia que o Peter ia lá estar e ia ter de lhe bater na puta da boca, portanto não fui. Detestei mesmo esse filme. 
 
PLAYBOY: De que filmes gostaste recentemente? 
 
PECKINPAH: Dos meus. Eu faço filmes maravilhosos. Acho que o Junior Bonner, que rodei em 40 dias, é possivelmente o meu melhor filme. Estou mesmo satisfeito com aquilo. E acho que o McQueen nunca esteve melhor, o que é dizer bastante. O filme é sobre três dias na vida de um montador de touros, um solitário no circuito dos rodeos. 
 
PLAYBOY: Há outros filmes, além dos teus, sobre os quais queiras falar? 
 
PECKINPAH: Não vi grande coisa. Mas adorei o Dirty Harry, ainda que tenha ficado horrorizado com aquilo. Um pedaço de lixo terrível que o Don Siegel transformou realmente em qualquer coisa. Muito bem feito. Detestei o que dizia, mas no dia em que o vi o público estava a aplaudir. 
 
PLAYBOY: E O Padrinho
 
PECKINPAH: Não vi — mas também odeio o Coppola. 
 
PLAYBOY: Porquê? 
 
PECKINPAH: Porque ouço dizer que o filme é óptimo e os únicos filmes de que quero gostar são os meus filmes. Não quero mais nenhum filho da puta a fazer bons filmes. 
 
PLAYBOY: Então odeias tanto os bons realizadores como os maus. 
 
PECKINPAH: Eu detesto os cineastas todos tirando os inócuos. Adoro o Ross Hunter. O Ross Hunter é o meu ídolo. Gostava de ser o Ross Hunter. Ele sabe o que é isto tudo, bebé. Mas há pouco perguntaste-me em que direcção é que estava a ir em termos logísticos e espirituais e eu só te respondi à primeira parte da pergunta. 
 
PLAYBOY: Bom? 
 
PECKINPAH: Em termos espirituais, preciso de descanso e frescura, e isso normalmente significa o México. Tenho andado a trabalhar regularmente há já bastante tempo e estou cansado. 
 
PLAYBOY: Porque é que voltas sempre ao México? 
 
PECKINPAH: O México sempre teve um significado especial para mim. A minha experiência mexicana nunca termina. Fui lá pela primeira vez logo a seguir à guerra, porque tinha estado na China com os Fuzileiros e queria lá voltar e não consegui depois dos comunistas terem assumido o controlo. O México era o local mais próximo para ir, e estava na altura de ir. Andávamos todos pela estrada fora nesses dias, tal como o Kerouac escreveu em relação ao assunto. Adorei o México. Fiquei lá três messes nessa primeira viagem e daí em diante voltei lá sempre. Levei lá a Marie primeiro. A minha segunda mulher era mexicana. E casei com a minha actual mulher, a Joie, em Juárez, quando chegámos a El Paso com Tiro de Escape. Tudo que é importante na minha vida, de uma forma ou de outra, teve uma ligação ao México. O país tem um efeito especial em mim. 
 
PLAYBOY: Consegues defini-lo? 
 
PECKINPAH: Podes crer que sim. No Mexico está tudo à nossa frente — a cor, a vida, o calor. Se um mexicano gostar de ti, vai-te tocar. É directo. É real. O que quer que seja, não o confundem com mais nada. Aqui neste país, toda a gente está preocupada em parar a guerra e salvar as florestas e tudo isso, mas estes mesmos cruzados saem porta fora pela manhã e esquecem-se de beijar as mulheres e regar as flores. No México não se preocupam tanto em salvar a raça humana, porra, ou sobre as engrenagens e negociatas que nos andam a envenenar. No México não se esquecem de se beijar uns aos outros e de regar as flores. 

PLAYBOY: Deduzimos que não tenhas muita fé em soluções sociais ou políticas. 
 
PECKINPAH: Nenhuma. Sabes sobre o que assenta mesmo este país, doutor? Em publicidade. Em lavagens cerebrais. Em merdices. Isto é só chulice de produtos e pessoas, não fazer distinção nenhuma entre os dois. Estamos outra vez na Idade das Trevas. Olha para aqueles em quem as pessoas estão a votar — o Nixon, o Wallace — macacos assassinos acabados de sair das cavernas, todos aperaltados em fatos e a falar e a andar por aí com a morte nos olhos. E qual é a alternativa a estes gajos? Humphrey e Muskie? Dois tipos sem alma própria absolutamente nenhuma, nenhum conceito de onde se posicionam, quem são, nenhuma moral basilar. 
 
PLAYBOY: E George McGovern? 
 
PECKINPAH: Duvido que seja duro o suficiente para estar à altura. Se revelar sê-lo, é melhor porem um escudo de metal à volta do pobre desgraçado e mantê-lo lá. O tiro de espingarda que soou em Dallas em 1963 foi um barulho muito grande e muito feio. Sabes, eu não quis filmar nenhuma parte do Tiro de Escape em Dallas. Estava marcado irmos lá rodar umas sequências de caminho-de-ferro. Eu estava a andar de carro e travei por causa de um sinal de paragem e olhei para cima e lá estava a placa num edifício e percebi que estava nesse cruzamento. Disse, “Vamos pôr-nos daqui para fora, porra. Não vamos rodar parte nenhuma do meu filme nesta cidade.” Querem ir às compras à Neiman Marcus? Óptimo. Grande loja, a maior no mundo. Mas ficar em Dallas para pôr lá uma parte de nós em risco? Não. De qualquer forma, e para voltar à política, imagino que concorde com uma coisa que o meu irmão disse há algum tempo. Vai chegar a altura, disse ele, em que se vai olhar para trás para Harry Truman possivelmente como o melhor presidente que este país já teve. Até o Eisenhower foi melhor do que estes tipos. Pelo menos sabia quem era. Não estava morto e a sociedade não estava morta. 
 
PLAYBOY: E aqueles que andam a lutar para mudar as coisas? A América parece estar cheia de boas causas por estes dias e com boas pessoas empenhadas activamente nelas. Não achas que há algum fundamento para optimismo, para esperança? 
 
PECKINPAH: Não. O tédio vai acabar com elas. O país não tem capacidade de concentração. Agora estamos orientados para a televisão. É melhor acordarmos todos para o facto de o Grande Irmão estar por aí. E agora, com a TV por cabo e as cassetes de vídeo a chegar, já ninguém vai ter que levantar a peida, mesmo para ir à esquina para um filme. É horrível. Uma das grandes coisas de ir a um filme ou ao teatro é o acto em si — o sair, o comprar os bilhetes, a partilha da experiência com uma data doutras pessoas. Oitenta por cento das pessoas que vêem televisão vêem-na em grupos de três ou menos, e uma dessas três está meia pedrada. A maior parte das pessoas chega a casa à noite depois do trabalho, bebem um par de copos antes do jantar e instalam-se nas suas salas de mortos-vivos. A forma como a nossa sociedade está a evoluir foi planeada de forma muito minuciosa, doutor. Não é acidental. Estamos todos a ser programados, e eu ressinto-me profundamente. 
 
PLAYBOY: O que é que podemos fazer quanto a isso?
 
PECKINPAH: Temos que regar as flores — e pinar muito. 
 
PLAYBOY: Achas que o amor é a resposta? 
 
PECKINPAH: O que é que és tu, uma espécie de louco? Tudo o que sei sobre o amor é: Não brinques com essa merda. 
 
PLAYBOY: Bom, pelo menos andas a fazer dinheiro por estes dias. O que é que vais fazer com isso tudo? 

PECKINPAH: Tenho quatro putos e um fardo grande para carregar. Não tenho muita coisa e não quero ter. Ainda tenho um lote com vista para o oceano que comprei há uns anos em Malibu e um pequeno rancho com gado nos arredores de Ely, no Nevada, mas estou-me a tentar desfazer de ambos. Estou a vender tudo o que posso. Quero-me livrar desta coisa do conforto-criatura. 
 
PLAYBOY: Qual é o problema com algumas das comodidades mais agradáveis que o sucesso nos pode trazer? Porque não viver um bocado? 
 
PECKINPAH: Eu vivo bastante. Gosto de boa bebida, boa comida, roupas confortáveis e mulheres sofisticadas. Mas se me deixar ser sugado para esta sociedade orientada para o consumidor, então não consigo fazer os filmes que quero fazer sobre ela. Sou uma porra de um nómada. Vivo de malas e a minha casa é onde quer que esteja a fazer um filme. 
 
PLAYBOY: Se o dinheiro significa tão pouco para ti e não não te interessas pela propriedade, então o que é que queres mesmo da tua carreira? É só um exercício de ego? 
 
PECKINPAH: Vai-te foder, pá. OK, o ego tem muito que ver com a coisa, tudo bem. Mas o jogo não é esse, e tu sabes. 
 
PLAYBOY: Se é um jogo, então o jogo é o quê?
 
PECKINPAH: Vou pôr as coisas nestes termos. Eu passei por muito e paguei o preço. Custou-me bastante — talvez a sanidade e pelo menos um par de casamentos — e não tenho a certeza que o jogo valha a pena Às vezes apetece-me dizer para o diabo com a coisa e parar tudo, mas não consigo fazer isso. Aguento-me ou sei que não sou nada. Então olho à minha volta e reparo que não estou completamente sozinho. Talvez restem 17 de nós no mundo. E somos uma família. Essa família é composta pelos gajos que querem fazer a cena deles e avançar com o assunto. É a única família que existe. O meu pai um dia disse tudo. Deu-me a grande fala de Steve Judd em Ride the High Country: “A única coisa que eu quero é entrar em casa justificado.” 
 
Notas: 
 
[1] Zona desmilitarizada do Vietname. 
[2] Ouro Tosco. 
[3] Ouro Fino. 
[4] Pico do Sono. 
[5] Montanha do Morto. 
[6] Desfiladeiro do Cavalo Bravo. 
[7] Rocha Lisa. 
[8] WASP é um acrónimo de White, Anglo-Saxon and Protestant (Branco, Anglo-Saxão e Protestante). A palavra “wasp” quer dizer “vespa”.

"Sam Peckinpah: Playboy Interview”, William Murray, 1972. Traduzida para o Jornal dos Encontros Cinematográficos de 2022 e publicada no site do Jornal do Fundão a 7 de Maio de 2022.