sábado, 30 de dezembro de 2023

THE CHASE (1966)


por Robin Wood

A primeira (pensar-se-ia) obra-prima indiscutível de Penn tem tido na verdade, em Inglaterra pelo menos, um reconhecimento um pouco escasso, tanto de críticos como do público em geral. A inteligência do realizador informa cada sequência: não apenas uma inteligência cerebral, mas uma inteligência em que a emoção e a percepção intuitiva têm os seus papéis essenciais, e em que a claridade de visão mais rigorosa é equilibrada (mas não anulada ou comprometida) pela generosidade emocional. É talvez o filme mais completo de Penn. Não que seja necessariamente preferível a Bonnie e Clyde, mas contém certas características que não se incluem nesse filme, o que lhe dá comparativamente uma dimensão extra. 
 
The Chase dá o retrato mais completo de Penn de uma determinada sociedade, levando a análise à condenação intransigente, por implicação, da sociedade baseada-em-dinheiro em geral. Até ao final do filme toda a gente do mais alto (Val Rogers) ao mais baixo (o negro Lester) se revelou uma vítima por igual. A natureza essencial da sociedade retratada (vivamente particularizada, carregando no entanto o alcance implícito mais amplo possível) é sugerida cedo no filme pela cena no banco de Val Rogers: na superfície, uma hipocrisia e um uso de máscaras que tudo permeiam; por baixo dela, uma sensação de necessidades frustradas e corrompidas continuamente forte o suficiente para ameaçar a fachada quebradiça. O brinde com champanhe a Val Rogers no seu dia de aniversário, organizado com eficiência obsequiosa por Damon Fuller, transmite subtilmente a posição de Val. Toda a apresentação de Rogers é um bom exemplo da generosidade bem pouco sentimental de Penn. A "imagem" de Rogers—que ele próprio aceita claramente como real—de um cidadão eminente minuciosamente decente e responsável, modesto mas perfeitamente em controlo, não é inteiramente alheio à realidade. Penn mostra-nos um homem que não é inerentemente perverso, de todo: a sua corrupção subtil, revelada gradualmente à medida que o filme progride, sente-se como qualquer coisa inerente à sua posição e não à sua natureza. Como ele é rico, é respeitado universalmente; mas o respeito é pelo dinheiro, não pelo homem, e portanto falso e precário. Quando se erguem os copos de champanhe, as meninas que assistem sorriem em adoração: são totalmente sinceras, tanto quanto elas sabem estão mesmo a sentir alguma coisa pelo homem. E a extensão da ilusão própria de Val é sugerida pelo seu prazer evidente pelo tributo: está tão preso aos valores monetários como qualquer pessoa. 

Mesmo no mundo aparentemente ordenado do banco, as tensões e frustrações subjacentes ao desempenho social elevam-se desconfortavelmente perto da superfície. Emily Stewart (Janice Rule), esposa de um vice-presidente, amante intermitente de outro, Damon, passa de atormentar o seu marido Edwin (Robert Duvall) com a ineficácia dele a marcar um encontro de forma descarada com o amante não muito entusiasmado dela dentro do campo de visão do marido e fora do alcance do seu ouvido apenas por um pouco. A intriga sexual associa-se facilmente à intriga profissional: o desprezo de Emily por Edwin como marido é dificilmente distinguível do seu ressentimento por não serem convidados para a festa de Val. A degradação do sexo, e das relações pessoais no geral, está intimamente relacionada com os valores monetários que tudo permeiam. A cena culmina com Emily a convidar Val de forma insolente e em público para a festa deles: as máscaras sociais são quase todas derrubadas. Do início ao fim, o sentimento de que se acumulam forças explosivas sob a débil fachada da propriedade é muito forte. 

A análise social é desenvolvida ao longo das três festas simultâneas do filme—a de Val, a dos Stewarts, e a festa de adolescentes a decorrer na porta ao lado. Os três grupos convergem no clímax do filme, em que as distinções sociais insistidas pela separatividade anterior se decompõem numa anarquia geral à medida que todos os padrões civilizados finalmente desabam. As festas—duas delas observadas em grande detalhe—apresentam contrastes superficiais e paralelos latentes. Nota-se repetidamente na inadequação dos códigos de comportamento social em lidar com a violência latente nas relações pessoais. Cada festa tende a avançar rumo à expressão violenta enquanto as energias reprimidas se forçam cada vez mais à superfície. Isto é menos óbvio, forçosamente, na festa mais formal e elaborada de Val, com a sua ostentação respeitável. No entanto, mesmo aqui, as tensões mal reprimidas mantêm-se constantemente à vista. É uma marca da seriedade de Penn que mesmo a mulher bêbada de meia-idade no fato de cowboy não nos pareça meramente engraçada. 

Tome-se, por exemplo, o incidente do anúncio formal das doações universitárias, com as suas sugestões de uma venda em leilão com os convidados a pagar mais do que os outros para adquirir estatuto e o seu discurso enfatuado: “Nós americanos temos de liderar as massas ignorantes do mundo. Só através dos livros é que o homem se pode tornar livre.” A ironia é ainda mais reveladora pela ausência de qualquer sensação de caricatura: a vulgaridade monetária generalizada, o plano de fundo de uma "cultura" superficial e puramente material, de falsos valores e falsas pretensões, salienta devidamente o discurso. O Sr. Theodore Crane dá $500,000 para financiar um dormitório para mulheres. Exclamação de uma loira risonha e um bocado tocada: “Ora, sua velha carcaça. Sentes-te à altura?” O sentido de interacção crítica aqui é típico de Penn: se o filme satiriza a presunção baseada em dinheiro do doador, certamente que não apoia a vulgaridade igualmente baseada em dinheiro da jovem—não passam de dois aspectos do mesmo conjunto de valores. A posterior apresentação a Val de um modelo da universidade—"Uma das melhores universidades que o dinheiro pode comprar”—transmite a implicação de que mesmo o melhor que esta sociedade tem para mostrar é invalidado por valores corrompidos. 

A tensão entre superfície e realidade é expressa de forma ainda mais surpreendente nas relações pessoais. Há a dissimulação de felicidade conjugal pelo filho de Val, Jake (James Fox), e a sua esposa (Diana Hyland): antes a dissimulação de uma dissimulação, já que nem sequer é suposto Val ser enganado por isso. Tudo o que ele exige é o mero espectáculo, e a corrupção de valores omnipresente é sugerida pelo facto de que o espectáculo, mesmo quando ele sabe que é uma farsa, o põe contente. O casamento de Jake é claramente por dinheiro e estatuto: o Val “decente” e bem intencionado está por trás dele tal como—sendo o representante supremo do dinheiro-poder—está por trás da maior parte da corrupção no filme. Em contraponto com as cenas que envolvem Jake, a mulher, e o pai na festa, vemos Bubber Reeves (Robert Redford) a atirar lama para uma placa “Propriedades Val Rogers”. A acção impotente e indisciplinada sugere a frustração de jovens a crescer numa cultura orientada para o dinheiro, sentindo-se enganados mas no entanto sem condições para focar os seus ressentimentos nalguma forma de revolta significativa. A maior parte deles, de qualquer das formas, está demasiado bem na vida. 

Mas se a nocividade de valores que ignora ou nega as necessidades humanas mais profundas é sentida com muita força no filme, também a sua incapacidade de controlar a expressão de tais necessidades o é. Quando Jake descobre que Bubber (seu amigo de infância, agora casado com a rapariga que Jake ama) escapou da prisão, sai imediatamente da festa, a meio do discurso do pai, para ir ter com Anna (Jane Fonda). Quando ele sai a correr, Val está a falar sobre “responsabilidades” e sobre a esperada “vida maravilhosa, rica e realizada” do filho. A própria realização se torna então uma farsa, como o sentido de “responsabilidades” que se expressa dotando uma universidade e estragando as vidas daqueles que se ama em nome das aparências. 

A festa dos Stewarts, por sua vez, tem a espécie de atmosfera que passa por desinibida mas na verdade trata-se apenas de encenar tensões neuróticas sem a possibilidade de as exorcizar. Na rápida degeneração da festa para uma orgia de morte fingida e suicídio fingido, acompanhada de alguma destruição real quando um sapato “granada” atinge o balde de gelo e que culmina no disparo de uma arma verdadeira, tem-se reflectido em miniatura o movimento do filme inteiro. Há outra vez um sentido generalizado de verdadeiras necessidades não reconhecidas ou estranguladas numa sociedade que instituiu os valores materiais como os fins supremos. Nenhuma das personagens na festa está preparada para encontrar qualquer espécie de realização válida: estão todas circunscritas pelas atitudes profundamente enraizadas da sociedade como um todo. Os seus "jogos" em erupção espontânea, na maior parte das vezes chocantemente maliciosos, expressam necessariamente a violência acumulada dentro deles, o seu ódio uns pelos outros e por si próprios. À medida que a festa dos Stewarts degenera em caos, nós mantemo-nos cientes, pelas janelas, da festa em progresso dos adolescentes na casa ao lado, reflectindo a dos adultos na sua atmosfera de erupção iminente. Por esta altura vimos o suficiente do mundo onde os jovens estão a crescer e os valores que estão a aprender, os americanos que têm de “liderar as massas ignorantes do mundo” em termos de cultura. Tendo chegado para investigar o disparo da arma, os adolescentes sucumbem automaticamente a brincar ao Bubber Reeves, criando um paralelo com os jogos violentos dos seus veteranos. Este alargamento a outra geração, embora esboçado apenas levemente, acrescenta uma dimensão suplementar que assume particular importância perto do final do filme. 

A festa dos adolescentes também é utilizada para revelar novos aspectos das personagens adultas. O comentário de Damon Fuller sobre “gostar delas cada vez mais novas,” embora disfarçado de piada, passa a ideia de algo mais, no contexto do seu casamento insatisfatório e adultério indiferente, e deixa uma sugestão adicional da corrupção generalizada; Emily Stewart acha isso bastante empolgante. O incidente provoca o único momento de genuíno sentimento durante a festa quando Edwin diz, “Não estava a pensar em coisas dessas, Damon. Estava a pensar em mim nessa idade—nas coisas que eu queria e achava que iam acontecer.” É típico da caracterização nos filmes de Penn que um homem que antes parecia essencialmente contemplativo de repente surja aqui como a única pessoa presente merecedora de respeito. 

As personagens de Penn às vezes tendem para a caricatura sem nunca cair mesmo nela. A essência das verdadeiras caricaturas é que são incapazes de desenvolvimento, sendo características exageradas vistas em deslocamento de qualquer contexto de inteireza ou complexidade humanas. É uma grande fraqueza dos romances de Dickens, deste modo, que tantas das suas personagens não se consigam desenvolver; só conseguem ter mudanças arbitrárias que lhes são impostas pelo autor. Desta forma tornam-se cada vez mais exasperantes a cada reaparição, já que tudo o que o seu autor consegue fazer é fazê-las passar outra vez pela mesma rotina: como não se conseguem desenvolver, não nos podem surpreender. Claramente que isto não é o caso de Edwin Stewart—ou de Blanche Barrow, ou mesmo de Eugene e Velma, em Bonnie e Clyde. Se Edwin fosse mera caricatura, seria impossível para Penn levar a bom porto (como o faz, de forma bem tocante) o seu momento de verdade durante a festa, cuja genuinidade torna a posterior ridicularização pública dele como um “filósofo de Sábado à noite” pela mulher particularmente brutal. As quase-aberrações de Penn têm o mesmo tipo (se não grau) de complexidade que as suas figuras centrais; fica-se repetidamente impressionado com detalhes de comportamento que nos surpreendem e no entanto se registam ao mesmo tempo como absolutamente “certos,” tal como como a repentina revelação nostálgica de C. W. Moss de que ele e a família eram “Discípulos de Cristo” ou o riso de Eugene Grizzard quando é convidado a juntar-se ao bando de Barrow. 

Colocadas em oposição a esta análise social devastadora estão as figuras de Calder, o xerife, e a sua esposa Ruby (Angie Dickinson): eles e a sua relação oferecem ao filme os seus principais positivos morais que colocam as outras personagens na perspectiva necessária. A postura amadurecida de Calder serve como uma pedra de toque por referência à qual se pode medir a falta de consciência dos outros. Através da actuação de Marlon Brando, a integridade de Calder torna-se uma presença convincente no filme. A resistência dele a todas as pressões exercidas para o implicar na corrupção geral nunca é sentida como uma questão de heroísmo vazio: é um homem que conhece as suas verdadeiras necessidades, enquanto que as personagens que o rodeiam não conhecem. Apoiado por um casamento estável e gratificante—ainda que sem crianças—e uma confiança firme na sua própria identidade, ele é capaz de se mover facilmente por qualquer um dos níveis sociais diversamente corruptos da cidade sem ser contaminado. Ele lida com a vulgaridade dos seus semelhantes sociais virando-a de forma perfeita contra eles. Emily convida-o para a festa: “Só precisas de uma pistola para vir para a minha festa e tu tens uma.” O tom de voz torna a insinuação sexual inequívoca. Calder replica calmamente, “Com as pistolas todas que tens para aqui, Emily, não me parece que houvesse espaço para a minha.” Toda a cidade, dos vice-presidentes de Val Rogers à Sra. Reeves, assume que ele está no bolso de Rogers; quando é pressionado pelas circunstâncias, Rogers revela que (inconscientemente) também o assume. 

No entanto Calder age de forma decidida e consistente do seu próprio centro pessoal, mesmo quando se depara com a chantagem moral subtil da sua dívida para com Rogers (que foi responsável por lhe arranjar o seu cargo). De importância central para The Chase—e, se Bonnie e Clyde puder ser tomado como indicação fidedigna, para toda a evolução futura de Penn—é a forma como Calder, que encarna sozinho um sentido social atento e plenamente adulto, é impulsionado a rejeitar em desespero a sociedade por que se esforçou em manter unida. 

A actuação perfeitamente controlada de Brando tem sido geralmente reconhecida, mas a presença de Angie Dickinson como Ruby muito menos. Dickinson é uma presença muito considerável em todos os filmes que agracia, mas Hollywood nem sempre lhe deu o uso mais feliz. Através dela, Penn sugere algo do que torna possível a Calder ser como é. A criação da relação Calder-Ruby é um triunfo para Penn e para os seus actores: não há nada de excepcional nos diálogos. Aquilo que é veiculado é essencialmente um sentido de compromisso um com o outro, nada enfático, nada ostentado, mas no entanto total. (Mesmo aqui, a falta de filhos—inexplicada, mas é-nos deixado presumir que se deva a alguma incapacidade ou incompatibilidade física—sugere a imperfeição de toda a existência.) A presença de Ruby em particular é crucial para o efeito do filme em três momentos de violência climáctica. Através dela mantém-se presente a pedra de toque de padrões civilizados e adultos, face aos quais podemos medir a ignomínia da tentativa de Val Rogers em subornar Lester (Joel Fluellen) com $100 e, quando isso falha, o espancamento dele numa cela trancada. A sequência posterior do espancamento de Calder por um grupo de cidadãos notáveis, tornada em si mesma intransigentemente repulsiva, recebe particular força pela presença de Ruby no outro lado (de novo) da porta trancada: a impressão de confiança e interdependência mútuas construída anteriormente é tão forte que aquilo que podia ter sido uma cena convencional de uma mulher a gritar enquanto o homem dela é espancado torna-se quase intoleravelmente comovente. Experienciamo-lo, por assim dizer, através do sentimento de exclusão de Ruby, o seu desamparo, a sua incerteza agonizante em relação ao que está a ser feito ao certo. 

Acima de tudo, temos a intervenção de Ruby quando Calder, depois do fuzilamento de Bubber Reeves, sucumbe por fim à violência agora omnipresente, espancando inutilmente o assassino com uma ferocidade desenfreada e animalesca. É o momento em que a intensidade trágica do filme é mais evidente, e a reacção de Ruby é de uma importância vital. Teria sido tão fácil, dado o nível emocional que o filme alcançou por essa altura, achar que a descida de Calder para a violência é justificada: podia ter sido apresentada como um momento de libertação, como o final de western tradicional em que o herói que se manifestou contra a violência saca finalmente da arma, com a aprovação total do público. O horror de Ruby (combinado evidentemente com outros factores no tratamento da cena pela parte de Penn, como a desordem pouco digna das acções de Calder) proíbe de forma inequívoca tal reacção. Também é um momento em que as linhas sociais e pessoais se tornam indistinguíveis. A cena torna-nos perfeitamente claro de uma só vez o colapso dos valores sociais sobre os quais Calder se posicionou até ao momento, a sua descida a tudo aquilo a que se opunha (tornado possível apenas pela desilusão final), e o terror pessoal da perda de dignidade e amor-próprio num homem de uma força e de uma integridade excepcionais. Quanto ao final do filme, se é suposto encontrar qualquer tipo de esperança para qualificar o seu desespero tremendo, ela tem de estar na força comedida do “Calder. Vamos. Anda lá.” de Ruby. A derrota e a desilusão totais implícitas no que diz respeito à sociedade são ligeiramente compensadas pelo nosso sentimento da durabilidade de uma relação pessoal, pelo menos.

Mas se é verdade que a relação Calder-Ruby concede a The Chase o seu principal ponto focal positivo, também há um forte ponto focal secundário que se opõe a ele de muitas formas, criando uma tensão moral poderosa e perturbadora no filme como um todo: a relação dos três jovens, Anna e Bubber Reeves e Jake Rogers. Os Calders representam um positivo moral fundado sobre uma alta concepção da sociedade, os jovens uma moral associal baseada em lealdades pessoais. Calder é acima de tudo consciente, as acções dele (até ao seu esgotamento) são ditadas por uma percepção esclarecida dos problemas, uma capacidade de se afastar e sondar com astúcia mesmo quando está no centro dos acontecimentos; os jovens são acima de tudo espontâneos, agindo por impulsos imediatos. Ser capaz de reagir a duas visões morais parcialmente opostas ao mesmo tempo, se elas forem retidas de forma equilibrada e com clareza, pode ser um sinal de maturidade e honestidade e não de confusão. 

Há algo da atitude do filme para com Bubber Reeves que é sugerido desde o início na sequência dos créditos, em que os perseguidos são mostrados diante de planos de fundo naturais enquanto os perseguidores são mostrados diante de edificações industriais sinistramente gigantes e lugubremente iluminadas. Os três jovens são apresentados de forma bem pouco glamorosa e sentimental como confusos, falíveis e desamparados, com as acções deles a envolvê-los de forma progressivamente mais profunda no desastre; apesar de toda a sua confusão moral, no entanto, a pureza e a naturalidade comparativas das suas reacções uns aos outros destacam-se nitidamente em oposição às reacções baseadas no dinheiro dos seus veteranos mais “respeitáveis”. Jake, como filho de Val, é forçosamente o mais constrangido dos três, mas até algumas das suas acções—a recusa em abandonar a sucata de carros usados com o pai, que marca a sua rejeição de tudo aquilo que Val representa, o seu momento de empenhamento final—têm uma força moral considerável. Durante a festa, nota-se na honestidade de Jake e da sua esposa um com o outro a respeito da sua relação no contexto da hipocrisia envolvente—ela pergunta-lhe casualmente se vai ver a sua “amiga” (Anna), e ele admite-o com a mesma casualidade. 

A natureza exacta dos valores encarnados por este grupo de personagens pode tornar-se clara com alguns exemplos. A atitude geral implícita à relação entre os três, em si, é muito pouco convencional na sua transparência. Anna é a esposa de Bubber, Bubber é o melhor amigo de Jake, Jake e Anna são amantes. No entanto, o filme não impõe qualquer atitude moralista ao espectador no que diz respeito a esta situação. Além disso—e isto talvez seja outra forma de dizer a mesma coisa—não há esquematização das personagens: elas têm numa medida acentuada a espontaneidade de resposta fresca e inesperada que se encontra tão frequentemente nas pessoas de Penn. Anna está apaixonada por Jake, mas a sua reacção às notícias da fuga de Bubber é uma corrente espontânea de simpatia para com ele, um sentido intuitivo de necessidade de alguém por quem nutre sentimentos. O amor dela por Jake é perfeitamente compatível com uma noção das fraquezas dele: ela trata-o (como no incidente da oferta de jóias dele) sempre com uma frontalidade que exprime a sua capacidade em confiar e agir de acordo com as suas próprias reacções instintivas. Durante a busca por Bubber, Jake diz-lhe que tem medo de a perder e diz que quer casar com ela. De imediato, como num ressalto, ela dá-lhe uma estalada na cara: “Esperei estes cinco anos todos para te ouvir dizer isso. Só mesmo tu para o dizer na altura errada.” Nós registamos a acção como expressão de um pudor natural e intuitivo. Quando encontram Bubber, em vez da explosão esperada (várias personagens—Edwin Stewart, etc.—tinham andado a antecipar que Bubber ia tentar matar Jake), a camaradagem antiga deles não só é preservada como reforçada. O desespero que a prisão impulsionou em Bubber (cujo ímpeto para a liberdade tem o carácter instintivo de um animal encurralado) é aqui um factor decisivo: “Quando estamos dispostos a morrer, já ninguém nos consegue obrigar a fazer o que quer que seja.” 

In extremis, descobrem os três uma honestidade e uma sinceridade que rebentam totalmente com quaisquer tendências para as reacções emocionais convencionais ou “condicionadas”. A aceitação natural de Anna e Jake pela parte de Bubber é acima de tudo uma aceitação de impulsos naturais. A sociedade entende apenas as suas próprias reacções condicionadas: daí a assunção que Bubber vai matar Jake e a assunção que Calder vai apoiar Val Rogers. A condenação final do poder-dinheiro vem da forma mais bela, e espontânea, de Bubber Reeves. Quando sabe da oferta de um carro e de uma fuga gratuita da parte de Val Rogers, com tudo amenizado, ele exclama, “Ele pode fazer isso? Que mundo!” Está aqui, então, o pólo moral-emocional positivo secundário do filme; a moralidade "natural" pouco ortodoxa que os três desenvolvem tem um grande peso no contexto representativo do colapso da moralidade convencional e artificial. A tensão entre os dois pólos pode ser sugerida em referência a outro exemplo no filme de uma reacção absolutamente natural e espontânea: o espancamento do assassino de Bubber por Calder. 

São as implicações desta força positiva secundária que Penn explora em Bonnie e Clyde. A relação entre os dois filmes é extremamente interessante. Sabe-se, naturalmente, que em Hollywood há factores acidentais ou alheios que podem desempenhar um papel considerável naquilo que parece o desenvolvimento de um realizador, que o tema de The Chase não foi inteiramente da livre escolha de Penn, e que Bonnie e Clyde já tinha sido oferecido a outros realizadores (incluindo, de forma bastante apropriada, Jean-Luc Godard) antes de Penn se incumbir dele. No entanto, não se consegue resistir a ver uma ligação lógica entre a derrota de Calder e Bonnie e Clyde, onde um Calder não teria papel algum para desempenhar: podia-se quase dizer que a derrota de Calder torna Bonnie e Clyde e a linha que Penn aí explora inevitável. 

O clímax de The Chase dá uma imagem aterradora de colapso social em que todos os fios variados do filme se unem. O cenário do "cemitério" de carros avariados leva-nos de volta a Mickey One e à "morte total", mas aqui ganha força por ser usado de forma dramática quando no filme anterior era exclusivamente simbólico. Val aparece para salvar Jake, depois aparecem os convidados da festa dos Stewarts, depois os adolescentes, à medida que se espalham as notícias sobre o paradeiro de Bubber. Quando a violência ubíqua explode (literalmente, com fogo-de-artifício e pneus em chamas) em todo o lado, vemos Val a perder cada vez mais o controlo: por fim, o poder do dinheiro evapora enquanto os impulsos instintivos frustrados se satisfazem com a destruição. O tratamento da cena é tão convincente em termos de personagens que é só depois que uma pessoa se apercebe de quão perto estamos, aqui, da alegoria. A condenação da sociedade está implícita na ambivalência confusa das reacções dos adolescentes: Bubber torna-se metade herói-popular, metade bode expiatório, enaltecido e perseguido, ao mesmo tempo símbolo de revolta e vítima necessária em quem a violência pode ser desencadeada pelo menos com alguma demonstração de justiça social. Eles não o podem ver é como um ser humano, como um deles. Vemos os começos de um mito Bubber Reeves ("Lembras-te da minha irmã?" chama uma rapariga ansiosamente pela janela do carro enquanto ele é levado para a prisão) a que se prende um dos temas favoritos de Penn. Só aqui, no momento em que Bubber parece estar em perigo de desaparecer sob a sua própria lenda, é que descobrimos que ele tem um nome (Charlie) além da alcunha infantil; quase imediatamente depois do qual é abatido nos degraus da cadeia. O sentido da violência como uma epidemia que se espalha a velocidade alarmante e inatingível é bastante reforçado pelo facto do assassino de Bubber ser um homem que até esse momento tinha ficado na periferia dos acontecimentos, mais espectador do que participante, aparentemente um dos menos dados à violência activa.

Inacreditavelmente, alguns críticos atacaram The Chase quando saiu em Inglaterra pela sua ênfase na violência. A violência é um tema que um artista que está vivo intuitiva e intelectualmente para o mundo em que vive dificilmente pode evitar hoje; e se há um tratamento mais responsável dela algures no cinema, ainda não o vi. Ao insistir na actualidade do filme, estou a pensar em mais do que na clara referência à morte de Lee Harvey Oswald no tiroteio de Bubber Reeves. Embora tudo em The Chase seja tão vividamente pormenorizado, seria um erro vê-lo apenas como um retrato de uma sociedade localizada. (Se é um retrato fiel do Texas contemporâneo ou não é uma questão bem fora da minha competência, e além disso parece-me de importância trivial. A sociedade de The Chase pode ser totalmente tomada como fictícia: a relação dele com as realidades fundamentais da civilização moderna permanecem não afectados.) Parece-me que faz um comentário trágico ao espírito actual do mundo: a sensação de que os valores tradicionais da civilização ocidental foram tão desgastados que já não são capazes de segurar as forças que tornaram mais explosivas por as suprimir. O filme capta enervantemente esse sentimento de violência latente ou em erupção que tem indubitavelmente uma importância especial para o Sul Profundo mas que em alguma medida está no ar que todos nós respiramos.

in «Arthur Penn», Wayne State University Press, 2014.

domingo, 24 de dezembro de 2023