Sei muito bem que fui ao Museu do Prado pela primeira vez no Verão de 1954, fazia eu seis anos. E sei que pedi à minha irmã que me comprasse dois postais, que nessa altura ainda eram a preto e branco. Um é de
La Gallina Ciega, lindo cartão de Goya, daqueles com o céu cor de poeira, céu seco de Madrid. E o outro
As Três Graças de Rubens, que durante muito tempo ficou numa estante azul que ainda ali está, onde eu ia amontoando o
Coração de Amicis, as vidas de S. Luis Gonzaga ou Edison, a História de Mattoso I, Dickens e os programas do CCC (Centro Cultural de Cinema) que a mesma minha irmã desde o número um me trazia às quintas-feiras das sessões do Jardim Cinema.
Rubens terá sido, portanto, uma das minhas primeiras iluminações. Quando ainda nem a puberdade se aproximava. Sabe-se lá porquê, aquela carne toda daquelas três raparigaças da Flandres, muito amigas e rivais, tinha tocado cá fundo, prevendo já, se calhar, que também eu havia de ser gorducho e não saber qual das três moças devia escolher.
Seguiu-se a adolescência, a juventude, outros amores e também na pintura. E Rubens passou a ser, em quase todos os museus por onde andei - até às cãimbras - um pesado artista, cujos quadros, sempre enormes e sempre pendurados lá para cima de todos os torcicolos, enchiam os enormes corredores, que passaram a ser apenas um trajecto necessário até ao Ticiano que estava para além, à direita (no Prado), ou os primitivos italianos, ao fundo à esquerda (no Louvre ou no Dahlem). De vez em quando, lá parava perante um quadro, a Helene Fourment aqui da Gulbenkian, as da Alte Pinacothecke de Munique, sempre
As Três Graças do Prado, e
O Jardim do Amor, o
Seleno embriagado (genial!) de Munique ou
O Massacre dos Inocentes. E o
Cristo na Cruz.
Mas, admirando este ou aquele, não havia meio de Rubens me voltar a entrar cá para dentro do coração. Lá reconhecia aquelas coisas que os catálogos mandam observar: o valor das composições (mas eu gostava era de Delacroix), percebia os valores cromáticos (mas o Ticiano…), o sentido do espaço (pois, mas o Tintoretto…). Talvez pela quantidade das obras - só no Prado são mais de oitenta -, talvez por ele "fazer de tudo e tanto" (retrato, cena religiosa, cena mitológica, cena histórica, paisagem, o diabo a quatro), parecia-me tudo obra de excelente
fabbro, necessário, pela certa, à História da Pintura, mas não à vida que cá comigo vivia.
Até que, num dia de 1989, li um artigo de João Bénard da Costa sobre
O Rei dos Reis de Cecil B. DeMille - realizador de cujos filmes sempre gostei muito, mas muito mesmo, e sempre a sós para comigo. Dizia o impressionista Bénard: "Se há cineasta rubensiano ele é Cecil B. (…) o mesmo sangue, ou melhor a mesma carne. Os temas de DeMille são os mesmos que Argan vê em Rubens: o mito, a história, a natureza, a alegoria, a fé. Argan disse das composições de Rubens o que se pode dizer das de DeMille: "Dinâmicas em espiral, feitas de oblíquas, curvas, órbitas, abismos abertos e massas concentradas em turbilhões. A cor formando torrentes impetuosas que regressam sem cessar, aliando os tons mais claros aos coloridos mais exuberantes. Futuro e passado que não dissolvem sensações mas as intensificam e aceleram numa posse do presente em que os sentidos têm um papel predominante" (…) DeMille conseguiu, através de uma poética e de uma retórica, reencontrar os valores de Rubens, ele também directo apreendedor de outro momento similar da história das formas. E, talvez, por isso, defendeu e revalorizou "imagens" ao serviço de uma dogmática, tentando provocar a piedade e o terror e vendo, como finalidade última delas, a capacidade de persuadir." (in "
Os Filmes da Minha Vida/Os Meus Filmes da Vida").
Ora, eu semper gostara de DeMille. E exactamente por isso que Argan e Bénard diziam de Rubens. Lembro-me do Éden de
Os Dez Mandamentos, do Olympia onde repunham sempre - e eu lá ia ver a Claudette Colbert a tomar banho -
O Sinal da Cruz, do Chiado-Terrasse deste
Sansão e Dalila e d'
O Maior Espectáculo do Mundo. Lembro-me da troça que a gente culta - que eu sempre, graças a Deus, fui frequentando, na escola e nos cafés - fazia do seu cinema, considerado "pastelão", "americanada", exemplo máximo da grosseria do Novo Mundo contra a elegância do então muito apreciado
tweed do cinema inglês. Mas eu gostava daquilo, que é que querem? Daqueles corpos semi-nus atormentados, daqueles turbilhões humanos, daquelas mulheres imponentes (sempre sonharei com Anne Baxter no Egipto ou com a sibilina elegância de Nina Foch), daqueles cenários vindos do circo Barnum e do "maior espectáculo do mundo", sempre corei ao ver os amores encarnados e azuis de Hedy Lamarr com Victor Mature, sempre fiquei preso a esse "prazer erótico de filmar a carne e o sangue, os corpos e a sua energia" (ainda Bénard da Costa, mas do "Catálogo dos Anos 50"). E tinha decidido, cá para mim, que, pronto, eu gostava muito mas não ia tentar convencer quem quer que fosse, pois "quem tem do cinema uma visão literária jamais pode aceder ao universo de um homem que foi simultaneamente um primitivo - um cinema que ainda não tinha descoberto a sua própria perspectiva - e um barroco - exercendo todas as ilusões da perspectiva sob o postulado da anulação dela." (Bénard da Costa,
idem).
Foi numa Sexta-feira Santa de 1989 que, antes de pôr no gira-discos a
Paixão de Bach/Klemperer (com instrumentos apócrifos, benza-o Deus), li o artigo. E fiquei parvo. Viria depois a descobrir que, já em 1981, no supracitado catálogo - e que, entre minhas mãos, já quase desfeito está - Bénard da Costa dizia o mesmo. E eu, que o lera e relera, não o tinha ouvido. Porque só percebi a poética necessidade de filiar DeMille no carnal e aéreo Rubens (Caliban e Ariel juntos, humana complexidade!) nessa sexta-feira em que, mais uma vez, um texto "sobre um filme" me fez ver. Ver a vida, ah!
Como o senhor Jourdain de Molière, que sempre, sem o saber, falara em prosa, também eu não sabia que, mesmo sem ver, já via e sempre frequentara Rubens, mesmo quando por ele, indiferente, passava. E veio-me uma imperiosa (e depois adiada) vontade de ir ver Rubens. Foi quando - e por causa do Herberto Helder, fui de comboio - fui a Antuérpia, gelada manhã de Janeiro de 1993. E entrei na Catedral, ainda a acabar as obras de restauro, e vi
A Descida da Cruz. E foi um dos mais luminosos dias que comigo passei nestes últimos anos. Porque, mais uma vez, Bénard da Costa vendo, me tinha feito ver. E o que é bonito, mesmo nessa crónica, é esta frase com que justifica a filiação Rubens/DeMille: "Não me perguntem por que caminhos, que não lhes sei responder." Ah! Parece-me isto poesia, e era isso o que eu pensei que a crítica podia fazer - mas não há meio de fazer, que mundo é este?: "tornar obscuro o que é claro e claro o que é obscuro."
Volta a ser Páscoa, a tv este ano mostra-nos dois DeMille - o extraordinário
Sansão e Dalila de todas as erecções e o celebérrimo
Rei dos Reis que só vi em salões paroquiais de há muitos anos, na altura em que, na minha estante azul, imperavam
As Três Graças. Provavelmente pensam que não gostam de DeMille, que se trata de um grosseiríssimo gringo, como eu cá para dentro de mim pensava que era Rubens, o corpóreo flamengo da pintura como persuasão e propaganda, e agora voltei a precisar tanto dele.
Mas vejam estes dois filmes: não foi sempre disto que gostaram no cinema? Deste esplendor dos corpos atormentados como nas pagelas em que nos mostravam o inferno? Não é este seu cinema a cúpula popular de toda uma poética da carne, pela qual calcorreámos salas e salas de museu e outras sex-shops? Não é esta tormenta da carne a que mais sonhos, noites e noites nos forneceu?
Público, 13 de Abril de 1995
in Século Passado - Jorge Silva Melo