segunda-feira, 31 de dezembro de 2012
Ó 2012, é a acabar que já se faz tarde
Para um 2012 de comer e chorar por mais:
- Cave of Forgotten Dreams
- Le Havre
- Holy Motors
- os ecrãs de 4:44 Last Day on Earth
- o DiCaprio como J. Edgar
- o Eastwood ao som de Ray Charles em Trouble With the Curve
- o Stallone a dizer "Rest in pieces" em The Expendables 2
(escolhas acima podem também ser vistas aqui, junto com sete outras listas individuais e uma geral)
(escolhas em baixo só não são de filmes estreados em 2012, porque 2012 veio tarde demais)
- muitos Walshes
- muitos Vidors
- muitos Kaurismakis
- alguns Boettichers
- alguns Resnaises
- alguns Flynns
- alguns Fulcis
- alguns McCareys
- alguns Wellmans
- alguns Rohmers
- alguns H. Lewises
- alguns Dwans
- alguns De Toths
- alguns Cottafavis
(há também que rever, que às vezes é como ver pela primeira vez):
- Chaplin
- Tati
- Rivette
- Jerry Lewis
- Oliveira
- Carpenter
(e...)
a Twilight Zone, o Matt Johnson e os The The, o Melville, o Conrad, o Musil e o Joyce, o Huston e o The Dead em película, a Filmoteca, a Cinemateca, a árvore dos abismos do Monteiro no Jardim do Príncipe Real, a Centésima Página, a FOCO, o KG, o Transmission, o disco rígido cá de casa, o Beijo de Judas do Caravaggio, a Billie Holiday, o Isaac Hayes, o VLC, o Simple Comic, as músicas dos giallos e dos spaguettis, o Screamin' Jay, o Mahler, o Zipeg. As moelas, os cafés e os cigarros deste ano.
Não houve cá concertos no vinte-doze. Agora só saio para romarias.
vídeo de TuCanudo do ano
Mais listas listas: 1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6
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segunda-feira, 24 de dezembro de 2012
sexta-feira, 21 de dezembro de 2012
quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
M. Hulot et le temps*
por André Bazin
É um lugar comum constatar a pouca genialidade do cinema cómico francês. Há pelo menos trinta anos. Pois convém lembrar que foi na França que surgiu, desde os primórdios do século, a escola burlesca que faria de Max Linder seu herói por excelência, e cuja fórmula foi retomada em Hollywood, por Mack Sennett. Lá, ela desenvolve-se de maneira ainda mais próspera, pois permitiu a formação de actores como Harold Lloyd, Harry Langdom, Buster Keaton, Laurel e Hardy (Bucha & Estica) e, sobretudo, de Charles Chaplin. É sabido, porém, que Chaplin reconheceu Max Linder como seu mestre. Entretanto, o burlesco francês, com a excepção dos últimos filmes de Max Linder realizados em Hollywood, praticamente não foi além de 1914, abafado em seguida pelo sucesso esmagador - e justificado - do cinema clássico americano. Desde o cinema falado, mesmo sem contar com Chaplin, Hollywood manteve-se senhor absoluto do cinema cómico: fundado na tradição burlesca, regenerado e enriquecido com W. C. Fields, os irmãos Marx e até mesmo, em segundo plano, com Laurel e Hardy, enquanto aparecia um novo género parecido com o teatro: "a comédia americana".
Na França, ao contrário, a fala só serviu para uma desastrosa tentativa de adaptação do vaudeville dos boulevards. Quando nos perguntamos o que sobressai na ordem do cómico desde os anos 30, vemos apenas dois actores, Raimu e Fernandel. Coisa curiosa, porém, esses dois monstros sagrados do riso quase só interpretaram maus filmes. Se não tivesse havido Pagnol e os quatro ou cinco filmes válidos que lhe devemos, não poderíamos citar um único filme digno dos seus dons (com excepção, em último caso, do curioso e desconhecido Valente a muque, de Christian Jaque, e acrescentemos, de quebra, a amável mas superficial criação de Noel Noel. É significativo que depois do fracasso de O Último Milionário, em 1934, René Clair tenha trocado os estúdios franceses pelos da Inglaterra, e depois por Hollywood. Vemos, portanto, que o que faltava ao cinema francês não eram sequer os autores bem dotados, mas um estilo, uma concepção cómica.
Foi intencionalmente que deixei de mencionar o único esforço original para tentar regenerar a tradição burlesca francesa; refiro-me aos irmãos Prévert. Alguns pretendem ver em L'Affaire est dans le sac, Adieu Léonard e Le voyage surprise um renascimento do cinema cómico. Seriam, segundo eles, obras geniais e incompreendidas. Tal como o público que as vaiou, não me consigo convencer disso. Tentativa interessante, é claro, mas fadada ao fracasso pelo seu intelectualismo. Para os Prévert, o gag é uma ideia cuja percepção vem sempre posteriori, de modo que só é engraçada após uma operação mental, do gag visual à sua intenção intelectual. É o processo das histórias sem palavras e é por isso que um dos nossos melhores cartunistas, Maurice Henry, nunca conseguiu importar-se como gagman. A essa estrutura intelectual em demasia do gag, que suscita o riso apenas por tabela, é preciso acrescentar o carácter um pouco aflitivo do humor que requer do espectador uma cumplicidade injustificada. O cómico cinematográfico (como sem dúvida o teatral) não pode funcionar sem uma certa generosidade comunicativa; a private joke não tem nada a ver com ele. Só um filme que procede do humor prevertiano ultrapassa a veleidade para se aproximar do êxito: é Drôle de Drame, mas existem nele outras referências, e Marcel Carné lembrou-se com presteza da Ópera dos Três Vinténs e inspirou-se no humor inglês.
Sobre esse pobre pano de fundo histórico, Jour de Fête surgiu como um êxito inesperado e excepcional. A história desse filme realizado às pressas, baratíssimo e que nenhum distribuidor queria, é conhecida. Foi o best-seller do ano e teve um lucro dez vezes maior que o seu custo.
Tati ficou logo famoso. Mas havia dúvidas se o êxito de Jour de Fête não esgotava o génio do seu autor. Os achados eram sensacionais, um cómico original, embora reencontrasse precisamente o melhor que veio do cinema burlesco; mas, por um lado, diziam que se Tati fosse mesmo genial não teria vegetado 20 anos nos music-halls, e por outro, a própria originalidade do filme fazia recear que o seu autor não a pudesse manter uma segunda vez. Veríamos provavelmente outras aventuras do popular carteiro e o regresso de Don Camillo, que só serviriam para lastimar que Tati tivesse sido esperto o suficiente para parar ali.
Ora, Tati não só não explorou o personagem que tinha criado e cuja popularidade era uma mina de ouro, como demorou quatro anos para nos apresentar o seu segundo filme, que longe de perder com a comparação, relega Jour de Fête ao estado de rascunho elementar. A importância de Les Vacances de M. Hulot não poderia ser sobvalorizada. Trata-se não apenas da obra cómica mais importante do cinema mundial desde os irmãos Marx e W. C. Fields, mas também de um acontecimento na história do cinema falado.
Como todos os grandes cómicos, antes de nos fazer rir, Tati cria um universo. Ordena-se um mundo a partir da sua personagem, cristaliza-se com com a solução sobre-saturada à volta do grão de sal que para ali é atirado. É claro que a personagem criada por Tati é engraçada, mas quase que de modo acessório e, em todo o caso, sempre em relação ao universo. Ele pode estar pessoalmente ausente dos gags mais cómicos, porque M. Hulot é apenas a encarnação metafísica de uma desordem que se perpetua muito tempo depois da sua passagem.
Se, entretanto, queremos partir da personagem, vemos de saída que a sua originalidade, em relação à tradição da commedia dell'arte que prossegue através do burlesco, reside numa espécie de não-acabamento. O herói da commedia dell'arte representa uma essência cómica, a sua função é clara e semelhante a ela, sempre. O que é próprio a M. Hulot, ao contrário, parece ser não ousar existir inteiramente. Ele é uma veleidade ambulante, uma discrição de ser! Ele eleva a timidez à altura de princípio ontológico! E, naturalmente, a leveza do toque de M. Hulot sobre o mundo será precisamente a causa de todas as catástrofes, porque ele nunca se comporta conforme as regras das conveniências e da destreza social. M. Hulot é o génio da inoportunidade. Isso não quer dizer, no entanto, que seja desastrado e desajeitado. Muito pelo contrário, M. Hulot é pura graça, é o Anjo estabanado, e a desordem que ele introduz é a da ternura e da liberdade. É significativo que as únicas personagens do filme, igualmente graciosos e totalmente simpáticos, são as crianças. Isso porque são os únicos que não realizam um "dever de férias". M. Hulot não lhes causa espanto, é como irmão deles, sempre disponível e que ignora, como eles, as falsas vergonhas do jogo e as primazias do prazer. Se há apenas um dançarino no baile de máscaras, ele será M. Hulot, tranquilamente indiferente ao vazio à sua volta. Foi guardado, sob as ordens do Comandante aposentado, um conjunto de fogos de artifício; o fósforo de M. Hulot ateará lume no barril de pólvora.
Mas o que seria M. Hulot sem as férias? Imaginamos perfeitamente uma profissão, ou pelo menos uma ocupação, para todos os habitantes provisórios dessa praia estranha. Poderíamos apurar a origem dos carros e dos comboios que convergem no início do filme para X-sur-Mer e logo a investem como se fosse um sinal misterioso. Mas o carro de M. Hulot, um Amilcar, não tem idade e na verdade não vem de lugar algum: ele sai do Tempo. Podemos facilmente imaginar que M. Hulot desaparece durante dez meses no ano e reaparece espontaneamente em fondu enchainé** no primeiro dia de Julho, quando finalmente os relógios de ponto param e se forma, em certos lugares previlegiados do litoral e do interior, um tempo provisório, entre parênteses, uma duração frouxamente palpitante, fechada em si mesma, como o ciclo das marés. Tempo de repetição de gestos inúteis, quase imóvel, estagnado na hora da sesta. Mas também tempo ritual, ritmado pela liturgia vã de um prazer convencional mais rigoroso que as horas de trabalho.
Por isso não poderia haver "guião" para M. Hulot. Uma história supõe um sentido, uma orientação do tempo que vai da causa ao efeito, um começo e um fim. As férias de M. Hulot só podem ser, inversamente, uma sucessão de acontecimentos a um só tempo, coerentes na sua significação e dramaticamente independentes. Cada uma das aventuras e desventuras do herói começaria pela fórmula: "Mais uma vez M. Hulot". Nunca, sem dúvida, o tempo tinha sido a este ponto a matéria-prima, quase o próprio objecto do filme. Bem melhor e bem mais que nos filmes experimentais que duram o próprio tempo da acção, M. Hulot esclarece-nos sobre a dimensão temporal dos nossos movimentos.
Nesse universo de férias, os actos cronometrados ganham uma postura absurda. M. Hulot é o único que nunca chega a tempo a lugar nenhum, pois é o único que vive a fluidez do tempo em que os outros vivem obstinados a re-establecer uma ordem vazia: a que é ritmada pelo bater da porta de batentes do restaurante. Eles só conseguem adensar o tempo, a imagem do monte de goma ainda quente abanando lentamente no balcão do doceiro e que tanto atormenta o M. Hulot, Sísifo dessa massa de caramelo cuja queda renova perpetuamente a sua iminência.
Mais que a imagem, porém, a banda-sonora dá ao filme a sua densidade temporal. E esse é o grande achado de Tati, o mais original em termos técnicos. Foi dito algumas vezes, sem razão, que ela era constituída por uma espécie de magma sonoro sobre o qual flutuariam por momentos trechos de frases, palavras precisas e, por isso mesmo, mais ridículas. Essa é a impressão que um ouvido desatento pode ter. De facto, raros são os elementos sonoros indistintos (como as indicações do altifalante da estação, mas aí o gag é realista). Toda a astúcia de Tati, ao contrário, consiste em destruir a clareza pela clareza. Os diálogos não são de modo algum incompreensíveis, mas insignificantes, e essa insignificância é revelada pela sua própria precisão. Tati consegue isso sobretudo deformando as relações de intensidade entre os planos sonoros, chegando mesmo por vezes a conservar o som de uma cena em segundo plano sobre um acontecimento mudo. Em geral, o seu cenário sonoro é constituído por elementos realistas: trechos de diálogos, gritos, reflexões diversas, sendo que nenhum deles é posto rigorosamente em situação dramática. É em relação a esse fundo que um ruído intempestivo ganha um relevo absolutamente falso. Por exemplo, durante a reunião do hotel, na qual os pensionistas lêem, conversam ou jogam cartas: Hulot joga ping-pong e a bolinha faz um barulho desmedido, quebra esse meio-silêncio como uma bola de bilhar; cada vez que ela soa, achamos que o barulho aumenta. Na base do filme há um material sonoro autêntico, gravado efectivamente numa praia, sobre o qual sons artificiais - não menos precisos, aliás - se sobrepõem, mas constantemente desfasados. Da combinação desse realismo e das deformações, nasce a irrefutável inanidade sonora desse mundo, entretanto humano. Sem dúvida, jamais o aspecto físico da fala, da sua anatomia, tinha sido colocada tão impediosamente em evidência. Habituados que estamos a atribuir-lhe um sentido mesmo quando ela não tem nenhum, não tomamos dela a distância irónica que tomamos da visão. As palavras aqui passeiam nuas com uma indecência grotesca, despojadas da cumplicidade social que as vestia com uma dignidade ilusória. Acreditamos vê-las sair do rádio como bolinhas vermelhas em fila, outras condensando-se em nuvenzinhas por cima da cabeça das pessoas, e então deslocando-se no ar, à mercê dos ventos, até estar debaixo dos nossos narizes. Mas o pior é que tenham justamente um sentido que uma atenção renitente, um esforço para eliminar, com os olhos fechados, os ruídos adventícios, lhes acaba por restituir. Acontece também Tati introduzir subrepticiamente um som totalmente falso, sem que, misturado nesse emaranhado sonoro, pensemos em protestar. Assim, é difícil identificar, na sonoplastia dos fogos de artifício, o do bombardeio, se não nos esforçarmos voluntariamente. É o som que dá densidade ao universo de M- Hulot, seu relevo moral. Perguntem de onde vem, no final do filme, essa grande tristeza, esse desencanto desmedido, e talvez descubram que vem do silêncio. Ao longo do filme, os gritos das crianças que brincam acompanham inevitavelmente as vistas da praia, e pela primeira vez o silêncio delas significa o fim das férias.
M. Hulot fica sozinho, ignorado pelos seus companheiros de hotel que não lhe perdoam ter estragado os seus fogos de artifício; ele vira-se para dois miúdos, troca com eles alguns grãos de areia. Subrepticiamente, porém, alguns amigos vêm despedir-se dele, a velha inglesa que conta os pontos no ténis, o filho do senhor do telefone, o marido deambulante... Os que viviam e subsistiam ainda, no meio dessa multidão presa nas suas férias, uma pequena chama de liberdade e de poesia. A suprema delicadeza desse final sem desenlace não é indigna do melhor Chaplin.
Como toda a grande situação cómica, a de Les Vacances de M. Hulot é o resultado de uma observação cruel. Une si jolie petite plage, de Yves Allegret e Jacques Sigurd, não passa de literatura infantil perto da de Jacques Tati. Não parece, no entanto - e talvez seja a garantia mais segura da sua grandeza -, que a comicidade de Jacques Tati seja pessimista, não mais pelo menos, do que a de Chaplin. A sua personagem afirma, contra a tolice do mundo, uma leveza incorrigível; ele é a prova de que o imprevisto pode sempre acontecer e alterar a ordem dos imbecis, transformar um pneu em coroa mortuária e um enterro em passatempo.
* Esprit, 1953.
** Fusão, efeito em que uma imagem é progressivamente substituída por outra (fading, em inglês). (N.E.)
domingo, 16 de dezembro de 2012
ENCOUNTERS AT THE END OF THE WORLD (2007)
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There is a beautiful saying by an American philosopher, Alan Watts. He used to say that through our eyes the universe is perceiving itself, and through our ears the universe is listening to its cosmic harmonies. And we are the witness to which the universe becomes conscious of its glory. Of its magnificence.
Stefan Pashov, no filme
Se as ficções recentes de Herzog não me tinham convencido totalmente (há que revê-las urgentemente), agora levo na cara outra vez com o "ficção e documentário são uma e a mesma coisa". A questão nem se põe. Filmam-se medusas e seres-humanos num bailado cósmico sem saber que mais segredos nos estão reservados, um pinguim a aventurar-se doido pelo gelo mortal da Antárctica e os travellings como se caminhos para as descobertas profundas fossem. E é destas incertezas e hesitações que nasce a ficção, como vislumbres para odisseias épicas a que só timidamente nos aventuramos.
É preciso saber, é preciso lembrar que para se fazer narrativa, há-que descrever um arco em que se suporta e engloba todas as coisas. Tudo tem o seu lugar. Retenho, portanto, o olhar abismado de Stefan Pashov - filósofo e empilhador - e que é esboçado pelos contornos do mar mais profundo e da montanha mais íngreme. Um ser de corpo inteiro.
"Filme montanhas, meu querido amigo. Quando tiver aprendido a filmar a natureza, saberá filmar os homens." (Lubitsch dixit)
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sexta-feira, 14 de dezembro de 2012
The Terrible Old Man
by H.P. Lovecraft
Written 28 Jan 1920
Published July 1921 in The Tryout, Vol. 7, No. 4, p. 10-14.
It was the design of Angelo Ricci and Joe Czanek and Manuel Silva to call on the Terrible Old Man. This old man dwells all alone in a very ancient house on Water Street near the sea, and is reputed to be both exceedingly rich and exceedingly feeble; which forms a situation very attractive to men of the profession of Messrs. Ricci, Czanek, and Silva, for that profession was nothing less dignified than robbery.
The inhabitants of Kingsport say and think many things about the Terrible Old Man which generally keep him safe from the attention of gentlemen like Mr. Ricci and his colleagues, despite the almost certain fact that he hides a fortune of indefinite magnitude somewhere about his musty and venerable abode. He is, in truth, a very strange person, believed to have been a captain of East India clipper ships in his day; so old that no one can remember when he was young, and so taciturn that few know his real name. Among the gnarled trees in the front yard of his aged and neglected place he maintains a strange collection of large stones, oddly grouped and painted so that they resemble the idols in some obscure Eastern temple. This collection frightens away most of the small boys who love to taunt the Terrible Old Man about his long white hair and beard, or to break the small-paned windows of his dwelling with wicked missiles; but there are other things which frighten the older and more curious folk who sometimes steal up to the house to peer in through the dusty panes. These folk say that on a table in a bare room on the ground floor are many peculiar bottles, in each a small piece of lead suspended pendulum-wise from a string. And they say that the Terrible Old Man talks to these bottles, addressing them by such names as Jack, Scar-Face, Long Tom, Spanish Joe, Peters, and Mate Ellis, and that whenever he speaks to a bottle the little lead pendulum within makes certain definite vibrations as if in answer.
Those who have watched the tall, lean, Terrible Old Man in these peculiar conversations, do not watch him again. But Angelo Ricci and Joe Czanek and Manuel Silva were not of Kingsport blood; they were of that new and heterogeneous alien stock which lies outside the charmed circle of New England life and traditions, and they saw in the Terrible Old Man merely a tottering, almost helpless grey-beard, who could not walk without the aid of his knotted cane, and whose thin, weak hands shook pitifully. They were really quite sorry in their way for the lonely, unpopular old fellow, whom everybody shunned, and at whom all the dogs barked singularly. But business is business, and to a robber whose soul is in his profession, there is a lure and a challenge about a very old and very feeble man who has no account at the bank, and who pays for his few necessities at the village store with Spanish gold and silver minted two centuries ago.
Messrs. Ricci, Czanek, and Silva selected the night of April 11th for their call. Mr. Ricci and Mr. Silva were to interview the poor old gentleman, whilst Mr. Czanek waited for them and their presumable metallic burden with a covered motor-car in Ship Street, by the gate in the tall rear wall of their host’s grounds. Desire to avoid needless explanations in case of unexpected police intrusions prompted these plans for a quiet and unostentatious departure.
As prearranged, the three adventurers started out separately in order to prevent any evil-minded suspicions afterward. Messrs. Ricci and Silva met in Water Street by the old man’s front gate, and although they did not like the way the moon shone down upon the painted stones through the budding branches of the gnarled trees, they had more important things to think about than mere idlesuperstition. They feared it might be unpleasant work making the Terrible Old Man loquacious concerning his hoarded gold and silver, for aged sea-captains are notably stubborn and perverse. Still, he was very old and very feeble, and there were two visitors. Messrs. Ricci and Silva were experienced in the art of making unwilling persons voluble, and the screams of a weak and exceptionally venerable man can be easily muffled. So they moved up to the one lighted window and heard the Terrible Old Man talking childishly to his bottles with pendulums. Then they donned masks and knocked politely at the weather-stained oaken door.
Waiting seemed very long to Mr. Czanek as he fidgeted restlessly in the covered motor-car by the Terrible Old Man’s back gate in Ship Street. He was more than ordinarily tender-hearted, and he did not like the hideous screams he had heard in the ancient house just after the hour appointed for the deed. Had he not told his colleagues to be as gentle as possible with the pathetic old sea-captain? Very nervously he watched that narrow oaken gate in the high and ivy-clad stone wall. Frequently he consulted his watch, and wondered at the delay. Had the old man died before revealing where his treasure was hidden, and had a thorough search become necessary? Mr. Czanek did not like to wait so long in the dark in such a place. Then he sensed a soft tread or tapping on the walk inside the gate, heard a gentle fumbling at the rusty latch, and saw the narrow, heavy door swing inward. And in the pallid glow of the single dim street-lamp he strained his eyes to see what his colleagues had brought out of that sinister house which loomed so close behind. But when he looked, he did not see what he had expected; for his colleagues were not there at all, but only the Terrible Old Man leaning quietly on his knotted cane and smiling hideously. Mr. Czanek had never before noticed the colour of that man’s eyes; now he saw that they were yellow.
Little things make considerable excitement in little towns, which is the reason that Kingsport people talked all that spring and summer about the three unidentifiable bodies, horribly slashed as with many cutlasses, and horribly mangled as by the tread of many cruel boot-heels, which the tide washed in. And some people even spoke of things as trivial as the deserted motor-car found in Ship Street, or certain especially inhuman cries, probably of a stray animal or migratory bird, heard in the night by wakeful citizens. But in this idle village gossip the Terrible Old Man took no interest at all. He was by nature reserved, and when one is aged and feeble, one’s reserve is doubly strong. Besides, so ancient a sea-captain must have witnessed scores of things much more stirring in the far-off days of his unremembered youth.
domingo, 9 de dezembro de 2012
quarta-feira, 5 de dezembro de 2012
terça-feira, 27 de novembro de 2012
sábado, 24 de novembro de 2012
domingo, 18 de novembro de 2012
WRITTEN ON THE WIND (1956)
por R. W. Fassbinder
Written on the Wind (1957) is the story of a super-rich family. Robert Stack is the son, who was never as good, in any way, as his friend, Rock Hudson. Robert Stack knows how to spend his money: he flies aeroplanes, drinks, lays girls; Rock Hudson is his constant companion. But they are not happy. There's no love in their lives. Then they meet Lauren Bacall. Naturally she is different from all other women. She's straightforward, works for her living, is practical, she's tender and understanding. And yet she chooses the bad guy, Robert, although the good guy, Rock, would suit her much better. Rock has to work for his living too, is practical, understanding and big-hearted, like her. She picks the one with whom things can't possibly work out in the long run. When Lauren Bacall meets Robert Stack's father for the first time she asks him to give Robert another chance. It's disgusting the way the kind lady kicks the good guy in the balls to set things up for the bad guy. Yes indeed, everything is bound to go wrong. Let's hope so. Dorothy Malone, the sister, is the only one who is in love with the right person, i.e. Rock Hudson, and she stands by her love which is ridiculous, of course. It has to be ridiculous when everyone else thinks their surrogate actions are the real thing, it is quite clear that everything she does, she does it because she can't have the real thing.
Lauren Bacall is a surrogate for Robert Stack because he must know he will never be able to love her, and vice versa. And the father has an oil derrick in his hand which looks like a surrogate cock. And when Dorothy Malone at the end, sole surviving member of the family, has this cock in her hand it is at least as wretched as the television set which Jane Wyman gets for Christmas. Which is a surrogate for the fuck her children begrudge her just as Dorothy Malone's oil empire is a surrogate for Rock Hudson. I hope she won't make it and will go mad like Marianne Koch in Interlude. For Douglas Sirk, madness is a sign of hope, I think.
Rock Hudson in Written on the Wind is all in all the most pig-headed bastard in the world. How can he possibly not feel something of the longing Dorothy Malone has for him? She offers herself, goes after guys who look vaguely like him so as to make him understand. And all he can say is 'I could never satisfy you'. God knows, he could. White Dorothy is dancing in her room, dancing the dance of a corpse - maybe that's the moment her madness begins -, her father dies. He dies because he is guilty. He has always fostered the belief in his real children that Rock Hudson was better than them, until in the end he really was. Because he could never do what he wanted himself and he had always thought Rock's father, who had never made any money and could go hunting whenever he wanted to go hunting, was better than he was. The children are just poor, dumb pigeons. Probably he understands his guilt and it kills him. In any case, the spectator understands it. His dead isn't terrible.
Because Robert doesn't love Lauren he wants a child by her. Or because Robert has had no chance to achieve anything, he wants at least to father a child. But his efforts reveal a fatal weakness. Robert starts drinking again. Now it becomes clear that Lauren Bacall is no use to her husband. Instead of drinking with him, understanding something of his pain, she becomes nobler and purer than ever, she makes us feel more and more sick and we can see more and more clearly how well she would get on with Rock Hudson, who also makes us feel sick and is also noble. People who are brought up to be useful, with their heads full of manipulated dreams, are always screwed up. If Lauren Bacall had lived with Robert Stack, instead of living next to him, through him, and for him then he might have believed that the child she is expecting is really his. He wouldn't have had to suffer. But, as it is, the child belongs more to Rock in actual fact, although he never slept with Lauren.
Dorothy does something bad, she sets her brother against Lauren and Rock. All the same, I love her as I rarely love anyone in the cinema, as a spectator I follow with Douglas Sirk the traces of human despair. In Written on the Wind the good, the 'normal', the 'beautiful' are always utterly revolting; the evil, the weak, the dissolute arouse one's compassion. Even for the manipulators of good.
And then again, the house in which it all takes place. Governed, so to speak, by one huge staircase. And mirros. And endless flowers. And gold. And coldness. A house such as one would build if one had a lot of money. A house with all the props that go with having real money, and in which one cannot feel at ease. It is like the Oktoberfest, where everything is colourful and in movement, and you feel as alone as everyone. Human emotions have to blossom in the strangest ways in the house Douglas Sirk had built for the Hadleys. Sirk's lighting is always as unnatural as possible. Shadows where there shouldn't be any make feelings plausible which one would rather have left unacknowledged. In the same way the camera angles in Written on the Wind are almost always tilted, mostly from below, so that the strange things in the story happen on the screen, not just in the spectator's head. Douglas Sirk's films liberate your head.
in Six Films by Douglas Sirk by Rainer Werner Fassbender
Translated by Thomas Elsaesser.
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quinta-feira, 15 de novembro de 2012
HIROSHIMA NOTRE AMOUR
No número 71 dos Cahiers du Cinéma, alguns redactores organizaram uma primeira mesa redonda sobre a situação, então crítica, do cinema francês. Hoje, com a estreia de Hiroshima, mon Amour, parece-lhes um acontecimento suficientemente importante para justificar uma nova conversa.
Rohmer: Penso que todas as pessoas estarão de acordo se eu disser, para começar, que Hiroshima é um filme do qual se pode dizer tudo.
Godard: Comecemos por dizer que se trata de literatura.
Rohmer: E de uma literatura que é um pouco suspeita, na medida em que derivou da escola americana, que esteve em voga depois de 1945 em França.
Kast: As relações entre o cinema e a literatura são, pelo menos, obscuras e más. Tudo o que se pode dizer, creio eu, é que os literatos desprezam de uma forma confusa o cinema. E as pessoas do cinema, de forma confusa, sofrem de um sentimento de inferioridade. A singularidade de Hiroshima é que o encontro Marguerite Duras-Alain Resnais é uma excepção à regra que acabei de enunciar.
Godard: O que é impressionante, antes de tudo, no filme, é que não possui nenhuma referência cinematográfica. Pode-se dizer de Hiroshima que é Faulkner mais Stravinsky mas não se pode dizer que é um cineasta mais outro.
Rivette: O filme de Resnais talvez não tenha referências cinematográficas precisas mas creio que se podem encontrar referências indirectas e profundas, porque é um filme que faz pensar muito em Eisenstein, na medida em que se pode encontrar a aplicação, aliás muito original, de certas ideias de Eisenstein.
Godard: Quando dizia que não tinha referências cinematográficas, queria dizer que vendo Hiroshima tem-se a impressão de ver um filme imprevisível, em relação ao que já se espera do cinema. Por exemplo, quando vemos India, sabemos que vamos ser surpreendidos mas esperamos, mais ou menos, essa surpresa. Do mesmo modo, sei que serei surpreendido por Cordelier como fui por Elena. Enquanto que com Hiroshima, tive a impressão de ver algo que não esperava de forma alguma.
Um motivo central
Doniol-Valcroze: Será que, em relação a Resnais, não esperávamos já um pouco o que íamos ver? Por exemplo, tendo em conta Nuit et Brouillard e Toute la Mémoire du Monde.
Kast: É verdade. Por detrás da aparente diversidade dos assuntos, desde Guernica ao Chant du Styrène trata-se um motivo central. Habitualmente, consideram-se como contraditórios a inteligência e a sensibilidade, a paixão intelectual e a emoção. Resnais dá que fazer a estes amadores da lógica. Desta obra, que é um todo sem falha, se nos referirmos ao autor, não é a primeira vez que nos surpreende.
Rivette: Hiroshima explica mais as curtas metragens de Alain Resnais do que é explicado por elas. É vendo Hiroshima que se compreende exactamente o que Resnais queria dizer com Les Statues Meurent Aussi, Bibliothèque National ou mesmo Van Gogh, nos quais se definia já como um cineasta que reflecte. De modo que, efectivamente, Hiroshima, é a consequência das curtas metragens que se admiravam de forma um pouco cega. Contudo, existe sem dúvida uma parte de Hiroshima que admiramos às cegas e que será explicada pelos filmes seguintes de Resnais. Em todo o caso, penso que com Hiroshima pode-se, enfim, considerar as curtas metragens de Resnais como uma obra que forma um todo. Até agora, os filmes estavam dispersos, mesmo na nossa admiração. Era normal olhar para cada um como um caso particular. Tomando os três últimos, havia evidentemente semelhanças entre Nuit et Brouillard, Nationale e Styrène mas, justamente, tinha-se tendência em pensar que era, se não um truque que Resnais tinha encontrado, pelo menos um "estilo" com tudo o que isso podia comportar de profundo e exorbitante. Em Nationale, o que gostei mais foi do conteúdo, do tema. Achei a forma muito bela mas esta deu-me a sensação de vir, talvez, por acréscimo. Depois de ter visto Hiroshima, já não tenho essa sensação.
Godard: De resto, Hiroshima assemelha-se muito mais a Toute la Mémoire du Monde do que às outras curtas metragens de Resnais. Todavia, é quase o mesmo tema: o esquecimento e a recordação.
Doniol-Valcroze: No fundo, essas curtas metragens eram sobretudo partes de um grande filme que nunca veremos, do qual Hiroshima nos mostrou o que poderia ter sido.
Kast: Nunca ninguém teve a ideia de classificar Resnais de documentarista, no sentido pejorativo do termo. No entanto, em concessão aos aristotélicos, é preciso reconhecer que os seus filmes não eram de ficção.
Godard: Em todo o caso, eram filmes de ciência.
Kast: Foi Marguerite Duras que desempenhou o papel de catalizador entre o documentário e o romance, a ciência e a ficção. Há muito tempo que Resnais pensava no filme romanceado. Interessou-se por certos romance de Queneau como por "Mauvais Coups" de Roger Vailland.
Talvez a felicidade
Rohmer: E se falássemos um pouco de Toute la Mémoire du Monde? Para mim é um filme que permanece bastante obscuro. Hiroshima esclareceu-me certos aspectos mas não todos.
Rivette: É sem dúvida a mais misteriosa de todas as curtas metragens de Resnais. Quanto ao tema, muito moderno e muito angustiante, vai de encontro àquilo que dizia Renoir nas entrevistas, i.e., o grande drama da nossa civilização é que ela se está a tornar numa civilização de especialistas. Estamos cada vez mais fechados no nosso pequeno domínio e incapazes de sair de lá. Ninguém hoje é capaz de decifrar uma inscrição antiga e uma fórmula científica moderna. A cultura e o tesouro comum da humanidade tornaram-se presas dos especialistas. Creio que era essa a ideia de Resnais ao fazer Nationale. Ele desejava mostrar que a única tarefa necessária à humanidade, para reencontrar a unidade da cultura era, através do trabalho de cada um, tentar juntar os fragmentos espalhados da cultura universal em vias de se perder. E é por isso, penso eu, que Toute la Mémoire du Monde termina com planos cada vez mais elevados da sala central, onde se vê cada leitor, cada investigador, no seu canto, debruçado sobre o seu manuscrito mas uns ao lado dos outros, todos a tentarem juntar os bocados dispersos do mosaico, para reencontrar o segredo perdido da humanidade, segredo esse que se chama talvez a felicidade.
Domarchi: Afinal é um assunto que não está afastado do de Hiroshima. Falou-se sobre a forma mas Resnais também se aproxima de Eisenstein em relação ao fundo, pois os dois tentam unificar contrários. Dito de outra forma, a arte deles é dialéctica.
Rivette: A grande obsessão de Resnais, se podemos empregar esta palavra, é o sentimento da fragmentação da unidade primeira: o mundo quebrou-se, fragmentou-se numa série de pedaços minúsculos, trata-se de reconstruir o puzzle. Para Resnais, parece-me que esta reconstituição se processa sobre dois planos. Em primeiro lugar, sobre o plano do sujeito, da dramatização. Em segundo lugar, e principalmente, creio eu, sobre o plano da própria ideia de cinema. Tenho a impressão que o cinema para Resnais consistia em tentar construir um todo a partir de fragmentos a priori diferentes. Por exemplo, num filme de Resnais, dois fenómenos concretos, sem relação lógica ou dramática entre eles, estão ligados unicamente porque são filmados em travelling à mesma velocidade.
Godard: Compreende-se tudo o que há de Eisenstein em Hiroshima porque, efectivamente, trata-se da ideia profunda da montagem e mesmo da sua definição.
Rivette: Sim. A montagem, para Eisenstein como para Resnais, consiste em reencontrar a unidade a partir da fragmentação mas sem esconder a fragmentação. Pelo contrário, acentuando-a, acentuando a independência do plano.
É um movimento duplo, que acentua a autonomia do plano e ao mesmo tempo procura no interior desse uma força que faça com que ele possa entrar em relação com uma ou várias outras forças, e acabar assim por formar um unidade. Mas atenção, esta unidade já não é a da sequência clássica. É uma unidade de contrastes, uma unidade dialéctica, diriam Hegel e Domarchi (risos).
Doniol-Valcroze: Uma redução discordante.
Rohmer: Em suma, Alain Resnais é um cubista. Quero com isto dizer que ele é o primeiro cineasta moderno do cinema sonoro. Houve muitos cineastas modernos no cinema mudo, Eisenstein, os expressionistas, Dreyer também. Mas creio que o cinema sonoro foi talvez mais clássico que o cinema mudo. Ainda não houve cinema profundamente moderno que tentasse fazer o que fez o cubismo na pintura e o romance americano na literatura, i.e., uma espécie de reconstituição da realidade a partir de um certo fraccionamento que pode parecer arbitrário ou profano. E neste caso, podemos explicar o interesse de Resnais, por um lado, pela Guernica - que é apesar de tudo um quadro cubista de Picasso, mesmo se não é o verdadeiro cubismo, mas uma espécie de retorno ao cubismo - e por outro lado, o facto de ter sido inspirado por Faulkner ou Dos Passos, mesmo se por via de Marguerite Duras.
O falso problema do texto e da imagem
Kast: De certeza que Resnais não pediu a Marguerite Duras um trabalho literário de segunda categoria, destinado a "fazer cinema" e, reciprocamente, ela não supôs que o que tinha a dizer, a escrever, pudesse estar fora do alcance do cinema. É preciso voltar muito atrás na história do cinema, à época das grandes ingenuidades e das grandes ambições, relativamente pouco traduzidas em actos, de um Delluc, para reencontrar uma tal vontade de não diferenciar entre o propósito literário e a criação cinematográfica.
Rohmer: Neste ponto de vista, a objecção que fiz no início desaparece - acusámos certos cineastas de se inspirarem no romance americano - na medida em que era superficial. Mas uma vez que se trata de um equivalência profunda, talvez Hiroshima seja um filme completamente novo. O que põe em questão um postulado, que até aqui era o meu, confesso-o, e que posso aliás abandonar (risos), que é o postulado do classicismo no cinema em relação às outras artes. É certo que o cinema também pode efectivamente abandonar o seu período clássico para entrar num período moderno. Creio que dentro de alguns anos, dez, vinte ou trinta anos, saberemos se Hiroshima é o filme mais importante a seguir à Guerra, o primeiro filme moderno do cinema sonoro, ou se é talvez menos importante do que pensamos. Em todo o caso, é um filme extremamente importante mas é possível que ele ganhe ainda mais com os anos. Também é possível que perca um pouco.
Godard: Como, por um lado, La Règle du Jeu e, por outro, filmes como Quai des Brumes ou Le Jou se Lève. Os dois filmes de Carné são muito importantes. Mas hoje são-no um pouco menos que o de Renoir.
Rohmer; Sim. E tenho algumas reservas, na medida em que certos elementos de Hiroshima não me seduziram tanto como outros. Nas primeiras imagens havia algo que me incomodava. De seguida, rapidamente, o filme faz-me desaparecer esta sensação de incómodo. No entanto, compreendo que se pode amar e admirar Hiroshima e, ao mesmo tempo, considerá-lo irritante em certos momentos.
Doniol-Valcroze: Moralmente ou esteticamente?
Godard: É a mesma coisa. O travelling é uma questão de moral.
Kast: É indubitável que Hiroshima é um filme literário. Ora, o adjectivo, "literário", é o cúmulo da injúria no vocabulário quotidiano do cinema. O que impressiona de uma forma deslumbrante em Hiroshima é a negação desta peculiaridade de linguagem. Como se, à maior ambição cinematográfica, Resnais tivesse suposto que deveria corresponder a maior ambição literária. Substituindo a ambição pela pretensão, obteremos aliás um compêndio provocador das críticas que apareceram em vários jornais diários, depois da estreia do filme. O esforço de Resnais é empreendido para desagradar a todos aqueles que, literatos de profissão ou contra vontade, apenas gostam no cinema daquilo que justifica o desprezo informulado em que o têm em conta. Esta aliança total do filme e do argumento é tão evidente que os inimigos do filme repararam logo que era precisamente aí que era necessário atacar: sim, o filme é bom mas o texto é tão literário, tão pouco cinematográfico, etc. Com efeito, não vejo de forma alguma como se possa separá-los.
Godard: Tudo isto agradaria muito a Sacha Guiltry.
Doniol-Valcroze: Qual é a relação?
Godard: O texto, o famoso falso problema do texto e da imagem. Felizmente chegámos, enfim, ao ponto em que mesmo os literatos, outrora de acordo com os exibidores de província, já não acreditam que o que há de mais importante é a imagem. E isso, provou-o Sacha Guiltry há muito tempo. Bem provado. Porque, por exemplo, Pagnol não o soube provar. Com Truffaut não está aqui, fico muito contente por abrir no seu lugar um parêntesis para dizer que Hiroshima desagrada a todos aqueles que não foram ver a retrospectiva de Guiltry na Cinemateca.
Doniol-Valcroze: Se se trata do lado irritante de que falava Rohmer, reconheço que os filmes de Guiltry têm um lado irritante.
Uma mulher adulta
Rohmer: Uma coisa interessante em Hiroshima, é que acho, efectivamente, muitas vezes, as personagens irritantes e apesar disso, em vez de me desinteressarem, pelo contrário, elas apaixonam-me ainda mais.
Godard: É verdade. Tomemos a personagem desempenhada por Emmanuelle Riva. Cruzávamo-nos com ela na rua, víamo-la todos os dias, só interessava a um número limitado de pessoas, creio eu. Ora, no filme ela interessa a todos.
Rohmer: Porque não é uma heroína clássica, pelo menos aquela que um certo cinema clássico nos tinha habituado a encarar, de Griffith a Nicholas Ray.
Doniol-Valcroze: Ela é única. É a primeira vez que se vê no ecrã uma mulher adulta, com uma interioridade e um raciocínio levados a este ponto. Não sei se ela é clássica ou não, moderna ou não.
Domarchi: Ela é moderna no seu comportamento clássico.
Godard: Para mim, é o tipo de rapariga que trabalha nas "Editions du Seuil" ou no "L'Express", uma espécie de George Sand 1959. A priori ela não me interessa, porque prefiro o tipo de raparigas que se vê nos filmes de Castellani. Resnais dirigiu Emmanuelle Riva de uma forma tão prodigiosa que me dá vontade de ler os escritos da "Seuil" ou "L'Express".
Doniol-Valcroze: No fundo, mais do que o sentimento de ver pela primeira vez uma mulher verdadeiramente adulta no cinema, creio que a força da personagem de Emmanuelle Riva é a de ser uma mulher que não tenta ter uma psicologia adulta, como em Les 400 Coups o pequeno Jean-Pierre Léaud não tentou ter uma psicologia de criança, um comportamento pré-concebido pelos argumentistas profissionais. Emmanuelle Riva é uma mulher adulta, moderna, porque não é uma mulher adulta. Ela é, pelo contrário, muito infantil, guia-se unicamente pelos seus impulsos e não pelas suas ideias. Foi Antonioni o primeiro a mostrar este género de mulheres.
Rohmer: Será que já houve mulheres adultas no cinema?
Domarchi: Madame Bovary.
Godard: De Renoir ou de Minnelli?
Domarchi: A resposta é óbvia (risos). Elena.
Rivette: Elena é uma mulher adulta, na medida em que a personagem de mulher desempenhada por Ingrid Bergman não é clássica mas de um modernismo clássico, de Renoir ou de Rossellini. Elena é uma mulher, para quem conta a sensibilidade, o instinto, todos os movimentos profundos contam. Mas são contrariados pelo espírito, pela razão. E isso remonta à psicologia clássica, na medida em que há intervenção do espírito e da sensibilidade. Ao passo que a personagem de Emmanuelle Riva não é a de uma mulher insensata mas de uma mulher não-razoável. Ela não se compreende. Não se analisa. É, aliás, um pouco o que Rossellini tentou fazer em Stromboli. Embora, em Stromboli, a personagem de Bergman comportasse linhas claras, uma curva precisa. Era uma personagem "moral". Enquanto a personagem de Emmanuelle Riva permanece, voluntariamente, imprecisa e ambígua. E é, aliás, o tema de Hiroshima: uma mulher que já não sabe onde está, quem é, que tenta desesperadamente redefinir-se em relação a Hiroshima, em relação a este japonês e às recordações que lhe vêm de Nevers. Finalmente, é uma mulher que volta às suas origens, ao princípio, que tenta definir-se em termos existenciais perante o mundo e o seu passado, como se fosse de novo matéria maleável em vias de nascer.
Godard: Portanto, poder-se-ia dizer de Hiroshima que é Simone de Beauvoir bem conseguido.
Domarchi: Sim. Resnais ilustra uma concepção existencialista da psicologia.
Doniol-Valcroze: Como em Rêves de Femmes ou Au Seuil de la Vie mas mais desenvolvido e sistemático.
Filmar montanhas
Kast: Será que isso não provém do facto de Resnais dirigir pela primeira vez actores, aos olhos do mundo, pois sabemos que fez filmes que não foram estreados*.
Doniol-Valcroze: Com efeito, tomou uma decisão arrojada e foi essa a dificuldade.
Godard: Considerando que Resnais era terrivelmente exigente em relação a si próprio, isso explica que tenha levado a direcção de actores a um ponto talvez nunca atingido, mesmo por um Renoir, um Bergman ou um Cukor. Resnais sabia que as pessoas de cinema perguntavam: Será que ele sabe dirigir actores?
Doniol-Volcroze: Francamente, é uma questão que já me coloquei, sobretudo se pensarmos que Resnais outrora queria ser comediante. Coloca-se sempre esta questão da direcção de actores, quando um documentarista passa a uma longa metragem de ficção.
Domarchi: A mesma questão foi colocada para Franju.
Godard: Creio que é uma questão que temos dificuldade em colocar. O cinema é o cinema. Existe uma frase de Lubitsch que acho admirável. Uma vez um jovem foi vê-lo e perguntou-lhe por onde é que era necessário começar para fazer comédias tão perfeitas como Design for Living. Sabem o que lhe respondeu? Filme montanhas, meu querido amigo, quando tiver aprendido a filmar a natureza, saberá filmar os homens.
Domarchi: Hiroshima é, com efeito, de uma certa forma, um documentário sobre Emmanuelle Riva. Tenho curiosidade em saber o que ela pensa do filme.
Rivette: O seu desempenho vai de encontro ao sentido do filme. Trata-se de um imenso esforço de composição. Creio que reencontramos o esquema que tentei traçar há pouco: uma tentativa de voltar a juntar os fragmentos; na consciência da heroína, uma tentativa para reagrupar os diversos elementos da sua pessoa e da sua consciência, afim de construir um todo a partir desses fragmentos, ou pelo menos do que se tornou fragmento, através do choque deste encontro em Hiroshima. Podemos pensar que o filme começa duplamente depois da bomba: por um lado, sobre o plano plástico e sobre o plano do pensamento, pois a primeira imagem do filme é a imagem abstracta do casal, sobre o qual recai a chuva de cinza, e todo o princípio é uma meditação sobre Hiroshima depois da explosão da bomba. Mas também se pode dizer, por outro lado, que o filme começa depois da explosão para Emmanuelle Riva, uma vez que começa depois do choque que a desintegrou, que dispersou a sua personalidade social e psicológica, e que fez com que se adivinhasse apenas depois, por alusão, que ela é casada, tem filhos em França, que é uma actriz, em resumo, que tem uma vida organizada. Em Hiroshima, ela tem um choque, recebe uma "bomba" que rebenta a sua consciência e trata, nesse momento, de se reencontrar, de se recompor. Do mesmo modo que Hiroshima se deve reconstruir depois da destruição atómica, assim Emmanuelle Riva, em Hiroshima, vai tentar repor a sua realidade. Ela só alcançará o seu objectivo, operando uma síntese entre presente e passado, do que descobriu em Hiroshima e do que se passou antigamente em Nevers.
Berenice em Hiroshima
Doniol-Valcroze: Qual é o sentido da réplica que é uma constante no inínio do filme na boca do japonês: "Não, tu não viste nada em Hiroshima"?
Godard: É preciso compreender isso no seu sentido mais simples. Ela não viu nada porque não estava lá. Ele também não. Aliás, sobre Paris, ele diz-lhe igualmente que ela não viu nada ainda que seja parisiense. O ponto de partida é a tomada de consciência, ou pelo menos esse desejo. Resnais, julgo eu, filmou o romance que todos os jovens romancistas franceses, como Butor, Robbe-Grillet, Bastide, e claro Marguerite Duras, tentam escrever. Lembro-me de uma emissão de rádio, onde Régis Bastide, a propósito de Smultronstället, descobria de repente que o cinema tinha conseguido exprimir o que ele pensava ser do domínio exclusivo da literatura, e que os problemas que ele, enquanto romancista, se colocava, o cinema já tinha resolvido sem ter tido mesmo a necessidade de os colocar. Julgo que é um facto muito significativo.
Kast: Já vimos muitos filmes onde se encontram as leis de composição do romance. Hiroshima vai mais longe. Estamos no centro de uma reflexão sobre a própria narração romanesca. A passagem do presente ao passado, a persistência do passado no presente, não são comandadas pelo sujeito nem pela intriga mas por puros movimentos líricos. Na realidade, em Hiroshima, é o próprio conflito entre a intriga e o romance que é evocado. O romance tende hoje, lentamente, a desembaraçar-se da intriga psicológica. O filme de Alain Resnais encontra-se ligeiramente ligado a esta modificação das estruturas romanescas. A razão é simples. Não existe acção mas uma espécie de dupla tentativa para compreender o que significa uma história de amor. Em primeiro lugar, sobre o plano dos indivíduos, numa espécie de longa luta entre o amor e a sua própria degradação engendrada pelo decorrer do tempo. Como se o amor, no mesmo instante em que se manifesta, estivesse já ameaçado pelo esquecimento e pela destruição. Em segundo lugar, sobre o plano das relações, entre uma aventura individual e uma situação histórica e social dada. O amor destas duas personagens anónimas não está situado sobre uma ilha deserta reservada vulgarmente aos jogos da paixão. Tem lugar num quadro preciso que acentua e sublinha o horror da sociedade contemporânea. "O engodo de uma história de amor, num contexto que dá conta do conhecimento da desgraça dos outros", diz algures Resnais. O seu filme não é um documentário sobre Hiroshima que seria cunhado numa intriga, como dizem aqueles que vêem as coisas um pouco depressa. Pois Tite e Berenice nas ruínas de Hiroshima, fatalmente, já não são Tite e Berenice.
Rohmer: Em resumo, dizer que este filme é literário não é uma censura, pois Hiroshima não se deixa levar pela literatura mas adianta-se a esta. Sem dúvida que existem influências precisas, Proust, Joyce, os americanos, mas elas estão assimiladas como se tratasse de um jovem romancista a escrever o seu primeiro romance, primeiro romance esse que seria um acontecimento, porque assinalaria um passo em frente.
O cinema e o cinema
Godard: Esse lado profundamente literário explica também, talvez, o facto de as pessoas que habitualmente são incomodadas pelo cinema no interior do cinema, enquanto não o são pelo teatro no interior do teatro, ou pelo romance no interior do romance, em Hiroshima não serem incomodadas pelo facto de Emmanuelle Riva desempenhar o papel de uma actriz de cinema dentro do filme.
Doniol-Valcroze: Creio que é habilidade do argumento e, da parte de Resnais, existem no tratamento do assunto habilidades voluntárias. Na minha opinião, Resnais teve muito medo que o filme pudesse ter o ar de um simples filme de propaganda. Não queria que se pudesse utilizar o filme para fins políticos precisos. Foi talvez por esta razão que neutralizou um eventual aspecto "defensor da paz", através da rapariga de cabelo rapado depois da Libertação. Em todo o caso deu, assim, à mensagem política o seu sentido profundo no lugar do seu sentido superficial.
Domarchi: É pela mesma razão que a rapariga é actriz de cinema. Isso permite a Resnais não evocar, em primeira instância, o problema da luta anti-atómica e, por exemplo, não mostrar um verdadeiro desfile de pessoas com cartazes, mas um desfile de cinema reconstituído, ao longo do qual, com intervalos regulares, uma imagem vem lembrar ao espectador que se trata de cinema.
Doniol-Valcroze: Creio que é habilidade do argumento e, da parte de Resnais, existem no tratamento do assunto habilidades voluntárias. Na minha opinião, Resnais teve muito medo que o filme pudesse ter o ar de um simples filme de propaganda. Não queria que se pudesse utilizar o filme para fins políticos precisos. Foi talvez por esta razão que neutralizou um eventual aspecto "defensor da paz", através da rapariga de cabelo rapado depois da Libertação. Em todo o caso deu, assim, à mensagem política o seu sentido profundo no lugar do seu sentido superficial.
Domarchi: É pela mesma razão que a rapariga é actriz de cinema. Isso permite a Resnais não evocar, em primeira instância, o problema da luta anti-atómica e, por exemplo, não mostrar um verdadeiro desfile de pessoas com cartazes, mas um desfile de cinema reconstituído, ao longo do qual, com intervalos regulares, uma imagem vem lembrar ao espectador que se trata de cinema.
Rivette: É a mesma ideia que a de Pierre Klossowski no seu primeiro romance, "La Vocation Suspendue". Apresentou a narrativa como uma crítica de um livro já publicado. Trata-se sempre do duplo movimento da consciência e voltamos mais uma vez a esta palavra chave, que é ao mesmo tempo uma palavra "banal": a ideia de dialéctica, movimento que consiste em apresentar algo, tomando uma distância em relação a esse algo de forma a criticá-lo, i.e., negando-o e afirmando-o. Em vez de ser uma invenção do realizador, o desfile, para dar o mesmo exemplo, torna-se num facto objectivo que é reutilizado. Para Klossowski e para Resnais, o problema é dar aos seus leitores ou espectadores o sentimento de que o que vão ler ou ver não é uma invenção do autor mas um elemento do mundo real. Mais do que a palavra autenticidade, é a de objectividade que convém empregar para caracterizar este trabalho intelectual, porque o cineasta ou o romancista têm o mesmo olhar que o seu futuro leitor ou espectador.
Doniol-Valcroze: Aqui está a razão, sem dúvida, porque Resnais começou por fazer um filme sobre Van Gogh e, depois, sobre a Guernica. O seu ponto de partida era uma reflexão sobre os documentos.
Domarchi: E Nationale é uma reflexão sobre o conjunto da cultura.
Rohmer: E Le Styrène é uma reflexão sobre o processo da criação.
Godard: Há uma coisa que me perturba um pouco em Hiroshima, e que me tinha igualmente perturbado em Nuit et Brouillard: é que existe uma certa facilidade em mostrar cenas de horror, porque estamos, de repente, para lá da estética. Quero com isto dizer que bem ou mal filmadas, pouco importa, tais cenas produzem uma impressão terrível sobre o espectador. Se um filme sobre os campos de concentração ou sobre a tortura forem assinados por Couzinet ou Visconti, acho que é quase a mesma coisa. Antes de Au Seuil de la Vie passou um documentário produzido pala Unesco, que mostrava numa montagem com fundo musical todas as pessoas que sofriam sobre a terra: os mutilados, os cegos, os enfermos, os esfomeados, os velhos, os jovens, etc. Esqueci-me do título. Devia ser O Homem ou qualquer coisa do género. Ora bem, este filme era imundo. Nenhuma comparação com Nuit et Brouillard mas era mesmo assim um filme que impressionava as pessoas, como recentemente, Judgement at Nuremberg. A inconveniência em mostrar as cenas de horror é que se é automaticamente ultrapassado pelo propósito, e é-se chocado por estas imagens um pouco como pelas imagens pornográficas. No fundo, o que me choca em Hiroshima é que as imagens do casal fazendo amor, em primeiros planos, assustam-me do mesmo modo que as imagens de desgraça, igualmente em grandes planos, ocasionados pela bomba atómica. Existe algo não de imoral mas de amoral em mostrar assim o amor e o horror com os mesmos grandes planos. É talvez por isso que Resnais é verdadeiramente moderno, em relação a Rossellini. No entanto, acho que é uma expressão, porque em Viaggio in Italia, quando George Sanders e Ingrid Bergman olham para o casal calcinado de Pompeia, temos o mesmo sentimento de agonia e beleza mas com algo mais.
Rivette: O que faz com que em Resnais se possa permitir certas coisas, e não noutros cineastas, é que ele sabe previamente todas as objecções que, em princípio, lhe poderão ser feitas. Estas questões de justificação moral ou estética, Resnais não só as coloca antes, como as inclui na própria acção do filme. Em Hiroshima, os comentários e as reacções de Emmanuelle Riva desempenham o papel da reflexão sobre o arquivo. E é por isso que Resnais consegue utilizar, como ninguém, as imagens de arquivo. O próprio assunto dos filmes de Resnais é o esforço para resolver esta contradição.
Doniol-Valcroze: Resnais pronunciou muitas vezes as palavras terrível. Para ele, é característico deste esforço.
Rivette: Finalmente, os filmes de Resnais extraem todos a sua força de uma contradição inicial. Volta-se sempre lá: uma tentativa (ou uma tentação) de resolver a contradição fundamental que está em todo o lado no mundo, e que faz com que o universo se torne, ele próprio, numa acumulação de contradições. É preciso, em primeiro lugar, resolver ou ultrapassar estas contradições locais, tomando consciência delas e, ao mesmo tempo, mostrar que não há acumulação mas série, organização, construção.
Godard: Encontra-se essa ideia no plano da realização, pois o que Resnais quer, por exemplo, é conseguir fazer um travelling com dois planos fixos.
Doniol-Valcroze: Sim. Os longos travellings para a frente de Resnais dão, no fim de contas, um grande sentimento de permanência e imobilidade. Enquanto, ao contrário, o campo/contra-campo, em planos fixos, dá uma sensação de insegurança, de movimento. A sua forma de montar em paralelo travellings feitos à mesma velocidade, é uma forma de procurar a imobilidade.
Domarchi: É Zenão de Eleia.
Godard: Ou Cocteau que dizia: "para que serve um travelling para filmar um cavalo a galope"?
Música antes de qualquer coisa
Rivette: Como estamos no domínio da estética, além da referência a Faulkner, creio que se pode igualmente citar um nome que me parece, indubitavelmente, ligado à técnica narrativa de Hiroshima, que é o de Stravinsky no campo da música. Os problemas que Resnais coloca no interior do cinema são paralelos aos que coloca Stravinsky em música. Por exemplo, a definição que Stravinsky da de música - "uma sucessão de ímpetos e pausas" - parece-me convir perfeitamente ao filme de Alain Resnais. O que é que isto quer dizer? A procura de um equilíbrio superior a todos os elementos da criação. Stravinsky utiliza sistematicamente os contrastes e, ao mesmo tempo, no próprio instante em que os utiliza, põe em evidência o que os une. O princípio da música de Stravinsky é a ruptura perpétua do compasso. A grande novidade de "Sacre du Printemps" é a de ser a primeira obra musical onde o ritmo varia sistematicamente. No interior do domínio rítmico, não do domínio tonal, é já quase uma obra serial, feita de oposições de ritmos, de estruturas e de séries de ritmos. E tenho a impressão que é o que procura Resnais, quando monta quatro travellings, seguidos uns dos outros, e bruscamente um plano fixo, dois planos fixos e de novo um travelling. No interior do contraste dos planos fixos e dos travellings, tenta encontrar o que os reúne. Ou seja, procura ao mesmo tempo um efeito de oposição e um efeito de unidade profunda.
Godard: É o que dizia Rohmer há pouco. É Picasso mas não é Matisse.
Domarchi: Matisse é Rossellini (risos).
Rivette: Acho que é mais Braque do que Picasso, na medida em que toda a obra de Braque é consagrada a esta reflexão, enquanto que a de Picasso é terrivelmente multiforme. Picasso seria mais Orson Welles, enquanto Alain Resnais se aproxima de Braque, na medida em que a obra de arte é, em primeiro lugar, reflexão no interior de uma certa direcção.
Godard: Ao dizer Picasso, pensava sobretudo nas cores.
Rivette: Sim. Mas também Braque. É um pintor que quer, ao mesmo tempo, tornar violentas as cores doces e de uma grande suavidade as cores prenetantes. Braque quer que o amarelo limão seja suave o cinzento de Manet vivo. Ora bem, citámos muitos nomes, e demos provas de uma grande cultura. Os Cahiers du Cinéma são fiéis a eles próprios (risos).
Godard: Existe um filme que fez Alain Resnais reflectir muito, e do qual, aliás, fez a montagem: La Pointe Courte.
Rivette: É evidente. Julgo que não é ser desleal em relação a Agnès Varda se disser que, na montagem de La Pointe Courte, existia já uma reflexão sobre o que Varda tinha pretendido fazer. De uma certa forma Agnès Varda torna-se num fragmento de Alain Resnais e Chris Marker também.
Doniol-Valcroze: É neste momento que se pode falar da doçura terrível de Alain Resnais, que lhe devorar os seus próprios amigos, fazendo momentos da sua obra pessoal. Resnais é Saturno. E é por isso que nós nos sentimos bastante fracos perante ele.
Rohmer: Nós não temos vontade de ser devorados. Felizmente que ele permanece na margem esquerda do Sena e nós na direita.
Godard: Quando Resnais grita: "Acção", o seu engenheiro de som responde-lhe: "Saturno" (risos). Outra coisa, estou a pensar num artigo de Roland Barthes, a propósito de Cousins, onde ele diz mais ou menos que hoje o talento se refugiou à direita. Hiroshima é um filme de esquerda ou de direita?
A ficção científica tornou-se realidade
Rivette: Sempre houve uma estética de esquerda, aquela de que falava Cocteau e que, depois de Radiguet, se tratava aliás de contradizer, para de seguida contradizer, por seu lado, esta contradição, e assim por diante. Pessoalmente se Hiroshima é um filme de esquerda, isso não me incomoda nada.
Rohmer: Do ponto de vista estético, a arte moderna sempre esteve à esquerda. Mas é possível ser moderno sem ser necessariamente de esquerda, ou seja, pode-se, por exemplo, recusar uma certa concepção da arte moderna e pensar que está ultrapassada, não no mesmo sentido, mas no sentido contrário, se quiserem, da dialéctica. No que concerne o cinema, não se deve considerar a sua evolução unicamente sob um ponto de vista cronológico. A história do cinema sonoro, por exemplo, está muito desordenada em relação à do mudo. É por isso que, mesmo que Resnais tenha feito um filme que está adiantado dez anos no tempo, não se pode considerar que haverá dentro de dez anos um período Resnais que sucederá ao período actual.
Rivette: Evidentemente, porque se Resnais está adiantado, permanece fiel a Oktyabr, do mesmo modo que as "Las Meninas" de Picasso permanecem fiéis a Velasquez.
Rohmer: Sim. Hiroshima é um filme que mergulha ao mesmo tempo no passado, no presente e também no futuro. Detecta-se um sentimento muito forte do futuro e, principalmente, a angústia do mesmo.
Rivette: Há motivos para se falar de um lado de ficção científica em Resnais. Mas tem-se também dificuldade, porque é o único cineasta a dar a impressão de já ter encontrado um mundo que permanece ainda futurista aos olhos dos outros. Dito de outra forma, sabe que já se está na época em que a ficção científica se tornou realidade. Numa palavra, Alain Resnais é o único entre nós que vive verdadeiramente em 1959. Com ele, a palavra ficção científica perde tudo o que pode ter de pejorativo e de infantil, na medida em que Resnais sabe ver o mundo moderno tal como ele é. Sabe-nos mostrar, como os autores de ficção científica, tudo o que o mundo tem de aterrorizante mas também tudo o que tem de humano. Contrariamente a Fritz Lang de Metropolis, a Júlio Verne de "Cinq Cents Millions de la Bégum", contrariamente a essa ideia clássica de ficção científica, tal como é exprimida por um Bradbury, um Lovecraft ou mesmo um Van Vogt, que, no fim de contas, são todos reaccionários. É evidente que Resnais possui a grande originalidade de não reagir no interior da ficção científica. Não só toma o partido deste mundo moderno e futurista, não só o aceita, como o analisa profundamente com lucidez e amor. Para Resnais, trata-se do mundo onde vivemos, amamos, é portanto esse mundo que é bom, justo e verdadeiro.
Domarchi: Voltamos à ideia de doçura terrível que está no centro da reflexão de Resnais. No fundo, ela explica-se pelo facto de, para ele, a sociedade se caracterizar por uma espécie de anonimato. A desgraça do mundo vem do facto de sermos afligidos e não sabermos por quem. Em Nuit et Brouillard, a narração revela que um indivíduo nascido em Carpentras ou em Brest não sabe que vai acabar num campo de concentração, que o seu destino já está marcado. O que perturba Resnais é que o universo se apresenta como uma força anónima e abstracta, que se abate onde quer, não importa onde, e da qual não podemos determinar previamente a vontade. É deste conflito dos indivíduos com este universo absolutamente anónimo que nasce, então, uma visão trágica do mundo. É este o primeiro estádio do pensamento de Resnais. Em seguida, vem um segundo estádio que consiste em canalizar este primeiro movimento. Resnais retomou o tema romântico do conflito do indivíduo com a sociedade, caro a Goethe e aos seus seguidores, como aos romancistas do séc. XIX. Mas para estes, o conflito opunha um homem às forças sociais claramente definidas, concretas, enquanto que em Resnais não existe nada disso. O conflito é apresentado de forma totalmente abstracta, é o do homem e do universo. Pode-se muito bem reagir de uma forma extremamente doce em relação a este estado de coisas. Quero dizer que já não é necessário indignar-se, protestar ou mesmo explicar. Basta mostrar as coisas sem ênfase, com muita discrição. E a discrição sempre caracterizou Alain Resnais.
Rivette: Resnais é sensível ao carácter abstracto que o mundo toma actualmente. O primeiro movimento dos seus filmes é a constatação dessa abstracção. O segundo, ultrapassar esta abstracção, reduzindo-a a ela mesma, o mesmo é dizer: justapondo a cada abstracção uma outra abstracção, afim de encontrar uma realidade concreta através do próprio movimento das abstracções postas em relação.
Partir ou ficar
Godard: É exactamente o contrário do pensamento de Rossellini que se indignava com o facto de a arte abstracta se ter tornado na arte oficial. A doçura de Resnais é metafísica, não é cristã. A ideia de caridade não existe nos seus filmes.
Rivette: Evidentemente que não. Resnais é agnóstico. Se ele crê em Deus, só se for como S. Tomás de Aquino. A sua atitude é a de dizer: talvez Deus exista, talvez possamos explicar tudo, mas nada permite afirmá-lo.
Godard: Como o Stavroguine de Dostoievsky que, se crê, não crê que crê, e se não crê, não crê que não crê. Aliás, no fim do filme, será que Emmanuelle Riva parte? Ou fica? Podemos colocar sobre ela a mesma questão que sobre Agnès de Dames du Bois de Boulogne, da qual nos perguntamos se morre ou não no fim.
Rivette: Isso não tem importância. É de esperar que metade dos espectadores acreditem que Emmanuelle Riva fica com o japonês e a outra metade que ela volta para França.
Resnais: Marguerite Duras e Resnais dizem que se vai embora e de verdade.
Godard: Acreditarei quando eles mo provarem ao fazerem outro filme.
Rivette: Julgo que isso não tem importância nenhuma, pois Hiroshima é um filme circular. Depois da última bobine, pode-se muito bem estabelecer paralelos com a primeira, e assim de seguida. Hiroshima é um parêntesis no tempo. É o filme da reflexão sobre o passado e o presente. Ora, na reflexão, a passagem do tempo é abolida, porque aquela é um parêntesis no interior da duração. E é no interior desta duração que se insere Hiroshima. Neste sentido, Resnais aproxima-se de um escritor como Borges, que sempre tentou escrever histórias que obrigassem o leitor, uma vez chegando à última linha, a reler a história a partir da primeira linha, de forma a compreender do que se tratava. E assim de seguida. Em Resnais, é a mesma ideia de infinitesimal obtida através de meios materiais, os espelhos face a face, os labirintos em série. É uma ideia de infinito mas no interior de um intervalo muito breve, uma vez que o tempo de Hiroshima tanto pode durar vinte e quatro horas como um segundo.
Duas palavras
Rohmer: Mas será que o filme, no fim de contas, significa outra coisa para além dele próprio? Pode-se extrair uma verdade?
Rivette: Sim e não. Hiroshima significa que a reflexão faz um círculo, mas existe, mesmo assim, um progresso a cada momento. Voltamos ao pai Hegel que refazia incessantemente o mesmo caminho difícil na sua "Fenomenologia", mas, a cada momento, num estádio superior de consciência.
Godard: Até agora considerámos Hiroshima do ponto de vista de Emmanuelle Riva. A primeira vez que vi o filme, considerei-o do ponto de vista do japonês. É um tipo que dorme com uma rapariga. Não existe nenhuma razão para que isso continue toda a vida. Mas ele diz: "sim, existe uma razão". E tenta convencer a rapariga a continuar a dormir com ele. É então que começa um filme, cujo tema seria: será que podemos recomeçar o amor?
Rivette: Também é verdade. O filme é uma procura desesperada do diálogo. É um duplo monólogo que se que transformar em diálogo. E no fim do filme Emmanuelle Riva e o japonês encontraram finalmente esse diálogo, uma vez que trocam duas palavras: a de Hiroshima e a de Nevers. Para ele, ela chamar-se-á Nevers e para ela, ele chamr-se-á Hiroshima.
Domarchi: Porque é que Resnais, que é tão demonstrativo sobre Hiroshima, permanece tão discreto a propósito de Nevers? Para ele, imagino que o cabelo rapado de Emmanuelle Riva seja pelo menos tão terrível como tudo o que se passou depois da explosão da bomba atómica.
Rivette: Existem várias razões que militam a favor da discrição relativa com que Resnais aborda o episódio de Nevers. Em primeiro lugar, ele é apresentado como fazendo parte da consciência de Emmanuelle Riva. Ora, é evidente que a censura, no sentido freudiano, continua presente, e consequentemente, Nevers apenas poderia ser apresentada através de breves clamores, impulsos, mas nunca como cenas verdadeiras, porque permanecemos no plano da subjectividade. Depois, pelo facto de Nevers apenas aparecer através de clamores, sentimo-lo como um mergulho no interior de uma realidade de tal forma horrível que é impossível enfrentá-la de outra forma a não ser através de curtos fragmentos. Por exemplo, os planos da cave produzem um efeito atroz e, finalmente, vêem-se poucas coisas no ecrã. Por exemplo, sempre o grande plano do gato. É o que já vi de mais assustador no cinema, e afinal não se trata de mais nada do que um grande plano do gato. Porque é que é assustador? Porque o movimento através do qual Resnais nos mostra o gato é o movimento do próprio pavor, ou seja, um movimento de uma apreensão brusca e de um brusco retrocesso ao mesmo tempo: a imobilidade da fascinação perante a coisa.
Godard: Sim. É o lado de Marquês de Sade de Resnais. A rapariga presa pela Libertação é um pouco "Les Infortunes de la Vertu".
Domarchi: Em conclusão, podemos falar um pouco do desempenho dos actores.
Rivette: Não, porque estamos todos de acordo. Aliás, o nosso debate levou-nos muito longe, e para o terminar dignamente, digamos simplesmente, como não chegámos a uma fórmula acabada, que mais uma vez tudo está relacionado com tudo e reciprocamente.
in "Cahiers du Cinéma", nº97, Julho 1959
* Entre outros, uma longa metragem de 16mm com Danièle Delorme e Daniel Gélin.
do catálogo Nouvelle Vague editado pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema
tradução de Sílvia Almeida
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