quinta-feira, 5 de outubro de 2023

A minha carreira americana de faz de conta


por Alexandra Stuart

Ainda que nunca tenha trabalhado em Hollywood, posso dizer que tive uma pequena carreira americana. No seguimento de Exodus, Arthur Penn confiou-me efectivamente um grande papel em Mickey One.

Este realizador era muito estimado em França desde The Left Handed Gun, um western que questionava a personalidade de Billy the Kid. Eu tinha adorado este filme que fez muito pela carreira de Paul Newman, impressionante como jovem bandido do Oeste selvagem.

Natural de Filadélfia, Penn tinha começado na televisão e tinha lá criado uma excelente reputação com a qualidade das suas rodagens ao vivo. Também era um encenador estimado nos palcos de Nova Iorque, onde vivia. A crítica europeia via-o como líder do novo cinema americano. Para as grandes companhias hollywoodianas, no entanto, mantinha-se um intelectual, posição que o tornava marginal na profissão.

No entanto, Anne Bancroft tinha conquistado o Óscar de Melhor Actriz e Patty Duke o de Melhor Actriz Secundária no segundo filme dele, O Milagre de Anne Sullivan. Este sucesso fez com que fosse contratado para dirigir O Comboio, parte da rodagem da qual aconteceu em França. Ao fim de dez dias, Burt Lancaster, descontente com a sua forma de trabalhar, substituiu-o por John Frankenheimer. Não era uma coisa incomum em Hollywood, as vedetas e o produtor considerando muitas vezes o cineasta como um simples executante, não como um criador, nem sequer como o autor do filme.

Durante a sua breve estadia em França, Penn teve pelo menos a oportunidade de ver Le Feu follet de Louis Mallle e de se deixar seduzir pela fotografia de Ghislain Cloquet e por uma das actrizes do filme: eu. Foi assim que fomos os dois contratados para Mickey One.

Estava nervosíssiva. Mas desta vez não quis desperdiçar a minha oportunidade.

*

Os ensaios começaram em Nova Iorque e duraram um mês. Sentávamo-nos à roda de uma mesa para trabalhar os nossos papéis. Travei imediatamente amizade com Warren Beatty, a estrela do filme. Tinha acabado de deixar Natalie Wood e era o amante secreto de Leslie Caron, ainda casada.

Sentia-me bem. Conhecia Nova Iorque, onde a minha mãe me tinha levado tantas vezes durante a minha infância. À noite, saía com Jill Jakes, a secretária de Penn e futura esposa de Terrence Malick. Ela fez-me conhecer a vanguarda nova-iorquina: a escritora Susan Sontag, o músico John Cage, os pintores Jasper Johns e Robert Rauschenberg, inventor da Pop art... mas John Cassavetes não, infelizmente!

A rodagem realizou-se em Chicago, Arthur Penn comportou-se um bocado como Jacques Doniol-Valcroze em L'Eau à la bouche: cordial e paciente. Apesar das suas atenções, a minha preocupação contínua causou-me dores de cabeça insuportáveis; sobretudo, sentia-me pouco à vontade nas minhas cenas com Warren Beatty, ainda imbuído da formação de actor por Stella Adler, como Paul Newman o estava por Lee Strasberg. Mas enquanto que tinha tido muito poucas cenas com Newman no filme de Preminger, tinha muitas com Warren em Mickey One. A minha angústia não se justificava apenas pelas dificuldades que sentia em manter-me em sintonia. Não me sentia segura de mim mesma. Consciente do meu estado, Penn, para me descontrair, dava-me as mãos para os grandes planos.

Vivi no entanto belos momentos neste filme e tenho lembranças comoventes das sessões de gravação da musique, que Penn confiou a Stan Getz, um homem do jazz cujo estilo eu adorava. Também tive a oportunidade de conversar com Bertrand Goldberg, o arquitecto do hotel onde nós estávamos; ele tinha construído duas torres de betão armado de 175 metros em Marina City onde foram rodadas algumas cenas. Até tive oportunidade de me cruzar com Hugh Hefner, o criador da revista Playboy, nos clubes onde Penn tinha previsto várias sequências com raparigas esculturais que não deixavam Warren Beatty indiferente...

Sempre curiosa e indisciplinada, levei uma vida apaixonante fora do local das filmagens. Fiz amizade com o escritor Nelson Algren, o autor de O homem do braço de ouro, no qual Otto Preminger tinha baseado um filme. Ele tinha sido amante de Simone de Beauvoir e essa ligação dava-lhe uma grande aura entre os intelectuais americanos, ainda entusiastas do existencialismo.

Algren era um tipo incrível. Antes de mais, ele usava laços-borboleta brilhantes! Nos dias em que eu não filmava, levava-me a visitar a penitenciária nas proximidades e, algumas noites, arrastava-me para bares mal afamados em que os irlandeses armavam confusão com os índios. Estes passeios nocturnos preocupavam o director de produção que, receando pela minha integridade física, me interditou formalmente estas escapadelas. Ditatorial e estúpido! Em sua defesa, eu ignorava que a produção andava sob tensão. Mickey One traçava o percurso de um artista sustentado pela máfia que tentava libertar-se dela. Arthur Penn tinha-se inspirado directamente no início de carreira de Frank Sinatra e a Columbia receava acções dissuasivas da máfia. Portanto esse director de produção achava imprudente que eu me expusesse assim nos bairros mais sórdidos de Chicago...

Foi sem dúvida por essas mesmas razões que Mickey One teve apenas um lançamento confidencial nos Estados Unidos. Ainda que apresentado no Festival de Veneza, foi um fracasso universal. Isso não servia para a minha carreira americana!

*

Por sorte, apresentaram-se outras oportunidades de trabalho na América. Conheci em Londres o produtor Darryl F. Zanuck, que quis muito considerar-me a mim para o papel de Shirley Eckert, a rapariga de Yang-Tsé em Chamas. Fiquei excitada com a ideia de trabalhar com Robert Wise, cujas duas comédias musicais, West Side Story et Música no Coração, tinham alcançado sucesso, rendendo-lhe cada um o Óscar de Melhor Realizador. Mas o meu interesse por ele ia além do seu estatuto de estrela das bilheteiras. Sabia que tinha sido o montador do primeiro filme de Orson Welles, O Mundo a Seus Pés, e tinha adorado os seus filmes anteriores, The Set-UpO Dia em que a terra Parou.

O assunto era sério, uma vez que Zanuck me enviou para Los Angeles para fazer testes nos cenários do filme, nos estúdios da 20th Century Fox. A jovem Emmanuelle Arsan também estava a fazer ensaios para outro papel, que aliás acabou por conseguir. Aparece no genérico com o nome de Marayat Andriane. Eu já a tinha conhecido em Banguecoque, onde o marido Louis-Jacques Rollet-Andriane era cônsul de França. Como é que podia suspeitar que mais tarde ia filmar numa continuação de Emmanuelle, a partir do romance erótico que ela tinha publicado em 1959?

A minha estadia em Los Angeles reserva-me outra surpresa.

Estava alojada num hotel muito mediano. Como não suportava ficar lá fechada quando tinha tempo livre, saía para passear, mas nesta cidade onde toda a gente andava de carro, uma jovem no passeio era imediatamente suspeita de aliciamento. A polícia controlou-me. Consegui explicar que estava a dar um passeio porque precisava de apanhar ar e de qualquer forma foi a única vez na minha vida em que me confundiram com uma puta.

Os testes duraram três semanas e pareciam conclusivos. Robert Wise convocou-me ao escritório dele e afirmou-me, não sem um certo constrangimento:

- Os seus testes são perfeitos, Alexandra... mas não vai interpretar o papel de Shirley Eckert. Escolhemos uma jovem actriz, a Candice Bergen, filha do ventríloquo famoso. Lamentamos imenso...

Candice Bergen! Uma antiga modelo como eu... Tinha acabado de me ficar com um papel em The Group de Sidney Lumet. Na altura ignorava que ia ser a última companheira de Louis Malle, o pai da minha filha...

*

Dez anos depois, houve ainda outra decepção à minha espera em Hollywood.

Robert Altman, que estava a preparar Quintet, queria-me confiar um dos cinco papéis principais ao lado de Bibi Andersson, Paul Newman, Vittorio Gassman e Fernando Rey. Desta vez, foi Brigitte Fossey quem me passou a perna.

No final das contas, o outro único filme americano em que participei, mas num pequeno papel, foi The Marseille Contract de Robert Parrish, uma co-produção com a França em que o meu amigo Michael Caine era a estrela, ao lado de Anthony Quinn e James Mason. Só boa gente!

Olhando para trás, parece-me que os estúdios americanos não foram muito sensíveis aos charmes das belas musas da Nova Vaga francesa. Tirando Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, poucas actrizes terão conseguido fazer carreira em Hollywood. Certo, Anna Karina teve a oportunidade de ser dirigida por George Cukor em Justine, e isso conta na vida de uma actriz, mas nem eu nem Stéphane Audran nos conseguimos impor além-Atlântico. Quanto às outras... nem sequer atravessaram o oceano.

in «Mon bel âge - mémoires», Éditions de l'Archipel, Paris, 2014.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Perguntas sobre o cinema americano


por Claude Chabrol, Jacques Doniol-Valcroze, Jean-Luc Godard, Pierre Kast, Luc Moullet, Jacques Rivette e François Truffaut

1) Que faz neste momento? Se estiver a preparar um filme, quais são as condições de produção?

2) Trabalha mais facilmente para a televisão ou em cinema? Porquê? 

3) Está satisfeito com as condições (produção-distribuição) nas quais fez os seus filmes mais recentes? Porquê? Se não, porquê? 

4) Qual é o seu projecto mais acarinhado? Está a pensar realizá-lo, e em que condições de produção? Se lhe impossível realizá-lo, porquê? O que é que o está a impedir? 

5) Trabalha com mais ou menos liberdade do que há dez anos? Os temas quentes (tanto morais como sociais) hoje em dia estão-lhe mais acessíveis? 

6) Hollywood mudou de há dez anos para cá? em que sentido?

*

1 - Estou a preparar um novo filme para a Columbia. Vai-se chamar Mickey One e será rodado na Costa Leste. As condições de produção são excelentes: sou totalmente responsável pelo filme e os únicos limites que me impõem são financeiros. Permite-me rodar com um pequeno orçamento e, enquanto o respeitar, a minha liberdade será absoluta no que diz respeito ao argumento e à escolha dos actores. A Columbia nem sequer está autorizada a ler o argumento sem o meu consentimento. São condições pouco habituais para o cinema americano, é o mínimo que se pode dizer. 
 
2 - Não trabalho para a televisão há cinco anos. A televisão é impossível nos Estados Unidos, porque é propriedade exclusiva dos anunciantes, a a visão deles do mundo é uma mistura de luxo, felicidade e água de rosas... em suma, uma mentira quase total. 
 
3 - O meu último filme, O Milagre de Anne Sullivan, foi realizado para a United Artists em Nova Iorque. Fiquei contente com as condições em que fizemos esse filme, mas não fiquei muito contente com o resultado. 

4 - O meu projecto mais acarinhado é o de realizar um bom film. Tenho a certeza que consigo arranjar os meios materiais necessários. Mais não tenho assim tanta certeza das minhas próprias capacidades. Sou livre, mas isso pode ser assustador. 
 
5 - Hoje em dia temos muito mais liberdade. É realmente mais fácil ser autorizado a abordar diversos temas. O que é mais difícil, é saber a verdade sobre esses temas. 
 
6 - Eu não ponho os pés em Hollywood há cinco anos. Não acho que tenha mudado de forma significativa. Consegue-se a liberdade para fazer filmes, mas nenhuma liberdade social, porque Hollywood é uma cidade que teve a inteligência de estabelecer a sua moralidade e os seus costumes ao nível mais venal. Por isso, as mudanças, em Hollywood, só podem ser superficiais. Em suma, não gosto dessa cidade, e não tenho vontade nenhuma de lá trabalhar.


in «Situation du cinéma americain», Cahiers du Cinéma nº 150-151, Dezembro de 1963 - Janeiro de 1964.

domingo, 1 de outubro de 2023

ENCONTRO COM JOÃO DIAS


Como é que o cinema chegou até ti? Começou na infância? Na adolescência? Quando é que decidiste que podia ser uma carreira? Foste para Filosofia primeiro, não foi? 
 
O primeiro contacto com o cinema foi numa sessão de Os 101 Dálmatas, no Quarteto. Era um miúdo, muito pequeno. É uma memória de sonho, que está na névoa, coisas de outra vida. Terão havido outras sessões de cinema mas que não deixaram lastro. Mais tarde, deveria ter uns treze anos, vivia em Miratejo, um subúrbio puro e duro, tão horrível quanto maravilhoso, e tinha uma namorada com entusiasmo por cinema. Abriu uma pequena sala no centro comercial e ela insistiu, «sexta-feira à noite podemos ir namorar, onde é que vamos?». Fomos ao cinema. E essa sessão foi dramática, porque a sala de cinema era o lugar onde a matilha do subúrbio se juntava para a festa rija, e as sessões eram passadas com a malta aos berros, aos pulos, a fazer tropelias, a dar umas quecas, a fumar… O filme era a desculpa para uma estranha festa pagã. Eu era um rapaz meio enfiado e aquilo causou-me uma impressão terrível. Aliás, hoje fala-se muito do cinema em sala e do cinema em casa, e procura-se estabelecer uma diferença afirmando que o cinema é um acontecimento social. Não é um argumento que me toque muito. Para mim, a experiência do cinema foi sempre mais a de uma solidão exuberante do que a de um acto social. Mais tarde, na Cinemateca, vi muito cinema, duas, três sessões por dia. Celebrava-se o centenário e havia uma programação muito intensa, cheia dos grandes clássicos. 
 
Quê, '96? 
 
Exactamente. Mas, mesmo aí, o cinema não passou a ser, para mim, um acto social. Depois do filme há sobretudo um movimento de recolhimento, de pensar no que acabou de acontecer. Bom, tinha ido estudar fotografia, mas aquilo não me oferecia resistência suficiente, e tinha aquele ímpeto de juventude de querer sempre algo mais… 

Mais desafiante? 

Mais desafiante, sim, uma coisa mais aventurosa. Foi dessa vontade de aventura que verdadeiramente vim dar ao cinema. No início, em filmes de outros. Primeiro o Edgar Pêra, onde descobri a montagem, num período muito intenso de trabalho, em que se laboravam 24 horas, em turnos. Ficava a trabalhar à noite, até o Edgar chegar de manhã. Aí há uma primeira experiência do cinema que não é a do espectador. A partir das dez da noite não se ouve ninguém e estás até às cinco da manhã numa solidão absoluta a trabalhar as imagens, a escolher, eventualmente a começar algumas colagens entre planos. Isto bate novamente na tecla de uma experiência solitária, muito silenciosa, quer dizer, um bocadinho mais próxima do imaginário que temos do poeta a escrever, o silêncio, o isolamento. 

Como é que conheceste o Pedro Costa e acabaste a trabalhar com ele? E que influência é que ele teve, o que é que aprendeste com ele? 

A certa altura fui estudar Filosofia, mas isso foi interrompido quando fui chamado para o serviço militar obrigatório. Fiquei lá oito meses e depois, por várias circunstâncias, já não consegui retomar o curso. Queria fazer os meus filmes. E surge um desafio para fazer um filme sobre o SAAL, que é um filme que tu conheces, e sobre o qual já escreveste, e muito bem. Esse filme sobre o SAAL foi produzido pelo Abel Ribeiro Chaves, que tinha um segundo andar nos Restauradores onde ele guardava equipamento, nuns andaimes montados e cheios de caixas. Eu fui pedir ao Abel um sítio para trabalhar e lá fiquei no meio dessas caixas a montar o filme. Entretanto, o Abel acolheu o Pedro Costa, que também precisava de um espaço para trabalhar. Começaram então a sair dali umas caixas, aquilo começou a ficar mais ajeitado e ali ficámos os dois, ele numa sala, eu noutra. Havia ali uma convivência de parceiros de escritório. Ele na sua mesinha, eu na minha mesinha, a fazer as nossas coisas e depois tínhamos aqueles encontros de quem se vai falando, não é? Isto durou bastante tempo e foi-se criando uma relação de alguma fraternidade operária, digamos assim. Entretanto, ele tem o Ne Change Rien para montar com a Patrícia Saramago. Queriam alguém para sincronizar o som, eu estava ali. Só aí começa verdadeiramente uma relação de trabalho. 

Não sei se queres falar um bocado sobre os filmes que te foram encomendados. O documentário sobre o concerto dos Genesis, As Ondas, o Promenade Le Corbusier… 

São trabalhos muito condicionados. Pela circunstância da encomenda. Não sou o que normalmente se entende como cinéfilo. Não estou constantemente a pensar nos filmes que vi, mas nos filmes que gostaria de fazer, numa relação obsessiva com as matérias, a luz, o som, a direcção de actores, isto e aquilo. Sempre percebi que me tinha que manter próximo disso, mesmo que através de filmes de encomenda. 

E o Operações SAAL partiu de ti, então? 

É uma encomenda, mas completamente aberta. A associação Extra-Muros queria promover filmes sobre acontecimentos estruturantes da revolução portuguesa, como a reforma agrária, as campanhas de alfabetização, o SAAL… e perguntaram-me se eu queria fazer um filme sobre algum destes temas. O meu pai tinha participado no SAAL, e por isso eu já tinha uma ideia, ainda que muito vaga, do que se tratava. Portanto, aquilo ligava-se ao meu pai e ainda para mais punha-se a questão da habitação. Durante a minha infância, até aos dez anos, havia uma grande instabilidade, pois vivíamos sempre a mudar de casa. Chegámos a viver um ano no parque de campismo de Monsanto. Por isso interessava-me o tema do SAAL, a ideia de conquistar uma casa. Ora, o Operações SAAL é feito ainda na ressaca do Pêra, no bom sentido, e é construído com estratégias que eu trazia do Pêra. Só depois de realizar este documentário começa o meu trabalho com o Costa, que me vai pôr do outro lado da lua. Sobretudo pela relação com uma certa ideia de organização… leninista. «A organização é a única arma do proletariado na sua luta pelo poder». E no Costa há muito isso. Quer dizer, sem a capacidade de organização que ele tem, não se concretizariam as forças poéticas que encontramos nos seus filmes. Sem organização, a sua poesia não chegava onde chegou. Ora, o Pêra tinha muito mais uma relação com um cinema directo vertoviano, do cine-olho e da manipulação na montagem. Havia uma coisa que ele dizia quando íamos filmar a um sítio qualquer, e que eu acho maravilhosa: «Entramos já com a câmara em punho, a filmar!». Portanto, ninguém entra com a câmara baixa a pedir licença. Não! Perguntam depois, se surgirem problemas. Entramos a filmar. Com o Costa as coisas não funcionam assim, há um trabalho de antecipação. Uma coisa extraordinária, e que posso afirmar em relação aos filmes que montei com o Pedro, é que não há planos filmados que estejam fora do filme. Um ou dois, são residuais. Todos eles têm a sua função num desenho que está pensado antecipadamente. O trabalho de montagem é a tentativa de restabelecer uma ordem que já existia. A montagem aqui não é um trabalho de descoberta, é um trabalho arqueológico para repor a forma que as coisas chegaram a ter em determinado momento. Por exemplo, uma das coisas que habitualmente se julgam emblemáticas no trabalho de um montador é o de descobrir qual deve ser o primeiro ou último plano do filme, ou descobrir qual é a estrutura. Um montador nos filmes do Pedro não faz nada disso. Este montador deve ter uma sensibilidade de um tipo especial, mas não para cumprir essas tarefas. 

Mas isso é engraçado, porque essa tensão está toda nas Operações SAAL. Tu atira-los uns aos outros, como se estivessem mesmo a discutir. Estás nas filmagens, mas depois na montagem... 

Na montagem é que se descobriu tudo, não é? Não tudo, mas quase tudo. Exactamente porque o SAAL deve muito ao trabalho com o Pêra, particularmente a um filme chamado O Homem Teatro. Estávamos no Porto a rodar este filme, que juntava situações encenadas com actores e uma série de entrevistas de pesquisa que ele fez a muita gente ligada ao TEP (Teatro Experimental do Porto) e ao António Pedro. Os actores deviam trabalhar de forma muito livre, com imenso improviso, mas para isso era necessário formar os actores sobre o que era o TEP. Então o Pêra pediu-me para trabalhar as entrevistas que fez, agarrar nos melhores momentos e alinhar uma montagem que contasse a história do TEP, e servisse aos actores como uma fonte de informação para que pudessem trabalhar os seus improvisos. Montei uma série de retalhos onde os testemunhos dos entrevistados se contrapunham, ou se continuavam. A experiência dessa montagem é uma aprendizagem que levo para o SAAL, onde ponho frequentemente os protagonistas a dialogar uns com os outros. Acho que é no teu texto sobre o SAAL que pela primeira vez se aponta isso, e que tu descreves muito bem. Não deixo as frases completas, interrompo abruptamente o discurso para poder chocar com outro discurso, usando trechos de testemunhos para a construção de um testemunho novo. E sempre com a ideia de não fechar o assunto, como tu apanhas muito bem no teu texto. O importante não é chegar a uma resposta, mas trazer ao de cima o conflito, a tensão, as zonas escuras, apontar os problemas. 

Trocaste a cidade pela aldeia, não sei se isso afectou a tua forma de trabalhar. Quer dizer, o que é que te permite fazer a aldeia que a cidade não permite? E pronto, porque é que vieste para o Fundão, no fundo? Para Atalaia do Campo. 

Sem querer ser indelicado com a aldeia e com a região que me acolhe, a minha vinda para cá começa por ser uma fuga de lá. Mas tive a sorte de vir parar aqui, de frente para a Gardunha, a um lugar onde existe uma relação muito especial com a serra, porque estamos virados para o anfiteatro sul e situados no melhor lugar da sala para ver aquele imenso ecrã, onde comecei a “projectar” uma série de coisas. Estava há muito tempo sem conseguir filmar. Ao longo desse tempo a minha ligação ao cinema permaneceu, em termos práticos, somente na montagem dos filmes do Costa. Mas em relação aos meus filmes havia um grande desânimo. A certa altura fartei-me e pensei que tinha de resolver este problema. Em Lisboa não é possível, os encargos são enormes e entretanto tivemos um filho, o Francisco. É preciso inventar uma solução radicalmente diferente. Ora, dois anos depois da minha chegada aqui, estou a terminar o meu primeiro filme de ficção, graças a uma bolsa de criação artística atribuída pela Câmara Municipal. Foi a primeira vez que tive um apoio institucional para filmar. Não cobriu, evidentemente, os custos do filme, mas ao longo de doze meses deu-me a segurança suficiente para pagar as contas e não ter de andar sempre a correr atrás deste ou daquele trabalho. Ainda estou numa fase de encantamento. 

E como é que nasce a ideia desse projecto? Como é que foste dar ao Cireneu e como é que pensaste em juntá-lo à Nossa Senhora? 

Só uma coisa, antes disso. A partir dum certo momento percebi que só me interessava trabalhar sobre aquilo que me fosse muito próximo. Percebi que só podia filmar criando raízes num lugar, numa comunidade de gente, mas também numa determinada paisagem. Também por causa daquela vida com a casa às costas de que te falei, sempre tive uma grande vontade de me fixar. Pensar que esta é a minha última casa e que vou ficar aqui até ao fim dos meus dias, é uma ideia que traz imensa alegria, esperança, confiança, e uma vontade muito grande de... começar outra vez. As primeiras duas ou três tentativas falharam. Tudo falhou, vinte anos sob o signo do fracasso. Agora dei-me a mim mesmo uma espécie de segunda vida. Este é o novo cenário e em breve poderei dizer que é meu, que sou de cá, e quando vou à janela da sala vejo o décor. Aqui, comecei por estabelecer uma relação com as pedras, porque tenho a Gardunha à minha frente. É como o poema do João Cabral de Melo Neto, “A Educação pela Pedra”. E comecei a subir à Gardunha, onde me deparei com um património especial, as morfologias graníticas da Serra da Gardunha. No meio da natureza intuímos sempre qualquer coisa de sobrenatural e de arrebatador. Eis o cenário, é aqui que quero começar a filmar, no meio destes rochedos silenciosos e inamovíveis. 

Dei o passo seguinte, fui às lendas. A personagem mais emblemática do culto mariano na região é a Senhora da Serra, que tem uma lenda fundadora muito importante e lugares físicos identificados. Por exemplo, uma lapa na Gardunha, que é o ponto de confluência desta lenda e um cenário maravilhoso. Há uma outra figura muito importante, conhecida aqui como o Robin dos Bosques da Serra da Gardunha, um tipo chamado Cireneu, que em certo momento da vida está em fuga da polícia e refugiado na serra. Ao apoio que obtinha da comunidade nas aldeias em redor, Cireneu retribuía de forma generosa. Li sobre isso uma história lindíssima. Cireneu encontra uma menina que vai pela serra com uma marmita para levar ao pai, que está a trabalhar na horta. «O que é que tu trazes aí?». A menina não se assusta, mostra-lhe a marmita e ele come metade do que lá está. Depois, devolve a marmita e diz: «Agora leva ao teu pai que deve estar com fome». E nisto, Cireneu põe nas mãos da menina dois brincos de ouro, certamente roubados numa das casas senhoriais das redondezas. O projecto inicial do filme imaginava um encontro entre a Senhora da Serra e o Cireneu. Este encontro era um ponto de partida para uma discussão em que as personagens seriam representantes de duas ortodoxias muito diferentes. Esta premissa do confronto entre ortodoxias mantém-se no filme, mas a personagem do Cireneu desapareceu, e a própria personagem da Senhora da Serra é já o resultado de uma reinvenção muito livre. 

Tem uma presença muito forte no filme, a Patrícia Guerreiro. Como é que pensaste nela para aparecer no filme? 

Quando eu vim para cá falei com uma amiga comum, a Leonor Noivo, que me disse que aqui muito perto vivia a Patrícia, actriz no seu filme “A Raposa”. Fui conhecê-la, falei-lhe do projecto, e ela aceitou ser a actriz do filme. Hoje é uma grande amiga e uma aliada de trabalho extraordinária. É uma actriz maravilhosa, cheia de talento, inteligente e sensível, que percebia sempre muito rapidamente tudo o que eu dizia e todas as minhas dúvidas. Sei também que este filme foi um acontecimento feliz para ela. Sou muito afortunado por tê-la sempre por perto. 

A sequência final é muito forte. A montagem é muito rápida, muito acentuada. Não sei como é que chegaste até aí, se já estava pensado antes. Que são muito espaçados, os planos, ao princípio, e depois no final... 

O filme é todo ele muito preparado. [João Dias pega em storyboards] Estava tudo planificado em desenhos e tem poucas coisas que resultem de descobertas na montagem. Essa sequência é filmada assim, antes de mais, porque tenho os meus pudores. Não foi fácil, querer filmar essa agressão e chegar a descobrir como a gostaria de filmar. 

Mas isso nestes casos aguça o engenho, também, não é? 

Sim, mas isso dizes tu. A minha responsabilidade é dizer porque é que aquilo é filmado assim, não é? Não podia fazer como nas outras sequências do filme, em que a câmara está numa escuta quieta e atenta da movimentação dos actores no espaço e das suas palavras. Não era possível fazer isso nesta sequência, porque implicava uma exposição dessa agressão com a qual não iria conseguir conviver. Procurei uma solução que trabalhasse apenas com pequenos sinais daquilo que queria encenar. Por isso se fechou o quadro e se interrompeu o fluxo do tempo, o mais possível. De tal forma que a relação com aquilo se tornasse mais distanciada, mais icónica, menos emotiva. 

Mas tem muito impacto, assim feita. Aliás, acho que tem mais impacto do que se fosse filmado mesmo a... 

Sim, isso eu não tenho dúvidas. Começa por uma resposta a um pudor meu, mas que não é ingénua. Não sou um cinéfilo, mas tenho uma ideia do que é a história do cinema e sei o que tem sido discutido em relação a este tipo de representações. Ver filmes foi importante para construir este. A maneira de estruturar aquela sequência estabelece uma relação com a história do cinema, com a história da montagem. 

E isto agora é o teu estúdio, a Serra da Gardunha. Vais fazer mais filmes aqui? 

A última coisa que queria era ir filmar para longe. E a Gardunha é bem mais do que aquilo que filmei, é vasta, há mais mistérios e paisagens, há outras Gardunhas, há outras coisas. Quero continuar com uma declinação deste cenário, mas que seja ainda este cenário. 

Nas tuas entrevistas à Ana Soares, nas duas, refere-se um projecto do turismo no Algarve. Não sei se ainda queres acabar isso? 

Gostaria muito. Em dez anos, de travessia do deserto, deixei alguns projectos documentais para trás, já filmados. Outros, que eram de ficção, não chegaram sequer a sair do papel. Esse, sobre a indústria do turismo de massas internacional, era um deles. Julgo que poderia agora regressar a esses filmes com uma segurança que não tinha antes. Há quinze anos atrás estaria sempre com receios. Agora só preciso das oportunidades para concretizar, como foi o caso do Senhora da Serra, que sinto como um primeiro filme. Julgo que é um filme justo, coeso, feito com meios muito humildes, mas preciso de voltar a filmar para ultrapassar aquilo que neste filme não ficou ainda bem resolvido. Há uma sensação de trabalho inacabado. 

Mas também se sente sempre isso em qualquer coisa, não é? 

Sim, estou a dizer uma banalidade, mas é verdadeiramente o que sinto. Há sempre um desespero… 

Mas esse, para o turismo, ainda tinhas que filmar mais coisas? 

Isso foi filmado há dez anos atrás, e estes últimos anos com o Costa deram-me uma noção diferente das coisas. Não no sentido de começar a seguir alguma cartilha, «Isto faz-se assim», ou «Isto não se pode fazer assim». Há quem se enrede nas cartilhas, eu fujo a sete pés. A questão é a de conseguir o domínio das matérias do cinema. Como se faz o plano? Variar as escalas, ou manter a mesma? Usar sempre a mesma óptica, ou ópticas diferentes? Como se trabalha o ritmo, como se monta? Como planificar? Dividir a cena em muitos quadros, ou cobrir pouco? Coisas muito chãs, de domínio da matéria-prima. Uma coisa de artesão. E é esse saber de artesão que eu sei que hoje domino. 

Acontece que esse filme sobre turismo não está filmado como deveria de estar. Além disso, era um filme ainda muito estruturado na ideia do documentário de pesquisa, para o qual queria trazer imensas coisas. Hoje em dia percebo que o processo é inverso, quer dizer, tens sobretudo de tirar. Tirar até ficares com o mínimo que permita que o filme se possa apresentar como um filme. Há certas coisas que são evidentes, não precisas de dizer nada por cima delas. Não precisas de comentário sociológico, científico, nem mesmo poético. Nesse filme sobre o turismo as imagens deveriam falar por si, ou a montagem deveria permitir que elas falassem por si. 

Nos blocos dos Encontros escolheste um filme a acompanhar a... 

Escolhi o Benilde ou a Virgem Mãe, do Oliveira. 

Porquê? 

Tinha visto os filmes do Oliveira, anos atrás, nomeadamente naquele período em que frequentava a Cinemateca. Era um realizador que me entusiasmava, mas não como acontece hoje em dia. No último ano revi estes filmes, na verdade, de um modo algo egoísta, focado no meu interesse pessoal enquanto realizador. Já havia uma admiração pelos filmes, mas agora há também um viés. Como é que se chega àquilo, quais são os métodos, como é que se jogam aqueles elementos? De que maneira aquilo está a falar comigo? O deslumbramento é o de uma aprendizagem. É o cinema que neste momento mais preciso para fazer os meus filmes. Acho que me perdi da tua pergunta. 

Pronto, porquê especificamente o Benilde

Um filme que não cheguei a escolher, mas que ponderei, foi o Divina Comédia. Por causa do combate entre as ortodoxias, muito evidente nos diálogos entre o Mário Viegas e o Luís Miguel Cintra. Acho entusiasmante a transposição de textos teóricos para diálogos entre personagens. Isso interessa-me muito. Mas acabei por escolher o Benilde ou a Virgem Mãe. A respeito do filme do Oliveira e do texto original do Régio, convocam-se sempre as clássicas questões sobre a sexualidade latente, um cristianismo em queda, lutas entre a ciência e a teologia. Mas no Benilde há ainda uma outra coisa, que é a caracterização de um estado de solidão radical. O que me tocou no filme é sobretudo a atmosfera emocional que resulta da caracterização do isolamento da personagem de Benilde, impossibilitada de criar uma relação com o outro. Não se trata dessa solidão que desejamos para poder trabalhar. É uma solidão imposta. Violenta e frustrante. No filme, essa caracterização é muito perturbante. O primeiro acto do filme termina com Benilde a perguntar: «Padre Cristóvão, você também não se me acredita?». E o padre Cristóvão, muito perturbado – derrotado, até –, diz-lhe, «Não sei nada do que se passa. Mas acredito-te, minha filha». Este momento de ligação ao outro, que é tão importante que a leva a cair aos pés do padre, não volta a acontecer mais no filme. A partir daí, é um constante fechamento, que começa logo a seguir com o interrogatório policial da tia, que acha que a gravidez dela se deve a um puro facto mundano. E não divino. A caracterização dessa experiência de solidão foi importante para tomar decisões sobre o que eu queria do Senhora da Serra, onde está em jogo o fracasso de uma tentativa de relacionamento e de intervenção no mundo. A situação de isolamento radical da personagem. Era esse desespero que eu gostaria de conseguir representar no meu filme.

Entrevista realizada a 30 de Maio em Atalaia do Campo para o Jornal dos Encontros Cinematográficos de 2023, também publicada no site do Jornal do Fundão.