domingo, 4 de abril de 2021

Raoul Walsh (1887-1980)


por Jean-Pierre Coursodon
 
O cliché de Raoul Walsh como mestre da aventura, o realizador de acção arquétipo, não só foi extenuado, como contribuiu para ofuscar outros aspectos igualmente importantes do seu cinema. A maior parte dos críticos considera o período de Walsh na Warner (de Heróis Esquecidos a Captain Horatio Homblower) como o melhor, mas, embora alguns dos seus filmes na Warner sejam exemplos notáveis do estilo do estúdio na sua forma mais eficaz, perguntamo-nos se tal estilo não seria de alguma forma alheio à personalidade de Walsh. A ênfase no ritmo e na velocidade, tão típica dos filmes da Warner, não é de forma alguma uma característica tanto de filmes iniciais ou tardios de Walsh. Realmente, o ritmo calmo—seja um encanto ou um incómodo—é um traço recorrente em toda a sua obra, parcialmente resultante do seu gosto por enredos divagantes, mas também um sinal de uma abordagem basicamente descontraída à produção cinematográfica. Pérolas menores de acção com a velocidade de um relâmpago como Jornada Trágica e Northern Pursuit podem parecer personificar a arte de Walsh, mas no entanto, e mesmo durante o período da Warner, ele aparecia ocasionalmente com um artigo lento e calmo (e.g., They Drive by Night), e nunca abria mão do seu gosto por narrativas extensas e desprovidas de acção, de que Uma Loira com Açúcar é um excelente exemplo. A insistência do estúdio na velocidade conseguia de facto tornar-se um obstáculo para Walsh quando aplicada a estórias fora do género da acção. Em The Man I Love, por exemplo, há uma verdadeira obsessão com o ritmo quase a sufocar as qualidades incipientes do guião que um toque mais relaxado na realização poderia ajudar a florescer. 

A tensão entre material e tratamento é uma característica recorrente ao longo da carreira de Walsh. É mais perceptível, talvez, nos seus filmes mais importantes do período do mudo tardio e do falado inicial, feitos numa altura em que a sua ebulição terrena estava no seu estado mais desinibido. O gosto irreprimível de Walsh pela brincadeira tinha de encontrar um meio de comunicação fossem quais fossem as consequências, e a sua indiferença pela natureza do veículo em mãos às vezes é surpreendente. Assim Carmen transforma-se numa demonstração das extravagâncias de slapstick de Dolores Del Rio, e fica-se paradoxalmente abalado quando Walsh troca a comédia pelo melodrama de forma tardia e brutal na última bobina. A cena apoteótica altamente estilizada e incrivelmente encenada no quarto de Carmen pode ser a melhor do filme, mas a sua atmosfera intensificada e dramática está estranhamente em desacordo com o ambiente leve que prevalece ao longo do filme. Da mesma forma, em O Preço da Glória, as cenas de comédia entre Quirk e Flagg relegam a realidade da guerra para um pano de fundo pouco convincente e puramente abstracto, de modo que as cenas de batalhas ocasionais—e bastante realistas—parecem deslocadas, e o discurso do título surge como uma intrusão absurdamente melodramática em vez do momento apoteótico de pathos comovente que se destinava a ser. 

Filmes falados iniciais como In Old Arizona e The Cock-Eyed World têm cerca de 80 por cento de alívio cómico, maioritariamente de gosto questionável. A queda de Walsh por exuberância latina—especialmente feminina—é saciada de forma exagerada em ambos os filmes, com Dorothy Burgess no primeiro e Lili Damita no segundo a fazer a Carmen de Del Rio parecer quase comedida. O comprometimento total de Walsh à causa da palhaçada disparatada explica a ausência de enredo de alguns destes filmes. The Cock-Eyed World, que dura quase duas horas, não tem história alguma. Consiste numa série de esboços sem ligação dedicados às arrelias incansáveis entre Edmund Lowe e Victor McLaglen e às suas brigas permanentemente renovadas por um conjunto de raparigas permutáveis numa variedade de países estrangeiros fornecidos pelo guião obsequioso do próprio Walsh (sempre que uma situação se esgota, a unidade de fuzileiros dos heróis é convenientemente expedida para um novo local). 

Embora tenha sido de bom gosto elogiar o humor rasteiro de Walsh pela sua estimulante boa disposição e vitalidade viril, não se pode escapar ao facto de que muita da sua produção pré-Warner é manchada por uma vulgaridade irritantemente estridente. Isto não foi certamente a única lacuna numa década que marcou o nadir da carreira de Walsh. Poucos, se algum, dos grandes realizadores se viram atrelados com um recorde tão elevado de esforços indistintos e por vezes insuportáveis durante um período de tempo semelhante. Fazia pouca diferença se os filmes eram ambiciosos ou rotineiros. As pretensões épicas de The Big Trail desabam sob a pressão das deficiências técnicas na gravação de som primitiva. The Man Who Came Back, um melodrama moralizante ridículo, atinge patamares incompreensíveis enquanto continua a superar a sua própria absurdidade, amontando uma reviravolta narrativa atrás de outra. Sailor's Luck é uma farsa repulsivamente buliçosa; Vamos para Hollywood, Every Night at Eight, e Hitting a New High são musicais mentalmente débeis e felizmente olvidáveis; Klondike Annie é exclusivamente para fãs de Mae West; O.H.M.S. e Jump for Glory, dois produtos mal produzidos e feitos à pressa que Walsh realizou em Inglaterra em 1937, são filmes sem traços redentores para pagar as despesas. Mesmo os melhores filmes da década de Walsh têm falhas graves. The Bowery, uma obra de época de estrutura tipicamente solta e com um enredo sinuoso, é pelo menos dois filmes num—e um a mais. Lidando ostensivamente com a vida de Steve Brodie, uma figura lendária larga o suficiente para qualquer filme se focar nela, tenta de forma bastante descarada duplicar o sucesso de O Campeão de Vidor ao voltar a emparelhar Wallace Beery e Jackie Cooper num tipo de relação semelhante. Nem o guião nem a realização alguma vez se reconciliam com o problema de balançar ou fundir os dois ingredientes que tendem a cancelar-se um ao outro até as personagens e acontecimentos perderem eventualmente a nossa atenção dividida. 

O aspecto mais desagradável dos filmes dos anos trinta de Walsh era o seu chauvinismo—e não só "masculino"—predominante, o seu racismo bem-humorado e prosaico. Seria injusto destacar o realizador por reflectir os ânimos e as atitudes endemicamente fascistas da altura, mas no entanto não se consegue evitar ficar um bocado irritado com a sua aceitação acrítica e utilização recorrente deles, na maior parte dos casos como material de comédia. Nos seus filmes do período, um sotaque estrangeiro é invariavelmente conotado com uma vilania de algum tipo. As mulheres ciumentas e/ou traiçoeiras normalmente são mexicanas ou francesas. Em Vamos para Hollywood o realizador de cinema Ned Sparks, preso a uma actriz francesa temperamental e sem talento, queixa-se dos produtores que "estão sempre a contratar 'talento' estrangeiro que não consegue fazer nada." Sailor's Luck tem alguma coisa para ofender todas as minorias dos carcamanos aos judeus aos homossexuais. Geralmente falando, é tomado como garantido que as leis não são realmente destinadas a proteger os estrangeiros. Tudo desde roubar bananas a vendedores de rua italianos até incendiar um cortiço em Chinatown é levado num espírito de pura diversão. Em The Bowery, Beery ralha a Jackie Cooper por atirar pedras às "janelas dos chinocas" ("It ain't refined"), e depois compadece-se dele e concede-lhe mais uma janela para partir antes da hora de dormir. No mesmo filme, duas brigadas rivais de bombeiros lutam uma com a outra pelo privilégio de extinguir um incêndio em Chinatown enquanto a casa arde com os ocupantes a gritar—um facto que pode amortecer a hilaridade da situação para o espectador de hoje em dia, embora fosse obviamente destinado a reforçá-lo. Não se deve depreender disto tudo que Walsh era mais racista do que a maioria dos outros realizadores em actividade na altura, porque muito provavelmente não era; significa apenas que era particularmente indiscriminado na sua escolha de material quando se tratava de arrancar uma gargalhada. 

Por outro lado, a vulgaridade de Walsh consegue ser uma fonte de observações maravilhosamente detalhadas. Por vezes ele capta de forma feliz o pitoresco dos maneirismos plebeus, a extravagância particular da altivez da baixa vida e da energia da classe operária. The Bowery e o encantador Me and My Gal abundam em pequenos pormenores com a ostentação confiante de roupas vistosas, a inclinação e oscilação e adorno de chapéus, o andar conquistador empertigado do macho e o rebaixamento colorido da fêmea. A relação Spencer Tracy-Joan Bennett em Me and My Gal reflecte todo sistema codificado de posturas e réplicas cujo atrevimento nunca resvala para o mau gosto. Infelizmente há poucos filmes assim na produção de Walsh nos anos trinta. 

O período de Walsh na Warner foi extraordinariamente fecundo. A atmosfera de criatividade disciplinada e profissionalismo dinâmico que lá reinava provou ser exactamente o que ele precisava para funcionar no seu melhor ("era um figo de um estúdio para qualquer realizador," comenta ele na sua autobiografia). Trabalhou com produtores inteligentes (Hal Wallis, Jerry Wald, Mark Hellinger), belos argumentistas (Robert Rossen, John Huston, William R. Burnett, Niven Busch) e elencos consistentemente notáveis (dirigiu James Cagney em quatro filmes, Humphrey Bogart, George Raft, e Ida Lupino em três cada um, e o muito subvalorizado Errol Flynn num recorde de sete filmes). Depois dos três filmes clássicos de 1939-40 com Bogart e o igualmente clássico Uma Loira com Açúcar assumiu o lugar de Michael Curtiz como realizador regular de Flynn e lançou-se numa série altamente bem sucedida que inclui três dos melhores filmes do realizador bem como da estrela: Todos Morreram Calçados, Gentleman Jim, Objectivo Burma. Visto puramente em termos de realização, Objectivo Burma é um feito impressionante, e o controlo de Walsh sobre o ritmo e o espaço, a narrativa e os detalhes, as interpretações e a logística, é de tal forma absoluto que quase consegue superar um diálogo batido que soa insistentemente a uma das paródias de Harry Purvis. 

Os arranques de tempo de guerra com Flynn foram ensanduichados entre a grande interpretação a três por Edward G. Robinson, Raft, e Marlene Dietrich em Manpower—um filme notável pelas suas relações de alta tensão e o seu fluxo ininterrupto brilhante de diálogo de tiradas e alívio de tensões—e o surpreendentemente comovente The Man I Love, um retrato inconvencional de uma mulher que está mais próximo do ambiente dos filmes de Walsh dos anos cinquenta do que qualquer coisa que tivesse feito até essa altura. Apesar da sua relativa falta de familiaridade com os westerns (o único desde The Big Trail, além de Todos Morreram Calçados tinha sido o desorientado e entediante Comando Negro), Walsh fez então—embora excepcionalmente não para a Warner—o memorável Pursued, um estudo de caso tenso e inquietante que introduziu o herói neurótico ao género. Ainda que sobrecarregado com referências freudianas e referências à tragédia grega (a especialidade do argumentista, Busch), Pursued é um filme a poderoso e apelativo, um equivalente raro em western a tais filmes noir contemporâneos como O Arrependido de Jacques Tourneur, do qual é vagamente reminiscente por causa da presença assombrada e assombrosa de Robert Mitchum. Os westerns posteriores de Walsh incluem o desigual mas por vezes soberbo Rio da Prata—o seu filme final com Flynn e uma das caracterizações mais fortes deste último—e Along the Great Divide, um dos filmes mais impressionantes de Walsh visualmente, assim como dois esforços derivados de clássicos não-westerns anteriores de Walsh (refazer os seus filmes num género diferente foi como que uma marca registada de Walsh ao longo da sua carreira): Colorado Territory, uma variação intrigante sobre o tema de O Último Refúgio, com uma esplêndida sequência final em que Virginia Mayo dispara sobre os perseguidores do seu amante antes de ser abatida a tiro; e Distant Drums, um remake não oficial de Objectivo Burma passado nos pântanos da Florida, com índios seminoles insurrectos a fazer o papel de inimigo. Um trabalho menor (a história é consideravelmente enfraquecida pela adição supérflua de um papel feminino), destaca-se ainda assim como um dos mais belos exemplos de rodagem em exteriores na filmografia de Walsh. 

Perto do final do seu período na Warner, Walsh fez aquele que hoje é provavelmente o seu filme mais famoso e mais admirado do pós-guerra, o espantoso Fúria Sanguinária  Em alguns aspectos, a personagem de James Cagney é atípica em relação aos heróis de Walsh. Artista demasiado "salubre" para mostrar mais do que um interesse ocasional por neuróticos e psicopatas, parecia pouco preparado para retratar o suplício emocional de um gangster epiléptico com uma fixação pela mãe e ilusões de grandeza. Por outro lado, a insanidade do herói é um meio pelo qual se intensifica o tema familiar de Walsh da rebelião do indivíduo contra a sociedade. A afirmação a posteriori (por um crítico da Time citado por Andrew Sarris) de que Walsh era "o único realizador em Hollywood que se podia ter safado com um plano de James Cagney sentado ao colo da mãe," é hiperbólica, mas é um facto que se safou mesmo, e isso é o que importa. A intensidade maníaca da realização de Walsh é tão inexorável que se vai acumulando muito naturalmente até ao clímax grandioso do "top of the world", uma imagem indelével de auto-imolação resplandecente. 

Embora Fúria Sanguinária seja frequentemente incluído em listas de filmes noir notáveis, até uma análise superficial mostra que carece da maior parte das características estilísticas e temáticas do género. O herói pode ser mais neurótico do que dez personagens de film noir juntas, mas o aspecto e o ambiente do género simplesmente não estão lá. É efectivamente significativo o facto de Walsh, que foi mais activo, e criativo, durante o apogeu do género, nunca se ter envolvido nele de todo. Fúria Sanguinária pode ser descrito de forma mais rigorosa como o último dos grandes filmes de gangsters, e o canto do cisne da estética tradicional da Warner. 

O período de Walsh na Warner demonstra não só a sua mestria sobre o filme de acção, como também um dom inesperado para a psicologia individual, especialmente no tratamento das personagens femininas. As relações têm primazia sobre a acção em They Drive by NightO Último Refúgio, e The Man I Love. As mulheres interpretadas por Ida Lupino nos primeiros dois filmes recebem pelo menos tanta atenção como os homens, enquanto a sua actuação como cantora de clube nocturno antes da libertação domina totalmente o terceiro. Muitas das primeiras secções de They Drive by Night focam-se na empregada sarcástica de Ann Sheridan, e a ênfase nas duas mulheres em Colorado Territory—especialmente a inconvencional Colorado Carson de Mayo—é, senão inaudita, pelo menos bastante invulgar num western. 

Esta ênfase em personagens femininas tornar-se-ia um traço dominante nos filmes de Walsh dos anos cinquenta. Ao mesmo tempo, e desviando-se raramente dos géneros de acção, tornou-se cada vez mais relaxado e moroso no seu tratamento da acção. O ritmo lento tornou-se a regra em vez da excepção. Não acontece grande coisa em The Tall Men, Band of Angels, ou mesmo Battle Cry ou Os Nus e Os Mortos todas produções grandes, vastas e com mais de duas horas de duração que partilham uma atmosfera decididamente indolente. Em Band of Angels, o esforço físico mais estimulante de Clark Gable é fechar uma janela durante uma tempestade. A soltura estrutural, uma característica de Walsh desde os seus filmes mudos, mas moderada durante o período da Warner, fornece o denominador comum para a maior parte dos seus filmes tardios. A indolência e a soltura deterioraram-se em qualquer coisa próxima do desleixo em A Distant Trumpet, o último filme de Walsh, que só pode ser descrito como um desastre, embora contenha de facto algumas das cenas de batalha mais incrivelmente encenadas e filmadas não só na obra de Walsh mas em todo o cinema americano. 

Durante a rodagem de A Distant Trumpet, Walsh disse a um entrevistador que uma cena de amor entre Troy Donahue e Suzanne Pleshette ia ser a mais importante no filme, e acrescentou: "Como em todos os meus filmes, toda a história gira à volta da cena de amor." Uma declaração bem surpreendente, mas não para ser descartada de forma superficial, porque embora não possa ser tomada literalmente (a cena entre Pleshette e Donahue acaba por ser um dos pontos baixos de A Distant Trumpet, e o interesse amoroso em muitos filmes de Walsh é frequentemente rotineiro e convencional), sustenta efectivamente o argumento de que há mais coisas em Walsh além da acção e da aventura. No entanto, a importância das cenas de amor não é assim tão significativa, nos filmes de Walsh dos anos cinquenta, as mulheres, não os homens, tendem a ser as personagens centrais, e esse envolvimento romântico raramente é a sua única, ou mesmo a sua maior, preocupação. 

Vários filmes de Walsh dos anos cinquenta lidam com a contenda de mulheres oprimidas para conseguir dignidade e independência, sejam uma escrava branca no sul de vésperas da Guerra Civil (Band of Angels), uma animadora de dance hall no Havai da Segunda Guerra Mundial (The Revolt of Mamie Stover), ou a mulher judia de Assuero a implorar que o seu povo seja poupado (Ester E o Rei). Mesmo num western como The Tall Men, a figura em foco acaba por ser a personagem de Jane Russell, apesar do título e das três vedetas masculinas de renome para o sustentar. Quando é confrontado com um filme de guerra, e portanto um elenco predominantemente masculino, Walsh usa os pretextos mais frágeis para deixar esgueirar o máximo de mulheres possível. A maior parte dos 149 minutos de duração de Battle Cry é dedicado a gente como Mona Freeman, Nancy Olson, Dorothy Malone, e Anne Francis a divertir-se agradavelmente com os seus namorados fuzileiros num esquecimento extasiante do que quer que signifique o título do filme. Em Os Nus e Os Mortos, que, ao contrário de Battle Cry, decorre quase integralmente no terreno, as mulheres são introduzidas não apenas nas conversas dos soldados, mas através de flashbacks (e.g., as cenas entre Aldo Ray e Barbara Nichols) e uma sequência onírica totalmente desnecessária em que Cliff Robertson se vê a si próprio como o mulherengo supremo a namorar uma meia-dúzia de beldades ao mesmo tempo (Walsh também tinha filmado um striptease aparentemente tórrido por Lili St. Cyr para a sequência de abertura, mas muito pouco conseguiu sobreviver às objecções do Código de Produção). 

The Revolt of Mamie Stover, Um Rei e Quatro Rainhas, Band of Angels, e Ester E o Rei formam um grupo coeso de filmes "femininos" cujas heroínas tentam escapar à sua condição social e do estado de subjugação em que ela as mantém. Nalguns casos, a heroína faz parte de um grupo feminino (as quatro noras em Um Rei e Quatro Rainhas, as animadoras de saloon em The Revolt of Mamie Stover, as raparigas do harém em Ester E o Rei) mantido sob regras rigorosas por uma mulher mais velha (i.e., assexuada) (Jo van Fleet como sogra das raparigas em Um Rei e Quatro Rainhas, Agnes Moorehead como Madame em Mamie Stover) ou, no caso de Ester E o Rei, um eunuco. Negam-se-lhes muitas actividades "normais", como o sexo e/ou o romance, e, no caso de Mamie Stover e das suas colegas, conviver com a "boa" sociedade local. Portanto os filmes estão estreitamente relacionados de forma temática sob as diferenças de género e de enredo. Por exemplo, Jane Russell interpreta praticamente o mesmo tipo de personagem em The Tall Men e The Revolt of Mamie Stover, uma jovem ambiciosa e diligente obcecada com o dinheiro e a ascensão social (além disso, ambos os filmes acabam com a mesma reviravolta improvável, com a heroína a renunciar às suas ambições e a optar pela vida "simples"). Band of AngelsEster E o Rei baseiam-se ambos no arquétipo da bela cativa cujos sentimentos para com o captor se alteram gradualmente do ódio e do escárnio para o amor. 

A atracção de Walsh por arquétipos talvez seja mais evidente em Um Rei e Quatro Rainhas, um pseudo-western cujo charme modesto reside menos na sua realização do que na indiferença do guião por tudo o que não se trate do realismo mais superficial, e as suas incursões irreverentes no domínio do mitológico e da fantasia. A sua premissa altamente rebuscada—sobre o dilema de quatro esposas que não sabem qual delas não é viúva—é matéria de conto de fadas (e, tal como acontece normalmente nos contos de fadas, as esposas pertencem a quatro irmãos). O filme joga com o encanto exercido por comunidades matriarcais e auto-suficientes, bem como o tema ligeiramente sado-masoquista da castidade imposta perante a presença de um aliciamento erótico intenso. Muito do seu humor deriva de uma inversão sistemática do equilíbrio sexual do poder, à medida que a situação de western clássica da mulher solitária entre os homens concorrentes é mudada para o homem solitário entre mulheres concorrentes (uma das cenas obrigatórias é invertida de forma muito literal quando Barbara Nichols apanha Gable sorrateiramente enquanto ele dá um mergulho despido). O tesouro escondido dos irmãos, outro recurso do conto de fadas—e o macguffin da história, em terminologia hitchcockiana—pode ser interpretado ou como metáfora ou como substituto (ou ambos) para a gratificação sexual. Tal como o sexo, o dinheiro é tabu, e a mãe dos irmãos guarda-o com a mesma vigilância com que guarda a castidade das "viúvas" (actuando como substituto do seu filho ainda vivo, seja ele quem for, anda sempre com uma espingarda manifestamente simbólica). Usando a atracção sexual como engodo, Gable e cada uma das mulheres formam parcerias experimentais com o propósito de obter o dinheiro escondido, embora qualquer um deles o pudesse igualmente conseguir por si próprio. A partir do momento em que uma destas parcerias se torna operacional, conduzindo assim à criação de um casal (Gable e Eleanor Parker, levando o saque com eles, afastam-se do grupo e do domínio repressivo da mãe), o dinheiro ja não cumpre qualquer propósito temático e pode ser descartado: sem mais delongas, Gable entrega-o a uma milícia de passagem. 

Um Rei e Quatro Rainhas não é um grande feito cinematográfico. A realização de Walsh é rotineira, por vezes mesmo descuidada (há vários planos que não combinam nas primeiras cenas), e visualmente aborrecida com a excepção de um travelling em plano geral de Gable a cavalgar por uma colina acentuada abaixo no final da sequência por baixo dos créditos. O contraste entre a personagem excessivamente sinistra de Jo van Fleet e a onerosidade de muito do humor (e.g., a piada sobre as galinhas a precisar de um galo) é consistentemente dissonante. A certo ponto no meio do filme, no entanto, Walsh concilia-se inesperadamente com a qualidade fantasiosa do material e insere um interlúdio deliberadamente irrealista: Gable a dançar à vez com cada uma das quatro mulheres enquanto elas rivalizam pela atenção dele, uma expressão pertinente do tema do filme em forma de comédia musical (é fornecido um acompanhamento de orquestra completa para quadrilhas na banda-sonora, embora o único instrumento musical em redor, na cena, seja uma concertina). 

As opiniões de forma geral são drasticamente divididas quando se trata de avaliar o período tardio de um dos grandes realizadores "clássicos". O que para alguns se traduz como decadência ou senilidade incipiente é elogiado por outros como a proeza da maturidade por excelência. Dependendo do ponto de vista de cada um, alguns dos filmes tardios de Howard Hawks ou Alfred Hitchcock apresentam-se como auto-caricaturas ou reformulações magistralmente aparadas do Weltanschauung dos realizadores. Não há razões para tal discordância violenta em relação aos filmes tardios de Walsh, embora se possa abrir uma excepção para a avaliação de A Distant Trumpet por alguns autoristas como o ponto culminante da sua carreira. Walsh ao decaiu nem se excedeu a si próprio, amadureceu, e o estilo relaxado dos seus anos tardios compensa no charme o que lhe possa faltar em potência. Pode-se argumentar que não fez nenhum "grande" filme mesmo depois de Fúria Sanguinária, e fez sem dúvida uns quantos bem fracos (e.g.. Glory Alley; Saskatchewan; The Sheriff of Fractured Jaw; A Private's Affair; Marines, Let's Go), no entanto o seu período final, embora não seja o mais bem sucedido dele, é o mais pessoal, e provavelmente o mais apelativo. Para dar apenas um exemplo, Ester E o Rei é consistentemente comovente apesar de uma absurdidade à superfície que Walsh escolheu ignorar, trabalhando de dentro, por assim dizer, e com uma delicadeza tão espantosa que a nossa sensação de algo de vagamente errado em todo o projecto bem como em muitos planos individuais é balanceado de forma eficaz por um sentido predominante de aptidão na realização. Por isso, é possível concordar com o crítico dos Cahiers du Cinéma que descreveu o filme como "o mais puro exemplo do génio de Walsh," embora o seu "génio," neste caso, fosse claramente lidar com material e circunstâncias que iam acabar por impedir o filme de atingir a grandeza. 

A carreira de Walsh é tão formidável como a de John Ford em termos de produção, longevidade, e dedicação pura ao ofício, mas no entanto, embora tenha de facto importância histórica quando considerada como um todo, só alguns dos seus filmes podem ser incluídos em qualquer lista razoavelmente selectiva de "clássicos" da tela. Contudo, esse facto é irrelevante como critério para avaliar a estatura de Walsh. Não se deve andar em busca de "marcos" na sua filmografia, mas ficar grato pelos muitos momentos de prazer que proporciona. Como demonstra a maior parte da literatura sobre Walsh, a qualidade desse prazer é extraordinariamente difícil de analisar. Qualquer pessoa que já tenha desesperado com as insuficiências da linguagem crítica e com a sua incapacidade em transmitir certas experiências estéticas, devia sentir simpatia por um crítico—como Michel Marmin no seu Raoul Walsh—que sustenta que, em resposta à beleza, "o silêncio é a prova mais calorosa de gratidão." A beleza de filmes como Sea Devils—que provocou esta observação—talvez não seja sublime ao ponto de deixar os críticos mudos, mas é de uma natureza que induz um certo desamparo. É mais sensato reconhecer este desamparo do que racionalizar um sentimento de euforia esquivo numa apreciação puramente intelectual. Os filmes de Walsh lembram-nos que raramente conseguimos deslindar o que nos afecta realmente nos filmes.


Creditado como R. A. Walsh nos primeiros filmes mudos. 

Mudos:
1915—Regeneração; Carmen; 1916—The Serpent; Blue Blood and Red; 1917—The Honor System; The Silent Lie; The Innocent Sinner; Betrayed; The Conqueror; This Is the Life; The Pride of New York; 1918—A Mulher e a Lei; The Prussian Cur; On the Jump; Every Mother's Son; I'll Say So; 1919—Evangeline; Should a Husband Forgive?; 1920—The Strongest; The Deep Purple; From Now On; 1921—The Oath; Serenade; 1922—Kindred of the Dust; 1923—Lost and Found on a South Sea Island; 1924—O Ladrão de Bagdad; 1925—East of Suez; The Spaniard; 1926—The Wanderer; The Lucky Lady; The Lady of the Harem; O Preço da Glória; 1927—Macaco Falante; Loves of Carmen; 1928—Sadie Thompson; A Dança Vermelha; Me, Gangster 

Sonoros:
1929—In Old Arizona (co-realizador: Irving Cummings); The Cock-Eyed World; Hot for Paris; 1930— The Big Trail; 1931—The Man Who Came Back; Mulheres de Todas as Nações; The Yellow Ticket; 1932—Wild Girl; Me and My Gal; 1933—Sailor's Luck; The Bowery; Vamos para Hollywood; 1935—Under Pressure; Baby-Face Harrington; Every Night at Eight; 1936—Klondike Annie; Big Brown Eyes; Spendthrift; 1937— O.H.M.S. (Grã-Bretanha; E.U.A., You're in the Army Now, 1937); Jump for Glory (Grã-Bretanha; E.U.A., When Thief Meets Thief); Artistas e Modelos; Hitting a New High; 1938—College Swing; 1939—St. Louis Blues; Heróis Esquecidos; 1940—Comando Negro; They Drive by Night; 1941—O Último Refúgio; Uma Loira com Açúcar; Manpower; 1942—Todos Morreram Calçados; Jornada Trágica; Gentleman Jim; 1943—Background to Danger; Northern Pursuit; 1944—Uncertain Glory; 1945— Objectivo Burma; Salty O'Rourke; The Horn Blows at Midnight; 1947—The Man I Love; Pursued; Cheyenne; 1948—Rio da Prata; Fighter Squadron; 1949—One Sunday Afternoon; Colorado Territory; Fúria Sanguinária; 1951—Along the Great Divide; Captain Horatio Hornblower; Distant Drums; 1952—Glory Alley; O Mundo nos Seus Braços; Barba Negra, o Pirata; 1953—The Lawless Breed; Sea Devils; A Lion Is in the Streets; A Fúria das Armas; 1954—Saskatchewan; 1955—Battle Cry; The Tall Men; 1956—The Revolt of Mamie Stover; Um Rei e Quatro Rainhas; 1957—Band of Angels; 1958—Os Nus e Os Mortos; The Sheriff of Fractured Jaw (Gra-Bretanha; E.U.A, 1959); 1959—A Private's Affair; I960—Ester E o Rei (co-realizador creditado em Itália: Mario Bava); 1961—Marines, Let's Go; 1964—A Distant Trumpet 

Não creditados:
1933—Hello, Sister! (sem realizador creditado; co-realizadores não creditados: Erich von Stroheim, Alfred L. Werker); 1945—San Antonio (David Butler); 1947—Stallion Road (James V. Kern); 1950— Montana (Ray Enright) 1951—The Enforcer (Bretaigne Windust; Walsh parece ter realizado a totalidade ou virtualmente a totalidade deste filme) 

Créditos de realização não determinados diversos:
1914—The Life of Villa (Christy Cabanne?; co-realizador possivelmente não creditado: Raoul Walsh); 1916— Pillars of Society

in «American Directors», Volume 1, McGraw-Hill Book Company, 1983, pp. 350-357.

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