domingo, 29 de novembro de 2015

Allan Dwan: Matar para Viver. Culturalmente incorrecto


por Jorge Silva Melo

Não há, hoje em dia, em Lisboa, mais do que quatro pessoas (e eu conheço as outras três) que esta noite sairiam de casa para ver, numa sala de cinema, um filme de Allan Dwan. A menos que essa eventual projecção fosse patrocinada por uma qualquer autoridade cultural. Provavelmente, até houve gente a ver o extraordinário A Batalha de Iwo Jima um dia destes na Cinemateca. Mas é por ser na Cinemateca, não por ser de Dwan.

Não há, em Lisboa, mais do que quatro pessoas, não haverá muitas mais em Paris, como não haverá em mais sítio nenhum. E não é de hoje. Tirando o breve parêntese de todas as curiosidades que foram os anos 60, nunca foi possível um aproveitamento cultural de um "autor" como Dwan. Porquê? Por ter trabalhado, segundo os manuais, em mil e seiscentos filmes? (Não, não há nenhum zero a mais.) Por ter feito filmes medíocres, como os que realizou com a terrível Shirley Temple?

Dele se diz sempre que é o mestre da eficácia narrativa e da economia, que provavelmente foi o realizador que melhor fez a ponte entre os pioneiros e os clássicos e, mais tarde, entre estes e os modernos. Isto se diz - mas quem terá visto mais do que cinco ou seis filmes seus, sabendo que são realizados por ele? Duas pessoas, três, em Lisboa (e eu conheço-as).

Já é um lugar comum dizer que o seu último filme, O Mais Perigoso Homem Vivo é tão belo e tão moderno como Alphaville; sim, Slightly Scarlet e Black Narcissus de Michael Powell são filmes irmãos; sim, The Restless Breed, pequeno western sem um tostão é considerado um grande filme; sim, Iwo Jima é um reconhecido filme de guerra. Mas é como se fossem filmes soltos, acasos de uma obra que ninguém conhece, pontas de um iceberg que ninguém desenterra, obra que toda a gente diz respeitar, mas que ainda não foi - felizmente? - recuperada pelos vários mecanismos culturais desta sociedade que, tendo esvaziado o "político", nos enche agora os ouvidos com o "cultural".

O problema é que não é preciso tomar nenhum elevador de Santa Justa para aceder aos filmes de Dwan. O seu cinema é primitivo, as suas técnicas transparentes, a sua arte pressupõe apenas um mundo de homens de boa vontade que com o Bem se identifiquem, a sua narração é linear, os seus tempos são meticulosamente medidos, os seus filmes económicos e equilibrados.

"Gosto de trabalhar" foi o que Dwan respondeu a quem lhe perguntou "Como é isso de ter trabalhado tanto?". E a sua arte é só isso (como todas as artes?): uma insistente, contínua transformação das matérias-primas, uma repetição sem fim dos mesmos gestos, das mesmas palavras, uma irredutível prática de artesanato, um cinema apenas cinema e tão grande.

Vindo do mudo e dos filmes de uma bobine, este homem cuja primeira longa-metragem data (provavelmente) de 1914 (Richelieu) e que trabalhou com Griffith no Intolerância, com Fairbanks (é dele o Robin dos Bosques) e com as irmãs Gish, e que vai dirigir Swanson em três dos seus grandes êxitos (é dele a Zaza), conhece um período de alguma instabilidade no início do sonoro (os filmes com a parva da Shirley Temple) e encontra, em 1945, um estúdio (a Universal) e um produtor de génio (Benedict Bogeaus) com quem irá assinar uma dúzia de pequenas produções (e obras-primas) que por cá estreavam, ora no Olímpia, ora no Coliseu (nos meses de Verão), ora no Politeama, ora no Aviz, para ficarem uma semana no cartaz, sem críticas, sem prestígio, sem estrelinhas, e depois continuarem carreira, com cópias riscadas e fotogramas perdidos, pelas salas de bairro, até morrerem na memória dos espectadores, confundidos com outros filmes, esquecidos, cançonetas de um só Verão.

Matar para Viver (The River's Edge) é um desses filmes. Filme barato, produzido em poucas semanas (terá sido rodado em duas, é o que consta, mas eu desconfio), filme de cowboys para plateias plebeias, filme de sentimentos simples, de intriga reconhecível e, tanto quanto me lembro, transparente e extraordinário. E com a sempre maravilhosa Debra Paget.

Um filme que, diz-se num dicionário, "é uma espécie de regresso aos westerns iniciais". Sim, para Dwan, o cinema é, nos finais dos anos 50, o mesmo que foi no mudo: uma arte sim, arriscada, inventiva, trabalhosa - mas uma arte plebeia. Os seus filmes (que, se têm modesto orçamento, não deixam de ser ambiciosos) são destinados às pessoas que procuram uma sala de cinema para se emocionarem com os simples e eternos combates entre o Bem e o Mal, entre o justo e as ciladas, entre o Homem e a Mulher, as simples histórias de homens em perigo. Por isso, tiros, murros, cavalgadas, bombardeamentos, navalhadas, são as figuras de que ele necessita para construir um mundo, um mundo de cinismo e de inocência, este mundo traiçoeiro em que vivem as personagens de Slightly Scarlet ou as de Matar para Viver (1957).

Irei hoje revê-lo, num pequeno écran de televisão, entrecortado de publicidade, descolorido, e comigo sentado num sofá. Eu, que antes o vi numa sala plena de vida, de homens transpirados que mandavam bocas para os heróis do filme ("olha o gajo!", "prega-lhe mas é um beijo!"), numa cópia riscada, que a meio se calhar se partiu, e numa projecção pela certa desfocada.

Agora, essa arte plebeia, que é dela? À medida que o "cultural" transforma a arte numa tia encaracolada que não transpira, esmagada pelo peso de milhões de catálogos e retrospectivas, a arte transparente e transpirada de Dwan dir-se-ia ter morrido. Por isso só haveria duas ou três pessoas que hoje iriam a uma sala de cinema ver um filme seu. E a sala, outrora cheia, estaria hoje vazia. Porque o cinema morreu? Ou porque "a pequena burguesia planetária domina hoje o mundo"? (Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem?, livro obrigatório.)

Público, 15 de Março de 1995

in Século Passado, de Jorge Silva Melo

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