- Sente-se optimista ou pessimista em relação ao futuro do cinema?
- Pessimista. Por causa da palavra "audiovisual".
Robert Bresson, anos 80.
"The battle for the mind of North America will be fought in the video arena: the Videodrome. The television screen is the retina of the mind's eye. Therefore, the television screen is part of the physical structure of the brain. Therefore, whatever appears on the television screen emerges as raw experience for those who watch it. Therefore, television is reality, and reality is less than television."
(diálogo do filme)
Videodrome. Oitavo filme de David Cronenberg. Viagem para a obscuridade, para a noite e para o segredo; pelas capacidades infinitas da mente humana, pelo corpo; por um futuro analógico e não digital; Tão sobre o amor como sobre o sexo, tão sobre a sociedade como sobre a televisão, tão do espírito e da mente como da carne, ou da mente feita carne. Tudo isto para dizer que é mais, mas tão mais, que uma sátira (ou uma crítica) à televisão.
1. Há realizadores que demoram uma eternidade a criar uma ambiência, e ambiência é tudo; às vezes não a criam, não é nada fácil; outras, é uma coisa para o qual não há nome, que se auto-impõe como tal, com maneirismos, estilos e retóricas, filosofias e "marcas autorais" estúpidas (os últimos Scorseses, que ainda assim têm bastante mais interesse que: a maior parte dos Scotts e Reitmans; muitos Bertoluccis e Triers, porque não é uma coisa só geográfica, etc, etc, Aronofsky, Nolan). O tom e a ambiência para Videodrome estão criados a partir do momento em que entra o logo da Universal e quando os graves da música do Shore se dissolvem pelos nossos ouvidos a abrir caminho para o espírito. Ou coisa parecida.
Masha: Videodrome. What you see, in that show, is for real. It's not acting, it's snuff TV.
Max: I don't believe it.
Masha: So... don't believe.
Max: Why do it for real? It's easier and safer to fake it.
Masha: Because it has something you don't have, Max. It has a filosofy, and that's what makes it dangerous.
(diálogo do filme)
1. Há realizadores que demoram uma eternidade a criar uma ambiência, e ambiência é tudo; às vezes não a criam, não é nada fácil; outras, é uma coisa para o qual não há nome, que se auto-impõe como tal, com maneirismos, estilos e retóricas, filosofias e "marcas autorais" estúpidas (os últimos Scorseses, que ainda assim têm bastante mais interesse que: a maior parte dos Scotts e Reitmans; muitos Bertoluccis e Triers, porque não é uma coisa só geográfica, etc, etc, Aronofsky, Nolan). O tom e a ambiência para Videodrome estão criados a partir do momento em que entra o logo da Universal e quando os graves da música do Shore se dissolvem pelos nossos ouvidos a abrir caminho para o espírito. Ou coisa parecida.
2. Pôe-se muitas vezes a questão de ajustar o discurso formal ao tema abordado, tem que se pôr, e a literalidade das metáforas "cronenberguianas" (que se transformam em metáforas mais complexas ainda) só fazem sentido assim. Max, qual televisão, vê as coisas com ruído e desajustadas, e como vemos as coisas pelos olhos dele, a montagem é conforme. Captamos sinais, frequências, fragmentos de realidade e de vida. A big picture, de tudo, constrói-se assim, como um puzzle, não conhecemos nada, tomamos o todo pela parte. O som e a música, voltando um bocado atrás, também se constrói nos moldes do tema, ouvimos distorções, ruídos, feedback, sintonizações.. mise en scène orgânica. Porque não?
3. Se há um juízo sobre o que quer que seja - e há - ele tem mais poder por ser também sobre a personagem principal: ser corrupto, nada inocente, na busca de material mais violento e gráfico para a sua estação de televisão ("it's too soft", diz a dada a altura sobre um filme erótico japonês que lhe tentam vender). É sobre ele que se abate a maior desgraça, mas é ele que a atrai e procura, por ser como é. De chefe a cobaia, de amante a utensílio, o Videodrome fá-lo deslizar ao abismo como se de uma droga se tratasse. Não é claro que a tenha vencido, é aliás bem provável que não, como sugere a terrível sequência final dos três loops. Acções induzidas verbalmente e através do vídeo (quem diria que havia inceptions antes do Inception, hum, Nolan?). O arrojo formal dessa cena, que tudo complica e tudo dá por terminado, merecia mil palavras. Mil palavras merecia também o olhar trágico e partido de Woods, um dos grandes actores de filmes.
4. Videodrome é uma história de amor. Inevitavelmente. Max e Nicki. É por ela que ele se sacrifica, é por ela que se afunda mais na rede da Spectacular Optical. A noite em que vêem o episódio de Videodrome e dormem juntos é tão bela como surreal e doentia. Amor é doença. No fim, esse amor, como Nicki, é já só um reflexo, uma alucinação realista. Vídeo.
5. Parábola política? Das mais demencialmente mordazes. Denúncia de um certo tipo de prática comum, de certos comportamentos, da hipocrisia de executivos e do poder, em geral. Ataca corporações, ataca a "decência" (portanto, a que não tem decência alguma) e as legiões do pudor e problematiza a temática do audio-visual - o da representação do ser humano - as barreiras, a ética e a moral da coisa. A pornografia não passa só de madrugada, não está só alojada em sites da especialidade, está aí à vista, às vezes basta ligar a televisão, pois claro.
6. A metamorfose. Motivo visual e temático que se repete de filme a filme, na obra de Cronenberg. Os tumores e os cancros, as penetrações e as infecções, o vírus e o apocalipse. Metamorfoses demoníacas mas sedutoras, quanto do futuro devia passar pela capacidade corporal e mental do Homem? É uma das preocupações obsessivas de Cronenberg, que chegou a estudar Ciências, antes de se licenciar em Literatura.
7. Sci-fi. Por quanto propõe, por quanto analisa, pelo que aborda, é um filme de ficção científica, que não desmerece (nada, nada) toda a herança do género, de Lovecraft a Dick, passando por Heinlen. Presente paralelo ou futuro possível, as consequências são palpáveis e podem-se discutir. É uma obra moderna, perfeitamente contemporânea, enquanto houverem filhos-da-puta neste mundo.
Dos mais gloriosos filmes dos anos 80, dos melhores do seu realizador (é o meu preferido, hoje). Trepidante, alucinante (em Portugal chamaram-lhe mesmo Viagem Alucinante), arrepia o estômago, dilacera-o, e até nem o faz pelas imagens mais gráficas mas antes pelas mais sugestivas. É impossível, hoje, fazer um filme assim. Infelizmente.
8 comentários:
Grande texto, João, enorme nos conceitos apresentados e no qual me revejo inteiramente.
Parabéns por esta dissertação que faz magnífica justiça a VIDEODROME.
E se já não fazem filmes como este, que haja regozijo por, pelo menos, ele existir.
Cumps cinéfilos.
Grande texto sim senhor, mais um ;)
Também é o meu preferido, ou um deles, este e o Scanners e o Shivers. Brutais!
Ainda não vi o Shivers. Mas idolatro o Scanners, também. Vou ver se vejo o Crimes of the Future e o Stereo, também. São os três que me faltam.
E muito obrigado aos dois! :)
Abraços
Não diria impossível, mas realmente este género tem decaído, infelizmente. Já não há moscas e things por aí.
Adorie ler este texto, Cronemberg encontra-se no meu leque de realizadores favoritos e Videodromme é um dos seus melhores produtos, quiçá mesmo o melhor. Mas isso é sempre complicado de escolher :)
Abraço
Não é pelo género, que esse está vivo e recomenda-se. É pelo arrojo e pela coragem, pelo ataque ao "status quo", vá. Filmes americanos com coragem semelhante mas talvez muito softzitos comparado com este, nos últimos anos, lembro-me só do "25th Hour", do Spike Lee e do "Bullworth", do Warren Beatty, que, se ainda não viram, recomendo muito..
Abraço
Nesse caso pedia-te alguns filmes mais actuais deste género, é algo ue sinto saudades e não tenho visto.
Abraço
Têm-se feito coisas interessantes, ultimamente. Lembro-me do "Pontypool" e do "Outpost", por exemplo, ou o "The Host", do Bong Joon-ho, mas penso que há mais uns quantos. Ainda não vi nada do Ti West e do Neil Marshall, mas parece que também são realizadores interessantes...
Obrigado pelas sugestões.
Desses por acaso já tinha ouvido falar do the host. Mas tinha associado a algo diferente, ainda assim já me tinha esquecido dele.
Abraço
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