sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

sábado, 8 de dezembro de 2018













The Big Trail (1930) de Raoul Walsh

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

THE BIG TRAIL (1930)


1930 – USA (158' reduzidos para 126') ● Prod. Fox ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Jack Peabody, Marie Boyle, Florence Postal a p. de uma história de Hal G. Evarts ● Fot. Lucien Andriot (versão de 35mm), Arthur Edeson (versão de 70mm) ● Mús. R. H. Bassett, Peter Brunelli, Alfred Dalby, Arthur Kay, Jack Virgil ● Int. John Wayne (Breck Coleman), Marguerite Churchill (Ruth Cameron), El Brendel (Gussie), Tully Marshall (Zeke), Tyrone Power, Sr. (Red Flack), David Rollins (Dave Cameron), Ian Keith (Bill Thorpe), Charles Stevens (Lopez), Ward Bond (Sid Bascom). (nota: confrontando dados de várias filmografias de Walsh, actualizei as informações na fotografia e na música presentes no livro de Lourcelles)

A primeira caravana de pioneiros parte das margens do Mississipi em direcção ao Oregon. Breck Coleman aceita ser o batedor quando descobre que Red Flack vai ser o chefe. Na verdade suspeita que é ele o assassino do seu velho amigo Ben, despojado do seu carregamento de peles. A partir do início da viagem, Breck apaixona-se por Ruth Cameron, a filha de um general, pela qual também se interessa Thorpe, jogador profissional que foge da justiça, amigo de Red Flack. Enquanto Breck vai aos Pawnees procurar batedores de reforço, Red Flack envia Thorpe e Lopez para o matar. Durante a passagem de uma manada de bisontes, eles disparam sobre ele. Mas Breck volta-se a juntar ileso à caravana, cujas carroças acabam de fazer a travessia de um rio. Depois de apalavrar com os Cheyennes, os homens da caravana obtêm a autorização para atravessar o seu território, mas sem parar. Num desfiladeiro, as carroças e os animais têm de ser descidos com cordas ao longo de uma encosta particularmente íngreme. Thorpe planeia partir para a Califórnia com Ruth. Red Flack impõe-lhe matar primeiro Breck Coleman. Enquanto se apressa a fazê-lo é abatido por Zeke, um velho caçador, amigo de Coleman desde sempre. As carroças entram no deserto. Têm de se dispor em círculo para enfrentar os Crows e os Cheyennes. Há muitas vítimas. São enterradas e retoma-se a viagem. As rodas das carroças empoçadas estão praticamente paralisadas. Eclode um temporal, ao qual se segue uma tempestade muito violenta. Fala-se em voltar para trás. Breck sobe a moral de toda a gente. Lopez tenta esfaqueá-lo com uma faca que tinha pertencido a Ben. Breck tem agora a prova da sua responsabilidade no assassínio do seu amigo. Leva os emigrantes até aos vales verdejantes do Oregon, o fim da viagem. Depois volta a partir para os picos em perseguição de Lopez e de Red Flack. A neve cai espessa. Lopez tem as pernas geladas. É abandonado a morrer por Red Flack, que Breck encontra e esfaqueia um pouco mais tarde. Este junta-se de seguida a Ruth, já instalada nos arrabaldes de uma imensa floresta de sequóias gigantes. 

► Quarto filme falado de Walsh. Os meios consideráveis postos à sua disposição permitem-lhe implementar todo o alcance do seu génio. A rodagem estendeu-se por um ano e teve lugar quase integralmente em exteriores (no Wyoming). Este vai ser o melhor filme de Walsh durante a década e um apogeu do cinema. Várias sequências – como a da descida das carroças no desfiladeiro – estão entre as mais espectaculares que se viu num ecrã. Neste documentário épico, Walsh, que se interessa tanto nos indivíduos, fala acima de tudo de qualquer coisa que ultrapassa o indivíduo. Para além dos inúmeros obstáculos – climatéricos, geográficos e humanos – a impedir a marcha dos pioneiros, estes são empurrados em direcção à linha de horizonte por uma força instintiva, telúrica. Obedecem a uma lei que se aparenta às que regem o ciclo das marés, as migrações dos pássaros ou o movimento das estrelas. Observaremos que o cineasta nunca procura engrandecer as personagens contra a natureza ou por oposição a ela. No auge da sua luta, elas estão como que amalgamadas nela num todo indissociável. E os planos mais gerais do filme são também os mais belos. Paralelamente à progressão física dos pioneiros, desenvolve-se o combate permanente entre o bem e o mal. Antes de Pursued, The Big Trail foi o filme em que Walsh tentou englobar o máximo de realidade possível, aqui no registo do grandioso, desde as profundezas da terra até aos céus mais longínquos. A sua ambição é imensa, poderíamos dizer cósmica, mesmo que não recorra a nenhum dos processos habituais, humanistas ou literários, para se chegar à frente. 

N.B. No capítulo da sua auto-biografia intitulado « Colombo só descobriu a América », Walsh contou como deu a John Wayne o seu primeiro papel principal. The Big Trail foi filmado em duas versões : uma em 35 mm corrente e a outra num processo novo para o grande ecrã, o « Grandeur 70 mm ». O filme saiu dessa forma no Roxy Theatre de Nova Iorque em 1930. Mas o processo foi depressa abandonado (especialmente por causa do custo de instalação das salas). Em 1986, o Museum of Modern Art de Nova Iorque reconstituiu uma cópia de 35 mm em Cinemascope. Construiu-se uma impressora especial para transformar o negativo de 70 mm (como tal não utilizável) em « master » de 35 mm anamórfico. O resultado parece ter entusiasmado os primeiros espectadores. (Sobre esta nova cópia, ver o artigo de Ronald Haver « Trail Blazing » na revista « American Film », Maio de 1986.)

Jacques Lourcelles, in « Dictionnaire du Cinéma - Les Films », Robert Laffont, Paris, 1992

domingo, 21 de outubro de 2018

Happiness must be earned












The Thief of Bagdad (1924) de Raoul Walsh

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Diálogo com Raoul Walsh


por Jean-Louis Noames (Louis Skorecki)

Tal como a sua civilização, de que é testemunha e juiz ao mesmo tempo, o cinema americano construiu a sua grandeza através de um poder de síntese incrível de elementos exteriores e locais. Assim, depois dos seus representantes autênticos que são o Inglês, Hitchcock, os Vienenses, Lang, Preminger e Wilder, o Grego, Kazan, e o Irlandês, Ford, os CAHIERS DU CINÉMA tinham de homenagear Raoul Walsh, cineasta especificamente americano, tal como Hawks. 

Cineasta da guerra e da aventura, Walsh preferiu sempre a aproximação obstinada das tropas e a coesão do exército regular às façanhas brilhantes dos atiradores (que são Nicholas Ray e Douglas Sirk, por exemplo).  Portanto não nos admira nada ver a sua obra ligada ao próprio percurso do cinema, percurso que sabemos pertencer apenas àqueles que o fundaram. 

A conversa que se vai seguir foi gravada no platêau de A Distant Trumpet, depois do primeiro dia de rodagens em estúdio: Walsh respondeu a maior parte do tempo ao nosso colaborador entre as filmagens de planos. Portanto, sem nos lamentarmos pela fragmentação que resulta de um encontro nestas condições, felicitemo-nos isso sim por poder conservar a imagem de um homem que no seu íntimo soube sempre confundir a arte com a vida, ao ponto de lidar com esta última como se fosse uma aventura e de viver a primeira como um destino. 

☆ 

— Falemos primeiro deste filme que está a rodar, A Distant Trumpet

— Pois bem, vejamos. Sabe, é uma história muito longa para contar. É a história de um jovem tenente, saído recentemente de West Point, e que enviam para o Arizona para o Forte Discovery, um posto muito avançado em pleno território Apache. Estes Apaches atravessam a região inteira, roubam o gado, pilham os ranchos e matam as pessoas. Ele chega lá e encontra um forte em péssimo estado. E portanto resolve pôr tudo em ordem. A primeira coisa que vai fazer, a primeira missão, é trazer madeira para o forte para reparar os danos mais graves. Enquanto corta essa madeira na floresta os Apaches atacam-lhe a colónia e roubam as carroças: os seus soldados fogem tomados pelo pânico. Ele vê-se sozinho, e parte. Depois de um ou dois dias a cavalo, encontra uma diligência desgovernada, cujo condutor foi morto pelos Índios. Dentro da diligência só há um passageiro: uma jovem que deixou o forte. Era casada com um tenente e ele já tinha estado com ele. Vai salvá-lo e condu-la pelas montanhas, enquanto os Índios perseguem a diligência e os cavalos que querem recuperar. Passa um dia inteiro e uma noite com essa rapariga. Depois, no caminho de regresso ao forte, são surpreendidos por uma tempestade terrível. Procuram refúgio numa caverna, e é aí que têm uma grande cena de amor. Já no forte, o tenente escreve uma denúncia sobre a deserção dos seus homens e decide acabar de uma vez por todas com aquela desordem. Quer fazer deles verdadeiros soldados: portanto começa a treiná-los. A pé, a cavalo, fá-los fazer uma série de exercícios tão puxados, que no fim mal têm forças para se manter em pé. 

A cena de amor entre o tenente e a rapariga - que de resto ainda não filmei - é a cena mais importante do filme. Como em todos os meus filmes, toda a história gira à volta dessa cena... Acho que este western que estou a fazer vai ser um óptimo filme. Tenho tudo o que preciso: centenas de índios e de soldados, uma boa história, ecrã largo e tudo o resto... Espero muito dele. 

Sabe, o que é preciso tentar fazer no cinema é introduzir uma grande variedade de elementos diferentes num filme, fazê-los entrar em acordo entre si para que o filme seja construído um pouco como uma peça de música, uma sinfonia. 

Também gosto muito do trabalho de William Clothier para este filme. É o primeiro filme que faço com ele e é um excelente director de fotografia, especialmente em exteriores. Muitos dos nossos directores de fotografia são pessoas que não sabem trabalhar sem ser no estúdio. Ele, pelo contrário, é um homem duro. Adora trabalhar em exteriores e é por causa disso que a iluminação que fez para este filme é verdadeiramente sensacional. O Lucien Ballard, por exemplo, também fazia uma fotografia a cores muito boa, mas sobretudo em interiores. A arte dele é notável particularmente com as mulheres. Quanto a Sid Hickox, que trabalhou muito comigo durante uns quinze anos, fazia um preto e branco muito bom, e tínhamos uma colaboração muito próxima, uma concordância. 

— E os seus actores... 

— Há um certo tipo de actor que eu adoro e que usei sempre: Fairbanks, Flynn, Gable, homens duros que sabem tomar as rédeas da acção sem que ela jamais abrande. 

Entre os novos actores e actrizes, não vejo quem se lhes compare. Nenhum destes jovens vai conseguir substituir os antigos. Sobretudo entre as mulheres: não há uma nova Lana Turner a revelar-se. São pouco mais que «teenagers», todas e todos. Não têm muita estabilidade, nem experiência dramática, nem personalidade, nem muito poder, e frequentemente mesmo nada. Não há força neles. Têm caras bonitas, sim. 

Em França e em Itália as vedetas femininas são um bocado mais velhas, é verdade, mas pelo menos têm ímpeto, um fogo interior e um registo variado. As nossas actrizes são plácidas. Têm medo de fazer o mais pequeno gesto porque alguém podia muito bem avistar uma pequena ruga nas caras delas. Aqui está aquilo que temos de enfrentar, de combater. E, claro, são todas estereotipadas: umas penteiam-se como a Marilyn Monroe, as outras como a Lara Turner. 

No que diz respeito aos homens a nova geração de actores não me parece muito melhor. Alguns deles, que trabalharam na televisão, têm a sorte de se conseguir impôr. Mas isso leva-lhes tempo, porque as pessoas que guiam carros e querem ver o Ben Casey no cinema da esquina dizem que fariam melhor se fossem para casa ver a mesma coisa sem pagar, nas televisões deles. Agora pode-se tirar esses actores da TV durante bastante tempo, e isso é melhor. Só um bocado melhor, porque ainda há uma coisa que pode fazer mal a esses actores: é que essas séries antigas voltem a passar cada vez mais. Mas de qualquer maneira não apareceu grande actor nenhum entre esses miúdos sem personalidade nem experiência. 

É muito fácil fazer um filme de vinte e seis minutos para a TV: mostra-se tudo o que é supérfluo, pessoas a subir escadas ou a andar durante um tempo interminável, etc. No fim das contas, o que é que resta? Três minutos de cenas «selvagens», de violência, de luta. Isso é apenas uma fórmula que se aplica, percebe o que eu quero dizer? 

O Jimmy Best, por exemplo, um desses jovens actores, utilizei-o três ou quatro vezes, e ele também trabalhou com Fuller. Ele trabalha muito, é um jovem com muita exactidão, muito bom. Tentaram usá-lo numa dessas séries para a televisão mas não deu em nada: penso que o público não aderiu. Mas também não sei porquê. Ele é óptimo como actor de complemento, muito útil e muito natural. Ouvi falar desse papel de homem do Sul (ele é-o, de facto) que ele interpreta em Shock Corridor

Na verdade, quando um actor tem de fazer uma cena, contento-me em perguntar-lhe ao princípio como é que planeia fazer essa cena. Porque com eles há sempre uma certa tendência para forçar as coisas, quer dizer, enfim, a não colocar emoção verdadeira que chegue... É preciso controlá-los. Interpreto eu mesmo a cena para lhe mostrar como fazer. Mas quando um actor não é bem a personagem, quando eles não coincidem, em vez de lutar por nada, adapto o papel à personalidade do actor, faço com que essa discrepância desapareça. 

Um dos actores de quem tenho melhores lembranças é Arthur Kennedy. É um dos maiores. Começou a carreira em High Sierra, acho eu, em que era um dos gangsters. Era um actor maravilhoso, e que só melhorou com os anos... 

— Como elabora os seus argumentos? 

— Geralmente trabalho em colaboração cerrada com os argumentistas, antes que eles estabeleçam o guião. E isto pelo menos por uma razão: é que fiz tantos e tantos filmes que conheço a maior parte dos exteriores possíveis para uma rodagem e, como os argumentistas não estão forçosamente familiarizados com essas zonas, é preciso que seja eu a eliminar alguns projectos de cenas que seriam impossíveis de filmar. 

— Uma vez estabelecido o guião, improvisa durante a rodagem? 

— Pois claro. Mas os nossos métodos de trabalho são diferentes dos que se praticam na Europa. Aí passa-se tudo em família. Podemo-nos sentar a meio de um plano e discutir com a equipa toda. Na América é mais difícil: acontece que os actores não tenham experiência alguma, e portanto é impossível falar-lhes, de discutir o filmes com eles. Na Europa os actores são mais cultos, acho eu, sabem tirar melhor proveito da sua experiência. Estão frequentemente mais interessados no sucesso artístico do filme do que pelo seu próprio sucesso. Na realidade, assim que se improvisa e se acrescentam diálogos ou jogos de cena, que de resto têm grandes probabilidades de serem cortados na montagem, é frequentemente difícil para esses actores americanos acompanharem.

Em França e em Itália, mesmo na Inglaterra, o cineasta tem a possibilidade de fazer filmes realistas, de os tornar mais vivos... Realismo e vitalidade, duas coisas que aqui nos são muito difíceis. Primeiro há o Código, que nos impede de fazer o que queremos. Depois, os grandes estúdios têm medo: evitam sempre fazer filmes que sejam apenas destinados aos «adultos». As nossas mãos estão atadas. Temos de espetar cenas melosas nos nossos filmes. Mesmo hoje, acabaram de me enviar os resultados do exame que a censura fez para ver se não havia nada de contrário ao Código Hays no filme. E, bom, disseram-se que era preciso retirar a rapariga num plano, porque ela não pode ficar no quarto onde um homem e uma mulher se beijam. É ridículo. Temos sempre aborrecimentos deste género, pequenas coisas. Existe até uma regra que proíbe que um beijo dure mais de três segundos. Juro-lhe que é verdade. É por isso que os adultos nos Estados Unidos atravessam mais facilmente a rua para ver um filme francês com muito «sexo», ou um filme italiano em que um homem dorme com três belas mulheres ao mesmo tempo e na mesma cama, enquanto ao lado passa um filme americano em que a vedeta, o rapaz, beija a rapariga na testa dizendo-lhe boa noite... Não, não é possível!

— Como selecciona os seus argumentos? 

— Eu recebo muitos guiões, e o meu agente também os recebe. A primeira coisa que lhe pergunto é o lugar onde se passa a acção, o local onde o filme vai ser filmado. Porque adoro viajar e trabalhar em exteriores. Não gosto nada de ficar fechado numa espécie de quarto durante três ou quatro semanas, muito menos de lá trabalhar. Se o guião me agrada continua a haver um problema que é primordial nos EUA: arranjar uma vedeta para entrar no filme. Começa-se sempre por atribuir os papéis a grandes vedetas e depois vai-se descendo gradualmente, e de repente somos forçados a aceitar um actor medíocre qualquer, porque os actores importantes que podiam interpretar o papel, bons actores, estão sob contrato, ocupados a fazer outras coisas.

Para aceitar um guião, também tenho em conta a sua originalidade: se um género de filme, uma história apaixonante que se desenrole nos mares do sul, por exemplo, ou aventuras marítimas, não é rodado há muito tempo, digo a mim próprio que há uma possibilidade de agradar. Fica a faltar a vedeta.

— Disse a uma revista americana que só havia uma forma de mostrar um homem a entrar numa sala... 

— Sim, é um dos meus princípios. Os jovens realizadores fazem demais. Para filmar a entrada desse tipo põem a câmara debaixo da mesa, fazem-no de um monte de maneiras. Enquanto que na realidade só existe uma forma de filmar isso: faz-se entrar o nosso homem na sala. Pergunta ao presidente do Banco: «Pode-me dar um aumento?» O presidente diz-lhe: «Não, está fora de questão, sai!» E o tipo sai. É tudo. Rodo essa cena em dois minutos.

O que quero dizer com isso é que quero alcançar uma maior autenticidade, muito simplesmente. Não só tornar a cena mais autêntica, mas também a coisa que filmo. Para isso até me acontece não repetir uma cena, de todo. Digo simplesmente aos actores para se lançarem. Também é por isso que prefiro ver o filme montado tal como o rodei. Quando me propõem um argumento, a primeira coisa que faço, também, é imaginar visualmente o filme inteiro: onde se desenrolam as cenas, qual vai ser o cenário, como vai progredir a acção, etc.

— Que pensa da definição de Hawks segundo a qual a forma mais alta do drama é a do homem em perigo? 

— É boa, muito boa. Justifica de alguma forma o suspense. Porque temos sempre uma personagem principal, o «herói», e mesmo que o espectador saiba muito bem que ele não vai morrer e vai estar lá no fim do filme, é preciso rodeá-lo de perigos, ainda assim, precipitá-lo para situações perigosas, ameaçá-lo com a aventura para conseguir persuadir o espectador por um instante que o herói talvez arrisque não estar lá mais no fim, para insinuar que é frágil, no fundo. E é a coisa mais difícil para um cineasta.

— Qual é para si a importância de um filme? 

— Um filme toma-nos o tempo todo. É por isso que a maior parte dos realizadores não vão às «parties» e a outras distracções nocturnas. Acontece-nos vezes demais estar sentado ao lado de uma mulher aborrecida, por exemplo, que nos vai romper os tímpanos toda a noite com a festa piscatória que está a organizar para o dia seguinte, enquanto que nós nos perguntamos como é que havemos de resolver certo problema constrangedor em relação às cenas que se têm de rodar em exteriores, no dia seguinte...

Eu adoro terminar um filme em cinco ou seis semanas, porque depois começo a ficar cansado, a desinteressar-me da história. Mas enquanto estou em cima do acontecimento, em cima da «coisa», não vou a festa nenhuma, não saio. Às vezes vou andar a cavalo no meu rancho. Felizmente tenho uma mulher que me compreende. Levanto-me de noite para reflectir, para fazer planos de trabalho para o dia seguinte. E quando sei precisamente como é que vou resolver certo problema, ou como é que as minhas personagens vão interpretar certa cena, então posso-me ir deitar.

— Que pensa da comédia? 

— Da forma como as pessoas são hoje, tornou-se muito difícil fazê-las rir. Elas já não reagem ao cómico da situação, de todo, e isso porque os argumentistas enchem o filme de diálogos e de jogos de palavras e esquecem esse género de comédia que agradaria certamente a todos os públicos. Dantes a comédia era baseada em situações. E o público seguia a história, até a antecipava ao pensar: «Meu deus, quando esse tipo entrar na sala com que é que vai levar em cima!» Hoje apenas resiste a comédia de diálogo. Chamamos ao cinema «motion picture». Não é por acaso. É preciso que se mexa. E foi por isso que fiquei desagradavelmente surpreendido quando um tipo como George Stevens rodou The Diary of Anne Frank: passava-se tudo em interiores, dava-se conta disso! Sempre em interiores!

— Quais são os realizadores que prefere? 

— Howard Hawks é um óptimo cineasta. Conheço bem os filmes dele. Também gosto muito de John Ford e Willy Wyler. Esses para mim são os melhores. Efectivamente não vejo muitos filmes. E a maior parte das vezes é-me mesmo impossível ver as minhas próprias rushes: quando volto ao estúdio, o filme já está montado, acabado! Adoro ver westerns, claro. Fui criado no Texas, na tradição do Oeste. Sei alguma coisa sobre o assunto. Conduzi gado do Texas ao Montana muitas vezes, com as grandes «cattle drives», as verdadeiras. 

Quanto a escritores, claro que é Shakespeare o que prefiro. Mas Victor Hugo também e Guy de Maupassant, que não convém esquecer, penso eu. O seu papel foi imenso, trouxe muito, e a sua maneira de descrever personagens permanece hoje para nós um modelo. Eu fiz um pouco de "pintura", retratos e naturezas-mortas, sobretudo de flores. Nunca compus música, mas fui o primeiro a fazer tocar no próprio plateau a banda sonora do filme.

— Em que medida é que fazer filmes é indispensável para si?

— Ora aí está uma preocupação bem europeia... Para mim, fazer filmes é como para um tipo que se dedica à pintura. Ele pinta sobre um certo tema, de que gosta. Tenta várias vezes. Recomeça. Pinta coisas diferentes até encontrar o seu caminho. Mas é preciso que pinte. Isso é-lhe absolutamente necessário. Ou pinta ou se embebeda. Essa, para mim, é a importância do cinema. Enfim, se eu quiser, posso sempre ir sentar-me na minha varanda, ou ir à fazenda e contar o gado durante o dia... Mas pronto... 

(Conversa recolhida com gravador)

in «Cahiers du Cinéma» nº 154, Abril de 1964.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Liquidação de dívidas



What Price Glory? (1926)

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

RAOUL WALSH


por Edmond T. Gréville

«Ele era zarolho, mas genial»

VICTOR HUGO

Em Março de 1950, tinha acabado de terminar Noose para a Warner inglesa, quando o meu amigo Gerry Blattner me informou que Raoul Walsh se preparava para rodar Captain Hornblower na Europa, e mais particularmente na Côte d'Azur.

Depois de três anos de vida em Londres, eu tinha a nostalgia do sol e desse interior agradável que, para mim, representa toda a alegria de viver. Portanto prestei ouvidos de forma egoístamente complacente a Blattner, que se queixava de não ter com ele alguém que conhecesse bem o sul da França, os técnicos franceses e os labirintos da co-produção.

Blattner ficou um bocado surpreendido por um cineasta se prestar a passar de forma tão rápida para o outro lado da câmara para se dedicar às tarefas áridas da organização. A bem dizer, o que me atraiu, foi sobretudo aproximar-me e ver trabalhar aquele que há trinta anos representava para mim um certo cinema excitante e apaixonante, o homem a quem devia tanto entusiasmo e boas noites, esse zarolho clarividente, Raoul Walsh. Objective Burma, White Heat, Colorado Territory sempre ocuparam um lugar de destaque na minha cinemateca pessoal.

Algumas semanas mais tarde, encontrava-me na presença de um sexagenário com busto de actor principal (Walsh tira de bom grado não só o casaco, mas também a camisa, para trabalhar), de cara marcada e maravilhosamente bronzeada pelo sol. Uma faixa preta através do olho ausente dava-lhe o ar de um pirata brigão. Ia descobrir em breve que as brigas eram a paixão suprema do realizador de What Price Glory (de que John Ford fez um remake). No entanto, não devia ser a única, já que estava acompanhado de uma loira «explosiva» encantadora, de pernas longas e graciosas, boca carnuda e suave, por baixo de um pequeno nariz que gostaríamos todos de pôr numa pulseira.

A Sra Walsh tinha vinte e quatro anos e fazia alguma publicidade à verdura do velho e simpático flibusteiro.

Era preciso vê-lo, no dia em que recebeu a fragata cuja construção eu tinha «supervisionado» nos canteiros de obras de Bernard Voisin, em Villefranche-sur-Mer, a escalar pelos cabos, a correr ao longo das vergas e a assobiar no posto de vigia... Eu acho que a vitalidade e o dinamismo dos filmes de Walsh vêm antes de tudo da sua grande forma física (ele ficava feliz como um rei nas cenas de tempestade, enquanto que toda a gente ficava doente). Isso confere-lhe obrigatoriamente o gosto pelas intrigas em que a acção tem precedência sobre a paixão. Daí o seu pendor pelos filmes de guerra e também pela guerra (só falava de aventuras que lhe tinham acontecido durante a guerra de 1914 e desejava apaixonadamente ir lutar contra a Rússia... Como é que conseguiu realizar um filme tão anti-militarista como Os Nus e os Mortos?). Adora fazer falar a pólvora e vive como herói de um western.

Quando o Capitão Hornblower (Gregory Peck) fazia os galanteios a Virginia Mayo por necessidades do argumento, Walsh desinteressava-se da cena, assistia a tudo com um olho aborrecido e contentava-se em dar algumas indicações esquemáticas aos seus actores. Não se entendia muito bem com Gregory Peck, que achava sério demais, e teria preferido Robert Mitchum ou Clark Gable, mais desenvoltos, mais lúdicos.

Mas se Peck tinha de chacinar alguns piratas, se os mastros se desmoronavam sob os projécteis; se fosse preciso atirar ao mar patifes que se rasgavam uns aos outros com punhais em cascatas de hemoglobina, então Walsh libertava-se, levantava-se como uma águia e multiplicava-se por dez. Encorajava os figurantes com gestos e com a voz, não hesitava em servir-se das dez palavras de francês que tinha aprendido... ou que achava ter aprendido. Foi assim que um dia gritou «Parem» convencido que isso queria dizer «Continuem»[1]. Ficou completamente boquiaberto ao ver os combatentes a suspender as suas acções e perguntou-me porque é que os meridionais eram tão indolentes...

Como muitos grandes cineastas, Raoul Walsh exibe uma certa predilecção pelo sadismo. Tinha imenso prazer em amontoar areia com as próprias mãos em torno de «mexicanos» (nativos de Bornes-les-Mimosas) que tinham de ser enterrados vivos, e amarrou ele próprio os pés de um torturado, pendurado de cabeça para baixo. Não era raro tirar o pincel das mãos do maquilhador para desenhar ele mesmo as cicatrizes, e fazer gotejar o sangue dos membros feridos.

Nas noites de batalha, Walsh tinha sono; a mulher dele anunciava em vão a sua vontade de ir dançar. Mas de manhã, dormia enquanto Walsh estava no terraço, entregue às alegrias de tirar o fôlego da cultura física à frente desse Mediterrâneo que o maravilhava a ele, o apaixonado do Pacífico.

Alguns realizadores franceses orgulham-se de ter aprendido tudo sobre o cinema num quarto de hora. Pela minha parte, eis trinta e cinco anos em que descubro nele mistérios e segredos desconhecidos todos os dias.

Aprendi uma grande lição ao lado de Walsh. Até aí era partidário de uma composição precisa da imagem. Realizar, era dispor cada actor e cada figurante como um peão, fazendo-os interpretar de uma forma precisa, comandando cada um dos seus movimentos e dos seus gestos. Três quartos dos realizadores franceses fazem o mesmo.

Ora, Walsh atira-os literalmente para a imagem, numa confusão inaudita, de preferência sem repetições. Conta com o instinto, com a espontaneidade das reacções humanas: «Se dermos em cima deles, vão ser mesmo forçados a defenderem-se» proclamava ele. E, de repente, improvisava um movimento de câmara, uma panorâmica, um enquadramento. Os operadores de câmara e os directores de fotografia caíam como moscas e foi Guy Green quem conseguiu terminar sozinho as filmagens. As cenas rodadas desta maneira terão erros, imperfeições? Walsh não recomeça. Prefere rodar planos de continuidade que permitam eliminar os pedaços duvidosos na montagem e conservar a frescura inicial da acção. De qualquer forma, ele «via» a maneira como ia montar uma sequência enquanto a filmava.

Nunca recomeça mais de duas ou três vezes, achando que para lá disso o actor se torna um mecânico e a sua interpretação estereotipada.

Esta mise en scène «instintiva», intuitiva e intencionalmente sem método, só é válida para filmes de acção, dir-me-ão vocês, e não para sequências intimistas em que tudo é psicologia e atmosfera... Realmente...

Já disse que Walsh tem um certo desprezo por esse género de cinema. Com ele, mesmo o amor tem de ser acção, o que confere sensualidade a um bom número das suas realizações. Sensualidade e indecência: beija-se com a boca toda, devora-se com os olhos a mulher que se deseja, faz-se amor com paixão. Ele evita as cenas sentimentais ou, se o argumento as tiver, prefere deixar os actores entregues a si próprios. Isto é sem dúvida uma reacção de cineasta americano que tem a sorte de ter Burt Lancasters e Clark Gables à sua disposição. Com os nossos actores (?), era outra história...

Seja como for, não julguemos Walsh pelas suas «teorias» (ele nega tê-las), mas pelos seus filmes.

Há quarenta anos que isto dura e que este zarolho nos enche a vista. Daqui a trinta anos será centenário e eu aposto que, desembarcando de um foguete, ainda vai rodar westerns estratosféricos gritando «Parem» em marciano para que os habitantes de Vénus cortem os de Plutão aos bocados, ou para que uma cow-girl lunar se faça violar por um gangster qualquer da via láctea.

in «Présence du Cinéma» nº 13,  Maio de 1962, pp. 8-10.

[1] «Arrêtez» e «Allez-y» no original.

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Clássicos


"(...) clássica é a obra que permanece pelo direito que lhe advém da qualidade alcançada. Melhor será dizer: que permanece ou tem intrínseco direito a aspirar a essa permanência...

"Permanência, evidentemente, sujeita às metamorfoses (rupturas, ressungências, continuidades tantas vezes veladas) que o tempo ou o olhar temporalizado imprimem a toda a obra já clássica ou em vias de o ser.

"É que a jornada histórica da humanidade vem de longe, mas dirige-se para bem mais longe ainda.

"Ora, em cada momento de consciencialização efectivamente cultural, em cada homem que, solitariamente, assume a sua condição de ser pensante, há como que um recomeço cíclico de aspirações que, naturalmente, se projectam no futuro. Dramas e alegrias, realidades e sonhos, desespero e esperanças constituem o tecido da breve viagem de cada um de nós. É bem menos breve, porém, a viagem maior em que a nossa própria se integra, como se esta fosse uma manada desse conjunto que, como tal, se nos escapa.

"Pois bem: a esse respeito, é muito possível que a intimidade com a obra clássica possa ajudar cada um de nós a ser de outro modo aquilo que tem obrigação de ser.

"Obra clássica: aquela que pertence quer ao passado quer ao futuro e, mediante cada um de nós, está também no coração do presente."

descrição não assinada da  «Colecção Horizonte - Clássicos» 
(direcção de Joel Serrão)

SANTA FE TRAIL (1940)


John Brown's body lies a mouldering in the grave,
John Brown's body lies a mouldering in the grave,
John Brown's body lies a mouldering in the grave,
but his soul goes marching on.

«John Brown's Song»

As grandes sagas históricas, malgrado  os revisionismos sucessivos ao sabor das modas e das bandeiras do presente, nunca deixam de surpreender. Também por iluminarem muitos dos acontecimentos dos nossos dias, como é óbvio, mas ainda por conterem nelas o inesperado e o inimaginável, no grande quadro da sua contemporaneidade. Para nos cingirmos à segunda metade do séc. XIX e aos Estados Unidos, podemos descobrir, por exemplo, que foram importados camelos e dromedários do Médio Oriente para fazer circuitos de encomendas entre postos militares americanos, que Charles Dickens e Mark Twain eram pagos para percorrer o país de lés a lés em palestras ou leituras dos seus livros, que Victoria Clafin Woodhull defendia o "andamento do mundo" pela liberdade no amor e a satisfação plena da mulher durante o acto sexual, que o editor James Redpath viajou ao Sul para conversar com dezenas de escravos e publicou tudo no Tribune de Nova Iorque, ou que se montaram manualmente os primeiros cabos de telégrafo transatlânticos, os pilares da nossa era da comunicação.

Estes grandes quadros, com todas as suas surpresas e contradições, podem-nos ser revelados de muitas maneiras, mas costuma ser a ficção a conseguir resumir melhor as suas maquinações e consequências, na acepção céliniana de que "nada se sabe da verdadeira história dos homens. Tudo o que é interessante passa-se na sombra." Assim, indaga-se sobre a sombra desses quadros e podemos vê-los descortinados e como se fosse a primeira vez em filmes como O Capitão de Castela, drama de Henry King que lança muitas dúvidas sobre o heroísmo dos conquistadores espanhóis, bárbaros e renegados no seu país à espera de redenção e de sangue no Novo Mundo, Band of Angels, um dos retratos mais intensos e apaixonantes sobre a culpa e a lealdade em tempos de guerra, O Leopardo, a ode em tonalidade menor de Lampedusa e Luchino Visconti a Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina e aristocrata leonino em terra de hienas, Heaven's Gate, épico do fracasso que cria um mundo novo e fiel à realidade do tempo que narra até ao mais pequeno pormenor, da banda-sonora imbuída no folclore americano às nuances maravilhosas da captação sonora e da cenografia, ou A Inglesa e o Duque, reverso da medalha da revolução francesa, denúncia dos crimes cometidos em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, ensombrecendo e pervertendo a honorabilidade das causas justas.

Podem-se ler as críticas e os livros de Robin Wood, sem dúvida um dos maiores pensadores do cinema, para perceber as dificuldades em analisar um filme sob um prisma político, tentar perceber a sua ideologia, descortinar uma única certeza em correntes de discurso muitas vezes contraditórias, antagónicas, e banhadas a decisões estéticas que às vezes só têm equivalente numa espiral, numa elipse ou num caleidoscópio. Na presença de um grande filme, podemos sentir mil coisas diferentes no mesmo plano, entre entoações nas palavras, nos olhares, nos gestos, na luz e na música que nos deixam em terreno muito incerto. Mesmo quando chega a uma conclusão,  em exercícios de retórica fascinantes, Wood acaba com muitas dúvidas, contradizendo as certezas de quem fala hoje sobre retratos injustos, retóricas dominantes, estudos de representatividade e percentagens equitativas no domínio da estética (sim, no domínio da estética, como se fosse uma multi-nacional). Tudo isto pode fazer com que uma obra de arte complexa sobre temas difíceis possa ser confundida com propaganda racista, incitadora à violência, influência funesta nos jovens, pilar emocionalmente chantagista da ideologia dominante. Etc.

Sabe-se que os estúdios de Hollywood nunca primaram pelo respeito aos seus realizadores, que eram assalariados que podiam preparar toda a pré-produção de um projecto e ser despedidos no primeiro dia de rodagens. Os grandes realizadores do sistema de estúdios, que se aprenderam a distinguir no início dos anos cinquenta deste lado do Atlântico, podiam lidar com isso de várias formas, mas continuavam a ter de acatar com políticas de casas de produção, actores impostos, montagens à revelia ou guiões que tentavam sabotar ao máximo. Estas constrições podiam destruir um filme, por melhor que fosse o realizador, mas muitas vezes também lhe acrescentavam camadas fascinantes de significado. Ver um actor representar contrariado, forçando as coisas para o seu lado enquanto o ego do realizador e o do produtor forçavam as coisas para o seu, imbuindo-se tudo em favor da história e das questões abordadas no filme. E não era uma coisa tão rara como isso, bastando citar os bastidores de O Feiticeiro de Oz, Duelo ao Sol, A Star is Born, Cruel Vitória ou The Chase. Pode-nos surpreender mais quando estas condições de rodagem produzem um filme perfeitamente acabado e polido, mas os resultados mais fascinantes talvez sejam os que tornam os problemas de bastidores indissociáveis e indistinguíveis das batalhas intrínsecas ao filme.

Com quase duzentos filmes em seu nome, Michael Curtiz, a julgar pelas suas melhores obras (Virginia CityO Gavião dos Mares, O Lobo do Mar, The Flamingo Road, Bright Leaf, O Egípcio), parecia dar-se melhor com grandes orçamentos e com grandes elencos de personagens enredadas em confrontos ideológicos por uma causa ou pelo domínio, acompanhado-os nessas demandas com uma câmara frenética até ao choque final, quase sempre manchado pela morte. Usado pelos estúdios para substituir outros realizadores à última hora, trabalhando em calendários apertadíssimos e já com estilhaços de orçamento, Curtiz simboliza hoje perfeitamente o sistema de estúdios, aproveitando ao máximo as suas mais-valias e perpetuando as suas histórias de aventura, traição, amor, heroísmo e martírio com um talento sintético bem fora do comum.

Santa Fe Trail, filme de 1940 com Errol Flynn, Olivia de Havilland, Raymond Massey, Ronald Reagan e Van Heflin, é sobre os acontecimentos que levaram à eclosão da Guerra Civil norte-americana, acompanhando as incursões armadas do abolicionista John Brown, o "meteoro da guerra", segundo Herman Melville. Como grande parte dos filmes de Hollywood baseados em figuras históricas, toma imensas liberdades com os factos para poder abranger e resumir toda uma curva histórica, como faziam Cecil B. DeMille e Henry King na preparação dos seus argumentos. Isto não quer dizer que haja um corrompimento da verdade, mas antes a compreensão de que para se abordar tudo o que se tinha de abordar, alcançar todos os zénites emocionais que se tinham de alcançar, eram precisas situações, personagens e relações assumidamente compósitas, que passavam por colocar grandes vultos da União e da Confederação na mesma turma em West Point para tornar mais pungente a cisão da segunda metade do filme, numa sequência fabulosa com uma adivinhadeira índia na escuridão trágica dos amanhãs sangrentos que se avizinhavam, ou fazer conter na personagem de John Brown toda a oposição e toda a acção armada contra a escravatura, regada a citações bíblicas e com traços expressionistas para ilustrar a urgência da purga desse cancro.

John Brown, figura ainda muito controversa da história americana interpretada aqui por um Raymond Massey inspiradíssimo, faz as vezes de antagonista num filme em que Errol Flynn (o conhecido amigo e apoiante de Fidel Castro e da revolução cubana) é um sulista e Ronald Reagan (o membro da NRA e informante de nomes de simpatizantes comunistas para o FBI) um unionista. Para complicar ainda mais as coisas, é sem dúvida a proximidade aos eventos narrados, com sentimentos muito ambivalentes mas  perceptivelmente afectos à "causa perdida" do sul, (transversais a muitos realizadores em Hollywood, de D.W. Griffith a John Ford), que torna os embates ideológicos do filme ainda mais ricos dramaticamente, fazendo transparecer o que terão sido as reticências, os recuos e os medos de ver um modo de vida totalmente erradicado, razões suficientes para falar de questões ou de gratificações da honra e partir para o campo de batalha na defesa do indefensável. E conseguir compreender isso sem ter de o aprovar.

De resto, é tudo suficientemente aberto e vasto para se poderem ver personagens com razão a fazerem as coisas da maneira errada, homens sem razão a dar provas de cautela, ver depois muitos problemas nessa cautela, perceber a inevitabilidade da vingança dos abolicionistas e da causa que tinha mesmo de vencer, tudo ligado pela presença estratégica da personagem do traidor de Van Heflin, capaz de vender as suas ideologias ao lado que paga melhor - o único ser abertamente condenado pelo filme. Pode-se lamentar a pouca ênfase dada aos homens e mulheres que foram comprados e expedidos para o outro lado do Atlântico para sustentar uma civilização aos ombros com horas de trabalho sem fim,  mas além de poderem servir perfeitamente como ponto de partida para obras com informação mais detalhada (The Civil War de Ken Burns à cabeça), o tom e a gravidade do filme dão conta da confusão e do enredamento da questão (mais viva do que nunca), à espera de um tempo em que possa ser lido por sociólogos como a representação de um período de transição em que muitos podiam ser mártires e carrascos ao mesmo tempo, entre a forca metafísica e a forca concreta, entre o que vai da letra de John Brown's Body à de Battle Hymn of the Republic (ilustrado pelo que se ouve no genérico do princípio e no do fim, a mesma melodia com significados diferentes). A luta eterna pela razão e pelos dogmas, comum a todos os homens, da África-berço às utopias pacíficas e ideais que germinam na alma da humanidade. Enquanto esperamos é só nevoeiro, violência e tumulto.

Mine eyes have seen the glory of the coming of the Lord,  he is trampling out the vintage where the grapes of wrath are stored. He hath loosed the fateful lightning of His terrible swift sword:
His truth is marching on.

«Battle Hymn of the Republic»

terça-feira, 31 de julho de 2018

O LOBO DO MAR


por João Bénard da Costa

1 Entre a tarde em que me caiu o último dente de leite e a manhã em que me levantei com vontade de experimentar que tal me ficava a pêra (estou-me a referir a vinte e cinco anos da minha vida, pouco mais ou menos) dizia-se que Lisboa no Verão era melhor que Baden-Baden. Talvez o fosse. Não só pelas muitas e boas razões que levaram o autor da frase a inventá-la, como pelos muitos e bons filmes que, todos esses anos, eram cadencialmente repostos na época estival. Se não fosse ela - se não fossem elas - nunca teria visto tantos filmes da minha vida, que se estrearam quando eu ainda não tinha vida, ou ainda não ia ao cinema. Mas voltavam, voltavam, nas noites quentes dos verões antigos.

Ao cheiro das primeiras pipocas tão bom uso se perdeu. Quem teve a grande desgraça de nascer depois da revolução, já só soube do que se passava apenas pelos filmes dos tempos da sua idade. Criou-se a fatídica distinção, que só ao cinema se aplica, entre "filmes antigos" (coisas da Gulbenkian, da Cinemateca, ou das noites na televisão) e "cinema", já desactualizado, já esquecido, um ano depois de alabardadas estreias. Lisboa deixou de ser Baden-Baden e passou a ser, cinematograficamente, Texasville depois do Last Picture Show.

Não há mal que sempre dure. Nos anos 90, graças sejam dadas ao Paulo Branco, recomeçaram, de Inverno e de Verão, reposições de antanho, ao princípio recebidas com enorme friagem (quem só comeu "pizzas" dificilmente se tenta com lagostas) pouco a pouco justamente saboreadas. Começam-se a ver os frutos. A boa pedra nunca resiste à persistência das águas.

Porém, o que nunca se tinha visto, desde os idos anos 60, foi o que esta semana se viu. A reposição de um filme que, pelo menos há cinquenta anos, não passava em telas nossas. Incluindo - com enorme vergonha o digo - nas da Cinemateca. Estreou-se no Politeama, quando Filipe La Féria nem nascido era, a 2 de Novembro de 1944, mais de três anos depois da estreia mundial, o que, como já explicarei, não sucedeu por acaso. Enquanto a cópia durou (1949? 1950?) andou por aí, no que nesses anos se chamavam "reprises". Depois, sumiu. Refiro-me a The Sea Wolf, realizado para a Warner Brothers por Michael Curtiz (1941), com argumento de Robert Rossen, fotografia de Sol Polito, música de Erich Korngold e com Edward G. Robinson, John Garfield, Ida lupino, Alexander Knox, Gene Lockhart e Barry Fitzgerald nos papéis principais.

Quem português vivo o viu, ou tem mais de 65 anos e começou novíssimo a ir ao cinema (meu caso) ou o entreviu na televisão ou em vídeo ou fora de Portugal o viu. Quarta hipótese não há. A "história" alguns mais a devem conhecer. Ou do célebre romance de Jack London que lhe serviu de base, ou das dez outras versões que, entre 1913 e 1993, directamente ou indirectamente se basearam no clássico de London. Quem eventualmente as conheça - sobretudo quem guarde na memória o "lobo" de Charles Bronson em 1993 - também nunca viu nada. The Sea Wolf, filme, só há este e mais nenhum. E até o cinzento Maltin vos dirá que o "deranged Wolf" de Bronson "make one appreciate the Edward G. Robinson version even more".

A coragem de Paulo Branco, neste caso, foi a de apostar num filme que nenhum senhor crítico conhece de parte alguma, ou em parte alguma foi alguma vez contado em português. Ao que ele me disse - e acredito - escolheu-o por gosto pessoal, com as memórias de um desconhecido que viveu comovido os domingos de Paris. É para estas coisas que vale a pena ter poder e ter dinheiro, ou ter, de um ou de outro, a ilusória aparência. Pelo menos durante uma ou duas semanas, podemos sonhar que vivemos noutra cidade e noutro país. Paris, São Petersburgo, o mundo.

Longo foi o preâmbulo, mas de mal agradecidos está o inferno cheio.

2 Não pensei que a palavra - inferno - viesse tão cedo ao meu encontro. Já aconteceu e não me desdigo, mas antes de me aproximar dela, vou aqui - aos meus olhos - dar uma volta. Já venho.

Miudíssimo era quando vi o lobo, numa cópia que já devia estar em estilhas. A única sequência de que me lembrava como se fosse hoje é aquela em que Cooky (Barry Fitzgerald) é atirado ao mar, depois de denunciado por Wolf Larsen como bufo reles. A criatura, com os risinhos sinistros e a dengosa concupiscência, mereceu bem o mergulho. "No sad songs for him." Mas enquanto esbraceja para voltar ao barco, vemos, atrás dele, um dos dois triângulos mais inconfundíveis do mundo. No caso não é esse, sumarento e musgoso, mas o que um século de cinema nos ensinou a associar ao terrível nome de tubarão. É mesmo um, e dos grandes, que vem no encalce de Cooky. Os justiceiros não queriam tanto. Atiram-lhe uma corda e começam-no a puxar. Dois planos da cabeça do cozinheiro, dois planos do triângulo mais perto dele. Ainda o conseguem içar, mas do que lhe aconteceu sabemos pelo seco comentário de Wolf: "Better tie up what's left of his leg before he bleeds to death." Van Weyden (Alexander Knox) olha horrorizado e o plano funde com um outro em que vemos só as sombras dos marinheiros, cantando "Whiskey Johnny".

Gostava que me explicassem porque é que só essa cena retive e só nela reconheci em The Sea Wolf do King, da Atalanta e de 2000, o The Sea Wolf do Chiado-Terrasse, da SIF e de 1948.

3 Quanto ao resto, como não gostar, nos dias de ontem como nos dias de hoje?

Está lá quase tudo do que gosto.

Gosto de nevoeiro, que me lembra tanta coisa e me faz ter uma espécie de medo de tudo o que eu já esqueci (isto é doutro filme, mas, como rima, consinto).

Gosto de escunas e esquifes, como gosto de todas as palavras começadas por es: escarpa, escuro, esfinge, esmeralda, esfera, estremenha, estorninho.

Gosto de fantasmas e, ainda mais, de fantasmas que andam perdidos nos mares e são navios deles, como "The Ghost", a escuna de Wolf.

Gosto de lobos, que me lembram florestas macias e neves áridas, capuchinhos vermelhos e brancas patas de cabrinhas, metidas por frinchas onde mais nada se vê delas.

Gosto de Milton e do Paradise Lost, de todos os paraísos o melhor (Dante que me perdoe, que eu não sei o que digo).

Gosto dos livros que em criança li e levei para a cama comigo, de luz escondida debaixo dos lençóis, para que o quarto cheirasse a escuro e não suspeitassem que os lia.

Gosto dos filmes que ficam sempre indefinidos, cruzamentos de muitos géneros. The Sea Wolf é um filme do mar, mas é afastadíssimo parente dos filmes de piratas de que tanto gosto e pouco tem que ver (só uns restos de "décor") com The Sea Hawk que Michael Curtiz também realizou, mas um ano antes. The Sea Wolf é um filme de acção (a publicidade da época contava 17 lutas, com natural exagero) mas é também um filme intimista, de espaços e corpos cerrados. The Sea Wolf é um filme político (a parábola proposta tem no nazismo um destinatário óbvio, tão óbvio que só por essa razão demorou três anos a chegar a Portugal) mas é um filme metafísico e Curtiz (como Jack London) não esconde o seu fascínio pelo Mal. The Sea Wolf é um "film noir" ("a quasi-romantic narrative accentuated by a dark and sinister atmosphere", como notaram os teóricos do género) mas pouco o aproxima dos mestres do género, Lang, Brahm, Siodmak ou Ulmer. The Sea Wolf é um filme realista (dessa perspectiva, foi criticado pelas eminências do tempo) mas é um paradigma do "tardo-expressionismo" que invadiu o cinema americano nos "forties". The Sea Wolf está perto até dizer queima do ingénuo socialismo vitoriano de Jack London, mas é também um grande filme "reaccionário", com o credo da Warner numa ponta e o satanismo dos simbolistas na outra.

Gosto daqueles personagens todos, quer os que vêm de London, quer os que Rossen inventou. E gosto, tantíssimo, dos fabulosos actores que representam cada um deles, e sobretudo dos seus de que lá para cima falei.

4 Gosto de Barry Fitzgerald, que inicialmente se parece com ele próprio, "talking a little treason", como num filme de Ford, para, já sem perna, rastejar pelo convés, abjecto de medo e ódio, e, pela primeira vez, olhar Wolf Larsen nos olhos que só ele ainda sabe que já não olham. E primeiro em "close shot" e, depois, off, a mais horrível denúncia: "E's blind, I tell ye... the beggar's blind." "The beggar's", na boca dele, referindo-se a Wolf Larsen!

Gosto de Gene Lockhart, irmão gémeo de tantos outros médicos bêbedos nada anónimos, até essa sequência sublime (uma das minhas favoritas) em que, do alto dos mastros, enquanto a câmara voa em campos-contra-campos e plongées-contra-plongées, com virtuosismos de Pehrlman, desafia Wolf e, indirectamente, desafia Van Weyden. "There is a price no man will pay for living?" Nunca estaremos certos se foi isso que o fez saltar, ou se foi o medo do autoprotagonismo. Mas, quando se atirou, deu a primeira vitória ao escritor e a primeira derrota ao capitão.

Gosto de Ida Lupino, geminada a Garfield pela transfusão entre "jailbirds". Os códigos disfarçaram-lhe, mais do que no livro, a antiga profissão? É certo. Mas os muitos grandes planos dela no final, quando já está apaixonada por Garfield, são visualmente físicos e dolentamente eróticos. O personagem vai-se. Ou vem-se.

Gosto de Alexander Knox (primeiro papel em Hollywood). Gosto de lhe chamar Van Der Weyden, porque se o nome "even sounds like a preacher's name", também se parece com o doador do Juízo Final de Beaune. Curtiz, ao inventar Garfield (personagem inexistente no livro), roubou-lhe boa parte do protagonismo que tem no romance. Mas a sequência no camarote do capitão e a sequência da morte são as mais poderosas do filme. E, se o personagem ilustra o tema do sacrificado sublime, tão caro ao Hollywood dos "forties", prenunciando o Paul Henreid de Casablanca do mesmo Curtiz, morre com um "truque" e só vence graças a esse truque, dando razão "in extremis" ao inimigo.

Gosto de John Garfield, inventado da cabeça aos pés para ser o "herói positivo" em história tão tortuosa. Único personagem presente do princípio ao fim, é o único que não tem psicologia mas apenas tensão. E nela, magnífico é, rebelde com causa, no primeiro dos seus grandes papéis do género, tão, tão bonito, tão, tão rapaz da rua.

Por Edward G. Robinson, já não é só amor, é paixão. Herdeiro do Capitão Nemo, do Capitão Ahab de Moby Dick e sobrinho do Lúcifer de Milton, tem a grandeza e a beleza do príncipe das luzes infernais, rei das névoas, por elas conduzido à cegueira fatal, como Tirésias ou como Édipo nas tragédias gregas. E, se livro e filme se escreveram e fizeram para ajustar contas com super-homens nietzchianos como ele, a suprema ambiguidade é o fascínio com que Rossen e Curtiz o olharam, fascínio que a composição de Robinson (o andar, o olhar, o dizer) levam ao superlativo absoluto mais complexo.

No livro, onde Van Weyden é o narrador, este nota no seu diário: "I must say I was fascinated by the perfect lines of Wolf Larsen's figure, and by what I may term the terrible beauty of it." E, mais adiante, sem ilusões sobre o "barbaric devil" fala de "all the softness and tenderness, almost womanly (sublinhado meu) of his face and form". Edward G. Robinson, seguramente um dos dois ou três maiores actores do século, deu-nos isso tudo.

5 Por isso, é lógico que acabe com a sequência do camarote, quando surpreende Van Weyden surpreendidíssimo com a biblioteca dele (Shakespeare, Tennyson, Poe, De Quincey, Cervantes, Milton e também Tyndel, Proctor, Spencer, Darwin e Nietzsche).

O Paradise Lost está sublinhado na passagem que começa "There at least / We shall be free" e termina na sua citação favorita: "Better to reign in Hell than serve in Heaven". Depois, Wolf interroga-se sobre se não teria sido melhor nunca ter lido livros, saúda o talento literário de Van Weyden e enfia-lhe um soco no estômago para o educar, quando o outro o trata por Larsen e não por Sir. E, a pouco e pouco, entra numa espécie de acordada "rêverie", em que desfila o seu passado. "Parece-me que se está a justificar", observa-lhe o escritor. "My strength justifies me, Mr. Van Weyden", corta cerce. E é única vez que chama Mr. ao seu eventual biógrafo.

Ainda nessa sequência diz que escolherá a própria morte como escolheu a vida. Até nisso não se enganou. Daí o júbilo final, quando percebe que não falhou o alvo. É a rima perfeita para o seu primeiro diálogo, quando lhe morre o imediato: "My mate is dead. You dirty, drunken sot... you died too easy". Pouco depois, aquele grande plano e o modo como pergunta Man? respondendo ao comentário de VanWeyden. "There's not a man any longer... that's just a lump of rum-soaked flesh".

À volta, as névoas, os mastros, o convés. Tudo o que vimos estilizado no genérico, tudo o que ouvimos na pasmosa partitura de Korngold. E o oceano, dito Pacífico, e que nunca vemos ou nunca vemos bem.

Quem foi que inventou a expressão "lobo do mar"? Para mim, depois deste filme, o homem chamou-se Michael Curtiz. Autor ou realizador desta prodigiosa variação sobre o Ricardo III de Shakespeare, sem coroa nem cavalo, mas reinando, absoluto, sobre névoas e escunas, levando consigo para o fundo dos mares a efémera vitória da moral do seu antagonista.

Ide, vede e ouvide a grande epopeia trágica de Wolf Larsen, elo essencial de uma cadeia enorme que finalmente nos ressurge dos abismos, como aqueles bronzes gregos que os pescadores de águas fundas confundiram com afogados ou fundiram com fantasmas.

in "Os filmes que nos vêem/os olhos que nos filmam", «O Independente», 18 de Agosto de 2000, pp. 67 e 68.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

THE SEA WOLF (1941)


1941 – USA (100’) ● Prod. Warner (Jack Warner, Hal B. Wallis, Henry Blanke) ● Real. MICHAEL CURTIZ ● Gui. Robert Rossen a p. do R. de Jack London ● Fot. Sol Polito ● Mús. Erich Wolfgang Korngold ● Int. Edward G. Robinson (Wolf Larsen), John Garfield (George Leach), Ida Lupino (Ruth Webster), Alexander Knox (Humphrey Van Weyden), Gene Lockhart (Dr. Louie Prescott), Barry Fitzgerald (Cooky), Stanley Ridges (Johnson), Francis McDonald (Svenson), David Bruce (jovem marinheiro), Howard Da Silva (Harrison). 

São Francisco, 1900. Perseguido pela polícia, George Leach aceita entrar na tripulação do barco de pesca « The Ghost », apesar da sua reputação execrável. Ao largo de São Francisco, um transatlântico choca com outra embarcação : dois viajantes, o escritor Humphrey Van Weyden e Ruth Webster, evadida de uma prisão feminina, escapam milagrosamente à catástrofe e são recolhidos pelo « Ghost ». O seu temível capitão, Wolf Larsen, declara imediatamente aos dois náufragos que têm de permanecer a bordo durante toda a travessia porque ele não tem intenção alguma em perder tempo a voltar para Frisco. Quanto a contactar outro navio, está fora de questão. Van Weyden vai encontrar matéria ampla para reflexão (e para escrita) na personalidade tirânica e contraditória de Larson, cujo ego monstruoso se alimenta das humilhações constantes que inflige aos seus homens, prisioneiros do seu universo paranóico e impiedoso. A muitos deles não faltam traços pitorescos : como o cozinheiro para o qual é um prazer denunciar a Larsen tudo o que se maquina a bordo contra ele, ou então o doutor caído e alcoólico Louie Prescott, que Leach vai no entanto convencer a tratar Ruth Webster praticando nela uma transfusão de sangue, que a vai salvar. Depois desta proeza, Prescott, ainda mais humilhado do que é costume por Larsen, vai subir ao topo do mastro principal e, depois de dizer umas quantas verdades ao capitão, lança-se para o vazio. Antes de morrer, informou nomeadamente a tripulação que o « The Ghost » se dedicava à pirataria e não à pesca e que um dia ou outro o navio seria atacado pelo irmão de Larsen, que tem um ódio feroz por este último. Um primeiro motim levado a cabo por Leach, falha. Durante a noite, um pequeno grupo de homens atacam Larsen e o imediato e atiram-nos ao mar. Mas Larsen, que parece invulnerável, encontra forças para voltar a subir a bordo. Recupera a « estima » da tripulação prometendo a cada homem uma boa parte dos despojos e entregando-lhes o seu delator, o cozinheiro. Este é imediatamente atirado borda fora e será devorado a meio pelos tubarões. Leach, Van Weyden e Ruth metem um barco no mar e afastam-se do « Ghost ». Mas Larsen, que tinha adivinhado o plano deles, misturou vinagre às suas provisões de água. É preciso voltar para o « Ghost », que já não passa de destroços a afundarem-se lentamente nas águas depois do sangrento combate que teve de travar contra o « Macedonia », a embarcação do irmão de Larsen. Leach sobe a bordo. Larsen fecha-o numa cabina. Sujeito anteriormente a enxaquecas violentas e a acessos repentinos de cegueira, Larsen está agora definitivamente cego. Dispara sobre Van Weyden, que lhe vai conseguir esconder que foi atingido mortalmente. Ao preço de um truque final, o escritor troca a sua vida pela libertação de Leach. Leach junta-se a Ruth no barco : eles vêem os destroços a afundarem-se completamente no mar, levando consigo o seu capitão cego e o escritor idealista e corajoso que jamais poderá contar a sua história. 

► Pode-se considerar este filme a obra-prima de Curtiz. É certo que assinou muitas, mas o seu ecletismo, o seu gosto pelos leques de cores e convenções de Hollywood, que usou enquanto figuras de estilo, esconderam muitas vezes a sua verdadeira personalidade : achamos que ela aparece aqui de forma mais nítida do que noutros lugares. Esta adaptação do grande romance de Jack London, construída de forma admirável por Robert Rossen e em que a condensação da acção e o aprofundamento da patologia das personagens são prodigiosos, serviu-lhe para ir mais longe na descoberta do seu próprio universo. A maior parte dos seus filmes têm uma aspereza no toque, uma dureza no traço que a ênfase colocada sobre os heróis positivos tendia a corrigir ou a apagar, a maior parte das vezes. Aqui, o espeto de amaldiçoados, de criaturas caídas e abandonadas pelos deuses, que ele reuniu na sua embarcação fantasma, entre uma penumbra fantástica e cruel, não deixa dúvida alguma sobre a visão impiedosamente negra que tinha do universo, dificilmente iluminada por uma esperança tenaz no triunfo final do humanismo. Escrito e realizado no início da Segunda Guerra Mundial, The Sea Wolf também é a denúncia mais convincente do fascismo, da ditadura e de todas as doenças do poder que se fez no cinema. Curtiz e Rossen não dão sermões : mostram. E a verdade amarga da sua pintura encarna-se num elenco particularmente inteligente e brilhante. E.G. Robinson, Alexander Knox, John Garfield, Ida Lupino, Barry Fitzgerald e Gene Lockhart encontram todos em The Sea Wolf um dos papéis mais completos e mais surpreendentes da sua carreira. 

N.B. O romance de Jack London foi várias vezes adaptado : por Hobart Bosworth (1913), por George Melford (1920), por Ralph Ince (1925), por Alfred Santell (1930) e sob a forma de western, Barricade, Barricada, por Peter Godfrey (1950). Acrescente-se, em 1958, Wolf Larsen de Harmon Jones, e em Itália, Il lupo dei mari de Giuseppe Vari (1975). 

Jacques Lourcelles, in « Dictionnaire du Cinéma - Les Films », Robert Laffont, Paris, 1992

segunda-feira, 7 de maio de 2018

IMAGENS PARA O SÉCULO XXI (I)














Mad Max: Fury Road (2015) de George Miller