terça-feira, 24 de dezembro de 2019

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

FORD V FERRARI (2019)


Pois é, tornou-se imperioso interromper o grande périplo Walsh/Michael Jackson para prezar um filme que parece ter estreado muito discretamente entre discussões sobre a Netflix, estreias em sala, super-heróis e a velha guarda, do James Mangold que equiparou Stallone a De Niro e Harvey Keitel em 1997 e este ano parece ter resumido e arrumado todas essas questões.

A metáfora que algumas pessoas viram extravasa para todos os campos, não só o do cinema, porque é um projecto com a inteligência para descrever uma empresa e uma aventura desde a sua génese, com todos os ressentimentos, entraves, vitórias e catarses a que se tem direito quando se acredita que se nasceu para alguma coisa. Um privilégio, diz-nos o filme, mas a ressonância é universal. E eis como Mangold nos volta a fazer os dias, nas pistas de vida ou de morte em Daytona ou Le Mans, com um Christian Bale finalmente às alturas ou à justeza do seu talento, carcomido por percorrer uma multidão que lhe chupa o sangue e os sonhos.

E dentro desse emocionante percurso em linha recta, por muitas falhas que possa ter, os pequenos milagres: depois do patrão zarpar de helicóptero para um jantar, é o Enzo Ferrari arruinado que dá o aceno simples ao Ken Miles de Bale, levando-o para casa justificado; os gestos tímidos de mão que exprimem todos os sentimentos e todos os pêsames do mundo; a chave de fendas que se emoldurou mas que no final achou o seu propósito não numa moldura mas nas mãos e nos trabalhos de todos os dias; as roscas, os travões, os chapéus e os pára-brisas, perdidos e achados na grande narrativa como se perdia e achava a tartaruga de peluche de Stallone e Annabella Sciorra em Cop Land.

Enfim, no ano dos pesos pesados do cinema (Pedro Costa, Quentin Tarantino, Martin Scorsese, James Gray), que ora foram cimentando ou manchando os seus legados, foi James Mangold quem surpreendeu, com a câmara lenta atestada das grandes velocidades, no momento em que todos os tempos se equiparam. Entre o céu e o inferno.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

BAND OF ANGELS (1957)


1957 – USA (125') ● Prod. Warner ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. John Twist, Ivan Goff, Ben Roberts a p. do R. de Robert Penn Warren ● Fot. Lucien Ballard (Warnercolor) ● Mús. Max Steiner ● Int. Clark Gable (Hamish Bond), Yvonne De Carlo (Amantha Starr), Sidney Poitier (Rau-Ru), Efrem Zimbalist, Jr. (Ethan Sears), Patric Knowles (Charles de Marigny), Rex Reason (Seth Parton), Torin Thatcher (capitão Canavan), Andrea King (Miss Idell), Ray Teal (Sr. Calloway), Russell Evans (Jimmie), Carolle Drake (Michele), Noreen Corcoran (Amantha em criança). 

No Kentucky, durante os anos 1850, a pequena Amanha Starr é criada pelo seu pai, um plantador viúvo que nunca maltratou os seus escravos negros. Amanda vai depois fazer os seus estudos para a cidade num colégio interno para raparigas onde se embeiça pelo pastor Seth Parton, um oponente feroz à escravatura. Vai ficar lá até à morte de seu pai. Durante o funeral deste, descobre com estupefacção que ele só deixou dívidas. Tinha deixado o domínio e a moradia em testamento à sua amante, Miss Idell, a directora do colégio interno de Amantha. E é o comerciante Calloway quem se vai ocupar da venda dos escravos de que é agora proprietário. A estupefacção de Amantha chega ao cúmulo quando lhe comunicam sem cerimónias que a mãe era uma escrava negra pertencente ao pai dela e que ela própria será vendida como escrava com os outros negros, em conformidade. Calloway leva-a para Nova Orleães de barco e acha por bem partilhar com ela a sua cabine e a sua cama. Para evitar essa humilhação, Amantha tenta enforcar-se durante a travessia. Calloway vai salvá-la do suicídio, episódio que põe fim aos fervores dele. Em Nova Orleães, Amantha é comprada por 5 000 dólares pelo plantador Hamish Bond. Na casa dele, ela ocupará um quarto que lhe é reservado e vai ser tratada com os cuidados que se têm com um convidado. Hamish diz-lhe que a comprou para evitar que ela caísse nas mãos de um adquirente pouco recomendável. A governanta da casa, Michele, está apaixonada pelo patrão e dá dinheiro a Amantha para ela fugir. Mas a caminho do porto, Amantha encontra Rau-Ru, o jovem intendente negro de Hamish que ele criou como seu filho, e tem de voltar para trás. Durante uma noite de tempestade, Hamish recebe a visita do seu velho amigo, o marinheiro Canavan, e ambos evocam recordações. Nessa mesma noite, Hamish vai fechar a janela do quarto de Amantha e troca um beijo apaixonado com ela. Um barco leva-os até La Pointe du Loup, a plantação preferida de Hamish. Ele concede a Amantha a sua liberdade mas no último momento ela prefere ficar com ele. Ele ausenta-se para ir visitar a sua plantação de Belle Hélène. Amantha sabe da boca de Rau-Ru que ele odeia o seu protector. A bondade que este sempre manifestara reforçou, segundo ele, a servidão na qual se encontra. Um vizinho, Charles de Marigny, corteja Amantha de uma forma insistente e insultuosa para ela. Marigny e Rau-Ru andam ao murro ; Rau-Ru tem de fugir por ter batido num branco. Hamish, por sua vez, propõe um duelo de pistolas a Marigny, que se recusará a confrontá-lo pela sua cobardia extrema. Rau-Ru e outros negros organizam-se em bandos e apoiam a acção dos soldados nortistas, cada vez mais numerosos na região. Desafiando a interdição dos nortistas, e como os seus vizinhos, Hamish queima a sua plantação para que não caia em mãos inimigas. Amantha queria que Hamish casasse com ela. Ele diz-lhe que é impossível e conta-lhe o seu passado como negreiro em África. Aterrorizada com as suas revelações, Amantha decide regressar a Nova Orleães. No dia da sua partida, os negros da plantação cantam em honra dela. Procurado por ter infringido as ordens dos nortistas, Hamish não tem outra saída senão a fuga. Em Nova Orleães, onde dá aulas de música, Amantha suscita a paixão do jovem tenente nortista Ethan Sears. Também volta a ver o pastor Parton, que a censura por ter escondido a Sears que é mestiça. Consumido de paixão, atira-se sobre ela. Amantha volta à casa de Hamish, onde reina agora Rau-Ru como amo. Hamish esconde-se na plantação de Belle Hélène. Rau-Ru vem capturá-lo de revólver na mão. Evocando o passado e lembrando a Rau-Ru que tinha sido salvo da morte em África quando era bebé, Hamish convence o jovem a deixá-lo fugir. Surgem outros soldados. Rau-Ru tem de pôr algemas a Hamish, mas deixa a chave em cima. Hamish saberá como se aproveitar desse presente e vai escapar aos seus guardas para se juntar com Amantha ao barco de Canavan, que os conduzirá a outros céus... 

► O filme romanesco por excelência. Os acontecimentos e as peripécias da intriga caracterizam-se pela profusão e pelo rigor. A profusão recria um mundo – o Sul da Guerra Civil – enquanto o rigor ajuda as personagens a emergir dessa profusão para adquirir individualidade e espessura. Como é frequente em Walsh, as duas personagens principais são levadas a afastar-se de um mundo que parecia o seu mas ao qual nunca tinham pertencido completamente, na realidade. Plantador solidário com os seus vizinhos sulistas, Hamish Bond é, de facto, um marinheiro ianque que outrora sujara as mãos no tráfico de negros. O seu próprio nome é emprestado e ele roubou-o a um capitão de quem era imediato. Pelas gotas de sangue negro que circulam nas suas veias, a mestiça Amantha não se sente melhor perto dos negros do que dos brancos. Esta desclassificação secreta dos dois heróis leva-os de forma poderosa, e sem que tenham mesmo consciência, na direcção um do outro e suscita uma das mais ricas e mais subtis love stories do cinema americano. Frequentemente, toma o aspecto de sucessão de provas que as personagens impõem a si mesmas ou ao seu parceiro. Em Hamish Bond, como em muitos dos heróis walshianos do pós-guerra, a memória desempenha um papel considerável e encerra grande parte do personagem na prisão do seu passado. Um passado atormentado que não pode nem quer renegar. Walsh expressa essa influência da memória sem imposturas, sem pathos, e mesmo sem precisar de flashback. Chegam-lhe dois cenários estreitos, um pátio e um quarto (cenas admiráveis da visita do marinheiro e das confissões de Hamish a Amantha), para fazer ressurgir e estourar as memórias das personagens como uma tempestade. A mestria e a maturidade tranquila do estilo de Walsh, tanto sob o plano plástico como dramático, aparecem constantemente na sua maneira de evocar com recuo um universo em ruptura sobre o qual passa o vento da História, ou então quando designa com contenção mas precisão os tormentos e as feridas secretas das personagens. Ele consegue dar aqui um segundo fôlego a essas personagens no momento em que tudo parecia perdido para elas ; não o podemos confundir com o happy end convencional de certas ficções de Hollywood. Sem ser um dos pontos cimeiros da obra de Walsh, Band of Angels é no entanto indispensável para o conhecimento do universo íntimo do cineasta. 

N.B. O filme foi muitas vezes comparado a E Tudo o Ventou Levou e enterrado sob estas comparações. O propósito e a ambição das duas obras, no entanto, não têm medida comum, de resto como os materiais literários que lhes servem de base. É, de facto, um abismo o que separa o romance de Margaret Mitchell e o de Robert Penn Warren, um escritor que muitos não hesitam em comparar a Faulkner.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

THE KING AND FOUR QUEENS (1956)


1956 – USA (84') ● Prod. UA (David Hampstead) ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Margaret Fitts e Richard Alan Simmons a p. de uma história de M. Fitts e R. Walsh ● Fot. Lucien Ballard (Eastmancolor, Cinemascope) ● Mús. Alex North ● Int. Clark Gable (Dan Kehoe), Eleanor Parker (Sabina McDade), Jo Van Fleet (Ma McDade), Jean Willes (Ruby), Barbara Nichols (Birdie), Sarah Shane (Oralie), Roy Roberts (xerife Tom Larabee), Arthur Shields (Padre), Jay C. Flipper (barman). 

Dan Kehoe, um aventureiro procurado pela polícia, descobre que, na aldeia abandonada de Wagon Mound, a viúva McDade e as suas quatro noras vivem em cima de uma montanha de ouro, produto de um assalto realizado pelo clã dos quatro filhos McDade. Três morreram no combate e não se sabe qual é que sobreviveu. À espera do seu regresso, a viúva protege a virtude das suas noras de forma tão feroz como o tesouro. As raparigas só ficam perto da sua sogra para, quando chegar a hora, conseguirem a parte delas do saque, cujo esconderijo a viúva teve o cuidado de não revelar. Kehoe chega aos arredores da aldeia e é recebido pelas balas da viúva. Ferido, é tratado pelas quatro raparigas cuja concupiscência suscita, estando elas privadas de homens há dois anos. Há Sabina, a mulher principal, Birdie, uma dançarina de cabaret bastante inocente, a loira Oralie que Dan vai comparar a um anjo e a Rudy morena, a mais provocante e a mais possessiva do lote. Uma vez levantado, Dan, que se fez passar por um companheiro de cela do McDade que sobreviveu, explora o terreno passo a passo, tentar tirar o máximo de informações de cada uma das raparigas e até se consegue fazer aceitar pela viúva. Acaba por deitar as mãos ao tesouro, enterrada num sepulcro. Leva-o com a rapariga que escolheu, Sabina. Mas a viúva alerta o xerife e a sua patrulha. Dan entrega o dinheiro. Finge que sempre teve a intenção de o fazer ; contentar-se-á em retirar o montante da recompensa que lhe vai permitir passar dias felizes na companhia de Sabina que, num aparte, nunca tinha sido casada com um dos McDade, mas esperava pôr a mão numa fatia do bolo com esta mentira. 

► Obra menor mas muito característica de Walsh pela sua liberdade de tom, a sua ironia, a sua truculência e essa espécie de plenitude plástica que o cineasta consegue conferir sem esforço aparente a qualquer um dos seus filmes. Com uma descontracção extrema que ridiculariza todas as regras do filme de acção e do western em particular, Walsh diverte-se a fazer passear displicentemente um dos seus actores favoritos (e sem dúvida aquele que mais se lhe assemelhava) pelo meio de quatro criaturas encantadoras que unem um poderoso apetite pelo lucro a uma frustração sexual difícil de suportar. Oportunidade para o cineasta criar – porque é tão pintor como cineasta – quatro retratos de mulheres muito diferentes no seu comportamento e no seu tipo de sedução. O filme não é inteiramente desprovido de ambiguidade na medida em que mantém um equilíbrio instável entre uma visão em que o homem dominaria completamente a situação e se comportaria como mestre do seu pequeno harém e aquela, totalmente oposta, em que seria a vítima deste clã feminino num tipo de narrativa que encontrará a sua expressão limite em The Beguiled de Don Siegel, 1971. (Neste filme que se desenrola durante a guerra de Secessão, um soldado nortista ferido esconde-se num colégio do Sul cuja directora e as pensionistas, louva-a-deus tais, o acabarão por devorar e eliminar.) Entre o machismo e a misoginia, o próprio Walsh encontra uma espécie de estrada real que lhe permite conciliar com elegância, e não sem uma certa audácia, o respeito das convenções da época e o seu prazer de cineasta. Porque aqui está, antes de tudo, uma obra de prazer, primeiro para o seu autor e de seguida para o espectador. Fotografia magnifica de Lucien Ballard para o seu primeiro Cinemascope.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

ALONG THE GREAT DIVIDE (1951)


por Miguel Marías

Muito pouco conhecido, e quase sempre esquecido, rodado integralmente em exteriores com uma simplicidade e uma ausência de floreios apenas comparáveis à beleza seca do seu cenário deserto e fronteiriço, cheio de humor e de amor, Along the Great Divide sempre foi, apesar da sua modéstia, um dos filmes de Walsh pelos quais mais carinho sinto. 

Com uma das melhores actuações de Kirk Douglas, e as que prefiro tanto de Virginia Mayo como de Walter Brennan, Walsh soube tirar o máximo proveito em todos os campos — a intriga, o drama, a aventura e a comédia — de uma trama convencional (no papel) e (de um modo geral, mas nunca no detalhe) previsível, demonstrando as grandes possibilidades — hoje em dia quase desconhecidas — da narração linear. 

Along the Great Divide é um filme de itinerário cujo argumento se poderia resumir em três linhas, e que portanto se baseia numa direcção de actores flexível e inventiva. É possível esquecer a ordem das cenas, mas não a paisagem, a poeira, a luz; é possível não prestar atenção aos diálogos, mas é impossível desviar o olhar; pode ser que, com o passar do tempo, uma história tão bem narrada se ofusque e se confunda com outras semelhantes, mas vou recordar para sempre uma Virginia Mayo teimosa e briguenta; um Walter Brennan trocista e mal-humorado, que se dedica a chatear Kirk Douglas com uma cantiga e umas alusões insidiosas; um Douglas que morre de sono e que se debate entre cumprir o seu dever de agente federal e confiar no seu instinto — que lhe diz que o velho Pop Keith é inocente—, e que se está a apaixonar por uma rapariga que o parece detestar e não pára de o irritar. No final tudo se revolve como é devido: as personagens eram mesmo inteligentes.

in «Casablanca» nº2, Fevereiro de 1981.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

ESTHER AND THE KING (1960)


por Jean Douchet

A distribuição constante de Ester e o Rei volta a pôr em destaque um dos maiores realizadores de Hollywood, e certamente o menos conhecido. Efectivamente, Raoul Walsh foi considerado muito tempo um desses admiráveis fazedores de filmes de que Hollywood parece ter a exclusividade. Os seus filmes, todos filmes de aventuras, narram acções apaixonantes, e os críticos só viam neles o protótipo de obras bem feitas e perfeitamente distractivas.

Ora de uma dezena de anos a esta parte, graças à visualização dos seus novos filmes e à reposição dos antigos, os jovens cinéfilos e os críticos competentes voltaram a pô-lo no seu lugar verdadeiro: como um dos maiores.

Raoul Walsh revela ser de facto o cineasta da aventura mas no seu sentido mais profundo, pela graça de uma mise en scène cada vez mais refinada. É por isso que em Ester e o Rei lhe interessa visivelmente, não a magnificência do espectacular que a grande mise en scène bíblica permite, mas antes a aventura dos homens e das mulheres naquilo que têm de maior em si mesmos quando a sua paixão se confronta. Ester e o Rei é a tragédia intimista de duas almas nobres separadas por tudo e que no entanto vão vencer as resistências para fazer triunfar o seu amor.

Raoul Walsh é realmente um dos nossos grandes poetas do cinema. Ninguém soube pintar o mar melhor que ele. É incontestavelmente o poeta do oceano e «o grande sonhador da água», como diria Bachelard. Em cada uma das suas obras, o mar prolonga os estados de alma das personagens. Walsh é também um cineasta da eficácia e da simplicidade. «Não há trinta e seis formas de filmar alguém a abrir uma porta», diz ele, «há só uma.» O milagre requer que a câmara esteja sempre no sítio onde tem de estar, mas esse sítio nunca é o mesmo nos diferentes filmes. Porque o segredo que Raoul Walsh possui ao mais alto grau é o de saber que realmente há apenas uma forma de rodar um plano, mas que esta depende da ideia original que preside à mise en scène e portanto à própria concepção do tema.

in «Arts» nº 825, 7 a 13 de Junho de 1961.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Double-bill (XXXV)



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A DISTANT TRUMPET (1964)


por Miguel Marías

Este filme tem uma das cenas mais dignamente tristes da história do cinema: os apaches chiricahuas deixam cair ao chão as suas lanças – autênticas bandeiras na poeira – e os seus penachos de penas; as patas dos cavalos deles apagam os desenhos na areia – pegadas de uma cultura que sabe estar condenada – e toda a tribo – ou o que resta de uma nobre raça guerreira – começa a sua marcha fatigante para a reserva. 

Também há uma cascata de lama inesquecível, as cores mais secas e belas: terras vermelhas contra nuvens cinzentas, brancos e amarelos, casacos azuis, pinheiros verdes. E Suzanne Pleshette, que teria chegado a ser uma grande estrela se cineastas como Walsh, que já não existem, continuassem no activo.

A capacidade de se indignar aos setenta e sete anos; a sabedoria e a experiência, a desenvoltura e a falta de pretensões que permitem fazer um filme tão simples como complexo, clássico e crítico da tradição, dinâmico e reflexivo, e em que o humor e o romantismo andam de mãos dadas – como em Baroja. 

Como Sete Mulheres (Ford), Topázio (Hitchcock), Gertrud (Dreyer), Red Line 7000 (Hawks), Le Caporal épinglé (Renoir), Tristana (Buñuel), A Condessa de Hong Kong (Chaplin), Pocketful of Miracles (Capra), O Gosto do Saké (Ozu), Rua da Vergonha (Mizoguchi), Love Among the Ruins (Cukor) e A Vida Íntima de Sherlock Holmes (Wilder), para dar alguns exemplos ilustres, A Distant Trumpet é obra de um cineasta em plena posse das suas faculdades que vê chegar a sua hora e que, da última curva da estrada, contempla com lucidez e legítimo orgulho a sua longa vida criadora, decidindo reafirmar a sua trajectória (ou rectificá-la) antes de se despedir. 

Um filme de retirada que é uma vitória. Um western dirigido a cavalo. O último filme de Raoul Walsh, zarolho, aventureiro e poeta. 

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Double-bill (XXXIV)


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RAOUL WALSH. O OESTE TORRENCIAL


por Miguel Marías

Os cinco westerns - ainda que um, Céu Aberto, seja um eastern - e as duas metades (The Outlaw, Come and Get It) de Howard Hawks alcançaram tal grau de proeminência que o consideramos mais vezes um realizador de filmes do Oeste do que Raoul Walsh, que não só fez mais em números absolutos, como dedicou ao género uma percentagem superior da sua filmografia, de igual modo variada mas muito mais vasta.

Talvez seja porque nenhuma das suas incursões no género tenha alcançado uma celebridade reconhecida de forma unânime, e pode ser que se tenha adiantado tanto às modas que quando rodou Pursued (1947) nenhum crítico estivesse em condições de se dar conta que inaugurava, com My Darling Clementine e Duelo ao Sol do ano anterior, e antecipando-se a Rio Vermelho, Yellow Sky, Winchester 73, Rancho Notorious, Johnny Guitar, Shane ou High Noon,  uma etapa de maturidade do western caracterizada por se ocupar tanto da acção como da psicologia das personagens. Ou quiçá, mais simplesmente porque Walsh continua a ser, pelo valor que eu lhe dê, um cineasta quase maldito, persistentemente subestimado e esquecido até pelos seus defensores. Até na Europa, não digamos nos Estados Unidos, onde podem não ver diferenças entre ele e o menosprezado Allan Dwan, Michael Curtiz, Joseph H. Lewis, André de Roth, Gordon Douglas, Stuart Heisler, Henry Hathaway, Mervyn LeRoy, Lloyd Bacon, Vincent Sherman e um sem fim de artesãos, embora hoje nenhum dos que continuam vivos esteja no activo.

OBRAS-PRIMAS

A verdade é que nunca tinha pensado nisso, mas a listamania desta revista fez-me dar conta que Walsh é o meu realizador de westerns preferido: não só fez vários dos que mais gosto, como é, na minha opinião - depois de John Ford -, o que deu mais obras-primas ao género, singularmente distintas entre si em relação ao tom, ao humor, à época e ao aspecto, e muito diferentes das que os outros realizavam ao mesmo tempo. Até as suas obras relativamente menores - Gun Fury (A Fúria das Armas, 1953), The Lawless Breed (Sob o Signo do Mal, 1952) e Cheyenne (Feras Sangrentas, 1947) - são do que há de mais ameno e agradável, além de serem geridas de forma a nunca acabarem convencionais, por mais banais que fossem as histórias que lhe coubesse contar.

Como em todo o cinema de Raoul Walsh, os traços que se destacam nos seus westerns são, e sem dúvida que já se terá dito isto alguma vez, a abundância, a vitalidade, a exuberância, a alegria de viver e de filmar, o dinamismo... mas também não se deve esquecer a presença oculta de um certo fatalismo subterrâneo - mais visível nos seus filmes negros - que faz com que quase todos os seus filmes mostrem - sem o explicar nem o proclamar - como se supera a tragédia.

A vertente sombria de Walsh emerge com força nos que considero os seus melhores westerns: Pursued (Núpcias Trágicas, 1947), They Died with Their Boots On (Todos Morreram Calçados, 1941), Colorado Territory (Golpe de Misericórdia, 1949), A Distant Trumpet (A Carga da Brigada Azul, 1964), Along the Great Divide (A Caminho da Forca, 1951), que do meu ponto de vista também são os melhores filmes dele em qualquer género, mesmo acima de Battle Cry (Antes do Furacão, 1955), Gentleman Jim (O Ídolo do Público, 1942), Captain Horatio Hornblower, R. N. (1950), The World in His Arms (Epopeia nos Mares, 1952), The Horn Blows at Midnight (1944), Uncertain Glory (Três Dias de Vida, 1944), Fighter Squadron (Todos Foram Valentes, 1948), White Heat (Fúria Sanguinária, 1949), Artists and Models (Artistas e Modelos, 1937), Objective, Burma! (Objectivo Burma, 1945), Salty O'Rourke (Quase Uma Traição, 1945), The Roaring Twenties (Heróis Esquecidos, 1939), Sea Devils (Gigantes em Fúria, 1952), The Thief of Bagdad (O Ladrão de Bagdad, 1924) ou The Naked and the Dead (Os Nus e Os Mortos, 1958). Em todos aqueles westerns, como em muitos dos melhores filmes de Walsh que não pertencem ao dito género, esse lado obscuro convive em curiosa e complexa harmonia complementar com o humor que brota em jorros nos mais injustamente menosprezados, como a comédia, entre Ben Johnson e Shakespeare, que é The King and Four Queens (Um Rei e Quatro Rainhas, 1956). Muitas vezes, sobretudo quando a acção, própria do género, se desloca geograficamente para leste do rio Mississippi, como acontece tanto em Distant Drums (As Aventuras do Capitão Wyatt, 1951) como em Band of Angels (A Escrava, 1957), os seus westerns confundem-se com o cinema de aventuras ou com o melodrama. Até um dos aparentemente mais respeitosos para com as normas, Colorado Terrotiry, acaba por ser uma transposição para o território do Colorado da novela de W. R. Burnett que tinha filmado oito anos antes - com Humphrey Bogart no lugar de Joel McCrea - como High Sierra (O Último Refúgio, 1941), outro dos seus grandes filmes. Daí o mistério e ambiguidade desse antecedente nocturno e quase expressionista de Angel Face, de Otto Preminger, que é Pursued, não em vão contemporâneo da Dama de Xangai, de Orson Welles, que parece nascer das chamas devoradoras e purificadoras de Rebecca, de Alfred Hitchcock, e Secret Beyond the Door, de Fritz Lang, para abrir um caminho que conduz directamente à Sombra do Caçador, de Charles Laughton, sem que referências tão negras e dramáticas contaminem minimamente a sua condição de western, da mesma forma que as suas paisagens lunares, como as de Colorado Territory, Along the Great Divide, A Distant Trumpet, ou o grau de abstracção de westerns de câmara, sejam estáticos ou itinerantes, que Pursued partilha com Um Rei e Quatro Rainhas, Along the Great Divide e The Tall Men (Duelo de Ambições, 1955) não condicionam nem abrandam o seu ritmo, a amplitude dos seus enquadramentos ou as turbulências do relato, nem impedem a proliferação de personagens secundários pitorescos.

ESTILO CAMALEÓNICO

Não parece que Walsh se pusesse o problema de fazer filmes de um determinado género: limitava-se a contar as histórias tal como as imaginava e visualizava ao lê-las. Não teve dificuldades com o cinema de guerra ou de espionagem nem com o musical ou a comédia, com o drama realista nem com o de gangsters ou o de aventuras, o de fantasia, o de barcos, o de aviões ou o de espadachins: quem foi capaz de rodar no mesmo ano (1945) três obras-primas tão distintas como The Horn Blows at Midnight, Salty O'Rourke e Objectivo Burma podia passar sem problemas de Battle Cry a The Tall Men em 1955.

Por isso fazia westerns sem complexos e sem pretensões. Mais do que um pretexto, um envoltório ou um contexto histórico, para Walsh o género era o que o ambiente e a maneira de estar - mais ainda que de ser - dos personagens determinavam. E Walsh parecia-se sentir tão em casa nas ruas ventosas da Chicago da Grande Depressão ou nas da sua Nova Iorque natal, como nos estranhos promontórios rochosos, singularmente fragmentados, que eram o seu cenário favorito do Oeste, parecido apenas - e muito - aos que Boetticher mostra em alguns dos seus filmes com Randolph Scott.

Se o seu estilo, igualado em pureza griffithiana apenas pelo de Allan Dwan e capaz de se adaptar de forma camaleónica a cada história como uma luva à mão, permaneceu quase imutável - muito mais que o de Hawks, sem falar de Ford ou Vidor - durante quarenta anos, o que realmente unifica filmes tão diferentes entre si - mesmo tão opostas, dentro do western, como The Big Trail (A Grande Jornada, 1930) e Um Rei e Quatro Rainhas - é a sua visão picaresca do mundo e o seu gosto em narrar histórias, que resplandece até despojado dos seus atributos cinematográficos na sua autobiografia Each Man in His Time, divertidíssima, embora excessivamente modesta para o meu gosto e tão anedótica que quase se podia lê-la sem chegar a suspeitar o ofício do seu autor.

Para demonstrar que Walsh não confundia a actividade com a rotina e não gostava de se repetir, basta ver - ou rever - os seus sete filmes com Errol Flynn, ou comparar A Grande Jornada com The Tall Men, Todos Morreram Calçados com Distant Trumpet, Distant Drums com Objectivo Burma, e Colorado Territory com High Sierra: isto é, que não se imitava a si próprio nem sequer quando fazia o que eram praticamente remakes, ou, o que vai dar ao mesmo, novas versões de uma novela, ainda que às vezes com transposição de género. O mais curioso é que Walsh transitou pelo western com tanta naturalidade que uma pessoa não se pergunta, enquanto vê Pursued ou Colorado Territory, se são histórias de cinema noir.

'CASTING AGAINST TYPE'

Não costumava usar actores emblemáticos ou exclusivos do western, mas estrelas do cinema de aventuras, que para ele era provavelmente o género original, senão o único, a matriz de todos os outros: o que muda é a época, o vestuário, a paisagem, as armas ou os meios; mas o que conta é a aventura, seja o seu protagonista um gangster ou um soldado, um actor ou um polícia, um bandoleiro ou um latifundiário, um contrabandista ou um político, um pirata ou um aviador, coisas que muitas vezes tinham sido - no passado - os que se dedicam a outra coisa quando o filme começa, porque a experiência ou algum pecado de juventude secreto gravitam sempre sobre o aqui e o agora em que as personagens de Walsh parecem instaladas. Por isso, e ainda mais por afinidade de caracteres do que por possíveis razões contratuais das produtoras com que trabalhou mais frequentemente (Paramount, a Fox de 1926 a 1933, a Warner de 1939 a 1951 e sobretudo a Fox a partir de 1955), é mais fácil encontrar Errol Flynn ou Clark Gable nos seus westerns, e parece mais lógico ou natural dar de caras de vez em quando com outros, mesmo que seja só uma vez, particularmente Robert Mitchum, Joel McCrea, Gary Cooper, Robert Ryan ou Kirk Douglas, de que se estranha a ausência noutros filmes de Walsh, do que ver John Wayne (com quem fez dois, de qualquer forma, um em 1930 e outro em 1940), Randolph Scott, James Stewart ou Glenn Ford.

Especialista do casting against type, desestabilizador de rotulagens, inimigo de usar actores previsíveis em papéis convencionais, Walsh soube aproveitar e tratar com dignidade os então novatos Tyrone Power e Rock Hudson ou eternos jovens suaves e bem penteados como Alan Ladd e Troy Donahue.

MULHERES DE TOMAR ARMAS

Um traço particularmente distintivo dos westerns de Walsh, e desde muito cedo, é a importância inusitada que têm neles as mulheres, singularmente mais activas e decididas do que parece ser o habitual no género, quando não se chegam a revelar como o autêntico motor da história e a razão definitiva de tudo o que acontece no filme. Vejam-se as personagens fortes, teimosas e frequentemente conflituosas que encarnam Teresa Wright e Judith Anderson em Pursued, Olivia de Havilland em Todos Morreram Calçados, Virginia Mayo e Dorothy Malone em Colorado Territory, Julia Adams em The Lawless Breed, Suzanne Pleshette e Diane McBain em A Distant Trumpet, Mari Aldon em Distant Drums, Virginia Mayo em Along the Great Divide, Jo Van Fleet, Eleanor Parker, Jean Willes, Barbara Nichols e Sara Shane em Um Rei e Quatro Rainhas, Jane Russell em The Tall Men, Yvonne de Carlo em Band of Angels, Marguerite Churchill em A Grande Jornada, Mae West em Klondike Annie (1936), Claire Trevor em Dark Command (Comando Negro, 1940), Ann Sheridan em Silver River (1948), Donna Reed em A Fúria das Armas, Jayne Mansfield em The Sheriff of Fractured Jaw (O Sheriff e a Loira, 1958) ou Shelley Winters em Saskatchewan / O'Rourke of the Royal Mounted (A Grande Ofensiva, 1954). Observe-se a presença de duas figuras maternas velhas e autoritárias - Judith Anderson, Jo Van Fleet -, que não estranhará quem se recordar - e pode alguém esquecê-la? - de Margaret Wycherly em White Heat, e que também há várias jovens de tomar armas - Mae West, Ann Sheridan, Jane Russell, Eleanor Parker, Jayne Mansfield -, dessas que dominam os homens - especialmente alguém como Kenneth Moore - a menos que estejam à sua altura, como Gable.

DIRECTORES DE FOTOGRAFIA EXTRAORDINÁRIOS

Walsh nunca pecou pelo esteticismo. Nunca alguém lhe chamou paisagista ou descreveu um plano dele como pictórico. Nem como elogio nem em tom de censura. Claro que isso não impede que a paisagem, sobretudo a mais árida e selvagem, tenha um relevo excepcional nos seus filmes, pleno de expressividade plástica e dramática, embora geralmente sem o carácter determinante que adquire nos westerns de Anthony - sobretudo naqueles protagonizados por Stewart - ou a monumentalidade que tem frequentemente em Ford. Bastava-lhe saber onde rodar e contar sistematicamente com directores de fotografia extraordinários, geralmente sóbrios e precisos, e que lhe valiam tanto num tipo de filme como noutro diferente.

Gente como Lucien Andriot, Sid Hickox, Ernest Haller, Bert Glennon, James Wong Howe, Irving Glassberg, Leo Tover, Lucien Ballard, William H. Clothier; todos magníficos e sem vedetismos, sem dúvida, embora se deva avisar que tenha repetido poucos deles e que só com o primeiro - e com reservas - e com o penúltimo é que se parece ter entendido a um nível de perfeição que o permitiu formar uma equipa estável com eles.

SEGUNDO GRANDE CINEASTA ZAROLHO

Vi incontáveis fotografias excelentes de Raoul Walsh, homem indubitavelmente muito fotogénico. Lembro-me de uma esplêndida com Gregory Peck, por exemplo, debaixo dos mastros do veleiro de Captain Horatio Hornblower R.N.. No entanto, em 1963, quando estava a rodar aquele que seria o seu último filme, A Distant Trumpet, fotografaram Walsh montado a cavalo e rodeado dos seus amigos peles-vermelhas, que que intervinham como actores nessa revisão crítica de alguns dos temas que tinham recebido um tratamento igualmente épico mas também mítico em Todos Morreram Calçados. Nascido a 11 de Março de 1887, já tinha setenta e seis anos. É uma imagem reveladora e emblemática, que reflecte a sua vitalidade e a sua atitude moral como realizador, e talvez seja por isso a que mais valha a pena recordar e conservar do segundo grande cineasta zarolho da história, o mesmo que trinta e quatro anos antes tinha perdido um olho num acidente de carro causado por uma lebre que se atravessou no seu caminho e que Walsh tentou esquivar, quando ia para a rodagem do seu primeiro western sonoro, In Old Arizona.

in «Nickel Odeon - Revista trimestral de cine» nº4, Outono de 1996.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

GENTLEMAN JIM (1942)


por Miguel Marías

Hoje os Corbett não lutam. Já não há famílias de imigrantes irlandeses buliçosos em São Francisco da Califórnia dispostos a conquistar o novo mundo e a trepar pela escada social usando a astúcia, a comédia ou os punhos. James J. Corbett (Errol Flynn) foi a sua apoteose: desrespeitoso para com os presunçosos, impaciente diante dos obstáculos e alérgico à uniformidade, sempre respeitou as regras do marquês de Queensberry (mesmo sem as conhecer, e sobretudo fora do ringue); por isso o apelidaram de Gentleman, porque ainda que não fosse um gentil-homem —qualificação que rejeitava, identificando-a com piralvilhos ou lorpas— ganhou a pulso o título de cavalheiro, no seu sentido mais amplo e nobre, menos convencional e social. Refiro-me ao personagem interpretado por Flynn no desbordante filme da Warner de 1942, mais do que ao verdadeiro campeão de boxe, sobre o qual dificilmente terei outros testemunhos dignos de fé do que o dos guionistas Vincent Lawrence e Horace McCoy e do cineasta Raoul Walsh. Mas não é por isso que vou cair na armadilha de sustentar que este filme é um documentário exemplar, que se serve da biografia ficcionada de um vencedor para perpetrar uma apologia do que os incompetentes mais temem, objetivo que me parece distante tanto dos resultados como das presumíveis intenções dos seus autores: suspeito que para Walsh os recém-chegados fossem os novos ricos que compõem a boa sociedade, e que Jim lhe parecesse un pícaro arrivista —desejoso de subir e chegar ao topo— perfeitamente respeitável. É assim que chega a pensar a orgulhosa Alexis Smith e não é em vão que o personagem mais nobre e primitivo do filme, o campeão saliente, John L. Sullivan (Ward Bond), se possa retirar com o consolo de não se ver humilhado pela compaixão de Corbett, que o trata espontaneamente de igual a igual, como um veterano do qual se sabe o digno substituto. Esperemos que Walsh tenha um herdeiro. 


quinta-feira, 27 de junho de 2019

THEY DIED WITH THEIR BOOTS ON (1941)


por Miguel Marías

Os finais trágicos e as mortes de protagonistas abundam em poucos dos grandes pioneiros como em Walsh. Não é de estranhar, portanto, que se tenha tornado um mestre das despedidas. Recordemos não apenas o seu adeus impetuoso ao cinema, (A Distant Trumpet), mas sobretudo — talvez as mais belas cenas da sua longa carreira — a do novo campeão e do derrotado John L. Sullivan em Gentleman Jim e o de Custer e da sua esposa —«Passear a seu lado durante a vida foi muito agradável, senhora»— em They Died with their Boots On, cenas subtis e delicadas, prodígios de ritmo e modulação dignos de Ford ou Mizoguchi. 

They Died with their Boots On representa em toda a sua esplêndida plenitude uma época do cinema americano em que o épico era rei e o entusiasmo, a vitalidade e o humor se aliavam sem esforço aparente à lucidez, a amargura e a tragédia. Raoul Walsh foi foi um dos paladinos máximos deste cinema, porque acreditava na possibilidade do triunfo moral para além da morte. O Custer de Walsh não é o general George Armstrong Custer da história nem o da lenda, e ainda menos o da desmitificação rancorosa, mas sim mais um rosto do herói pícaro que esse actor menosprezado que foi Errol Flynn encarnou como ninguém. Entre Homero e Xenofonte, Walsh convida-nos a asistir à ascensão e queda de um cavalheiro do Sul e de um farsante, um soldado da União tão indisciplinado como atrevido, um defensor dos índios, que morreu a matar Sioux por causa dos especuladores e dos corrompidos, que foi nobre inimigo e amigo incorruptível, e que alcançou a glória cinematográfica a cavalgar a galope na direcção da morte.

Não é de estranhar que um filme tão cheio de vigor e energia, entusiasmo e espírito aventureiro, alento épico e picardia, sentido narrativo e beleza plástica, se conte entre os mais caluniados da história do cinema. 


sexta-feira, 31 de maio de 2019

DISTANT DRUMS (1951)


1951 – USA (101') ● Prod. Warner (Milton Sperling) ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Niven Busch e Martin Rackin a p. de uma história de Niven Busch ● Fot. Sid Hickox (Technicolor) ● Mús. Max Steiner ● Int. Gary Cooper (capitão Quincy Wyatt), Mari Aldon (Judy Beckett), Richard Webb (tenente Richard Tufts), Arthur Hunnicutt (Monk), Ray Teal (Mohair), Robert Barrat (general Zachary Taylor), Clancy Cooper (sargento Shane).

Flórida, 1840. Os Estados Unidos lutam há anos em vão contra os Índios Seminoles. O tenente da marinha Richard Tufts é encarregado de pôr uma embarcação ao serviço de Quincy Wyatt, um oficial fora do comum que vive com a sua pequena equipa de quarenta homens numa ilha, no próprio terreno dos combates, tendo rompido todo o contacto com o exército regular, as suas práticas e a sua disciplina. Ele próprio veste roupas mais próximas das de um caçador que de um soldado. Muito respeitado por todos, Wyatt tem um filho de seis anos cuja mãe, uma princesa indígena, está actualmente morta. O plano de Wyatt é atacar e destruir o forte vizinho, onde os Seminoles se reabastecem de armas graças a contrabandistas. Ele acredita poder ser bem sucedido sem outro apoio a não ser as poucas dezenas de homens do seu regimento. Conseguiu a aprovação do general Zachary Scott para essa empreitada temerária. O ataque tem lugar à noite. Depois de uma breve luta com os contrabandistas, Wyatt e os seus homens descobrem o arsenal e libertam alguns prisioneiros brancos capturados pelos traficantes de armas; depois fazem o forte explodir. Agora é preciso escapar aos Seminoles. Eles chegam em massa à praia ao longo da qual atraca a embarcação de Tufts. É impossível subir a bordo. Wyatt decide atravessar os pântanos, zona fértil em perigos de todas as espécies, repleta de serpentes e crocodilos. Há duzentos quilómetros para percorrer nesse inferno. Wyatt separa os seus homens em dois grupos: uns vão partir a pé, outros correrão com ele o risco de ficar no local para construir canoas. Assim que estão feitas, seguem para o ponto de encontro, a clareira de túmulos sagrados dos Seminoles, montes de terra sob os quais os cadáveres são enterrados em pé. Durante a viagem, Wyatt familiarizou-se melhor com uma das prisioneiras, Judy Beckett, que se procura fazer passar por uma jovem da alta sociedade de Savannah. Wyatt adivinha imediatamente que vem de uma das regiões mais pobres da Geórgia, como ele. Ela é assombrada pelo desejo de encontrar o assassino do seu pai, um aristocrata da cidade. Na clareira, só está presente um sobrevivente do primeiro grupo no ponto de encontro. Os outros foram massacrados ou capturados. Wyatt apanha um Seminole apontando-lhe a boca aberta de uma serpente. O índio indica o local onde os prisioneiros estão escondidos. Mas quando os soldados lá chegam, depois de andarem muito tempo pelos pântanos, com a água a subir-lhes até ao peito, é tarde demais. Os prisioneiros foram oferecidos como alimento aos crocodilos. Wyatt e os seus homens voltam para a ilha deles, devastada pelos índios. Wyatt ordena a cada soldado que cave um buraco individual para se defender contra o inimigo. Diz a Judy que a mulher dele foi morta, não por índios, mas por soldados jovens bêbados; renunciou à vingança há muito tempo. Desafia o chefe dos Seminoles em combate singular – duelo com facas no rio – para evitar mortes inúteis. De facto, com o chefe morto, os índios fogem imediatamente. Chegam o general Zachary Scott e as suas tropas; o jovem filho de Wyatt, que este não esperava voltar a ver, está com eles. Os soldados encontraram-no escondido na selva. Eles partem na pista dos Seminoles, enquanto Judy, modificando os seus planos, vai ficar na ilha em companhia de Wyatt e do seu filho.

► Encontro de um grande cineasta com um grande actor, Distant Drums representa a quintessência do filme de aventuras americano. As peripécias e a trama (retomadas de Objectivo Burma) contam pouco e servem sobretudo para envolver como a pele envolve um organismo vivo o propósito do cineasta, que é de ordem plástica e moral ao mesmo tempo e de um classicismo tal tanto num domínio como no outro que desencoraja os comentários. O filme combina as belezas da épura (do esquiço da arquitectura), da pintura e de qualquer coisa que é um movimento constante da imagem e a que se deve chamar de cinema. O cinema, aqui, não só desloca as linhas, como as dirige a todas no sentido de uma meditação moral, simples e evidente, transmitida por um realizador que filma como respira. Se Distant Drums sacrifica o culto do herói – Wyatt é apresentado assim: «soldado, homem dos pantanais, grande senhor, incansável» – o herói que dá a ver não tem nada de sobre-humano. Wyatt está ali para encarnar o melhor e o mais natural do homem, a caminho da serenidade. Nos diálogos, é evocada por duas vezes uma história de vingança (o passado de Mari Aldon e o passado de Cooper) e nos dois casos tratar-se-á de uma vingança ultrapassada e abandonada, no final. No que lhe diz respeito, Wyatt sente-se tão afastado do exército regular a que pertence como dos índios contra os quais combate. Este individualista só está de acordo com ele próprio e com a paisagem. Este herói walshiano perfeito é portanto um solitário, mas sem melancolia nem amargura. Rectidão, equilíbrio, domínio do perigo, estas noções ao mesmo tempo físicas e morais que caracterizam a sua acção, pedem uma narração clara, em linha recta e sem manchas que encha o olho com uma transcrição plástica viva e fascinante. Ela existe aqui em pleno, neste filme consumado e lacónico.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

quarta-feira, 29 de maio de 2019

sábado, 4 de maio de 2019

"An average day at the studio", 1949.


















Assistente: Mr. Trent's on the phone, Raoul.

R. Walsh: Arthur? You're my favorite producer and I'd do anything in the world for you, except that!

It's a Great Feeling (1949)

WALSH Raoul (1887-1980)



por Jean-Pierre Coursodon e Bertrand Tavernier

Nascido a 11 de Março de 1887 em Nova Iorque, onde se estreia como actor de teatro em 1910. Contratado como actor e assistente pelos estúdios Biograph, trabalha lá com Griffith. Interpreta o papel de John Wilkes Booth, o assassino de Lincoln, em O Nascimento de uma Nação. Também é Griffith que o envia até ao México para rodar cenas documentais de The Life of General Villa (co-realizado por Christy Cabanne), que mistura reconstituição e cenas filmadas no local em que Villa interpreta o seu próprio papel. Na sua auto-biografia (Each Man in His Time), Walsh conta que pediu a Villa para adiar uma série de execuções para que tivesse luz suficiente, dada a sensibilidade da película. Em 1914, Walsh realiza vários filmes de duas bobines para a Mutual. Começos na Fox em 1915 com a sua primeira longa-metragem, Regeneration. Roda todos os seus filmes para a Fox até 1920. 1921-1922: roda dois filmes para a sua própria companhia de produção. 1925-1933: novamente sob contrato com a Fox. 1935-1939: sob contrato para a Paramount. 1940-1950: sob contrato para a Warner, onde roda 21 filmes. Falecido a 31 de Dezembro de 1980 em Simi Valley (Califórnia).

Na sequência de um erro de James Wong Howe, atribuiu-se-lhe a nova rodagem e a re-montagem de Walking Down Broadway de Stroheim. Na verdade, este trabalho foi efectuado por Alfred Werker. Por outro lado, está agora provado que retomou The Enforcer, começado por Bretaigne Windust, cuja realização e visão do mundo dos gangsters foram consideradas muito brandas. Segundo o produtor argumentista Martin Rackin, ele teria rodado a quase totalidade do filme, um pouco menos segundo Zero Mostel e Ted de Corsia. Em Velvet Light Trap, ele declara ter rodado e não assinado um filme com Bette Davis. Contrariamente ao que foi afirmado, não colaborou nos filmes Warner San Antonio (David Butler, 1945), Stallion Road (James V. Kern, 1947) e Montana (Ray Enright, 1950). Mas dirige a última sequência, claramente mais ritmada, de In This Our Life (John Huston, 1942) e, segundo Bezzerides, grande parte de Action in the North Atlantic (Lloyd Bacon, 1943).

*

A obra de Walsh talvez seja vítima, em primeiro lugar, da personalidade cheia de côr do seu autor. As suas qualidades mais profundas estão como que enterradas numa avalanche de aventuras truculentas, de peripécias lendárias que constituem a maior parte da sua auto-biografia, como que desvanecidas a favor da imagem que ele adorava dar de si mesmo. Gregory Peck contou-nos que ao entrar de surpresa no quarto de Walsh durante a rodagem de Captain Horatio Hornblower, o viu esconder o livro que estava a ler: O Vermelho e o Negro. E Peck acrescentou: "Eis uma reacção típica de Walsh: querer tentar esconder uma verdadeira cultura por trás da aparência de corsário, aventureiro obstinado e amante de cozinha."

Não que seja necessário minimizar todo este pitoresco. Tem um papel demasiado importante nos seus filmes. Mas também pode constituir uma máscara que lhes camufla o sentido e a originalidade. Portanto tentemos arrancar esta máscara, não sucumbir ao folclore. Hollywood produziu outros aventureiros igualmente extravagantes - Huston, Fleming - cujas realizações não têm nada que ver com as de Walsh.

Um dos clichês mais persistentes e mais redutores consiste em rotulá-lo de uma vez por todas entre os «mestres do cinema de acção», assimilar o seu estilo à rapidez da sua narração, fazer dele em suma o arquétipo do cineasta da Warner. Uma espécie de super Lloyd Bacon, de Curtiz ao quadrado. Tem ritmo para dar e vender, é certo. A maior parte do tempo impõe e mantém um andamento cuja fundação, pulsação e tom evocam equivalentes apenas no jazz: a secção rítmica de Count Basie, Max Roach e Art Blakey. Impulsiona literalmente os seus actores - como eles os solistas - para o centro da acção, da cena e do conflito, acentuando e decuplicando a rapidez dos seus movimentos com a decupagem e com constantes movimentos de câmara, geralmente ultra-rápidos. Ele não acelera o movimento de forma artificial, contrariamente a um hábito da casa, com grandes planos encadeados, efeitos visuais e elipses. Não abusa nem do diálogo em staccato, nem dos efeitos de montagem. Só que o ataque do mais pequeno plano, o ângulo que inaugura ou encerra uma sequência dão prova de uma concisão incrível, de um espírito de síntese surpreendente. Fica-se com a impressão de que a câmara é colocada de maneira a que o caminho entre a emoção procurada (riso, lágrimas, exaltação) e o espectador seja o mais directo, o mais puro e o menos anedótico. Uma das suas figuras de estilo favoritas é o travelling frontal rápido, a maior parte das vezes em contra-picado, que vai dramatizar um detalhe, uma reacção e dinamizar uma entrada em campo: em They Died With Their Boots On, por exemplo, Olivia de Havilland sai bruscamente de campo durante um dos seus primeiros encontros com Flynn, deixando-o sozinho no enquadramento; Walsh faz então o raccord com um movimento de câmara a aproximar-se da jovem que se dirige para casa, movimento que se inicia antes de Flynn entrar novamente em plano. O efeito restitui simultaneamente a impulsão emocional, traço de carácter dominante de Custer, que o desvia sempre para outra realidade que não a guerreira, a atracção súbita que os dois jovens sentem um pelo outro e a determinação de Olivia de Havilland, que se torna o eixo da cena.

Este domínio sobre o andamento também o permite jogar com as inverosimilhanças e com as extravagâncias do argumento. Assim, em Desperate Journey, a mise en scène consegue dar um verdadeiro brio, transformar num exercício de alta voltagem perfeito no seu género uma história alegremente novelesca à qual Vincent Sherman, primeiro realizador abordado, queria injectar - perguntamo-nos como - realismo e um lado «humano». A estas ambições misteriosas, preferimos largamente o memorando de Walsh a sugerir criar entre as personagens «um sentimento próximo do dos mosqueteiros»; ele vai inventar mesmo uma morte à Porthos para Alan Hale.

É certo que Walsh se sentia muito à vontade na Warner, que assimilava facilmente os princípios dramáticos caros a esta firma (ainda que as suas qualidade mais pessoais atravessem e alimentem um bom número de obras anteriores a 1939 e em particular Regeneration, O Ladrão de Bagdad, Me and My Gal, vários momentos em The Bowery, Wild Girl) para os transcender. Raramente confunde rapidez e tremor. Paradoxalmente, o que caracteriza mesmo algumas das suas obras-primas (The Strawberry Blonde, Gentleman Jim, Pursued, They Died With Their Boots On), apesar da sua extrema vivacidade narrativa, é uma impressão de grandeza, de majestade, de plenitude harmónica. E no entanto os planos gerais com grande figuração evitam todos os enfeites, toda a ostentação (a partida sobre um pontão em Gentleman Jim, o anúncio da guerra civil em They Died). Walsh não exibe os seus meios, não nos convida a fazer turismo pelos seus cenários, não procura contabilizar o que custaram. É o anti-Selznick. Para ele, a arte não se mede em termos de dimensão, de peso ou de magnitude. É uma questão de proporções. Temos vontade de lhe aplicar o belo elogio que Gounod fez de Berlioz exaltando a sua qualidade mais secreta, a mais paradoxal, a que mais lhe invejava: a elegância («essa elegância que se esconde por trás da ebulição, da invenção lírica, o esplendor orquestral com as suas vagas quebrantes»). Walsh insistirá sempre na importância do andamento face à progressão dramática. Numa entrevista publicada na Velvet Light Trap, declarou: «Nunca se deve deixar o público à nossa frente, é preciso tomar sempre a dianteira.» E acrescentou: «É preciso saber acelerar e também quebrar o ritmo... Em White Heat, senti que era necessário um momento lento... É a cena na borda da floresta. Precisávamos de um monólogo ou qualquer coisa semelhante antes de recomeçar... De ver se conseguíamos colher alguma simpatia pelo personagem em vez de carregar, carregar, carregar.» Durante estas paragens, Walsh quebra bruscamente a progressão dramática, muda de registo, de andamento (aí ainda se impõem as comparações com os músicos de jazz). Esses momentos podem ser pausas que permitem passar da comédia à emoção, do riso às lágrimas (a chegada de John Sullivan depois da sua derrota, o seu último e comovente encontro com Jim Corbett em Gentleman Jim) ou apertar e re-centrar a acção: os reencontros muito comoventes num parque, de Olivia de Havilland e James Cagney depois da saída deste da prisão (The Strawberry Blonde); a sequência-relâmpago de They Died durante a qual Custer, na véspera de Little Big Horn, vai saudar o seu mais mortal inimigo, o traficante e especulador Sharp, para o levar na sua missão suicida. O rigor inelutável dessa cena, o seu controlo, a sua tensão dramática, a modernidade das interpretações de Arthur Kennedy e Flynn, este último assombroso pela violência interior e pela concentração trágica, a maneira com que Walsh faz descer o volume das vozes para aumentar a violência do confronto, todas estas qualidades têm pouquíssimos equivalentes nos westerns da época (com a excepção do Ford de Drums Along the Mohawk). Estas rupturas, estes abrandamentos dramáticos como os encontramos em Pursued, The Man I Love, Band of Angels, Os Nus e os Mortos e Colorado Territory põem a nu as tensões e os conflitos. Longe de constituírem instantes de repouso, de descontracção, são prelúdios trágicos como que habitados e assombrados pelo drama que se está prestes a cumprir.

Estes parêntesis também podem ditar o tom de todo um filme, provando definitivamente que Walsh não confunde ritmo e velocidade. Ao longo de toda a sua carreira, ele manifestou uma predilecção pelas crónicas deambulatórias, pela acumulação de esboços, de anotações, de intrigas paralelas, de digressões cómicas ou sentimentais: O Ladrão de Bagdad, O Preço da Glória, Me and My Gal, The Big Trail, Battle Cry. Nos anos 50, esta tendência vai-se tornar cada vez mais importante, a narração será feita de forma cada vez mais livre (The Tall Men, Band of Angels), de forma cada vez mais despreocupada (The King and Four Queens, Marines, Let's Go). Mas mesmo em pleno centro do período Warner, ele vai assinar obras desprovidas de acção (The Strawberry Blonde), com progressão dramática mais tranquila (The Man I Love, They Drive by Night) e que se contam entre as suas melhores.

Esta propensão para o passeio, desde que a dinâmica interna que deve unir estes fragmentos esteja ausente, pode resultar num excesso pleonástico entre material e tratamento. Cada parte torna-se mais importante que o todo e fica-se com uma sensação de atropelamento. Este defeito paralisa por exemplo Barba Negra, o Pirata, filme de piratas muito medíocre com cenários aterradores, e de forma diferente e mais curiosa The King and Four Queens, e anestesia os sucedâneos de What Price Glory : Woman of All Nations, The Cock-Eyed World. Este último dura praticamente duas horas a partir de um tema infinitesimal, continuação de esboços descosidos que animam as mesmas brincadeiras incansáveis, os mesmos confrontos entre Edmund Lowe e Victor MacLaglen, pelos belos olhos de raparigas intercambiáveis. Quando uma situação parece esgotada, uma ordem de missão nova envia-os para um país novo. O resultado é certamente «pessoal» (até à paródia) e totalmente desprovido de interesse, o que não é contraditório. Esta jovialidade gracejadora, este humor macho, grosseiro quando não leva a nada, como é aqui o caso, representa uma das qualidades mais superficiais de Walsh, justamente uma das suas máscaras.

É que, nos seus grandes filmes, a acção nunca se confunde com uma aglomeração de peripécias qualquer. Para as suas crónicas emocionais como para os seus westerns, os seus filmes de género ou de aventuras, pode-se retomar aquilo que Jacques Lourcelles dizia de forma tão justa sobre Objective, Burma! (in "Présence du cinéma" nº 13): «Não conseguiríamos enumerar o que Walsh não quis que o seu filme fosse: cântico de vitória lírico ou cruel, apelo cerimonial pela paz ou pela guerra, conflito simbólico de caracteres. Objective Burma não é nada disso; mas talvez seja isso tudo junto, numa trama tão cerrada que as virtualidades se destroem umas às outras.» E acrescenta: «O seu cinema não detalha as feridas. Vê-as a aproximarem-se devagar. Aliás, o filme na sua totalidade deseja desenhar o movimento dessa cicatrização.»

Ele sabe organizar as cargas, as cavalgadas e as batalhas no espaço menos como estratega que como visionário. A sua mise en scène abre-se constantemente sobre o mundo com uma energia abundante, dramatizando a luta entre a evidência e o caos. Este «cineasta do relâmpago e das forças telúricas» (É assim que o define o comentário do belo filme de Pierre Rissient, 5 et la Peau) impõe desde o início uma abordagem cósmica da natureza e dos dramas que aí se vão desenrolar. Lembremo-nos das suas marchas na selva em Burma e Distant Drums, dos seus surtos de cavaleiros no topo de uma colina de Band of Angels, Battle Cry, Distant Drums, da abertura de White Heat e de Silver River, da batalha de A Distant Trumpet, uma das mais belas da história do cinema. De resto, é apaixonante comparar o tratamento dos exteriores nos seus westerns com o de outros realizadores. As suas paisagens nunca traduzem essa ligação melancólica e poética ao solo cara a John Ford. Não têm a importância estratégica que Mann lhes confere, mesmo nos prolongamentos psicológicos. Não são filmados com o lirismo elegíaco de Daves ou o despojamento de Boetticher. Walsh vincula-se sobretudo à força metafísica que eles emitem, às relações simbólicas que eles mantêm menos com o estado de alma dos protagonistas do que com o movimento interior da cena: A Cidade da Lua, os imensos rochedos no final de Colorado Territory tornam-se um monumento imenso, à medida do amor e da revolta do casal perseguido (aí a realização é mais inspirada do que em High Sierra). As ruínas do começo de Pursued anunciam desde logo o clima de pesadelo e de desolação moral que será o do filme. Os plateaus desertos de A Distant Trumpet transformam as últimas sequências, para além de um argumento balbuciante, numa cantata fúnebre; a praia branca e a cor da água concretizam em alguns planos esse «Paraíso perdido» que é a cabana de Wyatt e que se tornará mais tarde o seu último refúgio (Distant Drums).

Esses rochedos, essas florestas e essas montanhas são apreendidas não só como o quadro e o lugar da acção, mas como o seu contraponto, o seu prolongamento cósmico. Há um panteísmo épico nesta visão que não trata os cenários como locais de passagem, ou um ambiente mais ou menos estético, mas como o centro vital da acção (a decupagem da cena da granada em Objective, Burma!, a este plano, é exemplar). Como nota Alain Masson: «A oposição da execução e da erupção tem uma função capital na maneira com que ele organiza o visível.» ("Dictionnaire du cinéma", Larousse, 1986). Novamente, podem-se citar várias sequências de Burma, They Died ou Sea Devils em que se assiste a um verdadeiro investimento na paisagem, a um corpo a corpo entre homens e a natureza (a travessia do rio em The Tall Men).

Um de nós assistiu a um encontro apaixonante entre Alexandre Astruc e Raoul Walsh. Astruc, que tinha visto mais de dez vezes The Naked and the Dead antes de começar La Longue Marche, queria saber a qualquer preço como é que ele tinha conseguido obter essa relação com a paisagem, essa verdade nas cenas de acção. Sentimos Walsh surpreendido por um realizador ver o filme de outro várias vezes antes de rodar, mas depois de ter agradecido a Astruc respondeu que não fazia repetição alguma. Depois de ter dado as suas indicações aos actores e aos figurantes, rodava imediatamente «para que não houvesse nada de mecânico. Só se recomeçava se se desperdiçasse o plano inteiro. Caso contrário, mantinha o que havia de bom, montava-o na cabeça e partia daí.» Aplicou o mesmo método em White Heat para a sequência prodigiosa do esgotamento nervoso de Cagney quando sabe da morte de sua mãe. Escondeu dos duplos o que Cagney ia fazer e vice-versa, contentando-se a dizer a este último «Tu ganhas a porta a qualquer preço». Com cinco câmaras (admiravelmente colocadas), a totalidade da cena foi rodada num plano e em meia manhã.

A primeira coisa que impressionava em Walsh, quando o encontrávamos, era a sua ausência de preconceitos, a sua largura de visão. De todos os cineastas da sua geração que conhecemos, era um dos mais abertos, um dos menos paralisados pelas tendências ideológicas. Nunca se entregou a piadas racistas como Hawks (que comparava os líderes negros aos macacos do zoo). Pelo contrário, sonhava em visitar a China, até mesmo em rodar um filme sobre a Grande Marcha.

Esta abertura de espírito explica por vezes a sua não-discriminação diante de certos temas que lhe propuseram (especialmente nos anos trinta) e em que aceitava naturalmente o estado de espírito das personagens. E também a sua capacidade de integrar organicamente todas as inovações, fossem elas técnicas, visuais ou dramatúrgicas, sem nunca as «publicitar». Assim, filma com uma evidência inaudita na sua simplicidade os magníficos cenários estilizados e sofisticados de William Cameron Menzies em The Thief of Bagdad, que é preciso ver na sua cópia tintada com nuvens que ganham cor e depois a perdem. Dominou imediatamente os 70 mm a partir de 1930 (o processo chamava-se de facto «Grandeur») assim como foi o primeiro a utilizá-lo para The Big Trail. Segundo o crítico Dave Kehr, o visionamento desta obra numa cópia finalmente restaurada pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e apresentada no seu formato original é uma revelação. Descobre-se um filme totalmente diferente, de tendências rosselinianas: o uso do espaço para fins documentais, do ecrã largo para realçar a simultaneidade dos trabalhos e das tarefas quotidianas, o respeito pelo tempo real, especialmente nos planos muito impressionantes que descrevem a travessia por uma escarpa pelas carroças. Enquanto os heróis escalam uma colina, apaga-se um fogo no fundo, arrumam-se as coisas e toda essa vida relega para segundo plano a intriga simplória e o diálogo desajeitado.

Também não se vai sentir desorientado diante das implicações freudianas muito novas para a época ou o tom negro e gótico de Pursued, que assimila com uma facilidade espantosa e sem nunca os enfatizar. Parece estar no seu elemento natural, orquestra o trágico deste conto de amor e de morte (em que o argumentista Niven Busch se inspirou visivelmente, repitamo-lo, por The Master of Ballantrae de R. L. Stevenson) com um rigor e uma maestria que fazem dele o protótipo paradoxal do filme maldito que nunca conseguiu ser reconhecido como tal (podemos bem manter que é o seu Under Capricorn). Revimo-lo várias vezes e, a cada visionamento, parece-nos sempre tão novo, tão pouco datado. Estas qualidades encontram-se num dos seus primeiros filmes, Regeneration, fantástica descoberta que devemos a William K. Everson: Walsh tinha assimilado perfeitamente a linguagem e o estilo de Griffith e talvez mesmo ultrapassado o seu mestre. Nesta história de gangsters, talvez a primeira da história do cinema, a mise en scène associa montagem e movimentos de câmara - estes últimos de uma rapidez e de um alcance assombrosos - com uma sofisticação que não se encontra em Griffith. Rodado inteiramente em exteriores na Bowery e nas margens do Hudson (a briga num pátio em que estendem lençóis é o testamento de uma invenção visual inaudita), esta obra-prima desconhecida talvez seja, como diz Everson, o primeiro ensaio naturalista cinematográfico. Certos toques anunciam Stroheim, antecipam o film noir dos anos quarenta e prefiguram outros títulos de Walsh, entre os quais The Bowery, claro. Surpreendemo-nos com a gravidade sombria e rigorosa do tom, a leveza da invenção poética, a audácia da fotografia. Na sua auto-biografia, Walsh conta que, antes de filmar uma cena de incêndio a bordo de um barco, encheu-o de verdadeiros vagabundos, destroços humanos (que já tinha usado como figurantes nas sequências que se desenrolavam «nas docas») e mulheres e lançou-os todos para o Hudson. Nas rushes, apercebeu-se que a maior parte das mulheres que tinham saltado à água para escapar às chamas não estavam a usar roupa interior. Para escapar à interdição, teve a ideia de a desenhar sobre a película... Depois desta descoberta gostávamos mesmo muito de ver os seus outros filmes mudos, o que parece difícil. John Ford declarou-nos que um dos filmes dele que o influenciou e impressionou mais foi The Honor System, que infelizmente parece ter desaparecido, tal como The Strongest, em que adaptava um romance de Georges Clemenceau (Les Plus Forts), cujas personagens principais eram um marquês, um jovem americano, uma rapariga e grevistas que a mantinham prisioneira.

Aqueles que conseguimos ver denotam uma energia pouco comum, que nada pode inibir ou pôr freio. Produz-se até uma tensão entre o material e o tratamento, que vai diminuir à medida que a sua carreira progride. Ela aparece mais claramente nos filmes mudos e nos primeiros falados, altura em que não pensava em disciplinar e em conter a sua exuberância formidável. Dava-lhe livre curso, sem se preocupar minimamente com a natureza real do tema que tratava. Carmen torna-se assim uma colecção de efeitos de slapstick típicos de Dolores Del Rio e somos tomados de surpresa quando Walsh muda bruscamente de tom na primeira bobine, passando sem transição da comédia ao melodrama. O final no quarto de Carmen, magistralmente dirigido e estilizado, é o ponto culminante do filme, mas apesar disso destoa com tudo o que o antecede. No entanto, ele renova verdadeiramente esta história um bocado repetida. Em What Price Glory, uma mudança de registo e de cor idêntica reforça e limita as ambições desmistificadoras do filme (Esse gosto pelo duplo - tema, tom - vai persistir em toda a sua filmografia). A intrusão da guerra e das cenas de batalha magistralmente dirigidas parece quase deslocada depois das altercações cómicas da primeira parte. A narrativa quase abstracta até esse momento vira-se para o realismo. Podemos facilmente criticar estas tendências ou defendê-las, dependendo se considerarmos que são extraídas de uma dramaturgia de argumento hábil e fabricada ou que, pelo contrário, se referem metaforicamente ao realismo mais restrito. Um livro tão documentado e tão autobiográfico como La Peur de Gabriel Chevallier afirma que tudo era desculpa para rir quando não se estava na linha da frente, nem que fosse apenas para descomprimir. Acrescentemos que várias cenas não carecem de poder. De movimentos de câmara formidáveis que compensam algumas palhaçadas intempestivas e essa exaltação fatigante da amizade viril. Em contrapartida, é melhor esquecer In Old Arizona, do qual 80% são consagrados a gracejos de gosto discutível, tal como em The Cock-Eyed World. O gosto do cineasta pela exuberância sul-americana não tem limite algum nestes dois filmes e ao lado de Lili Damita, a interpretação de Dolores Del Rio em Carmen parece bressoniana.

Mas Walsh também era capaz de rigor, mesmo que fosse na fantasia, como o prova o admirável The Thief of Bagdad. A influência de Fairbanks é capital, certamente, mas a mise en scène sabe-a transcrever em termos visuais, dar-lhe a sua própria poética. De qualquer forma, é interessante constatar que ele tinha atraído a atenção da crítica no final do mudo pelo começo dos anos trinta tanto por The Thief of Bagdad ou What Price Glory como por Sadie Thompson (já tinha adaptado Maugham em East of Suez). O futuro realizador Jean Sacha, na altura crítico na L'Ami du Film, classificava-o entre os melhores cineastas do seu tempo e elogiava «o seu estilo muito reconhecível, especialmente em The Yellow Ticket cujos travellings magníficos não igualam sempre os de What Price Glory.». Gabava merecidamente «o sentido dos exteriores e o lirismo de Wild Girl», o ritmo de Sailor's Luck e sobretudo de Me and My Gal, «esse outro sucesso do realizador de What Price Glory».

É preciso dizer que, desde o mudo, a sua estética manifesta um espírito de síntese excepcional, recusa sacrificar o efeito pictórico, privilegiando uma verdadeira dinâmica visual. Desde Regeneration, impõe as suas figuras de estilo favoritas: câmara no chão ou muito baixa, comprimento focal curto, importância primordial das linhas de fuga e das diagonais na composição de um plano, a relação desse plano com o seguinte, os deslocamentos das personagens e dos figurantes no interior do enquadramento. As entradas e saídas de campo raramente são frontais (ou então uma panorâmica rápida «rompe» o ângulo de visão), preferindo jogar a mise en scène com a profundidade e com as linhas de força perpendiculares em vez das laterais: o primeiro encontro de Custer e Elizabeth (They Died), Mitchum a deixar o mercado passando por trás dos recrutas que se acabam de voluntariar (Pursued), a progressão dos soldados em Objective, Burma! e The Naked and the Dead que passam o tempo a afastar-se e a aproximar-se da câmara. Sempre que pode, Walsh quebra a simetria, a distância durante um travelling, entre a câmara e o actor que segue ou antecipa (a corrida de Cagney no final de The Roaring Twenties). Quando o tema o força a usar vários movimentos de acompanhamento, ele perturba de seguida a perspectiva dando uma grande importância aos primeiros planos e aos amorces. Assim, em Objective, Burma! os soldados são frequentemente mascarados pelas folhas, pelos ramos de árvores, trepadeiras e plantas exóticas. Estas perspectivas traduzem fisicamente a solidão, a claustrofobia e a sensação do perigo, façanha visual assombrosa (quando se considera que o filme foi rodado num rancho da Califórnia, na Nova Jérsia e em estúdio), pela qual é preciso creditar de igual forma o director de fotografia, James Wong Howe. (Assinalemos de passagem que o vídeo da Warner é mais longo perto de 20 minutos do que todas as cópias exploradas na França.)

Esta maestria do espaço (da qual nos é dado um exemplo espectacular lá para o fim de The Enforcer) permite a Walsh investir o cenário de tal forma que já parece conter e anunciar o destino dos seus heróis, e intensificar os seus impulsos, que os empurram a ir perpetuamente para a frente. Sempre em movimento (viagens, missões), percorrem distâncias imensas, passam do Montana coberto de neve ao Texas deserto (The Tall Men), do Este ao Oeste (They Died, A Distant Trumpet), atravessam paisagens completamente diferentes (Colorado Territory, High Sierra) e enfrentam os pântanos (Distant Drums) e a selva (Objective, Burma!). São precipitados para estas deambulações, para estas corridas fatídicas, por decisões instintivas ou irracionais tomadas extremamente rápido - pode-se tratar de endireitar uma situação, reparar um erro, alistar-se para uma nova aventura -, um sonho de heroísmo, uma ambição generosa (aos quais se mistura às vezes uma irresponsabilidade imatura, infantil), uma assombração obsessiva: a de Jeb Rand em Pursued leva-o a atravessar desfiladeiros e colinas na direcção de uma casa em ruínas. Esta relação com o mundo exterior, essencialmente épica, traduz uma ambivalência que tem por efeito sublinhar em vez de atenuar a desproporção entre as personagens e a natureza, como nota Roger McNiven na Velvet Light Trap nº15. Elas são engrandecidas e esmagadas por esta, que, longe de simbolizar o Paraíso Perdido como em tantos filmes americanos, é entendida simultaneamente como um refúgio e uma armadilha, como um quadro sumptuoso propício às acções heróicas e como um túmulo que vai acolher Wes McQueen (Colorado Territory), Custer (They Died) e os índios de A Distant Trumpet, um local de sonho e de meditação (Band of Angels). Os heróis de westerns de Walsh não procuram colonizar esta natureza para fundar lá uma dessas comunidades caras a John Ford; também não a ignoram como esses pequenos grupos de profissionais hawksianos que vivem em isolamento. Erram por lá, sulcam-na até que tenham saciado a sua paixão e a sua ambição, levado a bom porto a sua missão. Encontramos praticamente o mesmo esquema nos seus filmes de guerra ou de aventuras (Battle Cry, The Naked and the Dead, The World in His Arms). Durante os anos cinquenta, a partir de Pursued, essa ambição torna-se mais negra, mais agitada. Lidamos com «uma pintura de excessos do herói, do impasse a que esses excessos o levam e que, removendo-lhe toda a humanidade, o fazem voltar a encontrar no fim da viagem o mal-estar de que queria sair» (Lourcelles).

No entanto, é inútil procurá-la na maior parte dos filmes dos anos trinta, década particularmente calamitosa que constitui o nadir da sua carreira. Passa de um melodrama moralizador (The Man Who Came Back, que encadeia inversões estúpidas com peripécias idiotas de forma imperturbável) a comédias musicais (género que nunca o irá inspirar, como o provam mais tarde One Sunday Afternoon, remake medíocre do magnífico The Strawberry Blonde e The Horn Blows at Midnight) de particular mau gosto: Going Hollywood, Artists and Models, Every Night at Eight, em que se ouve no entanto I'm in the Mood for Love e em que se assiste a um número assombroso que, à falta de outro adjectivo, qualificamos de «galináceo» (trata-se de uma imitação cantada deste volátil por Florence Gill). Vai igualmente assinar um western frouxo, Dark Command, a partir de um romance de W. R. Burnett, adaptado por quatro argumentistas entre os quais o talentoso Grover Jones, é verdade. De resto, gostávamos de conhecer as maquinações obscuras que contribuíram para aniquilar todas as possibilidades do argumento em prol de um «super pacote-surpresa» em que a Republic amontoa o melhor que pode todas as suas estrelas do momento: o casal de Stagecoach (John Wayne e Claire Trevor), o cómico (com tudo o que sugere gags repetidos de forma desajeitada), Gabby Hayes, Roy Rogers e o seu cavalo Trigger (mal se imaginam estes dois na obra de Burnett).

Durante este período, ele trabalha essencialmente na Paramount, onde nem a estética nem os géneros de predilecção lhe convêm. Manifesta de resto uma suprema indiferença pelos produtos e pelas vedetas da casa, contentando-se em registar de modo plácido as brincadeiras irreverentes e de auto-satisfação de Mae West (Klondike Annie). Associar-se a Walter Wanger, apesar de tudo um produtor criativo e inspirador, não o estimula o que quer que seja, mesmo que Big Brown Eyes, o melhor dos três que fizeram juntos, continue um dos filmes que se conseguem ver desta época. Mudar de companhia (o penoso Hitting a New High com a cantora Lily Pons foi produzido pela RKO) ou de país não resolve o que quer que seja: as duas obras que ele dirige na Grã-Bretanha, O.H.M.S. e Jump for Glory, são tristemente anódinas. Na Velvet Light Trap ele declara nunca se ter interessado por filmes musicais[1] («Queria apenas ter a oportunidade de ouvir um bocado de música no plateau.»), mas essa explicação não satisfaz. Parece-nos mais convincente a de Pierre Rissient, que avança a hipótese de, durante esses anos, e depois do seu novo casamento, Walsh ter posto a vida social e mundana à frente das suas exigências cinematográficas. Tem-se a impressão de que tinha a cabeça noutro lugar. Sentimo-lo ausente e sem se preocupar com aquilo que roda. Ao longo da sua carreira ele teve de fazer face a encomendas insolúveis, que se limitou a mostrar serem-no. Mas eram acidentes de percurso, enquanto que ali se está a lidar com uma série impressionante de falhanços. A sua recuperação coincide com a entrada na Warner e, ainda segundo Rissient, com o seu divórcio. Mas mesmo durante Roaring Twenties, filme por vezes brilhante mas terrivelmente desigual e sobrecarregado de cenas sentimentais pedidas de empréstimo, que foram cortadas aquando da reposição na França, ele é repreendido em vários planos por Hal Wallis, que exige mais planos largos, censurando-o de decupar demais em grandes planos (crítica sem sentido quando se pensa em What Price Glory, Me and My Gal, a última bobine de Loves of Carmen) e forçando-o a voltar a rodar uma parte da morte de Cagney (cf. Inside Warner Bros.).

No entanto, a década tinha começado muito bem. Entre 1930 e 1933, ele dirige um número bem grande de obras pessoais, por vezes inspiradas. Elogiámos a beleza visual de The Big Trail, mas a de Wild Girl - pensamos nas sequências que se desenrolam na floresta de sequoias - não lhe fica nada atrás. Me and My Gal, Sailor's Luck e The Bowery transbordam de energia e vitalidade. The Bowery funde com alguma dificuldade dois temas, às vezes quase demasiado, a vida de Steve Brodie, reservatório infindável de anedotas e peripécias, e uma nova versão de The Champ de Vidor com os mesmos actores, Wallace Beery e Jackie Cooper. Nem o argumento nem a mise en scène os conseguem fazer fundir, apesar do dinamismo visual que se afasta das convenções em várias sequências: as bebedeiras colectivas, as rixas que degeneram em combates homéricos e os movimentos das multidões. É preciso ter visto Beery a livrar-se de um intrometido esmagando-lhe uma garrafa na cabeça, praticamente sem olhar para ele nem interromper o que estava prestes a fazer. Sailor's Luck vai mais longe no que diz respeito à trepidação, mas a sua alegria divertida não está isenta de vulgaridade: piadas penosas que tomam por alvo todas as minorias e que se organizam para os ofender a todos, dos italianos aos judeus, passando pelos homossexuais. Vendo vários Walsh deste período fica claro que as leis não são destinadas a proteger estas minorias. Tudo o que se lhes faz (roubar bananas a um comerciante italiano, queimar uma barraca cheia de chineses) não tem consequências. Em The Bowery, Beery ralha com o pequeno Jackie Cooper, que tinha atirado uma pedra para a janela de um «chinoca». Perante as suas lágrimas, ele amolece e autoriza-lhe «uma última pedra antes de se ir deitar». Mais tarde, dois grupos disputam a honra de apagar um incêndio em Chinatown. A disputa transforma-se em luta enquanto os ocupantes da casa em chamas gritam, o que é suposto tornar a cena ainda mais cómica.

Com algum recuo, podemos defender a atitude de Walsh, que já dissemos ser totalmente o oposto de um racista, mostrando que correspondia a uma verdade sociológica. Esses momentos reproduzem, com uma ausência de condescendência rara, um estado de espírito corrente sem mascarar nem os preconceitos, nem o chauvinismo nem o estreitamento de espírito. Poucos filmes capturaram a vulgaridade dos marinheiros em licença com tanta vivacidade como Sailor's Luck. A grande força de Walsh, e já aí voltaremos, é a de estar imediatamente ao mesmo nível que as suas personagens, sejam quais forem as suas origens ou o seu meio. Diverte-se com elas, vibra com elas, aceita-as pelo que são, procurando sempre desculpá-las... Pode-se discutir essa adequação entre a forma e o tema, lamentar que não dê provas de um pouco mais de discriminação na escolha das brincadeiras (voltamos ao eterno problema: pode um filme sobre a vulgaridade não ser vulgar?) e reconhecer o peso ocasional desde que se admita que essa atitude também dá resultados maravilhosos. Em vários momentos de The Bowery e na totalidade de Me and My Gal, ele consegue capturar com um à vontade incrível um lirismo plebeu, uma exuberância picaresca e uma invenção poética que pertencem verdadeiramente a um meio popular, à classe trabalhadora. O comportamento de Spencer Tracy e de Joan Bennett em Me and My Gal assenta em toda uma série de desafios e confrontos expressos não só por réplicas sardónicas, mas por atitudes - gestos, olhares, formas de vestir, de usar um chapéu - de que o filme desenha um catálogo rico e delicioso, e cuja verve e entusiasmo não dizem só respeito a uma tradição de representação cinematográfica mas a todo um sistema de valores - e aí, milagrosamente, a invenção exclui toda a vulgaridade. Há uma cumplicidade fraternal no olhar pousado pelo cineasta nas suas personagens que lhe permite escapar aos clichés do populismo e antecipar alegremente o Becker de Antoine et Antoinette.

Passado para a Warner, Walsh aprendeu indubitavelmente a disciplinar o seu talento e a sua energia com o contacto com produtores talentosos (Hal Wallis, Jerry Wald) e argumentistas estimulantes: E. R. Burnett, John Huston, Philip e Julius Epstein, Niven Busch, Robert Rossen. Claro que teve de enfrentar o habitual lote de projectos condenados à partida por razões de argumento ou de elenco (Cheyenne combina os dois, como mais tarde Saskatchewan na Universal), exigências estúpidas por parte das vedetas: assim, Raft, que já se tinha enganado ao recusar High Sierra e The Maltese Falcon faz de Background to Danger um falhanço ao conseguir que reescrevessem a sua personagem que, de simples cidadão apanhado por acaso numa história de espionagem, se transforma num polícia encarregado pela investigação, distorcendo assim totalmente a perspectiva, a progressão dramática e a originalidade da narrativa de Eric Ambler. Vários filmes sofreram com a censura (Walsh afirma que lhe cortaram sempre 3 ou 4 minutos e em White Heat falava de 10 minutos), The Naked and the Dead e A Lion Is in the Streets com certeza. No primeiro, eliminaram não só a maior parte do striptease de Lili St. Cyr, como vários momentos análogos consagrados às relações entre os soldados e as raparigas («cortaram os nus e deixaram os mortos», disse Walsh); com o segundo ainda foi mais grave: o argumento foi completamente castrado antes da rodagem por medo de um processo com a família de Huey Long, a tal ponto que o realizador suplicou a Cagney que abandonasse o filme, que não tinha mais sentido, e é de pouco interesse[2]. Apesar das suas metamorfoses, é difícil estar de acordo com Rivette quando opõe a liberdade de Buñuel, Eisenstein (!) e Antonioni às «amarras de Dwan, Walsh, Tourneur e Minnelli», sendo os exemplos escolhidos demasiado diferentes (podemos ainda lembrar que Buñuel teve o seu lote de filmes alimentares e que Antonioni, certamente mais «livre» que um cineasta sob contrato, já não filma). Não há aí uma confusão tipicamente francesa entre amarras e limitações?

Em todo o caso, Walsh sentia-se em casa na Warner - «Era o estúdio ideal para um cineasta», escreve ele na sua autobiografia. Acrescenta: «Jack Warner nunca interveio nos meus filmes.» - e bastou tê-lo encontrado para sentir que se devia fazer respeitar para além dos contratos e do sistema: «Assim que um produtor se quisesse intrometer no meu trabalho, deixava cair o meu olho de vidro na minha sopa ou no meu café, e procurava-o com uma colher... Normalmente desaparecia bem rápido.» Para além da anedota, todos os testemunhos fazem o relato de um cineasta preciso, que montava durante a rodagem, gastando muito pouca película para que não pudessem manipular a sua montagem e, segundo vários argumentistas - Burnett, Epstein, Daniel Fuchs - muito preciso e muito articulado em relação ao trabalho no argumento.

Agora, e por «correntes», pode-se perceber o peso mais insidioso das convenções, dos hábitos, uma submissão mais ou menos grande aos códigos narrativos ditados pelos géneros. Walsh não está isento destes defeitos: efeitos cómicos realçados, supostamente para aliviar a tensão dramática, contraponto pitoresco complacente. Numa obra-prima como Gentleman Jim, os planos de recurso que mostram os irmãos Corbett a imitar o combate que se desenrola diante deles fazem figura de pleonasmos. Em Colorado Territory, o argumento que por vezes melhora o original perde-se igualmente em peripécias banais e inúteis (o ataque da diligência, de resto bem filmado, não ficaria deslocado num western Republic em série), em atalhos dramáticos discutíveis que pretendem introduzir um pouco mais de acção: depois do assalto ao comboio, o marshall e os seus homens, cuja carroça foi desengatada, juntam-se a pé de forma extremamente rápida à locomotiva que já percorreu um longo caminho. Walsh, de resto, mostrou sempre uma indulgência culpada pelo argumentista deste filme, John Twist, grande fornecedor de clichés, de diálogos convencionais (ele participou, e é o seu título de glória, em Band of Angels mas assinou os argumentos medíocres de Marines, Let's Go e de A Distant Trumpet, nestes dois casos a pedido do realizador).

A maior parte das vezes, estes defeitos mínimos são varridos pelo fôlego e pela vitalidade da mise en scène, que concede à obra a sua verdadeira estrutura. E para além disso, às vezes é difícil delimitar a fronteira entre o respeito pelos códigos e pelas convenções que fazem parte integrante de uma cultura, de uma visão do mundo, e uma fidelidade a regras e ditames narrativos (que com os cineastas «modernos» se podem chamar de moda, ar dos tempos, snobismo). Confrontado com o mesmo problema, Borges enfatizou o lugar primordial de Kipling e Stevenson, segundo ele dois dos escritores e estilistas mais importantes da língua inglesa e cujo génio tinha sido ocultado durante muito tempo, não parecendo «ambicioso» o suficiente o género em que se destacavam. O mesmo Borges declarou a propósito de Shakespeare: «Não creio que ele pensasse em fazer obras-primas. Pensava sobretudo nos seus actores, no seu público, na história que tinha lido, não sei... em Plutarco ou onde fosse. Fazia obras-primas sem o querer, e também sem se interessar muito; não creio que a imortalidade o incomodasse.» Resolução que se podia aplicar a Walsh quase palavra por palavra.

Na Warner, a partir de '41 e depois de duas primeiras tentativas das quais uma, They Drive by Night, é quase um sucesso (pode-se lamentar apenas a suavização do romance de Bezzerides, que será adaptado por Dassin em Thieves Highway, preferindo os argumentistas Jerry Wald e Richard Macaulay anexar-lhe uma segunda intriga saída de Bordertown de Archie Mayo), dirige quatro filmes importantes num ano, dois dos quais obras-primas: The Strawberry Blonde, verdadeiro clássico da comédia romântica de época, com diálogos cintilantes, em que James Cagney está deslumbrante como dentista ingénuo apaixonado pela «gold digger» Rita Hayworth, e They Died With Their Boots On, biografia muito romanceada de Custer, primeiro encontro com Flynn e um dos mais entusiasmantes. Os outros dois, tão pessoais como os outros, traduzem preocupações bem próximas: como aprender a envelhecer (a morrer) com graciosidade, como se adaptar a uma existência mais quotidiana depois de uma vida de aventuras ou de sonhos. As interpretações de Manpower (Robinson, Raft, Dietrich) são espectaculares, mas o verdadeiro êxito do filme reside na dosagem brilhante entre a tensão eléctrica (sem jogo de palavras) das relações pessoais e uma sucessão incessante de contrapontos que vêm aliviar essa tensão. Mais lírico, mais abertamente individualista, High Sierra sofre de algum peso no argumento, de um sentimentalismo explicativo (o cão pequeno) imposto aos autores pelo produtor Mark Hellinger, segundo Burnett. O argumento mais fiel ao espírito de Burnett é o do remake oficial, I Died a Thousand Times de Stuart Heisler, que ele conseguiu limpar dessas escórias: «Conseguiu eliminar certos diálogos, cortar, comprimir. Em termos de argumento é um filme melhor. Em termos de cinema não, porque Walsh fez um trabalho fantástico.»

Apesar desta sucessão de êxitos, o que deixa sempre perplexos os exegetas é a aparente ausência de constantes temáticas no seu autor, como se a personalidade se pudesse reduzir à fidelidade a um ou vários temas e como se esta mesma fidelidade engendrasse obrigatoriamente uma visão do mundo (poder-se-ia sustentar sem paradoxo que ela a restringe com frequência).

Voltamos a encontrar esta visão na abordagem e no tratamento dos personagens principais que pertencem à mesma família: ambiciosos, mas não materialistas (é todo o tema de The Tall Men), conquistadores e conscientes das suas fraquezas, ferozmente individualistas e preocupados com o colectivo: em Pursued, Mitchum vai-se alistar na guerra contra a Espanha depois de ter perdido ao jogo de cara ou coroa. Não o faz por patriotismo (pelo contrário, quando volta, arranca imediatamente as suas insígnias declarando: «Não tenho de esquecer. Não penso nisso», atitude de espírito muito walshiano) mas «porque tem de ser». Em The Tall Men, Gable abandona Ryan e o saque para salvar pioneiros atacados pelos Sioux. Walsh nunca esconde os limites dos seus heróis: a coragem deles impulsiona-os a acções em que se debatem até à cegueira com a bravura cavalheiresca, tornando-se o gosto deles pelo risco às vezes temeridade irresponsável. Custer, no final de They Died, cai verdadeiramente na cilada armada pelos índios, coisa que Walsh sublinha visualmente filmando-o em picado, esmagado e varrido pelos seus inimigos, enquanto que durante as cargas da guerra de Secessão ele era sistematicamente enquadrado em contra-picado. Estamos longe da convicção dos personagens hawksianos...

Outro traço característico, a maneira como ele nos apresenta os seus protagonistas. Em poucos segundos, em poucas frases crípticas ou proféticas: um grande plano de uma chave que abre uma fechadura, um aperto de mão, um travelling semi-circular enquadrando Bogart de costas, eis a nossa introdução a Roy Earle (High Sierra); quatro planos que mostram Cooper a andar na direcção da câmara impõem Quincey Wyatt mesmo antes dele atirar os seus peixes às suas duas águias (Distant Drums). O choque de movimentos e de raccords plano a plano, longe de contrariar, decuplica a impressão de poder e de grandeza (Boorman vai conseguir o mesmo efeito, em tom mais negro, em Point Blank). Um travelling febril para a frente segue Teresa Wright e aumenta sobre o rosto de Mitchum, que acaba de sair da sombra (Pursued). A primeira frase que Gable pronuncia em The Tall Men é a célebre «Estamo-nos a aproximar da civilização» com o avistamento de um homem enforcado.

Peter Brook dizia sobre Shakespeare que assim que uma das personagens se exprimia, ele escrevia a peça do seu ponto de vista, dando-lhe razão pelo menos durante o tempo do seu discurso. Atitude próxima da de Walsh. Assim que ele filma alguém, tem vontade senão de o amar (ele encenou alguns canalhas temíveis), pelo menos de expor as suas razões, de o encenar como que para nos fazer compreender o que ele (ou ela) é incapaz de formular. Citemos ao acaso o sargento Croft (The Naked and the Dead), Cody Jarrett (White Heat) e Grant Callum, o vingador implacável que persegue Jeb Rand em Pursued e que é interpretado com uma força trágica e uma contenção interior extremamente moderna por Dean Jagger. Como Raft, acaba-se sempre por ter pena de Ida Lupino em They Drive by Night, pela quantidade de fragilidade neurótica que ela introduz ao que só podia ser uma personagem arquétipo de cabra, como a Warner gostava. Sabe-se que Walsh lutou para impor Lupino, que chegou ao ponto de apostar com Jack Warner que o teste dela ia ser rodado numa tomada e incorporado na montagem, que foi o que aconteceu: trata-se da sequência em que ela confessa o seu crime a Raft. Em They Died, a escolha e a direcção de Arthur Kennedy restauram a dignidade ao que devia ser um cliché ambulante na fase escrita (pode-se dizer a mesma coisa de Dorothy Malone em Colorado Territory). Esta ausência de preconceitos e esta abertura de espírito explicam a maneira como são filmados os índios em They Died, o chefe seminole de Distant Drums e os mexicanos de The Tall Men. Sem condescendência nem afectação, com um respeito isento de falsos liberalismos. Roger McNiven nota de resto que as personagens são frequentemente filmadas por relação à Natureza, com um olhar panteísta próximo do dos índios.

Rever um bom número dos seus filmes evidencia de resto uma qualidade que raramente se associa a Walsh: a direcção de actores. A dinâmica que ele consegue criar resulta num estilo de interpretação denso, económico e acomodando todos os efeitos ou pelo contrário, extravagante e picaresco, mas ainda essencial. Anthony Quinn disse-nos que Walsh lhe tinha dado uma das indicações mais concisas e perspicazes durante The World in His Arms. Ele estava um bocado atrapalhado à procura do seu personagem; Walsh aproximou-se dele depois de duas tomadas medíocres e murmurou-lhe apenas: «Põe mais um bocado de alho.» Joel McCrea coloca-o entre os seus cineastas favoritos: «Ele fez-me fazer coisas que não faria com mais nenhum realizador... Nunca deixava morrer o que quer que fosse... Era tudo tão fluido.» (Focus on Film nº30). E Alexis Smith: «Ele às vezes dirigia sem olhar, por ouvido. Quando dizia: "este está bom", tinha sempre razão.» Obras como Pursued, White Heat e They Died são admiravelmente interpretadas de fio a pavio e ele consegue efeitos inesperados de certos papéis secundários: assim, Alan Hale, tão colorido em Gentleman Jim ou They Drive by Night, muda completamente de registo em Pursued.

Director de actores que se distinguiu de forma tão brilhante com Flynn, Gable, Cooper, que consegue o plano incrivelmente audacioso em que Cagney se refugia aos joelhos de sua mãe, mas também director de actrizes, impondo-lhes uma actuação moderna, liberta de qualquer sorriso afectado, de qualquer fingimento, dotando-as pelo contrário de um carisma, de uma reacção e de uma força que não cedem no que quer que seja aos seus heróis... Mesmo na nossa adolescência, as sequências sentimentais destes westerns, destes policiais e destes filmes de aventuras nunca nos pareceram paragens sobrepostas e regulamentares, parênteses de fazer baixar a tensão dramática. Pelo contrário, elas surpreendiam-nos pelo seu tom, o seu vigor e a sua franqueza sexual. Ao revê-los hoje apercebemo-nos que elas não só reanimam e expandem a história, como constituem um dos seus eixos fundamentais. As suas heroínas partilham a mesma intransigência, a mesma vontade, o mesmo orgulho e até a mesma ambição que os seus personagens masculinos. Nunca ficam sem resposta: quando perguntam a Ann Sheridan porque é que ela deixou o patrão, em They Drive by Night, ela responde: «Ele tinha doze ajudantes e eu não gostava de nenhum»; Jane Russell para Robert Ryan em The Tall Men: «Gosto muito que olhem para mim, não gosto que me pesem.» É preciso ver uma empregada a pôr Aldo Ray nos eixos em Battle Cry e Joan Bennett a provocar constantemente Spencer Tracy em Me and My Gal.

Ao lado destes retratos truculentos, plenos de vivacidade, Walsh foca-se em figuras mais trágicas, mulheres feridas marcadas pela vida, que o herói aprende a apreciar pelo seu justo valor e que se vão ligar ao seu destino (High Sierra, Colorado Territory), mais complexas como Thorley Callum em Pursued. A sua violência interior e a sua ebulição devem certamente muito ao argumento de Niven Busch, mas Walsh consegue obter de Teresa Wright toda uma gama de emoções, de ímpetos líricos, tumultuosos, contraditórios e de uma riqueza que vai bem para além da sua justeza habitual. Citemos, pelo prazer, duas imagens sublimes: o raccord em grande plano sobre o seu rosto quando pega na moeda e o admirável enquadramento durante o funeral do seu irmão, fotografado com uma audácia louca por James Wong Howe, que em desafio ao realismo põe as outras personagens a contra-luz, na sombra, e só a ilumina a ela. É apaixonante estudar, em They Drive by Night, a maneira como Walsh dirige Ann Sheridan e Lupino, como as opõe na sua única cena de confronto, sem procurar nem as diminuir, nem as denegrir. Pelo contrário, despoja-as das suas máscaras, torna-as mais vulneráveis, mais próximas. Sente-se que Lupino foi como que emparedada na sua solidão pelo amor cego do marido, que já não a ouve (quando ela o chama, ele responde de forma automática: «O que é e quanto é que custa?») e Sheridan esconde uma ternura sentimental por trás do seu atrevimento. Ele ainda será mais inspirado por Lupino no notável The Man I Love, retrato feminino muito pouco convencional em que ela interpreta uma cantora de clube nocturno e que se diz ter inspirado o Scorsese de New York, New York (em todo o caso, ele apadrinhou a apresentação no Festival de Nova Iorque de 1990). O que impressiona neste melodrama é a virtuosidade com que Walsh aperfeiçoa a acção, corta as «cenas a fazer» e descobre um trajecto duplo, o da heroína e o do filme que «se desfaz e refaz sob os nossos olhos» (Gérard Legrand). O tom anuncia as obras dos anos 50, girando muitas à volta do combate que as mulheres «oprimidas» levam a cabo para aceder a uma dignidade ou uma independência, trate-se de uma escrava antes da guerra de Secessão (Band of Angels), de uma empregada de bar no Havai da Segunda Guerra mundial (The Revolt of Mamie Stover), ou da mulher judia de Assuero que vem suplicar pelo seu povo (Esther and the King). Podia-se acrescentar The King and Four Queens, procurando as quatro "rainhas" em questão escapar também à sua condição social, ao estado de subjugação em que são mantidas. Nestes filmes, as mulheres constituem geralmente um grupo pequeno, as recepcionistas de Mamie Stover, o harém de Esther and the King, dominado por uma mulher mais velha, rigorosa e autoritária (e portanto assexuada): Agnes Moorehead em Mamie Stover, Jo Van Fleet em The King and Four Queens, cuja presença, segundo Walsh, explica o fracasso deste projecto pessoal e bizarro. Fosse qual fosse a montagem, ela roubava sempre o protagonismo a Gable. Em desespero, Walsh decidiu-se a cortar o seu papel e várias cenas, tornando a intriga e a progressão mais caótica (tratava-se da única produção de Gable). Grande parte do humor deste filme vem da inversão sistemática do equilíbrio do poder sexual (Barbara Nichols até vem ver Gable a banhar-se nu, revertendo um dos clichés dos westerns). O tesouro escondido, MacGuffin da história (e um dos vários elementos que nos referem ao conto de fadas), pode ser interpretado como uma metáfora ou um substituto (ou os dois ao mesmo tempo) do acto sexual. O dinheiro é tão tabu como o amor e a sogra olha por ele com a mesma vigilância que a castidade das quatro "viúvas". O charme modesto deste pseudo-western reside no desprezo que ele exibe pelo realismo, com uma forma muito lúdica de jogar com os arquétipos, o que em retrospectiva ilumina outros filmes de Walsh e explica o seu gosto pelo aperfeiçoamento. Durante a cena da dança entre Gable e as quatro raparigas, ele encontra mesmo a graciosidade que transfigurava The Strawberry Blonde.

O seu grau de sucesso em relação às personagens femininas ainda é mais evidente quando é confrontado com actrizes tão limitadas como Virginia Mayo e Yvonne De Carlo: ele vai dar à primeira os seus dois melhores papéis (Colorado Territory; em que ela impõe uma heroína de westerns muito pouco convencional e cuja morte inspira a Walsh planos admiráveis, e White Heat), pegando nela contra o tipo, dirigindo-a com a voz como num filme mudo, segundo Joel McCrea, e tirando dela efeitos que ninguém lhe teria sonhado em pedir. «Ele sentia que ela escondia possibilidades não exploradas», disse ainda McCrea e compreende-se que ela o cite (em Focus on Film) como o seu cineasta favorito: é preciso vê-la tirar uma pastilha elástica da boca e fixá-la a seu lado antes de se deixar beijar em White Heat. Walsh não queria Yvonne De Carlo em Band of Angels, preferindo muito mais Natalie Wood. Mas consegue integrar os limites da actriz no seu projecto e fazer da sua beleza inexpressiva uma das linhas de força do filme.

Portanto é preciso levá-lo a sério quando declarou durante a rodagem de A Distant Trumpet: «Em todos os meus filmes, o momento primordial é uma cena de amor.» Mesmo que não se deva levar essa afirmação à letra (a sequência em questão, entre Troy Donahue e Susanne Pleshette, é uma das mais fracas deste western), ela merece atenção especial já que Walsh volta ao tema em Velvet Light Trap: quando lhe fazem notar que as mulheres são muitas vezes o motor das suas histórias, ele acrescenta que às vezes era preciso enganar os actores que se apercebiam disso, «ser mais esperto que eles e dar o melhor papel à rapariga, mesmo assim». Basta pensar em High Sierra, They Drive by Night, Manpower, até mesmo The Tall Men. Em They Died, é a personagem de Olivia de Havilland que salva Custer por duas vezes, que lhe arranja um emprego e no final vai testemunhar por ele. Também é ela que «regenera» Cagney em Strawberry Blonde. Em Battle Cry, as cenas de acção não só são relegadas para o último quarto da narrativa, como Walsh introduz sempre que pode uma nova intriga sentimental, um novo personagem feminino e o que normalmente funciona como interlúdio torna-se aqui a razão de ser do filme. Daí resulta um grande número de momentos engraçados, truculentos e tocantes: a relação entre um Aldo Ray vulnerável e infantil e Nancy Olson, descrita com leveza e discrição; o verdadeiro primeiro encontro, lidado com um longo travelling, entre Dorothy Malone e Tab Hunter. Este último está de tal forma perturbado que lhe dá lume com um fósforo apagado[3], revelando-lhe inconscientemente os seus sentimentos, o que a transtorna. Admiravelmente fotografada, a mesma Dorothy Malone executa atrás do encosto de uma cadeira um striptease que não perdeu nada do seu poder de sugestão, enquanto que Mona Freeman se estende ao comprido ao mostrar as cuecas.

Essa franqueza erótica não o impede de investir a maior parte dos papéis de Battle Cry - particularmente Malone e Anne Francis - de uma dignidade de que são excluídos todos os julgamentos e todos os olhares moralistas. Se as mulheres têm o melhor papel - veja-se como Alexis Smith é colocada em pé de igualdade com Flynn em Gentleman Jim, como se vê dotada da mesma presença, do mesmo orgulho - não é, como em Walsh, para substituírem os homens. É enquanto mulheres que elas os podem ajudar (que eles se podem ajudar mutuamente), e ir mesmo mais longe que eles. Porque elas são iguais e diferentes. Ele não prega a favor ou contra o matriarcado. Sentimo-lo apenas alérgico ao puritanismo (cf. o capítulo sobre a rodagem de Sadie Thompson na sua autobiografia), como a toda a forma de pressão organizada.

Se quiséssemos resumir esta imensa obra apenas com um qualitativo, escolheríamos o de romântico. No final de The Tall Men, Robert Ryan, a falar de Gable, dá a melhor definição do herói (ou da heroína) walshiano: «ele é o que todos os meninos pequenos sonham ser quando forem homens e o que todos os homens envelhecidos gostariam de ter sido.» Esta classe, este espírito cavalheiresco e este romantismo extravagante[4] tornam os seus melhores filmes imediatamente reconhecíveis. Prevalece aqui esse estado de espírito que Stevenson elogiava em Dumas: «Essa mistura de bravura, heroísmo e serenidade que atravessa a sua obra como duas avenidas imensas revestidas de árvores seculares, dirigindo-se suave e levemente para a morte.» É o adeus de Flynn à sua mulher em They Died: «Passar a vida a teu lado foi uma coisa bem doce[5].» Treze anos depois, Gable dirá a Jane Russell: «Quando uma mulher é bela ao amanhecer, é porque é mesmo muito bela.» Estado de espírito que nos toca em várias obras dos anos 50 (esqueçamos Gun Fury, por não o termos revisto em 3-D, o que parece que muda a perspectiva, Glory Alley e The Sheriff of Fractured Jaw, que não têm qualquer interesse), frequentemente menos perfeitas, mais desconexas, mais intensamente pessoais. Pensamos em Mamie Stover, que infelizmente não revimos, em Band of Angels, em The Tall Men e em Esther and the King. O tom tornou-se mais meditativo, mais sombrio, às vezes de forma acidental, como no excelente The World in His Arms, em The Sea Devils, cujo diálogo e cujo comentário citam várias passagens dos Homens do Mar de Hugo (Rock Hudson é denominado por Gilliatt e Maxwell Reed por Rantaine), às vezes na totalidade da narrativa, em que Walsh mede bem os parêntesis e os encontros. A personagem principal evoca aqui o seu passado com um velho cúmplice (em Band of Angels essa discussão/farra desenrola-se durante uma tempestade qualificada pelos dois comparsas como uma pequena brisa e dá lugar a uma das melhores sequências) como que para saber onde é que ele está, o que lhe falta percorrer, «como se quisesse retomar ou corrigir o seu destino. O herói já não é um ser em marcha... Só continua a ser ele próprio por alguns traços indeléveis do seu passado ou da sua raça: a extrema distinção do porte e dos traços, o cepticismo e sobretudo a memória, a inalterável memória do herói que gera a melodia de Band of Angels, canto da lembrança e forma de testamento ao mesmo tempo.» (Jacques Lourcelles).

Também é por aí que uma realização tão desigual como Esther and the King (cuja temática é próxima da do filme anterior: a evolução das relações entre uma cativa e o seu «dono») nos toca. Walsh ignora de forma deliberada os clichés mais aparentes, não se importa com o elenco duvidoso. Trabalha não sobre o exterior, mas sobre o interior das cenas e com tal delicadeza, com tal pureza que a vaga impressão de desorientação (do projecto no seu conjunto e de momentos precisos ao mesmo tempo) que se sente durante toda a projecção é incessantemente questionada pela nudez inquietante da escrita cinematográfica. Podemos portanto partilhar a opinião dos Cahiers du Cinéma, que viram neste filme «o exemplo mais puro do génio de Walsh», especificando apenas que o génio em questão teve de lutar com um material e circunstâncias que, na melhor das hipóteses, só podiam levar a um resultado parcialmente satisfatório.

Se se pode manifestar um lamento diante da carreira de Walsh, é que não lhe tivessem dado mais filmes sociais pequenos, crónicas intimistas como The Man I Love ou a primeira parte de They Drive by Night. Gostávamos de o ter visto a colaborar com argumentistas como Bezzerides ou Hugo Butler. Também se pode lamentar que três dos seus projectos nunca tenham encontrado financiamento: Jack Barleycorn, um romance de Jack London com John Barrymore, Belle de Jour de Kessel, que tinha transposto para o Japão, e um filme de aventuras com Mitchum que também se desenrolaria no Japão. Que ainda nos deixe com apetite, depois de nos ter enchido as medidas tantas vezes, diz muito sobre o alcance e a variedade do seu génio.

[1] De qualquer forma, vai ignorar vários géneros maiores do cinema americano, como o film noir, com que só lidará verdadeiramente uma vez (The Enforcer), e por acidente ou refracção (Pursued), ligando-se White Heat mais ao filme de gangsters.

[2] Outra acha para a fogueira: o argumentista Luther Davis alega que Walsh não sabia quem era Huey Long e que foi ele próprio a cortar a segunda parte do argumento porque não se interessava no filme.

[3] De resto, também se deviam listar as inumeráveis variações elaboradas por Walsh sobre o princípio da combustão de um fósforo: num sapato, na bota de um enforcado, numa porta, numa cabeça, nas costas, no balcão de um bar, num transeunte; e veja-se também Pursued, em que Mitchum oferece lume a Dean Jagger, que o ignora e usa o seu fósforo.

[4] Estes qualificativos aplicam-se de forma admirável a Pursued, que é bem sucedido onde falha Duel in the Sun, outra adaptação de Niven Busch, de que Selznick fez o primeiro filme "colorizado" por força de disparidade.

[5] Estas cenas íntimas foram escritas por Lenore Coffee.

in «50 ans de cinéma américain», Éditions Nathan, Paris, França, Setembro de 1995.