quarta-feira, 25 de novembro de 2020

THE REVOLT OF MAMIE STOVER (1956)


1956 – USA (93') ● Prod. Fox (Buddy Adler) ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Sydney Boehm a p. do R. de William Bradford Huie ● Fot. Leo Tover (DeLuxe Color-Cinemascope) ● Mús. Hugo Friedhofer ● Int. Jane Russell (Mamie Stover), Richard Egan (Jim), Joan Leslie (Analee), Agnes Moorehead (Bertha Parchman), Jorja Cutright (Jackie), Michael Pate (Harry Adkins), Kathy Marlowe (Zelda), Jean Willes (Gladys). 
 
Num barco a caminho de Honolulu, Mamie Stover, uma animadora expulsa de São Francisco pela polícia, encontra um romancista rico, Jim Blair, que se interessa nela. Bem decidida a ganhar o máximo de dinheiro possível, Mamie trabalha num clube de dança de Honolulu, frequentado sobretudo por soldados americanos. Ela volta a ver Jim, que deixa a sua noiva por ela. Serve-se dele para realizar algumas operações bancárias proibidas pela directora do clube de dança que, apoiada por um capanga bastante violento, impõe uma disciplina muito rigorosa às suas pensionistas. Depois do bombardeamento de Pearl Harbor, Mamie tira proveito do pânico generalizado para comprar imóveis a preços irrisórios que depois vai alugar ao exército. A fortuna dela aumenta com os meses que passam. Ela e Jim têm o projecto de se casar. Antes de regressar à frente de guerra, Jim faz Mamie prometer deixar o clube de dança. Mas a directora aumenta tanto a sua comissão que Mamie continua a trabalhar para ela. Circula uma fotografia de Mamie entre os soldados da Marinha. Jim toma conhecimento disso e vai poder constatar no próprio clube que Mamie não manteve nenhuma das suas promessas. Acaba com ela definitivamente. Mamie vai distribuir a fortuna que tinha acumulado e vai voltar para casa. 
 
► Um dos poucos filmes de Walsh (mais numerosos do que parece) baseados numa heroína feminina: cf. The Man I LoveSea DevilsBand of AngelsThe Sheriff of Fractured JawEsther and the King. Muitas vezes, essas heroínas têm uma limitação básica para superar (aqui a educação perdida e a renúncia paterna) para atingir o seu objectivo ou encontrar o seu equilíbrio. Ainda que atenuado, o retrato de Mamie Stover situa-se totalmente fora do maniqueísmo de um certo cinema hollywoodiano e encontra aí a sua originalidade. Walsh, que é o contrário de um puritano, não se sente nada impelido a condenar a ambição de Mamie Stover nem os meios que emprega para a satisfazer. Terá outros além desses à sua disposição? O amor dela pelo dinheiro exprime uma sede de honorabilidade, um gosto pela ascensão que a aproxima doutras personagens de Walsh extremamente diferentes dela, como o herói de Gentleman Jim. Mas pela sua fúria de acumular, que já não vai conseguir conter, pertence bem a essa família patológica de que faz parte um grande números de heróis de Walsh no pós-guerra. Em cada filme que realizou em scope, Walsh utiliza esse formato de forma admirável. Aqui, com um argumento escrito de forma económica, alinhado em poucos lugares e em poucas cenas, ganha alcance, tanto no plano plástico como dramático, um ritmo amplo e calmo que o permite observar a sua heroína com um olhar simultaneamente tranquilo e crítico, familiar e distante. O seu génio também irrompe nesse brio em delimitar, em algumas cenas ou nalguns planos, a silhueta definitiva e no entanto subtil de uma personagem secundária (a proprietária do clube de dança interpretada por Agnes Moorehead) e o contorno inesquecível de uma personagem episódica (o fuzileiro febril que se arruina em bilhetes para poder jogar às cartas com uma das animadoras). O desvanecimento relativo sofrido pelo romance de Bradford Huie não deve esconder os méritos nada negligenciáveis deste filme.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

ESCRAVAS E LIVRES - Notas sobre as mulheres em alguns filmes de Walsh


por Jean-Pierre Coursodon

Sendo a diversidade uma das características mais marcantes da obra de Walsh, seria abusiva simplificação sugerir um retrato "tipo" da heroína walshiana. Contudo, há um traço comum (demasiado comum para que set rate duma "simples" coincidência) na maioria das suas personagens femininas: o desejo de independência, mais ou menos intenso, manifestado de diferentes maneiras, por vezes reprimido ou frustrado, mas muito raro inteiramente ausente. Apenas Hawks, talvez, entre os cineastas hollywoodianos clássicos, mostrou uma tal predilecção por mulheres "livres", ou que se esforçam por sê-lo. Mas em Hawks as heroínas, para se imporem, têm de integrar-se num universo masculino de que adoptam, ou pelo menos aceitam, as regras e os valores. Daí que se note uma certa virilização da mulher (exemplo extremo e célebre é a transformação, por Hawks, da personagem masculina de The Front Page numa personagem feminina) e o seu corolário, uma certa feminização, ou emasculação do homem (bem nítida principalmente em algumas comédias).

Nada disso em Walsh. Levadas naturalmente à independência, as suas mulheres não aspiram, por isso, a rivalizarem com os homens ou a substituirem-nos. Elas têm mesmo, com frequência, o papel educador, "civilizador" ou moderador que é o da mulher no cinema americano clássico (papel que Hawks ignora, geralmente de forma soberba; se por acaso cede à tradição - o fim de Red River, o resultado não é muito convincente). Notar-se-á também que a necessidade de independência caracteriza de forma indiferente, em Walsh, as personagens femininas conotadas de forma positiva ou negativa: good girls, bad girls e good-bad girls. Sendo parte integrante da personagem, ela não precisa de ser julgada ou classificada. Esta exigência de independência, que pode ir até à obsessão, cria no seio da obra walshiana uma certa tensão entre o discurso proto-feminista, que não pode deixar de gerar, e os códigos do cinema hollywoodiano tradicional que querem que a mulher tenda para a dependência e que não lhe escape senão à custa de riscos e perigos, perigos geralmente graves, por vezes mortais. Walsh tem de respeitar, pelo menos parcialmente, estes códigos, ao mesmo tempo que os contesta. É por isso que, sem dúvida com reticências, ele fará morrer a personagem de má esposa-mãe de Martha Vickers em The Man I Love (um carro atropela-a, sem qualquer necessidade dramática): embriagada de liberdade ela não pensava senão em "divertir-se". Pode-se imaginar Walsh dando razão ao marido aflito: "She wasn't a bad kid". Esta tensão, que não é o menor dos atractivos da obra de Walsh, ir-se-á intensificar na última parte da sua carreira, onde aumenta o número e a importância dos papéis femininos.

Todas as personagens de The Man I Love se definem pela relação com a independência: independência assumida e ferozmente protegida (Ida Lupino, caracterizada pela ausência de laços, a sua faculdade de ir livremente de cidade em cidade); independência perdida, de forma consentida (Andrea King, irmã de Lupino, esposa e mãe modelo que passa por várias provas) ou ressentida (Martha Vickers, a vizinha, apanhada demasiado jovem na armadilha do casamento e dos bebés - gémeos nos braços - e que sonha escapar); finalmente, independência precária e ameaçada da irmã mais nova que Lupino tenta "arrumar" apesar das suas reticências (livre mas não prosélita, Lupino dá-se conta que a independência não é a opção ideal para uma jovem introvertida e frágil). O casamento aparece aqui como a ameaça maior que pesa sobre a liberdade feminina: que a aceitem (Sally, a irmã mais velha), a receiem (a irmãzinha) ou se revoltem contra as suas consequências (Virginia, a vizinha), três das quatro mulheres têm, ou terão, de lhe sacrificar a sua independência. Lupino apenas conserva a sua à custa do celibato.

O título do filme refere-se simultaneamente à canção dos irmãos Gershwin (que Lupino interpreta, ou finge interpretar visto que é dobrada) e a uma personagem masculina que se poderia, a fazer fé no título, supor central (o homem que eu amo, o eu referindo-se, logicamente, à heroína), mas que de facto se revela marginal e erradio: porque uma mulher o fez sofrer, este pianista abandonou a música para correr mundo em barcos onde ocupa funções imprecisas[1]. Quando embarca de novo, deixando Lupino no cais (como vedeta do filme, é obrigatório que ela se apaixone), respiramos de alívio por ela. Num certo sentido, eles eram paradoxalmente feitos um para o outro, sendo ambos vagabundos incapazes de qualquer espécie de estabilidade (geográfica, sentimental, social...).

O título revela-se mais irónico se se considerarem as palavras da canção, palavras deliberadamente idiotas e ingénuas (era o talento particular de Ira Gershwin, nisso o contrário de um Cole Porter ou de um Larry Hart): "Um dia virá, o homem que eu amo/ E será grande e forte, o homem que eu amo/ E farei com que ele fique./ Construirá uma casinha/ Só para nós/ Donde jamais partirei/ Como poderia fazê-lo?/ E vocês?". É a expressão perfeita, beata, do arquétipo do sonho feminino da dependência, e de tudo o que a personagem de Lupino rejeita, pelo menos conscientemente: a canção poderia ser uma ocasião para exprimir sem se trair um desejo inconsciente (seria bem uma manifestação da ambivalência dos argumentistas, e da tensão acima evocada); a sua presença no filme, no meio de uma tal história, não é, de qualquer modo, inocente (Lupino canta também, ironia complementar, Body and Soul de Johnny Mercer, esse hino quase masoquista de abjecta dependência em relação ao ser amado).

A uma réplica de Lupino, em resposta a uma qualquer advertência masculina ("Deixem-me a responsabilidade de organizar o meu próprio funeral!"), faz eco, em The Tall Men, a de Jane Russell, que pede que lhe seja permitido "o direito de sonhar". Nella (Jane Russell) é de facto a personagem central do filme, apesar da presença de Clark Gable e Robert Ryan (ela hesita, ou finge hesitar, entre os dois), e apesar do título, que além disso cita (como no caso de The Man I Love) as palavras de uma canção, interpretada por Russell: "I want a tall man, not a small man". "A tall man", para Nella, é um homem cheio de ambições, de grande ambição; ela acha que Gable não a tem. Ele reconhece isso: "I have a small dream". Ele sonha com um pequeno rancho num remoto canto do Texas. Nella não quer ouvir falar disso: o seu sonho é californiano (isto é, como sempre nos westerns, o desconhecido, a aventura, a última fronteira, a perspectiva de sucesso, da riqueza). Ela evoca com um realismo sem ilusões os desgostos duma "vida de esposa de pequeno fazendeiro" - ela fala com conhecimento de causa, tendo visto a mãe envelhecida e quebrada prematuramente por uma tal existência, e a sua exposição é inteiramente convincente. Julie Ann (Dorothy Malone) em Colorado Territory tinha um discurso muito semelhante; e para o caso pouco importa que uma personagem seja "positiva" e a outra "negativa" (Julie Ann é a réplica da personagem de Joan Leslie em High Sierra, de que Colorado Territory é o remake como western).

A conclusão, previsível, de The Tall Men é uma concessão à tradição e às convenções: Nella, primeiro seduzida por Ryan que lhe promete uma vida de luxo, acaba por compreender onde se encontram os verdadeiros valores. Após a partida da cattle drive, Gable liberta-a simbolicamente de um corpete (oferecido por Ryan) que a impedia literalmente de respirar. Na versão final da canção-título, o tall man é, a partir de agora, Gable. Encontrar-se-á uma reviravolta semelhante no filme seguinte de Walsh, The Revolt of Mamie Stover, onde Jane Russell tem de novo um papel de jovem ambiciosa, obcecada pelo dinheiro e o sucesso, mas que, compreendendo o seu "erro", optará pela vida simples.

Num artigo definitivo sobre Walsh[2], Michael Henry sublinhava "a fantástica, a irresistível energia" de que as heroínas dos seus filmes são capazes. É que uma mulher não poderia ser livre passivamente. A independência nunca lhe é dada de uma vez por todas (supondo que um dia o seja), ela tem sempre de a conquistar. Uma tal conquista exige um vigor, um dinamismo e uma vitalidade permanentes. A grande liberdade sexual das heroínas de Walsh é uma das mais espectaculares formas de expressão que essa energia assume. Energia sexual, energia vital: não há diferença, para estas mulheres, entre liberdade sexual e liberdade pura e simples. Desde 1915, Walsh iria mergulhar no reportório conhecido para aí encontrar uma devoradora de homens sem complexos (Carmen, com Theda Bara, que se estreia no mesmo dia da Carmen de DeMille com Geraldine Farrar!); e reincide em 1927 com Loves of Carmen, onde Dolores Del Rio, sedutora predadora, acumula também as facécias desopilantes (ou que se pretendem como tal). Porque Walsh raramente resiste, principalmente no período mudo, ao seu gosto pela farsa, pela grande paródia. Cedendo com deleite ao cliché da mulher latina de temperamento vulcânico, ele encoraja Dorothy Burgess (In Old Arizona) ou Lili Damita (The Cock-Eyed World) à mais desenfreada exuberância. Podemos lamentá-lo (as cenas cómicas em What Price Glory? ou Cock-Eyed World, são tão numerosas que ocultam toda a tensão dramática); mas fazer palhaçadas, para as suas heroínas, é ainda uma forma de afirmarem a sua independência, a sua libertação do espartilho da decência em que a sociedade quer encerrar a mulher. A sua vulgaridade - como a sua sexualidade - faz parte do seu élan vital[3].

No limite, qualquer perda de independência constitui uma escravidão. A mulher é constantemente ameaçada por diversas formas de servidão que sendo por vezes douradas não são menos opressoras e alienantes. Não é de espantar, pois, que Walsh tenha sido atraído pelo romance de Robert Penn Warren Band of Angels, melodrama sulista onde a escravatura não é uma metáfora, mas bem real: a heroína, uma jovem da boa sociedade, perde de súbito a sua liberdade e identidade, quando se descobre, na sequência da morte do pai, que a mãe era negra. Ao mesmo tempo, o filme ilustra uma temática cara a Walsh: o conflito entre a sede de liberdade e o amor, que leva a mulher a abdicar da sua independência. Mal mergulha na ignomínia da servidão, Amantha é resgatada pelo gesto nobre do rico plantador sulista Hamish Bond (nome predestinado: "bond": laço, cadeia, e também compromisso, contrato; o escravo está encadeado ao senhor por um contrato social), que a compra (pela soma enorme de 5000 dólares - uma escrava branca vale o seu peso em ouro) e coloca numa situação privilegiada de quase-dona de casa. Mas nem por isso permanece menos prisioneira da sua condição: as grades da propriedade, as barras de ferro nas janelas, as chaves, tudo a recorda sem cessar; e quando quer fugir, é um outro escravo "privilegiado" que a apanha e a reconduz ao seu senhor. Na melhor tradição romanesca, Amantha vai a pouco e pouco apaixonar-se por esse senhor, primeiro desprezado e odiado. O amor faz tudo estremecer: quando Bond magnanimamente dá a liberdade a Amantha, enviando-a para o barco em que tentara embarcar algum tempo antes, ela regressa para ele no último momento, renunciando à independência que ele acabava de lhe dar. Em suma, a felicidade na escravidão. Em nome desse amor, não renuncia ela, desta vez voluntariamente, à sua identidade?

Graças ao contexto histórico e à custa de uma certa astúcia do argumento, Walsh consegue in extremis salvaguardar a identidade e a liberdade da heroína, e o seu amor. A vitória do Norte torna efectiva a abolição da escravatura no Sul vencido. Hamish e Amantha tornam-se (ou voltam a tornar-se), iguais, social e geneticamente. Reviravolta na situação: Hamish é preso pelo seu ex-escravo (Rau-ru, que ele salvara, em recém nascido, de um massacre, depois educara e ensinara como um filho, e que fará seu intendente), transformando em sargento no exército da União, que vai entregá-lo às autoridades nortistas. Traição? Não. Rau-ru sublinha, num confronto com Amantha, que o "bom" senhor é o senhor mais perigoso, porque, fazendo-se amar pelos seus escravos, priva-os do seu único privilégio: odiar o seu opressor. O bom esclavagista não existe. Amantha irá aceitar e assumir a sua "negritude", agora que ela não é mais (em princípio), uma marca infamante de inferioridade? Não. Às acusações de Rau-ru, ela riposta que Hamish é o único homem que ela amou e amará, e acrescenta: "E continuarei a viver, a partir de agora, uma vida branca" ("And I'll keep on living a white life from now on"). Ela reencontra Hamish em fuga (Rau-ru, finalmente, favoreceu a sua evasão deixando a chave nas algemas que lhe colocara); eles partem juntos numa barca em direcção a um navio amigo que os levará para ilhas longínquas, para a liberdade[4].

Os papéis femininos dominam a maior parte dos filmes do último período de Walsh, principalmente os mais interessantes: The Tall Men, The Revolt of Mamie Stover, The King and Four Queens, Band of Angels, Esther and the King mesmo nos seus filmes de guerra da época, Battle Cry e The Naked and the Dead) abundam as personagens de mulheres - pelo recurso ao flash-back no segundo - e pode-se sustentar que são os mais interessantes. Estas heroínas têm todas um ponto em comum: procurando escapar a uma condição social desfavorável e opressiva, dão provas de uma ambição (que pode ir até à cupidez: The Revolt of Mamie Stover, The King and Four Queens e uma combatividade a toda a prova. Em vários filmes, a heroína faz parte de um grupo feminino: as prostitutas de The Revolt of Mamie Stover, as quatro "rainhas" (três delas viúvas), as esposas de Assuérus em Esther. Estes grupos vivem sob o jugo de uma mulher mais velha, autoritária (a sogra de The King and Four Queens, a exploradora do dancing em The Revolt of Mamie Stover; em Esther será um eunuco) que lhes impõe uma reserva amorosa e sexual próxima da mais estrita castidade, disciplina particularmente frustrante se se consideram os sólidos apetites sensuais que em geral caracterizam a heroína walshiana.

As mulheres dominam, e não apenas em número, em The King and Four Queens, filme que tem tanto a ver com a fábula, como conto de fadas, como com o western tradicional. Já o título, com a sua referência ao cognome da vedeta masculina e a sua alusão ao poker, anuncia as intenções lúdicas da anedota. Recordemo-la: quatro raparigas casaram com quatro irmãos. Três deles foram mortos durante um assalto; um sobreviveu, mas ignora-se qual. Uma das quatro viúvas potenciais não o é de facto. A fim de garantir a sua fidelidade ao marido ausente e a honra da família, a mãe dos quatro bandidos, também viúva, monta uma guarda vigilante à volta delas, nunca se separando duma espingarda agressivamente fálica (ela representa o falo ausente). Ela é também a guardiã do tesouro escondido, fruto do assalto, que cada uma das suas noras cobiça. Estas são objecto de uma dupla frustração: o sexo e o dinheiro estão-lhes interditos. De facto, estes dois tabus funcionam mais ou menos como equivalente ou metáfora um do outro, ao longo do filme. Ele, também em busca do tesouro, recebido primeiro a tiro pela mãe, explora a atracção que as quatro "rainhas" sentem por ele, para fazer alianças sucessivas com cada uma delas, num esforço para descobrir o esconderijo do pecúlio; manobras aliás supérfluas, porque as mulheres precisam tanto dele como ele delas: a busca do tesouro torna-se pretexto para a busca do sexo, enquanto a intriga expunha o contrário ao começo. Quando um par verdadeiro se forma entre Gable e uma das mulheres, Sabina (que não é esposa de nenhum dos irmãos, mas uma aventureira que se faz passar por tal), o tesouro já não tem qualquer função na economia da narrativa: o sexo substitui o dinheiro. Gable, que finalmente o descobriu, entrega-o às autoridades e parte com Sabina, escapando ao domínio matriarcal.

Esta conclusão ecoa a de The Revolt of Mamie Stover, onde a heroína distribuía o dinheiro duvidosamente junto, antes de escapar ao domínio da exploradora do dancing deixando o Hawai; e a de The Tall Men, onde Nella rejeita a riqueza (e o domínio do homem rico) após tê-lo cobiçado. Conclusões "morais" previsíveis, de facto, mas desprovidas de qualquer intenção moralizadora aparente. Walsh considera estas personagens femininas com a mesma simpatia, antes e depois da sua "conversão" ao bom caminho. Poder-se-ia apostar que as prefere mais cúpidas e interesseiras do que virtuosas, não por indulgência para esses traços do carácter, mas porque eles acompanham essas pulsões iminentemente walshianas: a vontade de sobreviver e o amor da vida.

[1] É um desses músicos falsamente geniais, frequentes nos filmes da Warner da época: ouve-se martelar no piano arranjos "rapsódicos" tão grandiloquentes como insípidos. Está para Art Tatum como Kenny G. para John Coltrane, ou Liberace para Vladimir Horowitz.
[2] "Raoul Walsh, le roman du continent perdu", Positif nº 454, Dezembro de 1998.
[3] Algumas podem dar prova de uma agressividade infantil, cuja poderosa vitalidade, pela elegância paradoxal do seu estilo, apaga qualquer traço de vulgaridade; assim a maravilhosa personagem de Joan Bennett em Me and My Gal.
[4] O título original, Band of Angels, alude ao espiritual negro Swing Low, Sweet Chariot: «I looked over Jordan and what did I see?.../ A band of angels coming after me/ Coming to carry me home». Estes anjos libertadores são assimilados ironicamente por Hamish aos soldados nortistas.

Positif nº482, Abril de 2001.
Tradução de Manuel Cintra Ferreira

in «Raoul Walsh», Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, Lisboa, 2001 [org. Manuel Cintra Ferreira].

sábado, 21 de novembro de 2020

SEA DEVILS (1953)


1953 – USA (90') ● Prod. RKO (David Rose) ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Borden Chase inspirado no R. «Les Travailleurs de la mer» de V. Hugo ● Fot. Wilkie Cooper (Technicolor) ● Mús. Richard Addinsell ● Int. Yvonne De Carlo (Drouette), Rock Hudson (Gilliatt), Maxwell Reed (Rantaine), Denis O'Dea (Lethierry), Michael Goodliffe (Ragan), Bryan Forbes (Willie), Jacques Brunius (Joseph Fouché), Gérard Oury (Napoleão).
 
Guernesey, 1804. Um contrabandista inglês, Gilliatt, conduz até França a bordo do seu barco uma jovem francesa que lhe conta uma história segundo a qual está à procura do seu irmão, desaparecido depois do massacre da família deles em 1793. Na realidade, a jovem é uma espia que trabalha ao serviço dos ingleses. Faz-se passar por uma condessa francesa de que é sósia e tem assim de obter informações relativas à localização da frota de Napoleão e aos seus planos de invasão da Inglaterra. Gilliatt descobre que a rapariga por quem se apaixonou lhe mentiu. Mas engana-se, por sua conta, e pensa que ela trabalha para os franceses. Rapta-a e leva-a para a Inglaterra, pondo em perigo a sua missão já que ela tem de receber no dia seguinte no seu solar – quer dizer, o solar da condessa cuja identidade usurpou – Napoleão e o seu estado maior. Ela volta para a França a bordo do barco de Rantaine, um contrabandista rival de Gilliatt, que é amarrado no porão depois de uma tentativa fracassada de se apoderar do barco do seu inimigo e de impedir a jovem de continuar o seu trabalho de espia. Esta convence Rantaine a poupar Gilliatt e depois volta ao seu solar, onde recebe Napoleão e consegue escutar a discussão dele com o seu estado maior. Mas Fouché apanha a falsa condessa e prende-a na cripta do solar dela. O doméstico da prisioneira, que é também seu cúmplice, antes de ser abatido consegue lançar um pombo-correio que vai levar uma mensagem a Lethierry, o homem de quem a espia recebe as suas ordens. Este liberta Gilliatt, que tinha aprisionado, e pede-lhe para ir salvar a jovem que lhe revela servir a causa inglesa. Gilliatt navega outra vez para França e cumpre a sua missão. Depois de uma longa perseguição, a sua amada, nas barbas de Fouché, volta-se juntar a ele a bordo. 
 
► Fusão genial do cinema de prosa e do cinema de poesia. A prosa reside aqui na força específica da narração, rigorosa nos seus meandros, construída sobre um ritmo alternadamente lânguido e precipitado, e sempre de uma plenitude surpreendente apesar da (ou graças à) ironia imperceptível do autor. A poesia, essa, está na métrica da narrativa, nas suas rimas discretas e ricas (as idas e vindas entre a costa inglesa e a França), num esplendor plástico que quer que os exteriores se banhem constantemente numa doce luz crepuscular e contrastem com interiores subtilmente luminosos. Tudo é ensurdecido neste filme perfeito («É com a voz baixa que se encanta», diz Georges Poulet) e a finura da intriga e das personagens é aqui tão necessária para o nosso prazer e para a harmonia da obra como são a força explosiva dos caracteres e a amargura trágica da acção noutros filmes de Walsh. Só ela permite neste caso que a fantasia do autor floresça, que a graciosidade e a elegância das personagens se harmonizem de uma forma quase onírica com a magia dos exteriores. Límpida e alquímica, a beleza deste filme transporta o espectador fascinado para os arcanos do cinema. 
 
N.B. Na sua autobiografia, Notes for a Life (Collins, Londres, 1974), o futuro cineasta Bryan Forbes, na altura um pequeno actor sem contrato, fala da sua amizade com Walsh (ele já tinha filmado em World in His Arms) e da forma hábil e divertida com que este o impôs à produção no lugar de Barry Fitzgerald. Ele permite-o mesmo reescrever o seu papel, concebido originalmente para um actor muito mais velho. O capítulo XXXII contém um retrato delicioso de Walsh. De notar que este, quando fala do seu filme, utiliza a expressão: «a piece of horseshit» (que se poderia traduzir por qualquer coisa como « uma pouca de merda ». Forma pitoresca e colorida de confirmar a observação de Borges: «Para se ser bem sucedido no que se quer fazer, talvez seja melhor não lhe dar extrema importância.» Chamado originalmente Toilers of the Sea, queria-se que o filme fosse uma adaptação dos «Homens do Mar». Na versão final, o romance de Hugo só está presente em alguns nomes próprios e na localização da narrativa.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

BLACKBEARD, THE PIRATE (1952)


1952 – USA (98’) ● Prod. RKO (Edmund Grainger) ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Allan LeMay a p. de uma história de DeVallon Scott ● Fot. William E. Snyder (Technicolor) ● Mús. Victor Young ● Int. Robert Newton (Barba Negra), Linda Darnell (Edwina Mansfield), William Bendix (Ben Worley), Keith Andes (Robert Maynard), Torin Thatcher (Morgan), Irene Ryan (Alvina), Alan Mowbray (Noll, o louco). 

No século XVII, a rota das Índias está infestada de piratas. Num navio do qual se apoderou o célebre Ned Teach, também conhecido por Barba Negra, encontram-se Edwina Mansfield, a encantadora filha adoptiva de Sir Henry Morgan, capturada pelo pirata, e Robert Maynard, um médico que se introduziu dentro da tripulação com a intenção de roubar o diário de bordo. Na verdade, Maynard é pago pelo governador da Jamaica para desmascarar Sir Henry Morgan, pirata reconvertido, que recebeu a missão de perseguir os seus antigos colegas do rei de Inglaterra e que, de facto, não deixou de se dar bem com eles. O diário de bordo vai permitir provar indubitavelmente a sua duplicidade. Edwina, ela própria filha de um pirata, arrasta consigo as jóias do tesouro que roubou a Morgan. Mas a sua seguidora, demasiado faladora, falou com Barba Negra, vivamente interessado por essa revelação. Tendo posto as mãos no tesouro, Barba Negra recusa-se a partilhá-lo com a sua tripulação e enterra-o numa ilha por baixo de uma grande pedra. Depois de um combate brutal com os homens de Morgan, Barba Negra atira sobre um indígena que é seu sósia. Engendrou bem o seu plano porque Morgan, ao cortar a cabeça do cadáver, pensa tratar-se da do seu inimigo e exibe-a na praça de Port Royal. Como prémio pela sua proeza, torna-se governador da Jamaica. Mais tarde, descobre que Barba Negra não está morto e voltou a formar a sua tripulação. Sobe a bordo de um galeão espanhol para tentar o pirata que, como é óbvio, não vai querer deixar fugir esta isca magnífica. Desta vez, Barba Negra não fica com a vantagem. Em mau estado, serve-se então de Edwina, caída novamente nas suas garras, como refém. Os homens de Morgan recebem a ordem de abandonar o combate. Barba Negra vai à ilha procurar o seu tesouro. Os homens dele surpreendem-no quando o quer transbordar para um bote. Combate... O tesouro cai ao mar, perdido para todos. Furiosos, os marinheiros enterram Barba Negra na areia, deixando-lhe apenas a cabeça de fora. É logo varrida pela maré. Maynard e Edwina, apaixonados um pelo outro, fogem juntos em direcção ao mar aberto, virando os olhos a este horrível espectáculo. 
 
► Obra completamente menor de Walsh (argumento complicado e desleixado, orçamento insuficiente) e no entanto indispensável à sua filmografia. É que a figura do Barba Negra, a partir de uma série de episódios confusos e sem grande interesse, sobressai de forma admirável. Este monstro alegre e feroz, espécime da humanidade como que vindo de outro planeta, nunca foi tão bem descrito na sua vitalidade, na sua truculência, na sua amoralidade e na sua desmesura. Criatura solitária, pertence a uma raça da qual seria por assim dizer o único representante. Possui todos os vícios e todos os apetites do homem, mas levados a uma dimensão sobre-humana que claramente fascina e alegra o nosso cineasta. Walsh retrata-o numa atmosfera plástica refinada, que aparentemente não lhe dá esforço algum. Com alguns elementos de cenário, um mastro, uma vela, um pedaço de céu, e também com a beleza de Linda Darnell, ele desenha no movimento quadros fugitivos de mestre, dignos dos grandes pintores espanhóis pelo seu esplendor.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

THE NAKED AND THE DEAD (1958)


1958 – USA (135') ● Prod. RKO (Paul Gregory) distribuído pela Warner nos USA ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Denis e Terry Sanders, Raoul Walsh, a p. do R. de Norman Mailer ● Fot. Joseph LaShelle (Technicolor, Warnerscope) ● Mús. Bernard Herrmann ● Int. Aldo Ray (sargento Croft), Cliff Robertson (tenente Bob Hearn), Raymond Massey (general Cummings), Lili St. Cyr (Lily), Barbara Nichols (Mildred Croft), William Campbell (Brown), Richard Jaeckel (Gallagher), James Best (Ridges), Joey Bishop (Roth), Jerry Paris (Goldstein), L.Q. Jones (Woody Wilson), Robert Gist (Red), Casey Adams (coronel Dalleson). 
 
Depois de admirarem ruidosamente o striptease de Lily, amiga de um deles, que acontece num bar de Honolulu, os homens do pelotão do sargento Croft são enviados para participar na conquista de uma ilha do Pacífico. Mal desembarcam numa das três vagas de assalto planeadas com júbilo pelo general Cummings, Croft ordena-lhes que cavem buracos. Alguns reclamam contra essa ordem que, no entanto, lhes salvará a vida alguns momentos depois. Croft, guerreiro bruto soberbo feito para matar e para sobreviver, é detestado por uma parte dos seus homens que odeiam a sua dureza e a sua desumanidade. É admirado por outros que asseguram a justeza instintiva das suas decisões, o seu conhecimento do terreno, a sua autoridade de líder. Croft ama o exército como a sua primeira e única família ; não tem lar nem pais e desde que a mulher Mildred o traiu, a misoginia dele não conhece limites. Depois de um ataque surpresa aos japoneses, ordena a um dos seus soldados que regue os cadáveres de balas. É a coisa certa a fazer uma vez que, efectivamente, um dos japoneses ainda estava vivo. Croft dá-lhe um cigarro, chocolate e pega-lhe nos documentos. Alguns segundos depois, mata-o. Sadismo ou realismo? Em todo o caso, o homem estava-se a preparar para lançar uma granada. Croft está prestes a abater um grupo de prisioneiros quando surge o jovem tenente Bob Hearn que o impede e leva os japoneses. Hearn é o protegido do general Cummings, que fez dele seu ajudante de campo. Tendo levado uma vida de playboy como civil, Hearn adquiriu uma certa maturidade em contacto com as realidades da guerra e procura tornar-se um oficial justo e amado pelos seus homens. Nesse ponto opõe-se a Cummings, que pensa que é preciso dominar os seus inferiores pelo medo que lhes inspira : na sua opinião, apenas ele lhes dará a coragem para lutar e vencer. O pelotão de Croft é enviado para apoiar outra patrulha. Os homens dele abatem japoneses apanhados a atravessar um rio a descoberto. Cummings anuncia ao seu estado maior que o inimigo foi forçado a retirar. É felicitado pelo coronel Dalleson. Os homens de Croft fazem um alambique no meio da selva. Croft cura à pancada um soldado vítima de uma crise de demência que o tomava (ou fingia tomar) por um japonês. Durante uma bebedeira, Croft, bêbado, fala do seu ódio pelas mulheres e censura aos seus homens a sua ausência de espírito corporal. Cummings fica decepcionado com a falta de compreensão do seu protegido Hearn, que se recusa a aceder aos seus pontos de vista. Tenta subjugá-lo em vão e depois envia-o para comandar o pelotão de Croft, recentemente encarregado de uma missão de sondagem muito perigosa numa ilha montanhosa. O pelotão ataca uma patrulha japonesa com granadas e chega às bordas de um desfiladeiro guardado por japoneses. Um soldado, ferido, morre. O tenente Hearn quer dar meia-volta. Para o impedir, Croft proíbe um dos seus homens que volta de uma busca nocturna ao desfiladeiro de dizer que viu japoneses. No dia seguinte, Hearn é gravemente atingido e é levado por três homens numa maca. Croft retoma assim o comando do seu pelotão que obriga a contornar a montanha. Enquanto atravessam uma encosta íngreme, um homem cai. Mais tarde, Croft, indo para a frente do inimigo com uma temeridade extrema, é levado por um tiro. Um soldado avistou no vale uma massa considerável de japoneses, de tanques e de artilharia. É enviada uma mensagem de rádio ao alto comando. Hearn é levado são e salvo para o barco e exige que se espere a chegada do pelotão. Os sobreviventes aparecem pouco depois. Ganha-se uma grande vitória sobre o inimigo graças às informações fornecidas pelo pelotão de Croft e graças às ordens dadas pelo coronel Dalleson. Cummings, esse, estava completamente enganado na apreciação da situação. Vai ver Hearn à enfermaria. Hearn afirma-lhe estar agora convencido que é ineficaz e perigoso querer comandar pelo medo. Ele próprio só deve a sua salvação à devoção dos seus soldados que o transportaram numa maca durante dezenas de quilómetros pela selva. De cabeça baixa, Cummings assiste ao regresso das tropas vitoriosas. 
 
► Um dos enormes filmes de guerra do cinema americano. A obra tem tanto de único e grandioso que é simultaneamente um estudo de caracteres e uma narrativa épica, de mise en scène ampla e densa, mostrando o homem face ao inimigo militar, e também face ao seu inimigo mais íntimo, isto é ele próprio. Depois da serenidade e do dinamismo de Objective, Burma!, para Walsh é tempo da ambiguidade, da complexidade dos pontos de vista e das personagens. A personagem do sargento Croft fez correr muita tinta devido ao seu realismo agressivo, à sua verdade perturbadora. Ele não entra em nenhum dos estereótipos do filme de guerra, embora seja uma criatura totalmente fabricada pela guerra e no final destruída por ela. Se Raymond Massey encarna um oficial de alta patente tentado pelo fascismo devido a uma fragilidade e de um desequilíbrio íntimo que fazem dele indubitavelmente o mais miserável das três personagens principais da história, se o tenente interpretado por Cliff Robertson expressa o desejo de encontrar uma concepção humanista das relações entre oficiais e soldados, Croft (a quem Aldo Ray deu um rosto inesquecível) está lá para lembrar que não há visão humanista possível da guerra. A evolução da sua personagem é característica do que há de mais walshiano nos filmes de Walsh do pós-guerra. Croft, grande profissional da matança, ás da sobrevivência, vai ser finalmente destruído pelas suas próprias tendências destrutivas, por um excesso de ousadia e de confiança em si mesmo. (Note-se que ele não morria no romance de Mailer.) Esta passagem dos limites por uma personagem cujo instinto de vida, transbordante e excessivo, se torna um instinto de morte, também existe em White Heat (Fúria Sanguinária). Há outros dois aspectos que contribuem para a riqueza deste filme-total. No seio destes conflitos de homens, picarescos e cruéis, Walsh instala uma colecção memorável de mulheres, em particular nos flashbacks. Mais que o repouso do guerreiro, elas são o seu devaneio, a sua obsessão e por vezes a sua loucura. Finalmente, há um humor constante, tipicamente walshiano, feroz e por vezes imenso, a dar a este fresco uma tonalidade sombria de farsa, às vezes digna de um Bruegel.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

WHAT PRICE GLORY?


por Kevin Brownlow

What Price Glory? estreou-se na semana em que a Broadway descobriu a guerra. Depois de um período em que o teatro, como o cinema, tinha ignorado a guerra, em 1924 estrearam-se três peças sobre a guerra com poucos dias de intervalo umas das outras: Nerves, Havoc, and What Price Glory? Sem qualquer tipo de publicidade antecipada, What Price Glory?, de Maxwell Anderson e Laurence Stallings, surpreendeu o público da primeira noite com a sua honestidade contundente, a sua linguagem áspera, e a sua falta de respeito sem precedentes. Falou-se de acção federal para impedir a peça. Elaborou-se um relatório a acusar que os subordinados eram mostrados a não ter respeito pelos seus oficiais superiores, permitia-se ao público acreditar que o pessoal do Corpo de Fuzileiros Navais dos E.U. estava sujeito à devassidão a todo o momento, e que havia falta de disciplina, o que só podia trazer descrédito ao Exército e ao Corpo dos Fuzileiros.[1]

O produtor Arthur Hopkins atenuou algumas das profanidades mais selvagens, mas a peça passou de mero sucesso a lenda da Broadway.

Chamada originalmente None but the Brave (A Comedy with a Few Deaths), a peça adquiriu a reputação de ser fortemente pacifista, por contraste à versão cinematográfica. Embora os autores tenham registado o seu protesto contra o desperdício incessante de vidas jovens, o fascínio principal deles estava nos dois beligerantes, o Capitão Flagg (Louis Wolheim) e o Sargento Quirt (William "Stage" Boyd), cuja batalha contra os alemães era incidental ao seu desejo de se massacrar um ao outro. As duas personagens apelaram tão fortemente ao público que inspiraram uma nostalgia pela vida militar, e apresentaram uma imagem irresistível para aqueles que nunca a tinham conhecido.

Laurence Stallings foi contratado pela MGM. A Fox comprou a sua peça e de Anderson assim que se tornou óbvio, com a aclamação dada a The Big Parade, que os filmes de guerra iam ser comerciais outra vez. Tinha-se estabelecido que Louis Wolheim ia interpretar o mesmo papel, e Raoul Walsh foi contratado para realizar.

Victor McLaglen estava determinado em conseguir o papel do Capitão Flagg. Homem enorme, fisicamente perfeito para o papel, McLaglen era metade irlandês, metade escocês, e filho de um bispo. Fugiu de casa aos catorze anos para se juntar ao exército, percorreu o mundo, tornou-se pugilista e participou na corrida ao ouro em Kalgoorlie, na Austrália. Durante a guerra, serviu na campanha mesopotâmica, e tornou-se chefe da Polícia Militar de Bagdade. J. Stuart Blackton deu-lhe o papel principal na sua produção britânica a cores de The Glorious Adventure, depois trouxe-o para a América para protagonizar The Beloved Brute.

Segundo McLaglen, ele foi rejeitado para What Price Glory? porque Walsh achava que não podia retratar de forma alguma o protótipo do fuzileiro americano. "Eu disse-lhe que não havia soldados mais duros no mundo que os homens do meu velho regimento de Middlesex." Pedindo um plateau para um filme com Buck Jones, McLaglen convenceu um produtor britânico, George Ridgewell, a actuar como barman, e lançou-se numa cena violenta, a rosnar e a dizer blasfémias enquanto se amanhava pelas deixas, convencendo Walsh totalmente.[2]

A sede de McLaglen pela vida militar era insaciável: em anos posteriores formou um exército privado em Hollywood conhecido como a Cavalaria Ligeira de McLaglen.

A contracenar com ele, como Sargento Quirt, estava o actor veterano de cinema Edmund Lowe. O filme foi rodado em Westwood, nos Fox Hills, onde se tinham cavado as trincheiras de Havoc.

Margaret Chute fez uma reportagem sobre as cenas de batalha para a Pictures and Picturegoer em Inglaterra: "Quando foram filmadas as cenas de explosões, a maior parte dos residentes perto do Fox Hills Ranch teve muito pouco sono durante boa parte de uma semana. Ouvi o bombardeamento regular em Hollywood, e lembrei-me dos dias de ataques aéreos em Londres.

"Depois fui levada a ver algumas das cenas de trincheira nocturnas e achei as explosões tremendamente realistas, de perto. Não era permitido a ninguém ficar a descoberto quando as várias minas disparavam. As câmaras estavam escondidas e disseram-nos para ficar atrás de uma fila de camiões e por baixo de guarda-chuvas grandes que apanhariam os pedaços de terra que caíssem. Num buraco em baixo, em trincheiras cheias de lama, rastejavam centenas de homem, e ficavam imóveis, e rastejavam outra vez.

"Da orla da cratera, Raoul Walsh, o realizador, gritava instruções para Edmund Lowe enquanto ele se deitava de cara para baixo no buraco da bomba. 'Ele está ali há três horas, pobre diabo,' disseram Victor McLaglen e Leslie Fenton, a sorrir, enquanto consumiam café quente e sanduíches numa barraca de café amigável que viajava à volta do plateau. (...)

"Afastados à nossa esquerda, cinco ou seis homens iam protegendo o caminho ao longo da encosta, parando a cada poucos metros; estavam a colocar a pólvora para as minas que se iam explodir daí a uns minutos. Estava tudo pronto. Uma maquilhadora apressou-se até Edmund Lowe, esguichou-lhe algum óleo para a cara, besuntou alguma lama no óleo e retirou-se a correr. Raoul Walsh parou de dizer piadas: o 'exército' dele parou de se rir com os seus comentários espirituosos, feitos para aliviar o tempo de espera.

"Houve meio minuto de silêncio, depois uma explosão ensurdecedora a seguir a outra, terra a voar em pedaços, figuras a correr para se abrigar. Enquanto encurtávamos caminho para um guarda-chuva grande, houve outras pessoas a avançar na mesma direcção. A corrida estava renhida, e enquanto nos abraçávamos, ouvi uma voz muito inglesa a exclamar, 'Minha nossa! Sei que vamos todos morrer!' Virei-me e ali estavam Beatrice Lillie e Gertrude Lawrence - as estrelas de Charlot's Revue!"[3]

Raoul Walsh lembrou-se dos protestos dos residentes das cercanias de Beverly Hills durante a rodagem das cenas nocturnas. "Tínhamos de arranjar um assistente de realização diferente todas as noites. As explosões partiam janelas em bangalôs, e o xerife chegava de carro e dizia, 'Quem é o responsável?' E o assistente dizia, 'Sou eu.' Punham-no no carro e levavam-no, e eu começava de novo."[4]

As batalhas foram tão perigosas como os visitantes imaginaram, e morreu um homem durante a rodagem.

Walsh era apoiado por homens talentosos e experientes. O director artístico era William Darling; o operador de câmara principal, Barney McGill; o segundo, Jack Marta. Daniel Keefe, primeiro assistente do realizador, era um veterano do Exército dos E.U. Charles Griffen, conselheiro técnico, viu serviço activo nas frentes francesas e italianas. Salvatore A. Capodice, observador técnico, serviu com os fuzileiros na floresta de Belleau, ao lado de Stallings.[5] O director de produção James Tinling serviu no 63º de Artilharia. Todos os figurantes, sem excepção, eram veteranos - dezoito tinham combatido na floresta de Belleau.

As reposições do filme sofrem com as legiões de imitações que se seguiram.* Não que o filme tenha algo de original no sentido cinematográfico. Tirando a linguagem, inteligível apenas para leitores de lábios, o elemento que fez disparar a temperatura do público foi o conteúdo sexual completamente descarado das cenas de amor. Raoul Walsh era perversamente habilidoso em expor mais áreas da coxa feminina do que as que o gabinete de Hays normalmente permitia, mas o público da actualidade é naturalmente cego a tais subtilezas. Não reage ao Sargento Quirt a devolver um gancho de cabelo a Charmaine na manhã seguinte - o tipo de detalhe visto na altura como revolucionário.

A comédia crua, outra marca característica de filmes de Walsh, agora parece datada e tosca, ao passo que na altura parecia uma lufada de ar fresco depois da reverência que rodeava a maior parte das cenas da vida militar. Não que tivesse ganho aprovação universal.

"Lembra-se da cena em que os rapazes têm a luta no quarto de Phyllis Haver?" disse Raoul Walsh. "E saltava um macaco para o penico? E aparecia de vez em quando para ver a luta, e a luta se tornava dura e se agachava? Quando o Jack Ford viu o filme, disse, 'Bom, quando eu tiver de recorrer a macacos a saltar para dentro de baldes de mijo para conseguir gargalhadas, saio da indústria.'"[6]

Os sentimentos pacifistas produzem um tom tão incongruente que a sua mensagem se perde totalmente. Há dois intertítulos proferidos por McLaglen que resumem a natureza esquizofrénica do filme. Depois da excitante batalha nocturna, McLaglen dirige-se às suas tropas: "Enviaram-me bebés para baptizar em sangue. Vocês passaram por isso" - e McLaglen sorri em forma de aprovação - "e de soldado para soldado, estou tão orgulhoso de vocês como a América devia estar."

O último plano mostra Flagg e Quirt ferido em grande plano, a marchar outra vez para a batalha com uma ardente camaradagem. Quirt bate num capacete de aço e agarra numa espingarda com a baioneta já fixada. Esse gesto, e o poder de emoção por trás do plano, faz afundar todo o pacifismo no filme.

Raoul Walsh, alegadamente um antigo cowboy, veterano do México, e realizador de The Prussian Cur, não era um pacifista. "Eles gostavam de mim em Washington," disse ele. "What Price Glory? fomentou mais alistamentos no Corpo de Fuzileiros do que qualquer outro filme já feito. Está a ver, no filme eles viviam uma vida tão boa - rapazes despreocupados com raparigas e isto e aquilo. As pessoas no público viram isso e disseram, 'Diabos, vou para os Fuzileiros. É isto a boa vida.' Uma e outra vez encontrava algum oficial que dizia, 'Seu sacana. Foste tu que me meteste nisto.'"[7]

* O filme em si teve as sequelas This Cockeyed World e Women of All Nations, e um remake de John Ford. Ford rodou uma das cenas no What Price Glory? original das tropas a irem para a frente de guerra tal como rodou os táxis da sequência de Marne para Seventh Seaven (Lefty Hough).

[1] Classic, Dezembro de 1924, p. 87.
[2] Victor McLaglen, Express to Hollywood (Londres: Jarrolds, 1934), p. 226.
[3] Pictures and Picturegoer, Março de 1927, p. 27
[4] Raoul Walsh ao autor.
[5] Motion Picture Director, Agosto de 1926, p. 17.
[6] Raoul Walsh ao autor.
[7] Ibid.

in «The War, the West and the Wilderness», Alfred A. Knopf, Nova Iorque, 1979.