segunda-feira, 7 de abril de 2014

THE MARK OF ZORRO (1940)


por João Bénard da Costa

Em 1941, The Mark of Zorro levou ao Odéon e ao Palácio meia-Lisboa adolescente e masculina sequiosa de ver o famoso Z, as cavalgadas de Tyrone Power e o celebradíssimo duelo final com Basil Rathbone. Mas levou outra meia-Lisboa, essa feminina e talvez menos adolescente, que ia para ver a única sequência tão famosa como o duelo: aquela em que Tyrone Power dança com Linda Darnell El Sombrero Blanco ("deja que te pona mi sombrero blanco / deja que te quite mi sombrero blanco").

Revendo, hoje, este soberbo filme, é fácil verificar que todos e todas tinham razão. The Mark of Zorro é um filme de duelos e danças (embora só haja um duelo e uma dança) com os primeiros coreografados como se fossem ballets e as segundas como se fossem combates. Em nenhum momento do filme, temos tanto a sensação da dança (coreografada ao milímetro) como no duelo entre Power e Rathbone; em nenhum momento do filme temos tanto a sensação de combate (através de uma astuciosíssima montagem dos brief shots que foram apanágio de Mamoulian) do que na sequência do Sombrero.

Em qualquer delas, Tyrone Power é subvalorizado pelos seus pares que, nem num momento nem noutro, sabem que têm diante de si o famoso Zorro. Quer Linda Darnell, quer Basil Rathbone o julgam como Diego Vargas, mole, peralta, e incapaz de muitos feitos quer com mulheres quer com espadas.

Na sequência do Sombrero, Linda Darnell, ainda envolta na perturbação que lhe causara a descoberta do Zorro no suposto Frade, está desconsoladíssima com o futuro marido que os tios lhe arranjaram. Não disfarça, durante o jantar, nem o enfado, nem a agressão. O comportamento de Tyrone Power só lhe reforça esses sentimentos. Até que o grupo local começa a tocar e, a instância dos tutores, tem que aceder, muito a contragosto, em dançar com Diego. E bastam dois grandes planos dos pés deste, três planos em que ele a agarra e dois curtos planos gerais, para que aquela mulher se sinta transportada ao sétimo céu. Raras danças, no cinema, foram tão eróticas e tanto exprimiram essa carga. A expressão de Lolita roda 360 graus, tantos quantos os dos movimentos que Tyrone Power com ela conjugou. E quando a dança acaba, só consegue dizer: "I never dreamed dancing could be so wonderful". Senhor da sua vitória, Tyrone Power (regressando à imagem de Diego) responde-lhe secamente: "I found it rather fatiguing". E nova meia volta de Linda Darnell, desta vez para, furiosa com tal réplica, sair de cena e se fechar no quarto.

Igualmente, no grande duelo com Rathbone, este está longe de imaginar (como, de resto, o alcaide) que é Zorro quem tem na frente. Progressivamente irritado com Diego, desafia-o com a certeza da vitória. E é durante o duelo - tarde de mais - que percebe quem tem na frente. E o duelo - como um ballet - divide-se em três planos (níveis, é melhor para não fazer confusão). Aquele soberbo início com o "Ha! Ha!" de Rathbone e o corte de luzes (gesto repetido, em torno das velas); o duelo, propriamente dito, em que um e outro rivalizam em elegância; e a morte de Rathbone, com o coração atravessado, arrastando na queda o quadro que ocultava o Z que Tyrone Power tinha desenhado na parede, da primeira vez que, como Zorro, visitara o alcaide. Só então este - única testemunha do duelo - percebe que Diogo e Zorro são um só e o manda prender, julgando, efemeramente, ter morto dois coelhos com uma só cajadada.

Essa aura balética que envolve este inspiradíssimo filme é anunciada desde a primeira sequência, quando, ainda em Espanha, vemos os planos dos esgrimistas, também coreografados ao milímetro. Da dança - sempre os brief shots - passamos à aventura, quando vemos Power pela primeira vez, na prova hípica. Logo a seguir (perfeita solução de continuidade) Diego anuncia aos amigos que parte para a Califórnia. "What will you do with your sword, there", perguntam-lhe. "This", responde Tyrone e a espada crava-se no tecto (plano repetido no final). Três breves sequências, e o espadachim romântico está definido.

Rouben Mamoulian, bem sabia, quando lhe encomendaram o Zorro, que "toda a gente" iria comparar este filme com a lendária obra de Fred Niblo, com o mesmo título e baseada no mesmo romance, realizado em 1920 e em que Douglas Fairbanks tivera a sua mais aclamada criação. Teve a suprema inteligência (que já não assistiu a Don McDougall na mais recente adaptação, a de 1974. com Frank Langella) de não procurar competir com o filme de antanho. Se este insistia sobretudo no carácter vingador de Zorro e em Fairbanks embuçado (o lado mistério), Mamoulian ficou-se sobretudo na aventura e no desenho, procurando, acima de tudo, o divertimento e não o "suspense". Nunca duvidamos (nunca nenhum espectador duvidou) que Tyrone Power saia incólume de todas as suas aventuras. O próprio Power - permanente sorriso, permanente à vontade, permanente "jogo" - também jamais duvidou. E, como bem notou um dos melhores exegetas de Mamoulian (Tom Milne), a primeira coisa a notar é quão pouco Zorro actually does. Quase tudo o que nele é ameaçador, é sugerido por breves apontamentos, quase tudo o que o caracteriza - como Zorro - é mostrado "por rápidos movimentos de câmara na semi-obscuridade da paisagem".

Apetece-me prosseguir essa nota de Milne a notar que o mesmo se passa nas múltiplas (e brevíssimas) conotações eróticas do personagem. Para começar este assume, à chegada à Califórnia, um lado quase se podia dizer efeminado que serve de espelho e réplica ao sofisticadíssimo (mas sexualmente neutro) Rathbone. Depois, deixa-se aparentemente envolver nas fantasias da mulher de meia-idade que é D. Ines Quintero - magnífica Gale Sandergaard - a quem dedica, até, uma idílica cena campestre. Mas não lhe escapou - rabo do olho - a sobrinha, pela primeira vez entrevista no jardim, de mantilha e com cruz ao pescoço e gato ao colo, num soberbo aproveitamento da profundidade de campo.

Prodigioso lugar de equívocos é a sequência na capela quando, disfarçado de padre, ouve de Linda Darnell essa espécie de confissão, em que esta lhe manifesta as suas fracas disposições para a vida conventual. Para além do paralelismo da máscara (a marca de Zorro, e a marca do padre) prevalece o movimento - nada inocente - em que Linda Darnell descobre o embuste, ao descobrir-lhe a espada que lhe ultrapassa o hábito. Apesar do susto, Linda Darnell cala-se e não o denuncia, óbvio sinal de quanto essa ostensiva marca a atraiu.

Bastante tempo depois - após a já citada sequência do jantar, em que Linda Darnell vem de branquíssimo e Tyrone Power de monóculo - quando aquela se retira para os aposentos, entrevemos deste uma cama de casal, com duas almofadas. Na varanda, ressurge-lhe Zorro (mais como fantasma erótico do que como anjo exterminador) respondendo ao apelo desse quarto vazio. O tio interrompe-os, em protesto contra a deserção dela. Tyrone Power tira a máscara e reaparece como Diogo. E, enquanto o alcaide, filosoficamente, comenta que afinal ela talvez saiba mais do que ele, Linda Darnell comena (percebendo tudo) que "perhaps I could learn to tolerate Diego. I do so want to please uncle Luis". A rosa é a metáfora do resto.

Mas não posso acabar sem citar a fabulosa fuga de Tyrone Power, após a cena da capela. Se toda essa sequência dá uma impressão de movimento contínuo, raros planos duram mais do que alguns segundos. É a soma deles (e repare-se no perfeito Z, traçado pelos movimentos cruzados de cavalo e perseguidores, quando Tyrone Power se lhes escapa na floresta) que dá essa "impressão" de continuidade, cortada a cada plano para que este geometricamente se acrescente ao anterior.

Também não posso acabar sem devidas vénias a Rathbone (desencadeando em Tyrone Power uma antipatia tão instintiva quanto a que sempre desencadeara em Errol Flynn) a Pallette (quem imaginaria que de tão obeso frade saísse o espadachim que ainda desafia Rathbone) a Arthur Miller (fabulosa fotografia) e a Alfred Newman (fabuloso score).

Mas posso e devo acabar lembrando uma frase que os "Cahiers du Cinéma" em tempos aplicaram ao realizador de musicais e filmes de aventuras chamado George Sidney. Diziam que Sidney, "professor de dança transformado em professor de esgrima" nos provava "que qualquer movimento é coreográfico e qualquer duelo um 'pas de deux'".

Sem desmerecer nos méritos de Sidney, essas palavras são sobretudo aplicáveis a Mamoulian. Como escreveu Tom Milne: "The Mark of Zorro may be only a swashbuckler, but it is one of the most elegant and intelligent films". Alguém duvida?

A ARTE DE MIZOGUCHI


Perguntas parvas e respostas sábias
entrevista por Matsuo Kishi

Hirakata, que fica entre Osaka e Quioto, e famosa pelos Kikuningyô (manequins feitos com crisântemos) e também porque em tempos idos havia lá alguns depósitos de pólvora que às vezes provocavam explosões incríveis. Num parque de Hirakata construíram um novo estúdio onde agora estão a decorrer as filmagens de A Vida de Oharu. Indo de eléctrico fica a 40 ou 50 minutos de Quioto, mas fazê-lo todos os dias é um pouco fatigante. Por isso toda a equipa fica nos hotéis de Hirakata. Mizoguchi fica num hotel em cima duma colina, num quarto tranquilo onde não chega mais nenhum barulho para além das gargalhadas dos clientes reunidos na sala de estar. Pareceu-me que estava em 1933, data em que, pela última vez, entrevistei Mizoguchi, que tinha acabado as filmagens de O Fio Branco da Cascata com Tokihiko Okada e Takako Irie; naquele tempo trabalhava há pouco para o "Kinema Junpô". Desde então passaram vinte anos, vimo-nos várias vezes, mas é apenas a segunda vez que falamos juntos como fizemos hoje.

"Neste lugar há prostitutas à velha maneira. Ouvi que se as mandarmos chamar elas vêm ao hotel. O que acha? Chamamo-las?"

Falando assim Mizoguchi ri-se e come com prazer uosuki1: está mesmo de bom humor, tem a cara um pouco avermelhada por causa de duas ou três chávenas de saké e talvez se tenha cansado de trabalhar. Devia dizê-lo a princípio, de qualquer forma a minha entrevista é a dum jornalista que improvisa e que está temporariamente dependente do "Kinema Junpô".

Dizem que A Vida de Oharu, Mulher Galante talvez seja a obra final da série de Kôshoku mono2. Se não me engano, o filme era um projecto muito antigo.

Sim, o projecto já existia durante a guerra. Era amigo de Taizô Kaihara da Universidade de Quioto, que estudava Bashô3 e Saikaku4, e assim quando pensámos fazer um filme a partir de alguma coisa de Saikaku, consultámo-lo para conseguir muitas informações. Nessa altura a opressão do partido militar tornava-se cada dia mais pesado: diziam que Kaihara podia estudar Bashô mas não Saikaku, e assim não tinha sequer a liberdade de estudar com prazer; a nós, da área do cinema, tinham-nos dito que, sem qualquer dúvida, não seria permitido fazer um filme a partir dos contos de Saikaku.

É verdade, naquele tempo era tudo incrível. Você tinha pensado realizar este filme em grande estilo: havia nisso uma intenção especial?

É mesmo disso que quero falar. Um dia disse, sem pensar muito sobre o assunto: "Agora que Sadao Yamanaka5 e Mansaku Itami6 morreram, o jidai geki (filme histórico) desapareceu completamente". Tive a consciência que as minhas palavras levantaram muitas polémicas. Mas esta é a verdade, não é? Nem Daisuke Itô7 nem Teinosuke Kinugasa8 têm carácter. Mas isto já podem ser coisas de quem vive em Quioto, tratado como velho e grande mestre. Mas os filmes históricos japoneses são somente uma continuação do Kabuki. Em relação aos tratamentos dos eventos históricos, seja nos figurinos seja nos aspectos sociais, tudo isso é restituído nos filmes de forma incompleta. Se têm vontade de rodar um filme histórico, eu aconselharia aos realizadores que estudem pelo menos a forma dos figurinos da época. Fazer um filme deste género sem saber nada é uma verdadeira falta de educação para com o público. Matsutaro Kawaguchi é um bom amigo meu de longa data, mas nem ele está decidido a escrever (os guiões de) um bom filme histórico. É como se tivesse acabado de sair de um kôdan 9de Engyoku Godôken.

Oharu será um verdadeiro filme histórico?

Querem mesmo fazê-lo assim, mas será difícil, certamente. É verdade também que se não se decide fazê-lo por causa das dificuldades, nunca se poderá realizá-lo. Comecei a rodar o filme com a intenção de fazer antes muitos rascunhos. A gente de cinema é em geral preguiçosa, e não quer praticar nem ensaiar. E, em relação ao estudo dos aspectos sociais da época, depois de ter feito muitos rascunhos pode-se deitar fora aquilo que é para deitar fora, mas pensar que se é capaz não fazendo nenhuma pesquisa ou nenhum esforço é uma ilusão. Assim, aquilo que estou a fazer agora está só em fase de projecto, não há nada a fazer, mesmo que no fundo se trate dum trabalho cansativo.

Mais uma vez o guião é de Yoshikata Yoda e a cenografia de Hiroshi Mizutani, não é verdade?

Sim, é mesmo assim. Os dois são como uma parte de mim próprio, e agem exactamente segundo as minhas intenções, sem que eu diga: faz isto ou aquilo.

Você diz que quer fazer Oharu como um filme histórico sério... mas encontrou todos os figurinos e os pequenos objectos da época necessários para uma reconstrução fiel?

Por sorte, para os figurinos os Grandes Armazéns Matsuzakaya tinham uma colecção. Assim pedimos uma parte emprestada, outra encomendámo-la com base nos modelos originais: a partir da época Genroku (1686/1704) e Jôkiô (1684/1688), temos a maior parte, mas para os períodos anteriores, por exemplo da época de Kamakura (1185/1382) ou de Tempyô (710/794) ou antes, como já não existe material da época, é-nos mais fácil reconstruir a forma dos figurinos, mesmo se são necessárias mais pesquisas.

Acredito. Quando Eisuke Takizawa rodou Hakamadare Yasusuke, foi falar com Eiji Yoshikawa que lhe disse para fazer pesquisas, e que para o resto não há nada a fazer senão confiar na própria imaginação. Até ele dizia isso, de modo que Takizawa estava maravilhado.

Imagino. Mas se o filme for ambientado na época Tokugawa (1615-1868), podemos ainda encontrá-los. A organização social não mudou muito desde há 350 anos. Se confrontamos a época Genroku com a de Nara (646-694), também entre as duas não há muita diferença: as mulheres foram sempre tratadas como escravas.

E então em Oharu quer seguir de perto as mulheres do período Genroku?

Exactamente. A época de Saikaku está a meio caminho entre a época imperial de Nara e a actual... Afinal, considerei Oharu como um pequeno episódio na longa história da mulher. Apesar disso o filme não quer ser ideológico; economicamente falando, temos que despertar o interesse do público, e além disso temos que tentar comunicar as nossas intenções numa certa forma; mas isso é trabalhoso, sabe?


Ouvi dizer que Isamu Yoshii é o seu consultor.

Sim. A princípio pensava numa descrição feita numa óptica naturalista, como faz Saikaku no seu romance, mas é difícil fazer passar isto num filme, porque há muitas coisas profundas para exprimir; assim, decidimos fazer uma descrição naturalista, como sugeria Yoshii.

O discurso está a tornar-se complicado. Mas diga, Senhor Mizoguchi, você quer continuar a realizar este tipo de filmes?

Sim, penso fazer mais alguns. Yoshii prometeu-me escrever Daibutsu Kaigen sobre os últimos anos da vida de Sen no Rikyû10, até à sua morte, e disse-me que para entrar na atmosfera irá começar por fazer o ritual do chá (gargalhada). Em suma é muito diferente a descrição dum filme histórico em relação à de um gendai geki (filme moderno): e é assim porque não se deve pensar que para fazer um filme deste tipo sejam suficientes apenas cenas baseadas katana (espada) e em olhos salientes (típica expressão do herói do kabuki); enganamo-nos redondamente. Para o confirmar, disse também anteriormente que num filme histórico é necessária uma certa meticulosidade quer nos figurinos quer na observação dos aspectos sociais. Esta minúcia cria problemas, porque não pode parecer ridícula aos olhos dos homens cultos e inteligentes, e ao mesmo tempo deve ser interessante e aceitável para o grande público. Em relação por exemplo aos penteados, é necessário conhecer bem a moda da época, pois só assim as pessoas actuais, quando os vêem, não os consideram ridículos. Em suma, podemos oferecer ao público moderno uma síntese da época Genroku, mas só desta. A partir destas considerações, enfrento a realização dos meus filmes. Afinal Saikaku era mesmo um grande. Podemos defini-lo como um crítico da cultura em vez de um sociólogo. Bem, porém, em relação ao bunraku 11a sua obra não é grande coisa; desta vez queria usar o bunraku de Saikaku, do qual existe só um texto na história do próprio bunraku, mas não o usámos, pois era demasiado chato apesar dos nossos esforços para lhe dar uma interpretação diferente.

A protagonista é outra vez Kinuyo Tanaka. Fez muitos filmes com Kinuyo, não é?

Pergunto-me quantos filmes foram... Vejamos... A Mulher de Osaka, Três Gerações de Danjuros, A Vitória das Mulheres, que rodámos em Ofuna depois da guerra, e depois Cinco Mulheres à Volta de Utamaro, que realizei pensando que talvez os tempos tivessem mudado e que já podia fazer tranquilamente este tipo de filme... e depois estes, O Amor da Actriz Sumako, Mulheres da Noite, O Meu Amor Queima... assim, com Oharu, são 11 as vezes que trabalhou comigo.

Percebi. É um bom número. A que percentagem corresponde, na totalidade dos seus filmes?

Pergunto a mim próprio mas para ser exacto devia ver a documentação. Acho, de qualquer forma, que o número dos filmes que realizei seja à volta de 70/80.

A partir de agora estes 11 filmes com Kinuyo têm e terão um lugar importante na sua obra. Tinha um objectivo especial ao realizar de seguida alguns filmes com Kinuyo? Por exemplo o objectivo de investigar a história da mulher ou aprofundar a fenomenologia psicológica da mulher de determinada época?

Bem, há estas intenções. Sempre pensei que o problema das classes sociais se pode extinguir com o comunismo; mas fica o problema da relação homem-mulher, um tema que me interessa enfrentar. Além disso, quando estava com a Nikkatsu, a produtora encomendava a Minoru Murata filmes baseados em personagens masculinas e a mim, pelo contrário, encomendava filmes concentrados na mulher; assim comecei a analisar o problema da relação homem-mulher vista sempre do lado da mulher. Lembro-me que em 1924 rodei Mundo Banal com Denmei Suzuki, depois disso parece-me nunca mais ter feito filmes com um homem como protagonista. Para mais, tenho pouca paciência e zango-me facilmente. Tratando-se dum actor posso acabar numa enorme discussão, mas se é um actriz, por muito que me possa zangar, sabe, não posso dar-lhe uns murros!... Ainda não me zanguei com Kinuyo Tanaka (gargalhada).

No período em que rodava O Fio Branco da Cascata mostrava a sua tendência para o sadismo, incluindo por exemplo cenas como aquela em que se arrasta a mulher agarrando-a pelos cabelos. Como será se continuar a rodar filmes com Kinuyo?

Quem sabe? Não tenho nenhum objectivo especial em insistir em tê-la comigo; porquê, dou esta impressão?

Sim, às vezes sim, pode ser que ela não esteja consciente disto tudo. O facto de torturá-la com estes papéis sempre diferentes, que aliás mostram as suas qualidades de artista, pode às vezes parecer ao público uma espécie de sadismo.

A sério? Bem, muitas vezes a crítica objectiva é-me útil. Nós estamos envolvidos no nosso trabalho e não podemos perceber as coisas objectivamente.

Algum tempo atrás afirmou: "É necessário expressar um tema sentimental com muita frieza". Da representação de Elegia de Osaka e As irmãs de Gion pode dizer-se que é até demasiado fria.

Bem, então eu era um louco. Não me preocupava nem um pouco com a falência da casa produtora, fazia só aquilo que me apetecia. Depois de Elegia de Osaka e As Irmãs de Gion decidi fazer um filme ambientado em Nagoya. A mulher de Nagoya é sedutora e sensual, assim confiava num bom resultado do filme, se o tivesse feito... pensava também continuar a dar atenção às características locais de Kansai. Teria pedido a Sakunosuke Oda que o escrevesse, mas morreu precocemente. A propósito, como está a sua mulher agora? Ouvi dizer que agora é mama-san numa boîte. Tenho verdadeiramente saudades das qualidades de Oda... Queria ter realizado mais alguns filmes com ele, como Fûfu zenzai.

Parece-me que também este filme é feito com a técnica típica de Mizoguchi do one scene-one cut (plano-sequência). A partir de quando começou a rodar filmes com esta técnica? Em As Irmãs de Gion encontra-se muitas vezes.

É verdade, mas este tipo de técnica já a uso há bastante tempo, mais exactamente a partir de Tôjin O-Kichi como Yôko Umemura. Sabe que o nosso chefe Hirohisa Ikenaga (então director da Nikkatsu Satsueijo) ralhou comigo (gargalhada)?

Acredito. Mas no tempo de As Irmãs de Gion estava na moda a técnica do one scene-one cut com câmara fixa e em long shot (plano de conjunto/geral). Havia talvez a influência de King Vidor?

Também. Mas em relação a mim foi a influência directa do meu amigo Kôjirô Naitô, filho do Dr. Konan Naitô, que agora deve ser professor numa qualquer universidade. Era um homem extraordinário, estudava psicologia: tentava encontrar a possibilidade de exprimir cheiros e sensações tácteis nos filmes; comprou-se uma velha câmara Parvo e fazia montes de experiências. Você conhece Yoshifumi Oguri, que trabalhava como cenógrafo na Nikkatsu? Também ele fazia parte do nosso grupo, e em conjunto fazíamos experiências deste género: se se carrega numa tecla dum órgão, além do som aparece também uma cor no ecrã...

Era o chamado "Kurabi look" ou algo parecido?

Sim, exactamente. Ele estudava isto, queria analisar a relação entre o som e a cor, mas fazia também outras coisas, como por exemplo estudar a relação entre a sensação que uma pessoa tem olhando um corpo nu feminino numa pintura e aquela duma pessoa que toca no veludo, ou por exemplo o fenómeno do homem que se cansa quando observa por mais de cinco segundos um objecto fixo; em suma estava interessado em todos os fenómenos esquecidos. Dizia, original como era, que ao olhar qualquer coisa bela surgia-lhe um grande desejo sexual; quando por exemplo observava um céu com estrelas sentia verdadeiramente um impulso irresistível. Mas não estava interessado só em anormalidades psicológicas, atraía-o também a normalidade.

Interessante.

Tendo uma tal amizade com este homem, começava a fazer algumas considerações. É diferente a impressão com que o público fica com os filmes rodados completamente com a técnica do one scene-one cut em relação aos rodados com a técnica do cut-back, minuciosamente retalhados: quando se filma em cut-back saltam logo à vista as cenas inúteis. A meu ver, pensar que uma cena está boa só pelo facto de ser curta é um engano, e com esta técnica do cut-back o filme perde em tensão. Assim, agora comecei a filmar com a técnica do one scene-one cut, mas também esta tem defeitos, não filmando em cut-back o resultado é pouco exacto, torna-se menos apurado.

Ouvindo isso agora, também penso assim. Vendo A Senhora Oyu, que foi realizado na Daiei, a coisa resulta evidente. Se me permite, você é demasiado pedante na decisão antecipada dos movimentos dos actores. Todas as acções dos actores são demasiado iguais às que decidiu anteriormente. Em suma, o filme resultava cheio de "acções predeterminadas", pelo menos aos meus olhos. Esta impressão não dependerá do facto de ter filmado demasiadas cenas com a técnica do one scene-one cut

Fukami Itô disse-me o mesmo.

Por exemplo, por indicação duma empregada Yûji Hori entra através do jardim, com Kinuyo Tanaka e Nobuko Otowa. A câmara está sempre fixa num ângulo do fundo da sala. Kinuyo senta-se na engawa (arcadas externas que dão para o jardim) e pede alguma coisa a Nobuko Otowa. Nobuko vai embora e Kinuyo segue-a com o olhar. Durante esta cena Yûji Hori destapa a garrafa de Cedar que a empregada trouxe e assim todas as personagens se mexem como estava combinado. Acho que isto acontece precisamente por causa da técnica do one scene-one cut.

Fukami Itô disse-me a propósito desse filme: "Mas porque faz mexer sempre assim as personagens, mesmo numa cena de amor de Arashiyama, muito importante? Se os faz mexer tanto assim, não há atmosfera". Disse-mo assim, rudemente. É verdade: este é o ponto difícil da técnica de one scene-one cut.

Se não se consegue aplicá-la bem, transforma-se a cena em teatro.

É verdade. A propósito do teatro, eu devia ter feito um filme com Rokudaime Kikugorô Ônoe: fui ao Kabuki para ver Meikô Kakiuemon e fui visitá-lo ao camarim. "Hoje represento de maneira cinematográfica, observa-me bem", disse-me. Ao ver da plateia, a sua representação parecia realmente diferente do habitual, era, pode-se dizer, uma declamação realista, com movimentos muito naturais e essenciais12. Quando acabou a representação perguntou-me no seu camarim: "Como te pareceu?" Respondi: "Tu mostraste-me uma acção cinematográfica e muito bem conseguida, só que os outros à tua volta recitavam na maneira clássica e no entanto não havia amálgama em cena. Assim, quando filmares comigo, a representação dos outros actores deverá amadurecer". "Tens razão, tens razão..." disse-me Rokudaime, mas morreu sem poder realizar este filme, tenho muitas saudades.

Se dou uma olhadela à sua filmografia, vejo que você, Senhor Mizoguchi, abordou muitos temas diferentes, não é verdade? Realizou filmes que têm como fundo o tema social, como Sinfonia Metropolitana, mas no momento em que podíamos defini-lo como um realizador com ideias socialistas eis que, com o aparecer do sonoro, realizou um filme como o País Natal. Depois de ter filmado obras tradicionais como Contos dos Crisântemos Tardios, começa logo a abordar um tema que age como bisturi na moral do período após guerra, como em A Senhora de Musashino, e por aí adiante.

Acho que isto acontece porque sou um edokko13: sou caprichoso e inconstante e não consigo aprofundar uma coisa só, insisto em querer mostrá-la de diferentes pontos de vista. Neste sentido Ozu é maravilhoso. Em suma, eu sou um curioso, gosto de coisas sempre novas... é o meu feitio.

Ouvi dizer que recentemente você se aproximou de Mantarô Kubota, é verdade?

Sim, é verdade. Ele é o seu mestre, não é? Tenho um fascínio pelos seus últimos trabalhos e também pelo guião baseado na Nigori E de Ichiyô Higuchi; é verdadeiramente uma obra rara, como é maravilhoso o seu recente Osuro Made. As palavras tornam óptimo o tipo de descrição, que não há somente na obra de Kubota mas também na de Naoya Shiga e de Tanizaki14, e que o cinema nunca conseguirá, sempre pensei assim. Para obter uma boa descrição no cinema é necessário ainda trabalhar muito... em particular, somos nós responsáveis, preocupávamo-nos demasiado em demonstrar o nosso profissionalismo, a nossa habilidade técnica, e não tentávamos apresentar algo da nossa visão pessoal das coisas. Fizemos muito poucas coisas originais e preocupámo-nos demasiado em corresponder às exigências da casa produtora, em prejuízo da originalidade. Disse estas coisas outro dia a alguém que me respondeu: "Tu, que falas assim, não deste muita atenção à originalidade", apanhou-me em contrapé! Verdadeiramente, se reflectir bem, as coisas são assim... nem A Senhora Oyu nem A Senhora de Musashino são coisas originais (gargalhada). Em suma, quero trabalhar ainda 15 anos, mas talvez desejar chegar até aos 70 anos seja muito... mas pelo menos mais dez, até aos sessenta. Trabalho, trabalho, e quem não trabalha bem está humanamente desclassificado.

(Mizoguchi Kenji no Geijutsu, em "Kinema Junpô" n. 35, 1 de Abril de 1952)
Publicado em Il Cinema di Kenji Mizoguchi, La Biennale, Mostra Internazionale del Cinema, Veneza 1980.
Tradução da versão italiana: Neva Gerantola



1 Panela com diferentes tipos de peixes e vegetais que se cozem directamente na mesa.
2 Filme com tema amoroso-sexual.
3 Matsuo Munefua, dito "Bashô", poeta japonês do século XVII (1644-1694).
4 Poeta japonês do século XVII (1642-1693), de cuja obra Mizoguchi extraiu Saikaku Ichidai  / A Vida de Oharu, Mulher Galante .
5 Cineasta japonês (1909-1938), especialista em filmes históricos, e autor de Chuji Kunisaada  (1935), um dos mais célebres jendai geki dos anos 30.
6 Cineasta japonês (1900-1946), que também se especializou no género do filme histórico. Pai do realizador Juzo Itami (1933-1997)
7 Cineasta japonês (1898-1981), com uma longa carreira que se estende dos anos 20 aos anos 70, quase sempre no género do jendai geki.
8 Cineasta japonês (1896-1982), autor entre outros dos célebres Kurutta Ippeiji  (1926) e Jujiro  (1928). Apesar da pouca gentileza das palavras que Mizoguchi lhe dedica, Kinugasa foi um dos maiores nomes da cinematografia japonesa, e nalguns círculos a sua reputação não é inferior à do próprio Mizoguchi. Jigoku Mon  (1953) recebeu, inclusivamente, uma Palma de Ouro em Cannes.
9 Forma de representação dum só actor que se senta no palco e conta em tom declamatório uma história real ou uma lenda, com modelos fixos de personagens.
10 O inventor do ritual do chá.
11 Uma das formas do teatro tradicional japonês. igualmente denominada ningyojoruri (teatro de bonecos).
12 O Kabuki representa-se declamando e os movimentos são muito artificiais, afectados e exagerados.
13 Edokko: natural de Tóquio (Edo era o antigo nome da capital japonesa, durante a época feudal).
14 Junichiro Tanizaki (1886-1965), escritor japonês normalmente aproximado da corrente neo-romântica.

in Kenji Mizoguchi - Cinemateca Portuguesa