quinta-feira, 26 de agosto de 2021

FOUR FRIENDS (1981) de Arthur Penn


1981 – USA (115') ● Prod. Filmways Picture – Florin Production – Cinéma 77 – Geria film (Arthur Penn, Gene Lasko) ● Real. ARTHUR PENN ● Gui. Steve Tesich ● Fot. Ghislain Cloquet (Technicolor) ● Mús. Elizabeth Swados ● Int. Craig Wasson (Danilo Prozor), Jodi Thelen (Georgia Miles), Jim Metzler (Tom Donaldson), Michael Huddleston (David Levine), Reed Bitney (Louie Carnahan), Julia Murray (Adrienne Carnahan), David Graf (Gergley), Zaid Farid (Rudy), Miklos Simon (Mr. Prozor), Beatrice Fredman (Mrs. Zoldos), James Leo Herlihy (Mr. Carnahan), Lois Smith (Mrs. Carnahan). 
 
East Chicago, Indiana, no início dos anos 60. Três jovens, Danilo Prozor, David Levine e Tom Donaldson, amam a mesma rapariga, Georgia Miles, e formam um grupo inseparável com ela. Danilo é filho de um emigrante jugoslavo. Em criança, veio com a mãe para se juntar ao pai na América. David, um judeu um bocado obeso, é filho de um empreiteiro de uma funerária que o queria ver seguir os seus passos. Tom é o mais sedutor dos três amigos. Georgia, exaltada e sincera, acha-se destinada a uma carreira de grande bailarina, à imagem da de Isadora Duncan, o seu ídolo. Queria que os amigos também tivessem destinos soberbos e fora do comum. Uma noite, farta de ser virgem, oferece-se a Danilo. Mas ele dorme perto do pai e, pouco à vontade, rejeita-a. Ela vira-se então para Tom. Ao contrário dos desejos do pai, um homem duro, pragmático e triste, Danilo entra na universidade. Como colega de quarto tem Louie, um filho de milionário com esclerose e já paralisado das duas pernas. Louie sabe que não vai chegar a velho. Os três amigos voltam-se a ver no casamento de Georgia. Ela casa com David mas está grávida de Tom, que, em vésperas de partir para o Vietname, não se quer casar. Sempre exaltada, dá à luz o seu bebé como uma diva que projecta a nota mais alta : para o público e implorando aplausos. Mais tarde, tendo deixado David, vai ver Danilo sem aviso. Não o encontrando, dá-se a Louie que de tanto ouvir falar dela quase se tinha apaixonado. Graças a Georgia, conhecerá os prazeres do amor antes de falecer. Mesmo tendo amado sempre Georgia, Danilo envolve-se com Adrienne, a irmã de Louie, e vai-se casar com ela. É um casamento sumptuoso. Mas depois da cerimónia, o sogro de Danilo, que nunca tinha aceitado a ideia desta união dispara sobre os jovens casados e vira a arma para si. Só sobreviverá Danilo. Ao sair da clínica, ele sabe da morte de Louie. Completamente desorientado, trabalha algum tempo como taxista. Volta a ver Georgia e confessa-lhe o seu amor. Mas ela educa o bebé dela sozinha e leva uma vida desordenada que não quer partilhar com ninguém. Danilo faz-se mais uma vez à estrada com a sua preciosa mala que contém tudo o que possui neste mundo. Participa em manifestações pacifistas e vai trabalhar com o pai numa aciaria da Pensilvânia. Tem uma enfermeira de origem jugoslava como amiga. Georgia, entretanto, vai de festa em festa e move-se num universo psicadélico que está longe de a satisfazer. Um dia entra pela casa de Danilo dentro. Está em lágrimas: «Estou tão cansada de ser nova» exclama ela. Depois de uma noite de amor, continua a querer ir-se embora. Desavença, escândalo na rua; Danilo, relutantemente, deixa-a partir. Deixa a amiga e regressa a Chicago, onde volta a encontrar Tom que trouxe uma vietnamita e as suas duas meninas do Vietname, bem como David que continuou o negócio do pai e se casou. Num café, Danilo entra numa rixa com o inimigo de sempre deles, um racista, e dá-se ao luxo de vomitar sobre o seu adversário. Isso faz-lhe um bem danado. Acolhido por Tom, vê na televisão os primeiros passos dos astronautas na Lua. Nesta altura, pensa em Louie, como tinha jurado que o fazia quando este acontecimento se desse. Confessa a Georgia a sua intenção de ir ensinar inglês para muito longe no Sul. Começa uma nova desavença, que ela interrompe dizendo-lhe que só o amou a ele e a mais ninguém. Ela queria tê-los amado aos três, mas a vida decidiu doutra maneira. Danilo acompanha os pais que apanham o barco para a Jugoslávia. Expressa o desejo de ver, pelo menos uma vez na vida, o pai dele a sorrir. Este sorri, realmente, e chora ao mesmo tempo antes de dizer adeus ao filho. Uma noite, os quatro amigos reúnem-se à volta de uma fogueira na praia. Danilo queima a sua mala velha. Prepara-se para partir com Georgia para tentar viver essa vida densa e rica que sempre iluminou os sonhos deles. 
 
► Baseado num argumento original e parcialmente auto-biográfico de Steve Tesich (de origem jugoslava como o seu herói, Danilo), é o filme mais rico e bem conseguido de Arthur Penn. Também é o único que podemos admirar completamente e sem que para isso seja preciso subscrever os preconceitos que presidem desde sempre ao seu cinema de ruptura e de crise. Desde o seu primeiro filme, The Left-Handed Gun (1958), Penn manifestou um desprezo total pela composição tanto ao nível da sequência como do conjunto narrativo. A maior parte das suas obras mostra uma desordem, um emaranhado de instantes líricos e intensos a partir dos quais raramente emana uma visão de conjunto, uma ordem que o autor não quer impôr à textura dos factos mas que espera que surjam por si mesmos, e como que por milagre, pela justaposição confusa das sequências. Aqui, nesta crónica de uma geração, temos ao mesmo tempo a desordem e a composição, a descontinuidade e a continuidade, a instantaneidade lírica de momentos fulgurantes e uma reflexão que se constrói a pouco e pouco no interior do filme e no espírito do espectador. Misturando admiravelmente as tonalidades, o cómico e o comovente, Penn fala simultaneamente do fim dos modelos e das ilusões, do desgaste da noção de «classe», do desejo colectivo da juventude em ultrapassar a incomunicabilidade entre gerações. Como romancista e observador de costumes, ele pinta o seu país através de algumas pessoas e cria a história do protesto geral, tão decepcionante quando se constata os seus efeitos perto das pessoas, um pouco mais emocionante se se mantiver um sentido de perspectiva recuando um pouco. É só assim que as experiências mais dolorosas deixam entrever uma espécie de plenitude, e os oceanos de lágrimas, ao desaparecer, dão lugar à serenidade. Com Alice's Restaurant e Quatro Amigos, Arthur Penn evidencia-se como o melhor cronista cinematográfico dos anos 60 e como o digno sucessor de Kazan. O filme contém um grande número de sequências antológicas (como aquela em que Danilo se opõe ao roubo do seu carro agarrando-se ao veículo e em que o ladrão, admirado, lhe diz: «Porque é que te agarras às tuas posses, amigo, és mesmo estranho!»). Fantástica composição de Craig Wasson (Danilo) entre um grupo de principiantes e semi-principiantes galvanizados por Penn.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

THE CHASE (1966) de Arthur Penn


É a personagem interpretada por Janice Rule (terrível personagem, terríveis as humilhações a que sujeita o marido interpretado por Robert Duvall, esse “filósofo de Sábado à noite” que, de qualquer maneira e como a maior parte das personagens deste filme tão triste e tão trágico, também não é flor que se cheire) que pouco depois de The Chase começar, fala do olhar de “Bubber” Reeves, dizendo que “he just stared. You know how he does, that funny stare, like everything is going all wrong and he just can’t figure out why”. Vai-se ver esse olhar muitas vezes no final arrepiante deste filme. Quando “Bubber” olha para Jake numa maca e depois para Anna, que lhe responde da mesma moeda, sem saber porque terá acontecido o que aconteceu, e, por fim, para a mãe que lhe abana cinco mil dólares à cara como se lhe fossem resolver todos os problemas do mundo. Repare-se como, nessa cena, ele só reage quando é o pai que lhe dirige a palavra. Repare-se também como, na cena imediatamente anterior, ele percebe só pelo aperto de mão de Jake que este e Anna estão apaixonados. 
 
“Bubber” parece ir parar à cidade natal por partida cruel do destino. Com fome e com pressa vai para Norte em vez de ir para Sul e em direcção à cidade dos pais e da mulher como se um íman terrível o puxasse até ela (“Are you going home?”, pergunta ele a si próprio). O burburinho que se vai multiplicando até resultar em fogo e sangue e o interesse das pessoas desta cidade pelo evadido não são mera curiosidade que se sacie por vê-lo em carne e osso, mas sim mais uma prova do vínculo misterioso que existe entre as suas próprias vidas e almas e as de “Bubber”, que é encarnação e lembrança terrena de sonhos, desejos e até crimes passados de todas estas pessoas e que, ao regressar, parece trazer tudo de volta consigo. O regresso de “Bubber” reacende feridas e revela faltas e pecados para que ninguém quer voltar a olhar. E por isso as coisas correm tão mal e por isso não andamos longe doutro filme que já aqui vimos (Some Came Running), em que outro homem voltava a casa mas para acordar os fantasmas doutra cidade (e a presença da actriz que interpretava Gwen French nesse filme também tão triste e maravilhoso – Martha Hyer – em The Chase parece confirmar este parentesco). “I was thinking of myself at that age, all the things I wanted and believed would happen,” diz Edwin, a personagem que interpreta Duvall. É esta a frase que lhe vale a alcunha de “Saturday night philosopher” dada pela mulher. Foi “Bubba”, o único que nunca deixou de ser jovem, quem pôs toda a gente a pensar no que outrora “wanted and believed would happen.” Nunca podia correr bem. 
 
Calder (uma das grandes composições do colosso Marlon Brando, comparável às dos filmes que fez com Kazan e Coppola e com o próprio Penn, em The Missouri Breaks, misteriosíssimo e fabuloso western) assiste a tudo isto da sua delegacia com um olhar incrédulo e não muito diferente do “funny stare” de Reeves, sendo acusado de aceitar o dinheiro de Val Rogers quando na verdade o enfrenta e faz de tudo para separar as coisas, recusando presentes, terras e dinheiro na mesma noite, a da festa de aniversário de tanto dinheiro, tantos disfarces e tantos negócios de Rogers. Tem que prender os inocentes e deixar os verdadeiros culpados à solta para não haver sangue nas ruas, enquanto “Bubber” se aproxima e a ânsia e os impulsos regados a álcool vão fazendo cada vez mais estragos. Defendendo o que é certo com grande impassibilidade, não consegue evitar a monstruosa carga de porrada que lhe dão na cadeia ou a morte de “Bubber” nos degraus da sua delegacia, quando o burburinho se faz trovão e tempestade (já cantava José Mário Branco: “os homens pequenos, quando são demais, não fazem por menos: tornam-se fatais”). No final, desaparece como os grandes amargurados do western americano (John Wayne em A Desaparecida, Randolph Scott em Ride Lonesome, James Coburn em Pat Garrett & Billy the Kid, etc., etc.) e deixa os lobos entregues a si próprios. 
 
The Chase, ainda que não tão vincadamente ou de forma tão justa como Penn provavelmente desejaria[1], acaba por ser também um filme sobre a difícil herança do Sul, quebra-cabeças hoje quase tão complexo e tortuoso como no rescaldo da Guerra Civil americana. Parte da dificuldade é que algo do que há de mais belo nessa herança, muito exaltada e celebrada por D.W. Griffith ou John Ford, por exemplo, assentou primeiro na escravatura e depois na exploração de seres humanos por outros seres humanos, durante a aplicação das leis de segregação de Jim Crow nos Estados do Sul e que acabaram com a Lei dos Direitos Civis de 1964, assinada por Lyndon Johnson. Esta ambivalência nunca resolvida e que continua a viver dentro de muitos sulistas, que amam e odeiam ao mesmo tempo a sua terra, sente-se nos livros de William Faulkner e nalguns dos melhores filmes feitos sobre o assunto[2] como uma adaga. The Chase não é excepção, e também o ódio racial dos habitantes da cidade é despertado pelo regresso de ‘Bubba’. Podíamos acreditar na senhora do princípio do filme que viaja com o neto de carro e, quando este tenta sair para procurar o evadido, lhe diz que “it’s a white people’s problem”. Mas até esses problemas se conseguem enredar e contaminar por toda a comunidade, voltando a abrir as feridas do passado sulista, misturando-se com todas as outras questões e transformando-se numa agressividade cega e assoladora, representada e justificada por uma forma confusa e fascinante, de tons muito antagónicos nas interpretações dos actores e na própria iluminação do filme. 
 
A produção de The Chase foi tudo menos pacífica para Arthur Penn: a proliferação de grandes temas foi uma exigência do produtor, Sam Spiegel[3], que os ia adicionando a cada nova revisão do guião, supostamente para aumentar o prestígio do filme e a sua cotação nos círculos de Hollywood[4]; além disso, Spiegel também despedia membros da equipa técnica e substituía-os sem dizer nada ao seu realizador, o que não ajudava nada ao ambiente geral das filmagens; finalmente, terminada a rodagem, Spiegel falta ao combinado com Penn (estabeleceu-se que a pós-produção seria em Nova Iorque, onde Penn ia encenar uma peça de que já tinha os direitos), leva as bobinas para Londres e monta o filme à revelia do realizador, rematando a relação de trabalho com um grande golpe nas costas. Penn descreveu a situação e os seus sentimentos em relação ao filme a Elliot Norton, em 1971, afirmando que 
o que eles fizeram foi que, do material disponível, fizeram selecções que eu nunca teria feito. Eu teria usado outros takes ou outras ênfases numa cena. Na verdade, não é tanto uma questão de deixar ou tirar material, é uma questão de tonalidade. Dado um certo número de takes de uma dada cena, por exemplo, com Brando, como podem imaginar, pode começar aqui e pode acabar de forma dramática mesmo lá no topo. Bem, na maioria dos casos, acho que eles usaram o material menos radiante e o material de interpretação menos original e, nesse sentido, acho que privaram o filme e Brando do que era potencialmente uma das interpretações mais extraordinárias que já deu na vida. 
“Há um ritmo, vemos as coisas a acumular e a ganhar velocidade, e se não tiverem isso, fica frouxo. E esse é o meu sentimento em relação a esse filme: é pomposo e é frouxo. Eu fiquei simplesmente sem palavras. Não sabia o que dizer. Sabia que tinha um filme nado-morto nas minhas mãos. O que aconteceu foi uma imersão pura nas práticas de Hollywood. E essas práticas são extraordinárias, inebriantes e detestáveis ao mesmo tempo, pelo que o filme é essas coisas todas para mim.” 
Se se mencionam os problemas de produção de The Chase, forma normalmente desinteressante e mesquinha de falar sobre filmes – porque todas as rodagens têm os seus problemas e é muito mais produtivo analisar o que os artistas conseguem fazer apesar desses problemas, tentar traçar metodologias de trabalho e motivações formais –, e se se presta tanta atenção ao que Penn pensa do seu próprio filme[5], é porque esses problemas e a postura de Penn em relação ao assunto expuseram as fragilidades e a própria legitimidade do sistema de estúdios ou das “práticas de Hollywood” durante os anos 60. O sistema de Hollywood começou a ruir no final dos anos quarenta, quando se proibiu a prática de aluguer massivo de cópias às salas de cinema pela parte dos cinco grandes estúdios, que protegiam assim os seus lucros gigantescos, sem défices e sem dívidas. Howard Hughes foi o primeiro produtor a fazer um acordo com o Estado, na esperança pôr a sua RKO em pé de igualdade com os outros quatro estúdios, mas acabando por afundar a própria companhia e levando-os a todos consigo em efeito dominó. Nos anos seguintes, as companhias de seguros começaram a comprar acções dalguns desses estúdios e não tardou a que os controlassem por inteiro. Durante os anos sessenta, as dívidas eram insustentáveis e as companhias começaram a levar as suas rodagens para a Europa de forma a tentarem controlar custos. 
 
Os realizadores formados na televisão durante os anos cinquenta aparecem em Hollywood por esta altura. Habituados à liberdade que lhes era dada durante esses primeiros anos do novo meio de comunicação, chocaram ora com presidentes de companhias que não percebiam nada de cinema, ora com produtores que continuavam a tratar os realizadores como meros funcionários e os impediam de controlar qualquer outro aspecto da produção. Durante os anos 30, 40 e 50, eram poucos os realizadores que tinham direito à montagem final ou a supervisionar guiões e escolher actores. As soluções mais conhecidas que os realizadores arranjaram eram tentar filmar o menos possível, para impedir surpresas na sala de montagem, e da forma mais compacta, para poder sugerir o que não se podia mostrar. Só que os métodos de Penn (ou Peckinpah) eram incompatíveis com a primeira solução, porque precisavam de muita cobertura para encontrar o filme na montagem, e os anos sessenta não eram tempos para subtilezas, era preciso mostrar as coisas porque já entravam pelas salas de todos os americanos, ao jantar. The Chase ilustra essas questões de bastidores de forma exemplar, bastando citar a cena do cerco a ‘Bubber’ pelos habitantes da cidade, em que a iluminação é puxada ao máximo pelo director de fotografia (contra a vontade de Penn) para filmar uma realidade também puxada ao limite, uma conjugação que só terá equivalente no napalm e no fogo-de-artifício do Apocalypse Now. É quase como se ambos os lados se enfrentassem num duelo pela supremacia. 
 
As cenas de violência de Penn (tal como as de Peckinpah, mas para efeitos totalmente opostos) também são altamente trabalhadas e manipuladas, daí a sua necessidade de cobertura e de opções para a montagem. Do culminar do duelo de vontades entre Anne Bancroft e Patty Duke em The Miracle Worker (em 1962) à longa e penosa partida de todas as partidas do infelizmente muito pouco visto e discutido Penn & Teller Get Killed (em 1989), passando pelo ataque a Brando na sua delegacia no filme que nos ocupa. A concretização desta cena foi idealizada pelo actor, envolvendo a encenação do ataque com movimentos lentos pela parte dos actores, filmados com captação acelerada da câmara. A rodagem de The Chase foi um sem fim de ideias novas para o cinema cujo resultado foi apreendido pelo produtor para ser montado como um filme de estúdio. O choque não deixa de fascinar, e por muito que Penn insista que lhe falta coesão, talvez seja mesmo a falta de coesão que o torne uma obra-prima. Primeiros sinais de uma ordem prestes a ruir, e por quantos prismas se queira ver.

[1] Não deixa de ser impressionante, no entanto, como arranjam maneira de entrar tantas questões neste filme, que se torna charneira exactamente por causa disso: além de documentar o imenso conflito geracional que assola a América nesses anos (manifesto também nas diferentes escolas e gerações de actores que entram no filme), vemos aqui abordadas a questão racial, a questão das armas e das escaladas de violência (Kennedy tinha sido assassinado há pouquíssimo tempo e a cena final é uma re-encenação assumida do assassínio de Lee Harvey Oswald por Jack Ruby, logo a seguir ao assassinato do presidente), a revolução sexual, a exploração de mão de obra pelos grandes produtores, o fim do casamento como instituição e ainda o mito da fronteira e do Oeste.

[2] E Tudo o Vento Levou é muitas vezes citado como o filme definitivo sobre a Guerra Civil, embora tenha muito mais fama do que qualidade (curiosamente, e tal como The Chase, é um filme absolutamente dominado pelo seu produtor). Band of Angels e O Nascimento de Uma Nação (filme problemático, sem dúvida, mas que ilustra muitíssimo bem a ambivalência de que falámos, não fosse Griffith um sulista encantado com a sua história e com os feitos dos seus antepassados) levam sem dúvida a melhor. Sobre o Sul e as suas ambivalências, recomendam-se muito o Mandingo de Richard Fleischer, Stars in My Crown de Jacques Tourneur e The Sun Shines Bright de John Ford.

[3] Os créditos de Spiegel incluem filmes como The Prowler (Joseph Losey, 1951), Há Lodo no Cais (Elia Kazan, 1951), Bruscamente no Verão Passado (Joseph L. Mankiewicz, 1959), Lawrence da Arábia (David Lean, 1962) ou The Last Tycoon (Kazan, 1976), adaptação do livro de F. Scott Fitzgerald com o mesmo nome e baseado na vida e no trabalho de Irving Thalberg. E junto a Thalberg e Darryl F. Zanuck, Spiegel é um dos três produtores de Hollywood a ganhar por três vezes o Óscar de Melhor Filme.

[4] in «Arthur Penn - American Director» de Nat Segaloff, The University Press of Kentucky, 2011.

[5] Como disse o grande Robin Wood sobre Penn (numa análise sobre The Chase que se recomenda vivamente, presente no livro essencial que escreveu sobre os anos 70, 80 e 90, «Hollywood From Vietnam to Reagan... And Beyond», Columbia University Press, 2003): “Se o realizador diz que o filme dele é mau, como é que o crítico pode afirmar que é bom? Se o realizador alega total desconhecimento de certas camadas de significado no seu trabalho, então como é que essas camadas de significado podem existir sem ser na imaginação do crítico? Se o realizador (“o artista”) diz que não teve controlo nenhum sobre um dado filme, então como é que pode valer a pena defender esse filme? Uma das principais preocupações da estética do século vinte tem sido responder progressivamente, e de facto descartar, tais questões: primeiro, através da utilização “primitiva” da psicanálise (o artista não se apercebe dos seus próprios impulsos inconscientes), uma utilização que se mostrou perfeitamente compatível com (e assimilável na) estética tradicional; depois, através de conceitos de ideologia marxistas (onde se separam a estética moderna e a tradicional), revelando toda uma gama de pressupostos culturais, tensões, e contradições que actuam através de códigos, convenções, e géneros, largamente fora do alcance do controlo do artista; finalmente, através da utilização sofisticada da teoria psicanalítica que procura explicar, não apenas o “caso” individual, mas a própria ideologia, a construção do sujeito dentro dela, a relação entre sujeito e espectáculo.”

in «Uma Viagem Pelo Cinema Americano», OLIVEIRA, José, PALHARES, João, A.23 Edições, 2018.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

WHILE THE CITY SLEEPS (1956)


1956 – USA (100') ● Prod. RKO (Bert E. Friedlob) ● Real. FRITZ LANG ● Gui. Casey Robinson a p. do R. «The Bloody Spur» de Charles Einstein ● Fot. Ernest Laszlo ● Mús. Herschel Burke Gilbert ● Int. Dana Andrews (Edward Mobley), Rhonda Fleming (Dorothy Kyne), George Sanders (Mark Loving), Thomas Mitchell (John Day Griffith), Vincent Price (Walter Kyne, Jr.), Sally Forrest (Nancy Liggett), Ida Lupino (Mildred Donner), John Barrymore, Jr. (Robert Manners, o “assassino do batom”), James Craig (Harry Kritzer), Robert Warwick (Amos Kyne), Ralph Peters (Meade), Vladimir Sokoloff (George Pilski), Mae Marsh (Senhora Manners), Sandy White (Judith Fenton, a primeira vítima). 

Depois da morte de Amos Kyne, o patrão de um império de imprensa que se estende por toda a América e cuja jóia da coroa é o diário «New York Sentinel», o seu filho e herdeiro, Walter Kyne, Jr., desprovido de qualquer competência jornalística, adivinha facilmente que os quatro principais responsáveis pelo jornal, Mark Loving, director da agência de notícias Kyne, Griffith, o editor-chefe, Harry Kritzer, chefe do departamento de fotografia e Edward Mobley, o editor nº 1, o desprezam. Para ser valorizado aos olhos deles, cria o lugar de director geral e deixa entender que o vai confiar àquele de entre eles que fizer melhor o seu trabalho, particularmente em descobrir “o assassino do batom” que matou recentemente uma mulher solteira na sua casa deixando esta inscrição na parede «Perguntem à minha mãe». É provável que o assassino já tenha cometido ou vá cometer outros crimes semelhantes e, pouco antes de morrer, Amos Kyne tinha manifestado o seu interesse por este caso. Mobley, jornalista talentoso mas sem ambição pessoal – pelo menos é o que ele afirma – não se envolve directamente no concurso. Mas cada um dos três concorrentes oficiais, Loving, Griffith e Kritzer, procuram ainda assim tê-lo do seu lado, principalmente por causa das suas ligações na polícia. Mobley está noivo de Nancy Liggett, a secretária de Loving. Ela pede-lhe para se pôr ao serviço de Griffith, o mais honesto dos três na sua opinião. Mobley contacta o seu amigo, o tenente da polícia Kaufman, que lhe diz que uma jovem professora foi assassinada nas mesmas circunstâncias que a primeira vítima. Por seu lado, Loving não ficou parado e conseguiu de Meade, o especialista em processos penais do jornal, uma pista: detiveram o porteiro do prédio da primeira vítima. Por causa disso, Loving acredita por um momento que ficou em vantagem. Mas a pista vem duma fonte não oficial e de qualquer maneira não será confirmada. Loving tem de interromper a transmissão pela sua agência de notícias por recear um processo por difamação. Mobley relata a Griffith o que soube por Kaufman sobre o assassinato da professora. Por integridade profissional, Griffith comunica a informação a Loving pela sua agência. Na sua emissão diária de televisão, Mobley decide dar um grande golpe endereçando-se directamente ao criminoso que descreve como um homem jovem e forte, fã de banda desenhada ao relatar os crimes, com problemas com a mãe dele e obcecado pelo seu ódio pelas mulheres. O criminoso realmente ouve-o e corresponde a esse relato. Mobley faz todos os possíveis para o exasperar e o desafiar. Ele pede então a Nancy, que tinha apresentado no ar – sem perguntar a opinião dela – como sua noiva oficial, para servir de isca numa eventual tentativa de assassinato da parte do «assassino do batom». Loving, por sua vez, não renunciou a obter o apoio de Mobley e encarrega a amante dele, Mildred Donner, jornalista do Sentinel, de o seduzir para que ele se junte ao lado deles. Mildred, para quem a missão não é desagradável, faz o que pode, mas como Mobley está completamente bêbado nessa noite, não vai conseguir mais nada além de se fazer beijar num táxi. Os seus mexericos vão excitar o ciúme de Nancy sem servir a causa de Loving. O terceiro candidato, Harry Kritzer, dá-se muito menos mal que os seus dois rivais. Como é o amante e o protegido da esposa de Walter Kyne, Dorothy, acredita que tem aí o mais sólido dos trunfos. Ao colocar o homem que ela escolheu para o lugar criado pelo seu marido, Dorothy quer vingar-se assim do desprezo dele pelas suas faculdades intelectuais e do facto de ele a ter «comprado», por assim dizer, quando casou com ela. Tendo marcado pontos graças às informações entregues por Griffith, Loving também acaba de assinar um contrato muito importante com uma cadeia de televisão. Mais do que nunca, acha-se seguro da vitória. Nancy, ciumenta das pseudo-escapadas do seu noivo com Mildred, recusa-se a fazer mais de isco para Mobley. Mas é tarde demais: o assassino seguiu-a, depois de encontrar o seu apartamento, situado no mesmo andar que o estúdio onde Kritzer recebe Dorothy habitualmente. Simulando a voz de Mobley, bate à porta. Nancy recusa abrir justamente por achar que se trata de Mobley. Louco de raiva, o assassino corre para o apartamento de Kritzer no momento em que Dorothy está a entrar. Agride-a e tenta estrangulá-la. Ela defende-se como uma leoa e consegue refugiar-se na casa de Nancy. O assassino foge. Da sua janela, Nancy indica a Mobley e ao tenente Kaufman a direcção que ele tomou. Depois de uma longa perseguição no túnel do metro, ele é detido. Disposto a tudo para o apanhar, o «honesto» Griffith, sabendo através de Mobley da notícia da detenção antes de toda a gente, prepara apressadamente uma edição especial. Ela aparecerá até mesmo antes que Loving seja posto ao corrente, e sem foto para que Kritzer se mantenha longe. Para aperfeiçoar a sua «manchete», Griffith lançou Mildred no encalço da mulher agredida pelo assassino, ou seja, Dorothy. Mildred vai encontrar Kritzer e Dorothy a saírem juntos da casa de Nancy. Entre os três, vão preparar um plano que dará a vitória e o posto de director-geral a... Kritzer. Enojado, Mobley demite-se. Em viagem de núpcias na Flórida com Nancy, vai descobrir pela imprensa que Kyne voltou atrás na sua decisão. Griffith é nomeado director-geral, Mildred torna-se a secretária pessoal de Kyne, Kritzer será o embaixador itinerante do grupo Kyne e o próprio Mobley vê-se projectado a editor-chefe do Sentinel... 
 
► Penúltimo filme americano de Lang. Um dos pontos mais altos da sua carreira; na nossa opinião, o seu melhor filme. Baseado num romance, mas sobretudo baseado em relatos de notícias variadas recortadas de jornais e que ele tinha o hábito – mantido até ao fim da sua vida, embora já não trabalhasse mais – de coleccionar, Lang escreveu o guião minuciosamente com Casey Robinson e será um dos mais sofisticados da sua carreira. A preparação não menos minuciosa da rodagem e que permitiu manter, sendo o orçamento do filme bastante razoável, os intérpretes prestigiosos reunidos no conjunto (George Sanders, Ida Lupino, Thomas Mitchell, Rhonda Fleming, etc) só quatro ou cinco dias cada um, quando temos a impressão de os ver presentes ao longo de toda a intriga. (Só a Dana Andrews foi concedido um número de dias ligeiramente superior.) A ambição do filme é imensa, a perfeição do seu estilo, cujos elementos desdenham dar nas vistas, sóbria e eficaz. Lang quer dar a ver um panorama bastante vasto da sociedade americana, fundada aos seus olhos na competição e no crime. Como a competição e o crime se tornaram indissoluvelmente ligados, é este o seu tema, a partir do qual surgem as características do seu estilo, obedecendo todas a uma estética da necessidade que nenhum outro cineasta levou tão longe. Criador solitário e exigente, Lang não está totalmente à parte da corrente americana mais inovadora. While the City Sleeps integra e até interioriza de alguma maneira a revolução trazida no ano anterior ao relato policial por Kiss Me Deadly. Doravante já não há bons nem maus nos enredos. A ferocidade da competição trouxe todas as personalidades ao mesmo nível, o grau zero da moral e da consideração pelos outros. Se examinarmos à lupa (é o que faz o filme) o comportamento de cada uma das personagens envolvidas na acção, vemos ou que eles não têm ideia nenhuma do que lhes poderia servir de moral, ou então – e ainda é pior – que eles sacrificam à sua ambição quaisquer escrúpulos que pudessem ter, comportamento considerado como normal na sociedade em que estão inseridas. A partir daí, o criminoso que os jornalistas procuram com tanto ardor para conseguir um cargo torna-se não só a sua presa, mas também o seu reflexo. Às vezes é mais digno de piedade do que eles. Lang leva aqui a um grau de perfeição absoluta a sua arte das ligações necessárias ou mesmo fatais entre as sequências. Seja por um elemento de diálogo, por um elemento visual, por uma personagem ou pelo efeito de uma causa dramática específica, as sequências encadeiam-se umas às outras a um ritmo e a uma progressão lógica que parece obedecer a alguma fatalidade, que na verdade não é senão a consequência das acções cruzadas de cada um dos protagonistas ocupados em suplantar, a usar ou a destruir o próximo – grande teia de aranha onde por fim todos se encontram presos. Requinte supremo da mise en scène: aquelas divisórias de vidro que, dentro dos escritórios do jornal, separam as personagens permitindo-as verem-se umas às outras e dão à história a possibilidade de executar várias sequências frontais, ligadas numa interacção permanente. Este entrelaçado magistral é visto na luz soberba de uma chapa metálica rasgada a bisturi. Depois de muitos avatares e metamorfoses, redesenhados através da experiência e do estilo de um cineasta meticuloso e genial, o microcosmos expressionista reaparece aqui – talvez pela última vez – lavado de todas as suas histórias, dotado de uma pureza expressiva cuja abstracção e concentração fascinam. É um pequeno pedaço de inferno onde as criaturas estão ocupadas, achando-se livres e activas, sob o olhar de um cineasta que não procura outra coisa senão ver bem e dar bem a ver a realidade, mas mantendo o ponto de vista de Sirius sobre todas as coisas. 
 
N.B. O formato do filme coloca, como com Beyond a Reasonable Doubt, o filme seguinte de Lang, um problema complicado que só podemos resolver apelando a um ponto de vista estético. O filme, não rodado em Cinemascope, foi explorado originalmente em Superscope (formato largo utilizado na RKO e resultante de um tratamento de imagem efectuado em laboratório) e depois em formato normal. Qual é o melhor? A nosso ver, é o formato largo, o único em que, por exemplo, os movimentos de câmara ou o cenário do jornal encontram o seu impacto verdadeiro. Mesmo que o Superscope tenha sido « fabricado » em laboratório, Lang sabia que o filme ia estrear em ecrã largo e a sua mise en scène foi pensada em função disso mesmo. A mesma nota para Beyond a Reasonable Doubt em que, para citar apenas essa, a primeira sequência do condenado à morte a avançar em direcção à cadeira eléctrica, é evidentemente concebida para o formato largo. A análise de imagens do filme revela que um certo número de sequências ou fins de sequências foram suprimidos da montagem final num propósito de constrição, como evidencia de resto toda a concepção do filme. A ausência de uma dessas sequências é contudo um pouco lamentável: a do pequeno conluio entre James Craig, Rhonda Fleming e Ida Lupino (de que vemos os começos no pátio interior do apartamento de Sally Forrest) e que se situava no apartamento de James Craig. Essa lacuna torna uma das sequências seguintes um pouco enigmática (aquela em que James Craig é condescendente com Vincent Price e em que Ida Lupino anuncia a Sanders e a Mitchell que estão empatados em segundo lugar) e tira sobretudo uma pequena parte da unidade à construção geral do filme, precisando esta construção efectivamente que cada uma das personagens mais importantes tenham num momento ou noutro uma relação com todas as outras. Seria só nessa sequência que a relação Rhonda Fleming-Ida lupino podia existir. Testemunhos amistosos e favoráveis a Lang vindos de colaboradores do seu período americano dos anos 50 são relativamente raros. O do operador Ernest Laszlo é, neste contexto, ainda mais precioso. Ele confessou a Frederick W. Ott (in «The Films of Fritz Lang», The Citadel Press, Secausus, N.J. 1979): «Fritz Lang era o artista e o técnico completo, nesse sentido superior mesmo a William Dieterle. Eu tive claramente a impressão que ele sabia todos os aspectos da criação dos filmes. Podia ser, claro, um mestre-de-obras bem duro, mas se fizesses o teu trabalho e mostrasses entusiasmo, ele tornava-se o melhor amigo que já tiveste. Eu admirava o seu profissionalismo, como a maior parte dos intérpretes e técnicos. Houve alguns momentos difíceis, principalmente com Dana Andrews e John Barrymore, Jr., mas no essencial a rodagem correu sem conflitos». Ver também o testemunho do montador Gene Fowler, Jr. in Alfred Eibel: «Fritz Lang», Présence du Cinéma, 1964.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

CIDADE NAS TREVAS (1956)


Sabe-se que Fritz Lang, tal como Alfred Hitchcock (e não é a única coisa que os aproxima, pois ambos começaram na Europa e durante o mudo, ambos preparavam os filmes meticulosamente, deixando muito pouco ao acaso e recusando a improvisação durante as rodagens, além de partilharem muitas obsessões temáticas), coleccionava recortes de jornais como forma de inspiração e pesquisa de material e temas para os seus filmes. Quando Peter Bogdanovich, no seu livro de entrevistas ao realizador austríaco (Fritz Lang in America) lhe perguntou porque é que gostava de trabalhar a partir de jornais, Lang respondeu-lhe que “eu acho que os filmes não são apenas a arte deste século, mas sim, e impondo uma palavra de Abraham Lincoln, a arte ‘do povo, para o povo, pelo povo.’ Foi inventada mesmo na altura certa – quando as pessoas estavam prontas para uma arte das massas. (Sabe, por acaso, o que é que fazia mesmo propaganda ao modo de vida americano? Os filmes americanos. Goebbels percebeu o enorme poder dos filmes como propaganda, e eu temo que mesmo hoje as pessoas não saibam que meio de propaganda tremendo os filmes podem ser.) Mas de qualquer maneira, onde é que vamos buscar o nosso conhecimento da vida? Aos factos, não à ficção. Naturalmente, podem-se aprender uma data de coisas em romances e em peças, mas é sempre visto através dos olhos doutro homem. Não se esqueça que nesses dias não havia televisão: hoje quando há um motim, nós vêmo-lo; Pelo Vietname, podemos ver o que é uma guerra na selva. Antes disso, as actualidades levavam bastante tempo a chegar aos cinemas, e só os jornais é que eram notícia fresca. 
 
“Um realizador devia saber tudo. Um realizador devia-se sentir em casa num bordel – o que é muito fácil – mas também se devia sentir em casa na Bolsa – o que já é um bocado mais difícil. Devia saber como se comporta o duque de Edimburgo, como se comporta um trabalhador e como se comporta um gangster. Agora, eu diria que é impossível aprender isto tudo por experiência. Mas a melhor coisa a seguir a isso é ler jornais – mesmo se não forem objectivos, pode-se aprender a separar as coisas objectivas das subjectivas.” 
 
Quando deu com o guião de While the City Sleeps, Lang mostrou ao argumentista, Casey Robinson, um artigo sobre um assassino em série que tinha deixado a mensagem “Please catch me before I kill more” no espelho da casa de uma das suas vítimas, o caso real que tinha inspirado o autor do livro The Bloody Spur, Charles Einstein, que tinha sido a base para o argumento de Robinson (no livro, o assassino escreve “help me for God’s sake” e no filme, “ask mother”). 
 
Sabendo da sua crença que um realizador devia saber tudo sobre o mundo que o rodeia, não é com grande surpresa que descobrimos que Lang aplicava o mesmo princípio ao cinema. Como muitos realizadores austro-húngaros em Hollywood (Otto Preminger, Billy Wilder, Michael Curtiz), Lang acreditava muito mais no guião, na preparação e na pré-produção do que em potenciais descobertas durante a rodagem (como faziam Hawks, Chaplin e Ford com extraordinários resultados), e dirigia os seus actores em conformidade. Joan Bennet, que trabalhou com ele em The Woman in the Window (1944), Scarlet Street (1945) e no fabuloso Secret Beyond the Door (1948), numa carta a David Overbey[1], escreveu que “um dia normal com Fritz Lang como realizador só era normal num aspecto: era invariavelmente controlado como só ele conseguia. Para mim, isto era extraordinário. Ele era minuciosamente meticuloso, com uma compreensão completa do sentido que tinha tomado, do que queria exactamente e de como queria que os seus actores interpretassem, de modo preciso. A minha confiança nele era absoluta e inquestionável. Não havia demonstrações, discussões ou análises de personagens. Fritz dizia ao elenco dele o que queria — e era assim. Era fanático pelo realismo. Tal como o facto de me ter exigido a mim e a Michael Redgrave que fizéssemos o próprio plano de correr através da casa em chamas em Secret, o único momento assustador que eu tive em Scarlet Street foi a cena do esfaqueamento. Eu não me importava de ter tido um duplo se não fosse a insistência de Fritz pela verdade e a minha confiança nele e na sua integridade. Fritz era um realizador exigente, mas trabalhar com ele valeu bem a experiência. Como bem sabes, as técnicas de câmara dele eram distintas, originais e revolucionárias na indústria de cinema. Ela tinha um — suponho que se possa chamar um truque — que parecia usar só comigo. Ele normalmente ficava atrás da câmara durante a rodagem e fazia sinais com as mãos na minha direcção para pequenos movimentos que melhoravam os ângulos de câmara. Foi o único realizador com quem trabalhei que fazia isto, e embora parecesse ser uma fonte de aborrecimentos para outros com quem trabalhei, aceitei-o de bom grado devido à confiança consumada na sua habilidade.” 
 
Apesar de Lang não ter começado por dispor do controlo que gostaria quando chegou a Hollywood em 1934, mal-habituado às mordomias que lhe prestavam nos estúdios da UFA (não lhe impunham limites de orçamento ou tempo, chegava aos estúdios em grande pompa e circunstância, não mostrava complacência nenhuma para com técnicos e actores, de quem exigia exactamente o mesmo que exigia de si próprio), o realizador foi conseguindo impor-se por lá quando os estúdios perceberam que os seus métodos lhes poupavam dinheiro. Ao preparar as posições de câmara com antecedência para cada dia de filmagem (e convém lembrar que Lang trabalhava sobretudo em estúdio, que de outra maneira não o poderia fazer), sabendo tudo o que ia filmar, organizava as filmagens de forma a reduzir as mudanças de luz e de equipamento ao mínimo possível, tendo ainda tempo para repetir planos até estar completamente satisfeito e ganhando a confiança dos seus técnicos e dos seus actores por estes o verem a trabalhar no duro e acreditarem que as exigências a que os submetia se justificavam sempre com o resultado final (e abundam testemunhos semelhantes ao de Joan Bennet[2]). 
 
While the City Sleeps é o penúltimo filme de Lang em Hollywood, expressão pura desse método já cimentado, estudo profundo das relações de poder e influências numa empresa de comunicação, a New York Sentinel, posta à prova pela raiva homicida do “Lipstick Killer”, interpretado por John Drew Barrymore, Jr. Como nos filmes de Alfred Hitchcock, sabe-se de antemão a identidade do assassino, oportunidade para entrar na sua mente e ver também como reagem aos seus actos as pessoas que o rodeiam (um desfile de enormes estrelas de Hollywood: Dana Andrews, George Sanders, Ida Lupino, Vincent Price, Rhonda Fleming, Mae Marsh, Thomas Mitchell). Foi o que moveu e interessou Lang em M (1931), A Casa à Beira do Rio (1950) e no filme que mais se aproxima deste, A Gardénia Azul (1953). Em Lang, as compulsões homicidas parecem sempre um sintoma de um mal maior, de que os espectadores incautos ou os investigadores responsáveis participam sempre. A caça ao assassino em While the City Sleeps é só uma desculpa para os jornalistas avançarem na sua carreira por todos os meios possíveis, à custa de chantagens, subornos, intimidações, seduções, facadas nas costas ou pactos com o diabo e para o dono da companhia os ver esfolarem-se por isso como se assistisse à versão moderna dos jogos romanos da sua cabina privada, ficando como prova disso mesmo o plano pormenor dos três amendoins, a que ele dá os nomes dos seus jornalistas – plano a que João Bénard da Costa chamou o “mais sombrio” do “filme mais perverso da obra de Lang.”[3]  

Nos filmes de Fritz Lang, e este não é excepção, mostra-se o que o mundo faz às entranhas dos homens, pergunta-se se não as corrói por dentro e se não os transforma. Em While the City Sleeps, pergunta-se também se o olhar de um pivot de telejornal, quando vê o trinco da porta da namorada e o destrava para depois poder entrar, não é igual ao de um assassino a fazer o mesmo quando entrega as compras a uma mulher que não conhece e, a seguir, mata. Se essa cena serve para a personagem de Dana Andrews descobrir como é que esse primeiro homicídio aconteceu, o relevo dado ao olhar do jornalista não pode ser inocente. Como não é inocente a cena em que o “Lipstick Killer” se faz passar pelo personagem de Andrews, tornando-se no seu duplo, tal como antes o jornalista fora duplo do assassino (duas faces da mesma moeda?). Nem como nada é inocente neste filme tão perverso e que vai tão fundo na difícil demanda por saber o que vai na cabeça dos homens quando caem nas ciladas da ambição.

[1] in «Fritz Lang» de Lotte Eisner, Da Capo, Nova Iorque, 1986, pág. 376.

[2] Toda a informação relativa aos métodos de trabalho de Fritz Lang está no livro essencial dedicado ao cineasta e escrito por Lotte Eisner, historiadora e arquivista fabulosa que, durante a 2ª Guerra Mundial e a grande custo, ajudou Henri Langlois a salvar bobines de filmes, guiões originais ou objectos usados durante várias rodagens para gerações futuras.

[3] in «As Folhas da Cinemateca - Fritz Lang», Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1996, pág. 146.

in «Uma Viagem Pelo Cinema Americano», OLIVEIRA, José, PALHARES, João, A.23 Edições, 2018.