terça-feira, 31 de janeiro de 2012

TIGER SHARK (1932)



A surpresa e o respeito não vão ter fim. Como se alguma vez achasse possível ou concebesse sequer ver um filme de Hawks em que os personagens são quase todos portugueses ou luso-descendentes e em que se fala português em várias situações. E ver os mesmos rituais e as mesmas relações, o mesmo pensamento por trás deles, neste contexto, fazem-me olhar e adorar a obra de Hawks ainda sob outro olhar, como se ao constatar que é tudo o mesmo, se tornasse tudo diferente.

Não tenho como não achar isto, não consigo. Se há um só autor na história do Cinema, tem de ser Hawks, por tudo, pelas rimas entre filmes, entre planos, entre personagens, entre filosofias, entre percursos, escolhas, sombras, ângulos, trabalho, rodagens, tudo. Como é possível que um filme encomendado para Edward G. Robinson, nos anos 30, acabe por se tornar Hawks do princípio ao fim? Aquela amizade é a mesma de Angels, To Have and Have Not, The Big Sky, Rio Bravo. Não a mesma porque são pessoas diferentes, sob um olhar diferente - na medida em que o mesmo olhar percebe implicações diferentes para pessoas diferentes, também, mas no mesmo ciclo de acontecimentos. Olhar triângulos amorosos, amizades, pessoas ao trabalho e à conversa, ao piano, à guitarra. Os rituais que se cumprem e veneram, filme após filme. Olhar o espaço fechado, o bairro e o barco, aqui, como depois os bares, as cadeias, as cidades. Já nem me parecem espaços tão fechados assim, há filmes de Hawks que se passam em cidades inteiras, este vai da América ao México, se o espaço parece fechado, é porque a forma e o olhar são apurados, confinam o essencial, rejeitam o volátil, o acessório. O espaço é fechado pela forma, que concentra forças para que o nosso olhar se torne contemplação. Contemplação pura. Se está lá algo, se algo se passa, não é ao acaso. Não é ao acaso que tudo neste filme seja ditado pela vontade dos tubarões, que Mike Mascarenhas diga "the sharks settle everything", e que os três acontecimentos-chave do filme se devam ou se originem pelos três ataques dos tubarões. Mas isto já foi dito e melhor dito. Não é ao acaso que aquele homem, Mascarenhas, tenha azar com as mulheres, homem que não se aceita a ele próprio e às suas limitações, e só quando tudo lhe é atirado à cara é que percebe, a custo. Nada. Nada é ao acaso. Vem-me um plano à cabeça, o do içar do tubarão que mata Manuel Silva, e que é castigado pela tripulação por todos os crimes de todos os tubarões, e só quem muito trabalha e muito sofre é capaz de fazer isto. O tubarão-expiatório, o que é castigado por todas as injustiças e sofrimentos por que aquelas pessoas passaram, que lhes adia o alívio por chegar a casa, que lhes mata os amigos e a pesca, também. Que naquele momento lhes faz tudo e eles a ele, também.

Do you have a light? Já não tenho conta de quantas vezes ouvi isto num filme do Hawks, como já não tenho conta de quantas vezes o disse ou o ouvi pelas mais variadas razões, às vezes por puro interesse. Nos filmes de Hawks não há oportunismos, é uma maneira de dizer "estou aqui", sem interesse pelo lume mas pelo outro, e de estar disponível para o outro. De dar e receber tudo sem dizer nada a não ser dá-me lume e as coisas começarem a fazer sentido, de todas as maneiras. O prazer de dizer que nos damos, voluntariamente, sem o dizer..

Ouvir o português como quase nunca o ouvi em filme, com a dinâmica de quem inventou a dinâmica do diálogo em Hollywood. De quem disse que basta hesitar no que se diz para as coisas parecerem certeiras e apuradas. Porque não há quem não hesite, não há quem diga as coisas sem parecer estar a perder alguma coisa, no processo, e a construir-se pelo diálogo. Mike fala rápido e dá outra imagem dele aos outros, com as hesitações que são o pesar na consciência por não estar a dizer a verdade. "Women can't get away of me"; "I'm the greatest fisherman in the Pacific Ocean";

Que tudo se tem que concretizar para que as coisas falem connosco: as transições quase documentais dos processos de selecção depois da captura do peixe, a engrenagem cíclica do trabalho e o olhar clínico e profissional de Hawks. Documental; O mar e a água como parte narrativa e profética de todo o filme, começa tudo no mar alto e acaba tudo no mar alto; mostrar e fazer passar tudo que é lúdico no trabalho, que as pausas são trabalho, a beleza dos encontros dessas pausas, a nota de uma guitarra, o acender de um cachimbo, a comicidade e o movimento natural dos corpos; Quita e Pipes a olharem para a esquerda do plano e a ficarem horrorizados aos poucos, sem nos ser dada uma referência prévia de que Mike está lá, à porta, até lá o vermos, o que no fundo quer dizer confiar na inteligência do espectador, não mandar pó para os olhos; criar espaços para os silêncios e para as inacções, que se tornam em palavras e acções (para quem está a ver, quanto mais não seja); confiar e fazer sublimar aos nossos olhos cada personagem, e estabelecer uma ligação de admiração e contemplação cósmica entre elas, deixá-las olhar, deixá-las tocar, deixá-las dizer;

Num rasgo, obra-prima. Hawks, génio.

sábado, 28 de janeiro de 2012

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Hollywood, 1981



She remembers the song. What does it mean? A childhood trauma buried deep in her unconscious. Her dying father, her lying mother. The final piece of the jigsaw, she's emancipated. But we blew it, we didn't grab 'em. Why? Do you know why? I'll tell you why. Because dying fathers and lying mothers are a dime a dozen, these days. Home and family have become civilization's antiques, along with the flag! Sunday school, girl scout cookies, C.B. de Mille and virginity. We gave them virtue, they want vice, we sold them schmaltz, they prefer sadomasochism. Instead of the american dream it should have been the American wet dream!!

*Verdade, verdadinha, é que não há filme algum do Edwards que não valha a pena..


É um bocado como se os fantasmas de Laurel e Hardy circulassem por uma Califórnia completamente corrompida e prostituída (Jean-François Rauger)

The Party (1968)

10 (1979)

Switch (1991)

domingo, 22 de janeiro de 2012

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A 'obscenidade' em Hollywood (V)

I / II / III / IV



Ano da graça de 196o. Stanley Kubrick decide fazer a adaptação do romance de Vladimir Nabokov, Lolita, para o grande ecrã. Lolita é o filme da transição para o exílio absoluto na Inglaterra e talvez o último filme em que não pôde ter controlo e liberdade absolutos na concepção, principalmente por pressões do código Hays e da Catholic Legion of Decency, que, como é óbvio, lhe caíram em cima.

Começo assim, porque acho que é por isto tudo que Lolita é o meu filme preferido do americano. A partir do momento em que passa a morar definitivamente no outro lado do Atlântico, o cérebro metódico e a veia perfeccionista - maquinal - de Kubrick tapam os "poros" dos seus filmes, deixa de haver espaço para o mistério - o inexplicável - e passa tudo a ser fórmulas e equações - lógica (embora 2001 e Eyes Wide Shut retenham esse mistério e me pareça que fogem à "regra")..

E antes de passar à "obscenidade" propriamente dita, digo - escrevo - que Lolita é o filme mais humano e tocante de Kubrick, em que há tanta doçura como monstruosidade, tanta inocência como cinismo, wit. Penso nos olhares escondidos e acautelados de Humbert para Lolita no baile, perto do início do filme, os travellings que sentimos serem proibidos sobretudo pela rapariga estar tão fora de alcance - entre ele e ela, os jovens que também dançam, sempre no caminho do olhar. A infantilidade ofegante de Hum, a maturidade serena de Lo, a omnipotência cómica de Quilty (o génio de Sellers*), lembro-os sempre que ouço o tema de Nelson Riddle (ali em cima).. No filme, aparece pela primeira vez na cena do jardim e parece já dizer tudo sobre ao que o filme vem (se o genérico engenhoso não o tivesse dito, ainda) estória trágica de miúdos a brincar aos graúdos e de graúdos a brincar aos miúdos.. Lolita.

A pedofilia, pois claro. Para os padrões de hoje parece um filme quase que soft e pouco controverso. A mim não me parece e nem sei se se tem que "ver bem a altura em que foi feita e tal". Aquelas elipses curtinhas curtinhas são qualquer coisa (como as de Hawks em vários dos seus filmes, as elipses sexuais - e ninguém me convence que o Gentlemen prefer Blondes não é um cruzeiro de javardices disfarçado de musical). A dada altura do filme já ninguém duvida que Humbert e Lolita andam a dormir juntos, e há coisas que ganham uma força tremenda por se saber isso: as que acabam no delírio lento, desesperado e suicida de Humbert, que é a presa naquele jogo todo, o pau mandado da ninfa. A morte fortuita e tão conveniente da mãe-Haze, que Humbert tanto anseava, o ridículo daqueles encontros cordialíssimos na casa-de-banho em que se fala de morte, suicídio e responsabilidades com a leviandade mais bairrista e suburbana possível. A América dos cinquentas. E não só a América e não só nos cinquentas..

Os filmes controversos são aqueles que espelham a 'obscenidade' de quem procura o "pornográfico" e o "chocante", os que espelham a morbidez dessa busca infatigável por "ordem", "sanidade", "saneamento", "limpeza", "decência". Enfim, esses palavrões todos... os que são contrários à sanidade verdadeira.. a de perceber que é preciso tentar perceber as coisas.. Kubrick foi humano o suficiente para gritar contra as neuroses "civilizadas" da hipocrisia (que acabam em manifestações cívicas de violência). Depois foi fazer o que quis fazer.. e o grito e a revolta ficaram documentados em Lolita. Tão fresco e belo como há cinquenta anos..

* talvez - talvez, não tenho certeza porque tem papéis prodigiosos - a interpretação mais complexa de Sellers, que aqui é uma personagem a interpretar várias personagens, com contensões dramáticas, explosões cómicas. Enfim, tudo o que é ser um actor do camaleónico ao esquizofrénico. Um homem em diálogo constante consigo mesmo.. Não se assiste às transformações, mas as facetas de Quilty parece que falam umas com as outras..

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Um 'Oh' e um 'Ah'

De onzes e equipas de sonho:



Na sequência das pansignificações do Luís no CINEdrio, "brotou" um torneio interblogues do qual farei parte, junto com os mentores do mesmo CINEdrio, do Modern Times, do Numa Paragem do 28, do Última Sessão, Breath Away, In a Lonely Place e Sombra do Elefante. Eis o meu onze:

Antonioni: Dotado de visão global de jogo como nenhum outro. Sabe para que lado tem que se atirar antes dos atacantes adversários saberem, o que lhe dá uma espécie de fama mística no mundo do futebol..

Mario Bava: chamam-lhe o "diabo italino". Quando pega no esférico pelo corredor direito, é drible atrás de drible, finta atrás de finta: um festim para os olhos..

Charles Chaplin: dono e senhor do corredor esquerdo, as suas subidas não são sempre as mais ortodoxas e trazem-lhe alguns problemas com a equipa, apesar de serem sempre muito eficientes e por um bem maior.

Hawks: O pilar - o capitão. É nos momentos de tormento que traz segurança à equipa, elevando os espíritos salvando os jogos. Diz a lenda que há um piano nos treinos da equipa..

Minnelli: Elemento moralizador, formando com Hawks a dupla de centrais mais segura e impenetrável do planeta.

Bogdanovich e Rivette: No socorro à defesa, no apoio ao ataque, são os jogadores que mais passam despercebidos. Cultivadores do apagamento do virtuosismo, trabalham por objectivos e metas para a equipa, tornando-se invisíveis. Quanto menos se notar a sua presença, melhor jogam.

Jacques Tati: O pensador de jogo. Se a primeira metade do campo é de Hawks, a segunda é do francês. Mise en jeu, mise en jeu, mise en jeu!

Michael Cimino: O elemento mais lutador e batalhador da equipa. Cobrador de cantos, faz, com Lewis, uma dupla eficientíssima.

Nick Ray: O preferido de Jean-Luc Godard, famoso comentador desportivo.

Jerry Lewis: O terror de qualquer defesa, que se deixa levar pelo número de "despistado e trapalhão" de Joseph Levitch. Quando dão por ela, a bola já está nas malhas da baliza..

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Bava, Bava, Bava...


Gli Orrori del Castello di Norimberga (1972)

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

2ª série dos planos (XXIX) - último


I / II / III / IV / V / VI / VII / VIII / IX / X / XI / XII / XIII / XIV / XV /XVI / XVII / XVIII / XIX / XX / XXI / XXII / XXIII / XXIV / XXV / XXVI / XXVII / XXVIII

De vez em quando, convido bloggers a escolher um plano e a falar, também, sobre ele. O vigésimo nono convidado é o Francisco Noronha do Bósforo e do Cineclube FDUP, que escolheu o plano da maçã do belíssimo Primavera Tardia, de Yasujiro Ozu.



Em primeiríssimo lugar, quero agradecer ao João Palhares o gentil convite para participar nesta rubrica, que há muito acompanho.

O plano que escolhi pertence a um dos filmes icónicos de Yasujiro Ozu: Primavera Tardia (1949). Diz ele respeito ao momento, já quase a fechar o filme, em que Shukichi Somiya, o pai de Noriko, se encontra em casa, sozinho (mais do que isso: solitário, o que é tudo neste filme), a descascar uma maçã. Este plano, mais do que valer isoladamente, vale por todo o filme: ele é um momento-chave em Primavera Tardia, e isso por ser também, em grande parte, um momento-chave na própria personagem de Shukichi.

Ao longo do filme, Shukichi é-nos apresentado como o pai que, a partir do momento em que se apercebe de que a filha entrou, como mandam a tradição e a honra locais, em idade de casar, não poupa nos esforços em conduzi-la para esse destino. Fá-lo, todavia, de um modo cândido, nunca agressivo ou impositivo. Aliás, essa é uma nota dominante em todo o ambiente que circunda Noriko: ninguém lhe impõe, autoritariamente, o casamento (do qual nunca conheceremos a outra parte, o noivo), pese embora a persistência com que a interpelam a propósito desse assunto, sejam familiares (especialmente a sua tia) ou amigos, a sufoque. Shukichi demonstra ser, portanto, um homem tolerante, plácido e, até, condescendente ou compreensivo para com os receios e as hesitações da filha (para quem a felicidade maior está em ficar junto do seu pai) – aquando do passeio a Kyoto (o último passeio a dois, como melancolicamente a ele se referem pai e filha), Shukichi diz a Noriko que também o seu casamento passou por muitas dificuldades e que só a perseverança sustém uma relação e consolida a felicidade (ensinamento com uma ressonância impressionante em tempos como os nossos). Crente do caminho marital que a filha deve tomar, Shukichi, quase num acto de fé, sacrificando a sua própria felicidade e bem-estar (proporcionados pela companhia da filha), criará, aos olhos de Noriko, a falsa aparência de apoiar de bom grado o seu casamento, inclusivamente mentindo-lhe ao dizer que ele próprio deseja voltar a casar. Esta duplicidade forçada faz com que Shukichi se comporte sempre de forma perfeitamente contida e determinada perante a filha, ocultando as suas verdadeiras emoções e angústias.


Ora, é justamente neste ponto que o plano que escolhi assume uma importância capital. Pois é no momento que ele capta que vemos a primeira – e única – explosão de Shukichi: é depois da tempestade (leia-se o casamento), feito o sacrifício supremo, que Shukichi se irá abrir e revelar o seu verdadeiro interior, desfazendo a imagem do homem em paz consigo mesmo. Na casa que até então havia sido partilhada por pai e filha, só resta o primeiro: Noriko não mais está presente, embora Shukichi (como nós) pressinta a sua presença em cada espaço. Shukichi dirige-se à sala e senta-se na cadeira descascando uma maçã (tarefa de que, outrora, Noriko se ocuparia gentilmente).

Disse “explosão” e não é à toa: vencido pela tristeza, pára de descascar a maçã e chora (ainda que naquele jeito sempre contido dos japoneses – bem diferente dos norte-coreanos, ao que parece), de cabeça baixo, consigo mesmo. O choro é silencioso, deixando que a música (cordas) apure a atmosfera de separação reinante. Ele sabe que um tempo, um ciclo terminou, embora tenha a consciência, simultaneamente, de dever cumprido, já que o casamento de Noriko se mostra uma inevitabilidade da vida e da ordem natural das coisas (ele mesmo o diz, muito determinado, a Noriko, na última noite passada em Kyoto). E é talvez por isso que Primavera Tardia termine, imediatamente a seguir, com um plano sobre o mar, como sinalizador, roubado à mãe-natureza, da inevitabilidade da passagem do tempo e do carácter cíclico da vida.

Do ponto de visto técnico, e tal como em muitos outros filmes de Ozu, sobretudo a partir de Primavera Tardia (fase de aprimoração da técnica depurada do japonês), o plano é absolutamente fixo, sem lugar para quaisquer movimentos de câmara ou panorâmicas. O enquadramento, esse, é perfeito: primeiro, vemos Shukichi sentado descascando a maçã, com a profundidade do plano a sugerir o vazio provocado pela ausência de Noriko; depois, e semi iluminadas, apenas a faca, a maçã e as mãos – as mãos, imóveis, de um homem abatido por um destino que ele próprio, sacrificando-se em nome de um bem maior, ajudou a desenhar.

A força deste plano é extraordinária: apesar de todo o pesar que ele respira, não contempla nenhum momento, ainda que breve, de compunção. A vida seguirá o seu curso, dir-nos-ão, então, as ondas do mar. (Francisco Noronha)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012