sexta-feira, 16 de julho de 2021

O RIO VERMELHO (1948)


Depois dos cavalos europeus se espalharem pelo continente americano e servirem os índios nas suas grandes caçadas e viagens, chegaram os primeiros colonos com éditos do governo para ocupar as terras a Oeste, onde os índios seguiam as manadas de búfalos nas grandes pradarias. Encontraram obstáculos naturais que os fizeram tremer e vacilar e a história do Oeste é a história da travessia por essas muralhas áridas e, à primeira vista, impenetráveis. Também é uma história de grande violência e, por muito que os “caçadores de mitos” da actualidade o neguem, o cinema soube contá-la e às vezes com grande desprendimento. Há grandes filmes que se imergem a fundo nos mitos e os narram como se verdade fossem (Jesse James de Henry King e They Died With Their Boots On de Raoul Walsh), há grandes filmes que os questionam e os desmascaram (Forte Apache de John Ford e Matei Jesse James de Samuel Fuller), como há grandes filmes que se documentam e tentam ir de encontro à verdade, falando de um tempo de transições complexas e determinantes para o futuro da América (Canyon Passage de Jacques Tourneur e O Rio Vermelho). 
 
O Rio Vermelho é o primeiro western de Hawks (depois faria Céu Aberto, em 1951, Rio Bravo, em 1959, El Dorado, em 1966, e Rio Lobo, em 1970, admitindo que também considerava Hatari!, de 1962, como um western[1]) e narra a primeira movimentação de gado pelo Caminho de Chisholm, abordando ao mesmo tempo – e através dessa maravilhosamente concisa introdução – a migração para Oeste, a presença centenária dos espanhóis e dos nativos americanos e a violência da conquista do que hoje se chamam os Estados Unidos da América. Depois da Guerra Civil, o Estado do Texas, por ter estado isolado do conflito, manteve intactas as suas grandes manadas (uma mistura de raças que, ao longo dos séculos, deu origem ao longhorn do Texas), enquanto o Norte as viu ser dizimadas, oferecendo as quantidades absurdas de dinheiro que motivaram essas imensas conduções que atravessaram grande parte da América no século XIX e ainda durante o século XX. Rio Vermelho descreve tudo isto com uma grande sobriedade, e quando acabamos de o ver, assistimos, além de outras coisas, ao que foram essas enormes e árduas conduções. 

Quando o cinema nasceu, e mesmo depois de começar a prosperar (com a estreia do Nascimento de Uma Nação, de D.W. Griffith, em 1915), a fronteira americana ainda não tinha sido totalmente fechada. Isto permitiu à indústria imbuir-se do espírito pioneiro: contratando artesãos que, de outra maneira, não arranjavam trabalho (a procura de certos objectos e serviços ia-se tornando cada vez mais escassa); trazendo velhos heróis do Oeste como Wyatt Earp para várias rodagens como conselheiros técnicos e históricos[2]; ou filmando os próprios colonos com as próprias caravanas, anos depois das suas aventuras e das suas travessias, como aconteceu com The Covered Wagon de James Cruze (1923), em que a rodagem foi um empreendimento comparável às travessias impossíveis do Velho Oeste[3]. Rio Vermelho recupera estes empreendimentos loucos, filmando o que foi uma verdadeira condução de gado, encabeçada por verdadeiros profissionais e que resultou na venda das vacas depois de terminada a rodagem do filme. Talvez convenha, portanto, prestar atenção a Raoul Walsh, outro americano que além de contar a História do seu país, das grandes migrações em The Big Trail (1930) às próprias conduções de gado em The Tall Men (1955), foi mesmo um cowboy e sentiu isso no pêlo. No segundo capítulo da sua fascinante auto-biografia, Each Man in His Time, Walsh, acabado de viajar com o tio a Cuba, decide separar-se dele e entrar ao serviço de um texano chamado Zack James. Começa então a descrever uma condução de gado ao pormenor, dizendo que 
O capataz do Texas tinha uma manada de cerca de seiscentas vacas e novilhos misturados, longhorns de todas as espécies, com bezerros aos pés e outros a caminho. Até para os meus olhos inocentes, era aparente que íamos demorar a chegar ao Rio Grande, com tão pouca gente e com tamanha viagem à nossa frente. Tinha razão. Foi quatro meses depois de termos deixado Veracruz que o rio apareceu. Por essa altura já me tinha tornado um encarregado amadurecido, capaz de me fazer valer à frente dos outros cavaleiros (cinco em número, além de James, e todos do Sul do Texas). O rapaz que queria ver um cowboy era agora um. 
Quaisquer ideias românticas que tivessem ficado dos meus livros do Oeste desapareceram no nosso primeiro dia. Eu fui enviado para a traseira para empurrar o gado que se estava a atrasar, engolir poeira durante as próximas duas semanas. Pela altura em que o capataz me deixou cavalgar no flanco, já tinha comido uma porção valente do nordeste mexicano. 
Também descobri que embora conseguisse aforquilhar um cavalo, atirar uma corda, enrolar um cigarro com uma mão e dizer palavrões como os melhores, não sabia nada sobre condução de gado. O conhecimento veio da maneira difícil, afastando a manada dos centros populosos onde o gado disperso local se podia juntar e arranjar problemas; ficando de vigia durante a noite; aprendendo a cantar e a falar para a manada que descansava, e bater nas minhas calças, para que o gado não se assustasse com o silêncio em que o uivo de um coiote os podia lançar em debandada. Há truques em todos os ofícios e havia mais na condução de gado para além de cantarolar “Vamos, canito, vamos”. Além de manter a manada a mexer-se havia a patrulha à frente para encontrar água e pastagem, viagens à parte até cidades no caminho para regatear por mantimentos, um novilho ou uma vitela para matar e tirar a pele, carne para ser cortada e estendida por cima das proas das carroças para secar em carne curada, cavalos para tratar e calçar, vitelas caídas para transportar em selas até descobrirem as patas. Entre estas e outras tarefas lá conseguíamos arranjar algumas horas de descanso para nós. 
Recordando essa condução, ainda me pergunto porque é que mais vaqueiros não perdiam a razão. Ou talvez sentissem como eu: preferiam cuidar de uma manada de gado a fazer outra coisa qualquer. Quando julgassem que já não podiam aguentar mais, podiam sempre sair dos seus cavalos e saltar com os chapéus. 
Com o vento por trás, o gado acabava por andar demasiado rápido e cansar-se e recusar-se a ir para a frente. Contra o vento, podiam percorrer duas milhas por dia. Às vezes não faziam progresso nenhum, quando o vento soprava e moía a gritar e a carregar sobre cavalos e cavaleiros. Oito a dez milhas por dia era andar bem.
Quando chovia, como acontecia muitas vezes, os cavaleiros ficavam encharcados ou punham os impermeáveis, por baixo dos quais suavam e se molhavam, de qualquer maneira. Eu lembrei-me duma regra da minha mãe que era tirar toda a roupa húmida o mais rápido possível. Seguir este conselho resultou muitas vezes em cavalgar de corpo nu, o que era duro para as partes de baixo durante o tempo necessário para as minhas calças e a minha camisa de sobra secarem por cima da carroça da comida, quando o sol aparecia depois da tempestade. Além de lesões da sela, tinha que aguentar o gozo dos outros condutores por ser um tipo da cidade, mas nunca tive uma recaída por arrepios e febre, como alguns deles tiveram. 
Isto tudo e mais fazíamos nós por trinta por mês e “achado”. O “achado” eram feijões, às vezes bacon bolorento que me dava cólicas de estômago, e café forte o suficiente para derreter a colher. Era uma vida dura, mas eu tinha-a pedido. Anos mais tarde, iria receber cem vezes mais só para dizer às pessoas como devia ser feito. Antes de chegarmos ao rio, estava castanho como um índio e duro como uma pedra.[4] 
John Wayne, que como Raoul Walsh assistiu aos empreendimentos épicos do cinema para fazer jus às grandes aventuras do Oeste (e Walsh e o ‘Duke’ trabalharam juntos em The Big Trail e Dark Command), só aceitou fazer o filme quando Hawks, que nunca tinha feito um western, lhe garantiu que ia contratar verdadeiros profissionais e verdadeiros cowboys para os ajudar na rodagem e que ia aumentar consideravelmente o orçamento. Era a primeira vez que Hawks trabalhava com Wayne, antes de o abordar queria fazer o filme com Gary Cooper no papel de Dunson e Cary Grant no papel de Cherry Valance, personagem cuja importância era muito maior no guião inicial. John Ireland, o actor que acabou com o papel, não caiu nas graças de Hawks e viu o seu papel muitíssimo reduzido[5]. Aconteceu o contrário com a personagem de Montgomery Clift, de quem Wayne e Hawks gostaram imenso[6]. No final da rodagem, que durou cinco meses, Hawks disse que venderam o gado e “ganhámos imenso dinheiro”. Mas o empreendimento não foi lucrativo e Hawks teve que dissolver a Monterey Productions, companhia fundada para a produção do filme. Devido a vários processos judiciais, incluíndo um de Howard Hughes, que acusava Hawks de plágio, o filme, terminado em 1946 e registado em 1947, só se estreou em 1948. 

Desde que começa, com a canção de Dimitri Tiomkin que se transformaria depois na My Rifle, My Pony and Me de Rio Bravo, com um genérico esculpido a montanhas e vales intemporais, Rio Vermelho transporta-nos imediatamente para um tempo e para um lugar, muito antes das legendas em forma de livro nos situarem no Texas, em 1851. Os primeiros minutos do filme, além de conterem neles quase todos os processos históricos que vão transformar a América nesses anos (com a Guerra Civil no fundo e referida apenas como “the war”, por Wayne), são essenciais para todas as batalhas e decisões posteriores dos heróis do filme, ficando também connosco as palavras da personagem de Coleen Gray (aparição curta, mas estonteante), Fen, que quer seguir o Tom Dunson de Wayne para onde quer que ele vá: “The sun only shines half the time, Tom. The other half is night.” Cai a noite e o grupo em que ela ia já tinha sido dizimado por índios. Quando um pequeno grupo de guerreiros vai atrás de Dunson e do amigo, Groot (fabuloso Walter Brennan, metade do tempo com dentes e outra metade, sem[7]), e estes os matam, Dunson descobre a pulseira que deu à amada no braço de um deles. Acolhem Matt, um miúdo que sobreviveu ao ataque, e assentam bem a sul do Rio Vermelho. Depois de passarem os anos que vão ver a enorme herdade da marca “Red River D” crescer e multiplicar-se e receber a “guerra” que oporá amigos e irmãos, numa transição brilhante que oculta uma elipse dolorosíssima, Dunson reaparece-nos com uma cicatriz na face direita, como os heróis marcados dos filmes de Hawks (“Scarface”, mito e tema mais misteriosos da sua obra). Os dados estão lançados. 
 
A oposição entre a noite e o dia (como existem várias no filme, também, entre Matt e Dunson, entre os homens e as mulheres, entre o Norte e o Sul) vai contaminar e pontuar todo o filme, expressa principalmente pelo medo das garras da noite e a obrigação à vigília, começando como um receio muito prático, a preocupação com a manada, nessas horas mais propensa à debandada (e muito se poderia dizer da sensibilidade de Hawks em descrever e filmar o silêncio e a imobilidade, neste filme, que é com certeza uma das razões para provocar um fascínio tão grande, nunca diminuído por quantas vezes se veja, com uma noção de ritmo exemplar, de saber onde abrandar e onde acelerar – lição perpétua de realização), e transformando-se depois num medo quase metafísico, medo dum inimigo invisível, em verdadeiro terror – como diz Matt a Groot, quando o filme já vai bem avançado e Groot repara que é “funny. Funny what the night does to a man, you’re allright during the day”, “during the day they can see”. Veja-se a noite de vigília de Harry Carey, Jr., veja-se como a escuridão afecta o gado e os homens, ainda o medo é muito prático e consciente, só uma preocupação. Ou a noite das brumas na floresta, quando Tess (Joanne Dru, também fabulosa) vai ter com Matt, justificando as palavras de Fen a Dunson no princípio do filme. O consolo e os cuidados tocantes dela com ele, que passa a ser o que também diz palavras ao vento e ao desbarato, como ela fazia ao princípio (tudo o que envolve o namoro deles, mesmo conhecendo a obra de Hawks, é absolutamente impressionante).Vai ser ela, ainda, que vai dar uma segunda oportunidade a Dunson, por interposta pessoa. 
 
É quando Dunson percebe que Tess está apaixonada por Matt — e pode-se e deve-se prestar muita atenção ao olhar de Wayne quando percebe isto — que decide não matar o filho adoptivo. A importância que Hawks dá a esta cena não está só na encenação desse olhar, mas também na escolha do cenário (o primeiro interior usado no filme, pouco antes dos últimos, em Abilene, onde Matt olha estupefacto para o tecto do escritório da personagem de Harry Carey, por ter passado os últimos meses ao ar livre e ao “céu aberto” – lembra a história do falecido Andrea Tonacci, que disse que quando tinha voltado de uma viagem prolongada na Amazónia para a “civilização”, via imensos defeitos nas paredes, que eram totalmente brancas para o resto das pessoas: habituado à escuridão da selva, começou a ver muitíssimo melhor), na iluminação muito intimista e focada nos rostos de Wayne e Dru. Nessa conversa, Dunson lembra-se — palavra por palavra — do que Fen lhe tinha dito na triste despedida dos dois, vê que Matt repetiu o mesmo erro que tinha cometido e quando Tess lhe pede para ir com ele pode dizer o tão repetido “...and there’s nothing you can say or do...” mas já não o diz a sério, como também já não leva a sério a sua demanda homicida. Mas isto tudo é para dizer que não há qualquer problema e inconsistência formal ou narrativa com o final, que tantas polémicas ainda hoje parece levantar — tudo se encaminha para esse desfecho. 

João Bénard da Costa lembrou muitas vezes que as contendas entre amigos na obra de Hawks não são de somenos, dando como exemplo o desfecho de O Tigre dos Mares, que as assombraria a todas. Montgomery Clift, antes de nos garantir que está tudo bem com os começos de um sorriso, é ferido por uma bala no mesmo sítio que Wayne (fechando o ciclo e completando a transferência de percursos pessoais entre os dois, também encarnada nas trocas da pulseira de Wayne, que começa o filme no pulso de Fen e acaba no pulso de Tess), ficando também marcado e tornando-se noutra “scarface” (como Paul Muni no filme do mesmo nome, Edward G. Robinson no já citado O Tigre dos Mares e Wayne). E o desfecho de Rio Vermelho só é enternecedor e sempre surpreendente porque estes fantasmas nos perseguem, porque foi possível uma “guerra” virar irmão contra irmão e porque amamos tanto estas personagens. 
 
E ainda ficam por contar a cirurgia cénica da debandada, preparada desde que se vê a personagem de Ivan Parry a meter o dedo no açúcar pela primeira vez, ilustrada pelo nervosismo de todos os cowboys com o silêncio cortado pelos uivos dos coiotes, a atenção dada ao personagem de Harry Carey, Jr. (filho de Harry Carey) com os seus cânticos e os seus sonhos; o conflito que resulta de opor três gerações e escolas de actores que vão de Harry Carey a Montgomery Clift, passando por John Wayne, e que é usado e aproveitado para o plano mais amplo da história que se tem para contar – Rio Vermelho é também dos primeiros westerns (com Canyon Passage, Forte Apache ou Pursued) a colocar muitas dúvidas e reticências às lições da história, aos ídolos consagrados, aos actos heróicos e às decisões charneira; a mítica partida de madrugada com aquele plano de 180º fabuloso e os gritos de todos os cowboys que estão prontos para a aventura, na retina e no inconsciente de todos os grandes cinéfilos, com o mesmo impacto e a mesma surpresa, com a mesma desenvoltura e o mesmo fascínio. O Rio Vermelho é ainda um dos filmes essenciais de toda a história do cinema. 
 
Pode-se ainda lembrar que é o último filme visto pelos jovens sem saída e sem escolhas em A Última Sessão de Bogdanovich e Larry McMurtry. E que foi o amigo de McMurtry, Grover Lewis, quem melhor descreveu o fascínio dessa geração pelo filme, em Old Movies in My Mind, escrevendo que “nós banqueteávamo-nos com Butterfingers e víamos carradas de sessões duplas juntos, tanto filmes crocantes, dos velhos tempos, como semi-novos. Gritávamos de terror com O Túmulo da Múmia e chorávamos como crianças com Of Mice and Men e cantávamos juntos com a bola saltitante. Falávamos sobre o suspense de entorpecer o coração de Foreign Correspondent durante dias, e discutíamos se Jimmy Cagney tinha virado cobarde a caminho da cadeira eléctrica nos Anjos de Cara Negra. Durante A Floresta Petrificada, o LaZell adormeceu no meio da cavaqueira geral, e eu apaixonei-me até à inconsciência com a jovem Bette Davis. O velho e eu vimos O Rio Vermelho três vezes seguidas, e o LaZell bateu palmas até ficar em sangue no início da condução de gado: “Levós pró Missouri, Matt!” gritava ele ao meu ouvido em alturas estranhas, sempre, daí em diante...” 

Não somos originais: “Take ‘em to Missouri, Matt!

[1] in «Hawks on Hawks» de Joseph Mcbride, University of California Press, 1982, p. 141. As restantes citações de Hawks neste texto vêm todas desse livro.

[2] Earp terá visitado rodagens de Raoul Walsh, Allan Dwan e John Ford, tornando-se ainda amigo de William S. Hart ou Tom Mix, com quem queria fazer filmes que contassem a sua “verdadeira” história (a sua fama, nesses tempos, ainda não era comparável à de hoje). Isso só aconteceu no rescaldo da publicação de Wyatt Earp: Frontier Marshall, de Stuart Lake, em 1931, que deu origem a Frontier Marshal (Dwan, 1938) e My Darling Clementine (Ford, 1946), desses belos filmes que narram os mitos como se verdade fossem. Earp terá dito ainda ao filho de Ford, Patrick, que “a única maneira de ser um marshal bem sucedido naqueles tempos era carregando uma espingarda de cano duplo, calibre 12, e não disparar até se ter a certeza que não se podia falhar.”

[3] Impulsionado pela vontade de Jesse L. Lasky (produtor) e James Cruze (realizador), apaixonados pelas histórias dos seus antepassados, The Covered Wagon marcou a primeira tentativa em tornar o western na epopeia americana por excelência. Rodado nas grandes planícies do Oeste, foi também uma aventura ao ar livre, conduzida como uma travessia do passado e exactamente com as mesmas dificuldades, desde levar a vida quotidiana no meio da natureza a atravessar rios com animais e caravanas. Interpretado maioritariamente por actores não profissionais, que atiravam ideias e iam improvisando cenas pelo caminho, iniciou a grande série de epopeias do Oeste, prosseguida com O Cavalo de Ferro (1924) e Três Homens Maus (1926) de John Ford, The Winning of Barbara Worth (1926) de Henry King, The Big Trail (1930), O Rio Vermelho e culminando em Heaven’s Gate (1980) de Michael Cimino.

[4] in «Each Man in His Time – The Life Story of a Director», Farrar, Strauss and Giroux, Nova Iorque, 1974, pp. 27-29.

[5] Acreditando em Hawks, isto aconteceu porque Ireland fumava erva e se embebedava constantemente durante a rodagem, acreditando em Borden Chase, o autor da história publicada no Saturday Evening Post em que se baseia o filme e da primeira versão do argumento, foi porque Ireland e Hawks estavam ambos interessados em Joanne Dru (Dru e Ireland acabaram por se casar). Mas as más-línguas valem o que valem, e sabendo que Hawks e Chase se passaram a odiar desde que se desentenderam por causa do argumento, é difícil saber quem é que está a dizer a verdade. Se é que interessa.

[6] Parece que não foi mútuo. A Ben Bagley, Clift disse que “eles riam e bebiam e contavam piadas porcas e davam palmadinhas nas costas uns aos outros. Tentaram-me atrair para o círculo deles, mas eu não me conseguia dar com eles. A coisa do machismo repeliu-me porque parecia tão forçada e desnecessária.” (in «Montgomery Clift: A Biography», de Patricia Bosworth, Limelight Editions, 1978) Mas Clift surpreendeu Hawks e o ‘Duke’ com a sua dedicação ao filme, acordando todos os dias muito cedo para praticar com revólveres e levando um profissional para o ensinar a andar a cavalo.

[7] Palavras de Hawks a Joseph McBride sobre Walter Brennan: “Mal se olha para ele, começa-se a rir. Quando estava a escolher actores para Barbary Coast, um produtor bem inteligente disse-me: ‘Lembra-se daquela personagem de que estávamos a falar noutro dia? Conheço uma pessoa exactamente assim.’ Eu disse, ‘Bom, porque é que não o vejo?’. ‘Este tipo nunca fez nada. Acho que até nunca disse uma linha de diálogo. É só um um figurante. Mas, meu Deus, é mesmo o que descreveu. Não sei se consegue representar ou coisa do género.’ Eu disse-lhe, ‘Traga-o cá, mas ponha-o nas roupas da personagem, dê-lhe umas frases para ele decorar. Poupa-se tempo. E não tenho que falar com ele duas ou três vezes.’ Foi assim que ele me apareceu com Walter Brennan. Olhei para ele e desatei a rir. Disse-lhe: ‘Senhor Brennan, deram-lhe o diálogo para decorar?’. Ele disse, ‘Yeah’. Eu perguntei: ‘Decorou-o?’ ‘Uh-Uh’. ‘Importa-se de o dizer?’ E ele disse, ‘Com ou sem?’ ‘Com ou sem o quê?’, perguntei eu. ‘Dentes’, respondeu ele. Já estava escolhido. Já nem precisava de dizer o diálogo. Ri-me outra vez e disse, ‘Sem’. Ele virou-se, tirou a dentadura, voltou-se para a frente outra vez e começou a falar para mim. Era suposto ter trabalhado três dias e eu fiquei com ele um mês a fazer o ‘Old Atrocity’. No filme que depois fiz com ele [Come and Get It] o argumentista descrevia-o como ‘o homem mais poderoso das florestas do Norte’. E cá estava o pequeno Brennan. Ganhou um Óscar com esse papel. Fez seis filmes comigo e só em dois desses filmes é que estavam previstos papéis para ele. No resto das vezes, chamei-o à última hora. Não se importou nada com isso – fazia tudo o que lhe pedissem para fazer. Dizia-lhe, ‘Walter, tenho um filme.’ ‘Óptimo,’ respondia ele, ‘amanhã apareço.’ E aparecia e perguntava-me, ‘Onde está o contrato?’ Eu dizia, ‘Ainda não tenho contrato.’ ‘Oh, eu quero assinar um contrato.’ Eu dizia ‘Ok’ e no dia seguinte ele vinha, assinava o contrato e pedia, ‘Agora conta-me a história.’ E eu dizia-lhe ‘Agora, tu assim e assado. Não tenho nada que te contar a história.’ Ia ler a história, voltava e dizia: ‘Chiça, que grande história. Qual é o meu papel?’. ‘Oh,’ dizia-lhe eu, ‘há uma frase no argumento que diz, ‘O cozinheiro chama-se Groot.’ É esse é o papel que vais fazer.’ E ele perguntava, ‘O que é que fazemos?’ ‘Lembras-te como nos conhecemos, aquilo do ‘com ou sem dentes?’ Bom, no princípio da viagem da manada, vais perder os dentes a jogar póquer com um índio. Assim, de cada vez que quiseres comer, tens que conseguir que o índio tos dê.’ ‘Oh,’ disse ele, ‘não podemos fazer isso.’ Isso foi O Rio Vermelho. Inventamos as cenas todas em que ele aparecia.” Mas como diz João Bénard da Costa nas suas notas a estas histórias (no catálogo da Cinemateca dedicado a Howard Hawks), Brennan não era só um figurante quando conheceu o cineasta, mas já um secundário muito respeitado em Hollywood.

in «Uma Viagem Pelo Cinema Americano», OLIVEIRA, José, PALHARES, João, A.23 Edições, 2018.

quinta-feira, 15 de julho de 2021

sexta-feira, 9 de julho de 2021

THE RETURN OF DRAW EGAN (1916)


Inédito em Portugal. 1916 – USA (62') ● Prod. Triangle/Kay-Bee sob a supervisão de Thomas Ince ● Real. WILLIAM S. HART ● Gui. C. Gardner Sullivan ● Fot. Joe August ● Int. William S. Hart («Draw» Egan/William Blake), Louise Glaum (Poppy), Margery Wilson (Myrtle Buckton), Robert McKim (Arizona Joe), J.P. Lockney (Mat Buckton). 
 
«Draw» Egan é um dos líderes de bandos mais procurados do Oeste. Perseguido por um grupo de cavaleiros, o seu bando é cercado numa quinta. Egan consegue escapar. Na povoação de Broken Hope, a sua coragem e o seu sangue-frio atraem a atenção de Mat Buckton, cidadão influente de Yellow Dog, pequena cidade vizinha onde o mundo do crime leva a vantagem. Buckton propõe a Egan tornar-se xerife. Ele aceita e, com o nome de William Blake, restaura a calma em Yellow Dog matando os maus elementos. Mas aquilo que o impulsiona a ficar do lado certo da barricada, é sobretudo o seu interesse por Myrtle, a filha de Buckton. Poppy, rainha do saloon, que Egan desdenhou, tenta levantar a cidade contra ele. É ajudada com a chegada de Arizona Joe, um antigo companheiro de Egan, que quer voltar a criar desordem na cidade. Responde à autoridade manifestada pelo novo xerife no exercício das suas funções com uma chantagem que permanecerá sem efeito. Finalmente, em público, revela tudo do passado de Egan e este não o tenta negar. Promete entregar-se antes das seis horas. Mata Arizona Joe em duelo e devolve os seus dois revólveres a Buckton. Buckton e os habitantes da cidade pedem-lhe que fique. Myrtle junta-se a eles nessa petição e cai nos seus braços. 
 
► Filme perfeitamente característico da produção de William Hart na Triangle pelos seus temas, a personalidade do herói e o equilíbrio clássico da mise en scène. A utilização sóbria e quase documental dos exteriores e uma figuração abundante criam uma impressão muito forte de real que não vai alterar nem o humor nem o pitoresco, que não estão no reportório de Hart. Notar-se-á que, desde esta época primitiva do western, e pelo menos em filmes adultos como este, o maniqueísmo tradicional do género é muito mais um maniqueísmo de valores que de personagens. A fronteira entre o Bem e o Mal é nítida, entre os bons e os maus é muito menos. O herói passará assim sem tragédia e quase sem esforço do estado de bandido procurado para o de xerife respeitado e admirado. É com uma ironia subjacente mas evidente que William Hart (autor) indica que a redenção de Hart (personagem) é bem mais uma questão de amor que de moral. Sem a presença de Myrtle em Yellow Dog, Hart (personagem) teria sem dúvida cedido à tentação de se juntar aos malfeitores da cidade, apresentados como mais divertidos para estar do que as pessoas honestas. A «moral» do Oeste é vista aqui no seu realismo e no seu relativismo: pouco importa o passado do limpador de cidades, a partir do momento em que é útil para a comunidade.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

HELL'S HINGES (1916)


Sem códigos, sem convenções e sem estruturas. Na Hollywood dos anos dez do século vinte talvez se possam encontrar mil possibilidades e mil caminhos para o futuro de uma arte ainda em plena infância, com criadores e operadores abertos quase a qualquer ideia e a qualquer risco motivados ora por uma paixão momentânea ora pela necessidade extrema. Belos trabalhos feitos “off-the-cuff” – na expressão muito utilizada pelo norte-americano Allan Dwan na sua grande entrevista a Peter Bogdanovich, bem como pelos muitos profissionais de cinema que foram talhando o caminho na direcção das formas e dos processos que são hoje em dia amplamente reconhecíveis e praticados – e que se pode traduzir mal como “ao improviso.” 
 
Hell's Hinges é uma produção Thomas Harper Ince para a Triangle Film Corporation protagonizada por William Surrey Hart, nova-iorquino apaixonado pela vida antiga do Oeste e pelos grandes exteriores que se tornou actor de cinema aos cinquenta anos por ter nascido bem antes de se inventar o cinematógrafo. Acabou a vida a escrever contos e romances ambientados no Oeste, depois de um último projecto muito acarinhado e produzido por si próprio, Tumbleweeds, de 1925, cuja carreira comercial ficou aquém do que era desejado devido à má promoção da United Artists, que Hart processou e só mais de dez anos depois lhe devolveu o dinheiro. É na apresentação já sonora desse último filme, feita a propósito do seu re-lançamento em salas, que Hart olha para trás e nos diz que “adorei a arte de fazer imagens em movimento. Para mim é como o alento da vida... o ímpeto do vento que nos corta a cara, os cascos latejantes de uma milícia perseguidora, e depois as nuvens de poeira! Pela nuvem de poeira surge a voz débil do realizador, “Ora, Bill, OK! Ainda bem que conseguiste! Grande material, Bill, grande material! Faz uma festa no nariz do velho Fritz por mim, está bem?” A sela está vazia, os rapazes ali à frente estão a chamar, estão à espera que eu e vocês os ajudemos a conduzir este último grande ajuntamento para a eternidade.” 
 
Esta pequena apresentação de Hart é certamente uma bela porta de entrada para o tempo dos nickelodeons, essas salas tão piolhosas e pulguentas que fizeram com que o pessoal sofisticado do teatro franzisse a testa e quisesse distância do cinema, da encenação de planos sem cortes nas câmaras até se descobrir por engano que se podia fazê-lo, das investidas e retiradas com a luz e com a distância, a velocidade de obturação, os cenários reais e artificiais, a manipulação da palavra pela imagem (quantos realizadores só descobriram a história na sala de montagem com os intertítulos, tendo até aí rédea solta) mas também da imagem pela palavra. Hell's Hinges foi escrito por C. Gardner Sullivan, argumentista muito célebre nesses anos (escolhido pela revista Story World como uma das dez pessoas que mais contribuíram para o progresso da indústria de cinema desde a sua génese, junto a David Wark Griffith, Charles Chaplin, Mary Pickford, Carl Laemmle, Charles Francis Jenkins, Wilfred Buckland e Thomas H. Ince), e que até ao “Produzir exactamente como está escrito” de Ince dava bastante azo ao seu poder, como se pode verificar neste excerto do argumento do filme, já quase na forma dos guiões que conhecemos e repleto de descrições técnicas e imperativos de interpretação, 
“CENA L: Plano Aproximado do bar de um Saloon do Oeste 
Um grupo de bons espécimes do Oeste do período antigo estão a beber no bar e a falar ociosamente – prevalece muito boa camaradagem e cada homem se sente à vontade com o próximo – um deles olha de relance para fora de plano e o sorriso esmorece-lhe do rosto para ser substituído pelo olhar tenso da preocupação -- os outros reparam na mudança e seguem o olhar dele – as caras deles reflectem as suas próprias emoções – certifiquem-se de fazer passar um bom contraste entre a leve boa disposição que prevalecia e o silêncio tenso e pouco natural que se segue – quando eles olham, corta.” 
Só que como palavras as leva o vento, e nem as garras de Ince ou a pena de Sullivan controlam os caprichos do sol, as depressões da lua ou o rosto esguio e o olhar enigmático de Hart, encarnação suprema das ambivalências das suas personagens, há algo que acontece nas últimas bobinas que guião algum poderia prever. Ímpetos nas imagens, explosões nas tintagens, uma dança infernal de multidões que quase tornam secundárias as retribuições e dogmas de Antigo Testamento por tanto acreditarem neles: a abstração em estado puro. Uma igreja em chamas, um saloon cercado, homens abatidos como cães, candeeiros atirados para o chão a chicotadas de balas. A destruição de uma cidade inteira. A solução formal para a chave temática das “dobradiças do inferno.” Nos anos dez de todo um outro século, antes dos abismos de Corbucci (O Grande Silêncio) ou de Eastwood (O Pistoleiro do Diabo, Imperdoável). O cinema.