domingo, 29 de novembro de 2009

Diz-me o que vês, dir-te ei quem és - Tarkovsky


"Influências e afeições cinematográficas

Entre os grandes russos que o precederam, Tarkovsky aprecia Dovjenko, o realizador lírico e sensual de "A Terra" (1930), mas é reticente em relação a Eisenstein, cujos filmes, que enfatizam a criação dum sentido abstracto através da montagem, são, na sua opinião, muito formais, cerebrais. O seu Andrei Rubliov é uma espécie de resposta aos filmes históricos de Eisenstein e nomeadamente a "Ivan, o Terrível" (1944-1958).
Entre os seus compatriotas e muitas vezes amigos cujo talento de cineasta admira, Tarkovsky cita frequentemente o georgiano Iosseliani ("Era uma vez um Melro Cantor", 1970), o ucraniano Paradjanov ("Os Cavalos de Fogo", 1965), que ele apoiou durante a sua detenção e as suas privações, e, mais jovem, Alexander Sokurov ("Mãe e Filho", 1997), que Tarkovsky declarou ser um "génio" depois de ter visto os seus primeiros trabalhos.
Conhece as grandes personalidades do cinema europeu que se afirmaram após a Segunda Guerra Mundial. Os seus cineastas favoritos são muitas vezes, e isto não surpreende, realizadores que levaram ao ecrã visões particularmente perturbadoras: Bergman (o sonho do velho homem em "Morangos Silvestres", 1957), Buñuel ("Os Esquecidos" de 1950, onde o jovem rapaz tem um sonho perturbador, pré-tarkovskiano, no qual a sua mãe anda em câmara lenta, em camisa de noite, por cima das camas , como um anjo saído de um quadro, enquanto chovem - como mais tarde em Tarkovsky - plumas e... uma galinha) e Fellini (cujo filme mais célebre, "Otto e Mezzo" de 1963 começa por um sonho de asfixia, depois de levitação - que inspirou o início de "Rubliov").
A pureza da intenção e da realização era o que Tarkovsky admirava em Robert Bresson, com quem um curioso destino levaria a encontrar-se em competição em 1983, em Cannes, onde partilharam um "prémio especial" de consolação, já que nenhum dos filmes obteve a Palma.
De Buñuel, ainda, a parábola apocalíptica obscura e perturbadora de "O Anjo Exterminador" (1962) onde um destino misterioso e inexplicável atinge um grupo de pessoas, influenciou profundamente "O Sacrifício".
Finalmente, "Nazarin"(1958) e "Viridiana" (1961) contam a confusão e as calamidades que provocam os heróis que querem pôr em prática os ensinamentos de Jesus; ilustram já a loucura do cristianismo. No entanto, mesmo não sendo insensível a alguns westerns, Tarkovsky é totalmente indiferente ao cinema de acção e de entretenimento."

Michel Chion, no livro do "Cahiers du Cinema " dedicado a Tarkovsky

* No que a Eisenstein diz respeito, não podia estar mais de acordo: cerebral, metódico e calculista demais para se gostar (pelo menos, eu), já no campo do Cinema de entretenimento é o contrário: adoro Hawks, adoro Chaplin... diz-me o que vês, dir-te ei quem és, e cada um é diferente do outro, sempre.

sábado, 28 de novembro de 2009

Mais sobre "Зеркало":


"O Homem Itinerante

Como uma fórmula mágica, o título em sete letras cirílicas, "Zerkalo" (como anteriormente "Solaris" e mais tarde "Stalker", sete letras também), é retomado em grande no fim do genérico inicial. Segue-se, imediatamente, um plano destinado a eternizar a imagem duma mãe: vista de costas, virada para o infinito, sentada numa cerca, e a fumar. Não sabemos onde estamos, mas a cerca em madeira seca, os postes telegráficos, o aspecto cultivado da paisagem humanizam o campo. Dois movimentos de sentidos opostos convergem para esta mulher: o da câmara, que avança para ela, e o da personagem, que vem do fundo da paisagem e que só mais tarde vemos aparecer como um ponto ao nível do seu pescoço, como se - esta expressão não é usada por acaso, o cinema assenta muito no "como se" - a mãe nos tivesse escondido ou como se aquela proviesse dela, do seu desejo.
A personagem do homem itinerante, inspeccionando a Terra, como o fez Tarkovsky, quando participou numa missão geológica na Sibéria, está presente em toda a sua obra. Este homem que voltaremos a ver mais tarde, aqui, vem no lugar do pai, que parece esperar a mulher. Encarna uma espécie de ilusão sobre "os pretendentes", todos os homens susceptíveis de seduzir a mãe.
Segue-se um plano aproximado da mãe a olhar friamente para o homem. Uma panorâmica sobre a direita volta a unir o rosto à natureza próxima. E só depois vemos a mãe do ponto de vista do homem, num plano subjectivo, com a casa atrás dela, quase ameaçadora por trás do seu maciço de árvores.
O homem diz-se médico e toma, na brincadeira, o pulso da mulher. Travelling circular à volta do puxo da mãe, cuja cabeça é como o centro à volta do qual gira o universo. É apenas quando o médico olha para trás dela que a mãe se vira e olha também friamente. Vemos então pela primeira vez crianças muito jovens numa rede, como se indistintamente embrulhadas uma na outra.
Retroactivamente, tudo o que vimos desde o início do filme torna-se agora como que numa visão e uma lembrança duma destas crianças. Mas, no seguimento, o enquadramento e a montagem não as voltam a mostrar e os dois adultos agem e falam como se as crianças não existissem ou como se estas só estivessem lá para ser o que as crianças são frequentemente: as "testemunhas no absoluto daquilo que vive" (François Dolto).
Assim que o homem se afasta, para sempre, passa um vento no campo de trigo-sarraceno e cria uma ondulação que vem de trás para a frente. É um efeito mágico, "como se" passasse uma corrente do homem para a mulher, com esta dimensão misteriosa, supersticiosa, duma frescura sempre renovada, que Tarkovsky dá aos fenómenos naturais como o vento e a chuva."

Michel Chion, sobre "Zerkalo"

* e sim, aqueles efeitos mágicos, sejam "os ventos que ondulam de trás para a frente", seja a marca de vapor a desaparecer na mesa, seja o lavar dos cabelos e o cair das gotas, o partir de janelas e o ruir dos tectos, são de um poder arrebatador e são feitos técnicos que não se podem, de maneira nenhuma, ignorar. TARKOVSKY É UM GÉNIO...

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

"Зеркало" - 1975



Visto já depois de conhecer o "estilo" do russo e de ter visto "Stalker" (um dos melhores filmes de sempre), o "Nostalghia", o "Offret" e o "Tempo di Viaggio", ver o "Espelho" foi, ainda assim, assombroso e uma viagem surpreendente, fascinante. E não há história, ou melhor, há pequenos pontos narrativos: uma família dividida, uma guerra, sonhos e deambulações; mas o Cinema não tem que ser narrativo nem tem que ser só prosa. "O Espelho" é poesia, é música. É uma viagem pessoal, sem ser, por isso, racional ou cerebral, mas antes um desabafo sentimental e artístico - uma obra de arte - vindo, claro e sempre, do coração.

E os planos são fabulosos, seja cada um em particular, seja a sua articulação, seja o todo. Esculpir o tempo, "cortar" no plano em sequência e usando o som e a luz (como Antonioni e Minnelli - este último menos, é certo), ir ao cerne de TUDO, filmando aqueles momentos reflexivos, sejam passeios ou olhares fixos. Os pássaros, as árvores, o vento, o passado, a família, a guerra, o pai, a mãe, Tarkovsky e o "Espelho".

Agora tenho de ver o Solaris, o Andrei Rubliov e a "Infância de Ivan" e, claro, ler o "Sculping Time". O poema que se segue é de Arseni Tarkovsky, pai de Andrei, e foi parte da influência de "O Espelho", assim como outros que ele escreveu.

"And suddenly all changed, like in a trance,
even trivial things, so often used and tried,
when standing beetween us, guarding us,
was water, solid, stratified.
it carried us i don`t know where.
retreating before us, like some mirage,
were cities, miraculously fair.
under our feet the mint grass spread,
the birds were following our tread,
the fishes came to a river bend,
and to our eyes the skin was open.

behind us our fate was groping,
like an insane man with a razor in his hand."


domingo, 22 de novembro de 2009

"His Girl Friday" - 1939




Os filmes de Howard Hawks são geniais, brilhantes (não há palavras que lhes façam justiça), porque não há mais simples que aquilo: é Cinema de personagens, argumento clássico sem elipses, nem malabarismos narrativos. Parece fácil mas não é, porque não há ninguém que desenvolva personagens (ou desenvolvesse) como Hawks o fazia.

"His Girl Friday" é assim, também. Tudo reduzido ao essencial (os planos, os cenários, as situações), uma noção de ritmo arrebatadora (como colar planos entre si - e poucos têm esse dom), porque Cinema - um bom filme, como ele dizia - é "duas boas cenas e nenhuma má". É lembrar o espectador que a vida vale a pena ser vivida e que não vale a pena passá-la em sofrimento. Cada filme dele é isso, uma reflexão sua sobre a vida, a sua moral e a sua visão do Mundo em película e não é por ser bem disposto que se colocam menos questões. Haverá coisa mais profunda que o Amor ou que um estudo sobre a pena de morte (no que a "His Girl Friday" diz respeito)? Por nos rirmos perde credibilidade? (isso é treta). "His Girl Friday" não é um filme que se veja e que se esqueça: faz parte da obra de um dos maiores realizadores que já viveu e uma das mais fascinantes, diga-se de passagem. Sempre o mesmo filme e nunca o mesmo filme, como diziam os críticos cineastas da Nova Vaga. Todo e cada um desses filmes diz coisas novas, dizendo o mesmo.

De resto e se se quer saber porque é que Hawks é um génio do diálogo, o Altman responde. Se se quer saber porque é que é um génio do timing em comédia, o Bogdanovich responde. Se se quer saber porque é que é um génio da economia espacial, dos cenários confinados, o Carpenter responde. Se se quer saber porque é que é um génio do desenvolvimento de personagens, o Tarantino responde, e, finalmente, se se quer saber porque é que é um génio estético (além de ético), o Rohmer e o Rivette respondem. Rivette escreveu uma crítica a "Monkey Business" chamada "O Génio de Howard Hawks". Começa assim:
The evidence on the screen is the proof of Howard Hawks's genius: you only have to watch Monkey Business to know that it is a brilliant film. Some people refuse to admit this, however; they refuse to be satisfied by proof. There can't be any other reason why they don't recognize it.
E espero que os próximos posts não sejam só sobre Hawks, preciso de falar doutras coisas: Antonioni, por exemplo.

The Genius of Howard Hawks por Jacques Rivette

sábado, 14 de novembro de 2009

"The Big Sleep" - 1946



Vivian: Speaking of horses, I like to play them myself. But I like to see them workout a little first, see if they're front runners or comefrom behind, find out what their whole card is, what makes them run.
Marlowe: Find out mine?
Vivian: I think so.
Marlowe: Go ahead.
Vivian: I'd say you don't like to be rated. You like to get out in front, open up a little lead, take a little breather in the backstretch, and then come home free.
Marlowe: You don't like to be rated yourself.
Vivian: I haven't met anyone yet that can do it. Any suggestions?
Marlowe: Well, I can't tell till I've seen you over a distance of ground. You've got a touch of class, but I don't know how, how far you can go.
Vivian: A lot depends on who's in the saddle.

"The Big Sleep" e esta conversa, em particular, vão ficar para a História como a maior partida, como a maior rasteira ao Código Hays. Porque enquanto Preminger lutava para destronar essas leis, e conseguiu, Hawks rodeava-se de grandes argumentistas e fazia passar coisas como "Gentleman Prefer Blondes" e "Monkey Business", sem ter um problema de censura que fosse. O Marlowe e a Vivian falam de cavalos. Pois, pois....

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

"Crash" - 1996









Cronenberg não teve, ainda, grande menção neste espaço, mas é dos meus cineastas preferidos. Foi, aliás, com Carpenter, o realizador que mais cedo descobri. E adoro toda a sua obra - tirando "The Fly" e "Fast Company"- de "Scanners" a "Eastern Promises", dos delírios literários de "The Naked Lunch" aos delírios entre a realidade e a fantasia de "eXistenZ" e do labirinto narrativo de "Spider" ao classicismo narrativo de "A History of Violence". Tão diferentes e, no entanto, tão iguais.
Porque, no fim, os filmes de Cronenberg têm uma e a mesma preocupação:, a de analisar a o ser humano através daquele que é o facto mais inabalável da sua existência: o corpo.

De todos eles gosto, mas só um prefiro: "Crash":
Vê-lo depois de ver o realizador a falar, e com sala cheia e em silêncio, foi fenomenal. Tudo o que tinha adorado quando o vi na televisão ampliou: aquela simplicidade (só aparente), a viagem delinquente, mas sedutora, dos orgasmos rodoviários, as personagens que falam em sussurros e que, claro, comunicam com os corpos... o que é "Crash"? - um suceder de episódios sexuais ou muito mais que isso?
É o ser humano a testar os seus limites, é o ser humano a resistir à insatisfação, a tentar viver?
É um filme para sentir, como poucos o são...

E só houve um filme que me marcasse tanto como este nos anos 90: "Escape From L.A." de John Carpenter...

domingo, 1 de novembro de 2009