terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Double-bill (XXXI)


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A Grande Aventura de Raoul Walsh


por Peter von Bagh

Depois das homenagens a Josef von Sternberg, Frank Capra, John Ford e Howard Hawks, eis o nome que representa a aventura e o cinema puro, a acção e a meditação, o espectáculo e o silêncio: Raoul Walsh (1887-1980). Como escreveu Jean Douchet, os filmes de Walsh são “uma aventura interior”: “Este shakespeariano apaixonado é um realizador intensamente fisico porque descreve acima de tudo o tumultuoso mundo mental”. O nosso programa é composto por uma selecção de filmes mudos, importantes por serem frequentemente negligenciados, e de alguns tesouros do período sonoro, a partir da magnífica aventura em formato panorâmico de The Big Trail de 1930.

Walsh foi um rebelde solitário em Hollywood: recusou a rede de segurança dos ‘argumentos de ferro’ e criou ondas de ideias "intraduzíveis". Era um guardião leal (sem o controlo e o prestígio de um Ford ou de um Hawks) do coração puro e irredutível da época de Griffith, e modernista por instinto. Ainda que tenha trabalhado sempre dentro do sistema, estava mais próximo do espírito de Stroheim ou de Ingram e regressava sempre ao sonho original da liberdade criativa.

O seu amigo Errol Flynn descrevia esta postura como um “entusiasmo fundamental” por “todas as coisas simples da vida: respirar, comer, beber, pescar, fruir, festejar e todas as outras coisas que começam por f”. Walsh interpretava do modo mais natural, espontâneo e relaxado fosse que género fosse, infringindo as convenções: este estado de felicidade indisciplinada é um elemento essencial nos seus filmes.

Sabia tratar o filme de acção (os westerns, os filmes de guerra) esvaziando-o completamente de acção. Tinha um sentido do absurdo admirável: só num filme de Walsh é que se pode ler a legenda, “a melhor guerra a que já assisti”, e só Walsh é que pode fazer passar frases como “Charmaine estava fascinada pela visão dos soldados que caminhavam para a morte” mantendo uma seriedade profunda. A guerra, um tema frequentemente desencarnado, inspira em Walsh uma inimitável dialéctica de farsa e de náusea (como em O Preço da Glória). Os homens são carne para canhão, não há metas escondidas e idealizadas. Walsh sabe ser igualmente duro com a sociedade e com a natureza humana, seja um ringue, uma empresa comercial ou a primitiva acumulação de dinheiro numa cidade do Oeste. Mas por baixo desta dureza palpitam um erotismo e uma vitalidade que incutem energia a tudo: actores, géneros, trama. Para não falar do sentido concreto da natureza, descrita frequentemente como um espaço maravilhoso atravessado pela emoção de uma morte grotesca.

A fantasia futurista de O Ladrão de Bagdad, com os seus cavalos alados, diz tudo sobre o boom financeiro e as ilusões dos anos vinte. As crises histéricas que caracterizam muitos filmes tardios exibem a crueldade em que a riqueza americana se radica: com as suas histórias de psicopatas, Walsh foi um observador lúcido da neurose do século, que também teve o seu declínio no equivalente romântico de amor e morte.

Walsh tinha um talento extraordinário para a observação do ambiente social. Como escreveu Manny Farber, sabia “tornar poético um ambiente pequeno-burguês melancólico e ferido”. Farber acrescenta que Walsh é “primo do Renoir de Toni, do Vigo de O Atalante, do Brassaï fotógrafo de estrada: um primo dedicado às pessoas, mais vivaz e divertido do que os seus equivalentes franceses”. Poucos souberam evocar a acepção do vigésimo século de modo tão belo e tangivelmente vivo.

in «La Grande Aventura di Raoul Walsh», Cineteca di Bologna, 2012 [org. Peter von Bagh]

sábado, 26 de janeiro de 2019

TODAS AS BOBINES DE RAOUL WALSH.


por Philippe Garnier

A Cinemateca de Paris apresenta uma retrospectiva opulenta do realizador. 

Os filmes mudos e os primeiros falados de Raoul Walsh distinguem-se pela sua diversidade extraordinária. «Fazia-se um filme de boxe, depois qualquer coisa com um toureiro, um filme no circo, um western, uma comédia, uma ópera sem cantora, um filme de gangsters, as pessoas iam muito ao cinema.» Em cinquenta anos, Walsh fez mais de cem filmes; foi capaz de oferecer variedade. Mas também se poderia falar das misturas de tonalidade em praticamente todos os seus filmes. Talvez seja isso, com uma certa melancolia, que caracteriza melhor o cinema deste veterano tão mais difícil de louvar dado as suas proezas técnicas não serem facilmente identificáveis. Mesmo no fim de uma obra tão radiosa como Gentleman Jim, Walsh não hesita em tornar tudo mais lento com a chegada de John Sullivan, o campeão caído. Ward Bond é tocante nessa sequência; mas, para além disso, é este momento que valoriza todos os outros e volta a pôr o filme em perspectiva: Jim Corbett também vai ter de ceder um dia o seu cinto de ouro. 

A energia dos filmes de Walsh, como apontam Tavernier e Coursodon, vem menos da montagem que do ataque dos planos, e sobretudo das mudanças de ritmo. Assim, antes do delírio final de White Heat, Cagney passeia-se pelos bosques com um longo monólogo. 

Entre os seus confrades mitómanos (Ford, Hawks, Von Stroheim, etc.), Walsh talvez seja aquele que teve a juventude mais colorida (cowboy, filmando Pancho Villa em Juarez e interpretando-o para Griffith; também o primeiro a filmar no Tahiti). É sem dúvida por isto que ele se contentava com corridas de cavalos como distracção. Quem mais poderia filmar um gangster sentado sobre os joelhos de sua mãe, ou gabar-se de ter sido cegado de um olho por uma lebre (que passou à frente do pára-brisas, numa estrada do Nevada onde ele rodava e interpretava In Old Arizona em 1929)? 

Na senda de Ford. O nome de Walsh evoca o western, que ele aborda mais tarde, com filmes como Colorado Territory (1949), Tall Men (1955), Um Rei e Quatro Rainhas (1956), até ao seu último filme, A Distant Trumpet (1964). Passam-se dez anos entre a sua primeira tentativa importante (The Big Trail, 1930) e Comando Negro. Há boas razões para isto e chamam-se todas John Ford. 

Com The Big Trail, Fox e Walsh tentam arrebitar um género abafado com meios colossais, filmando em 70 mm em sete Estados do Oeste, com um actor principal desconhecido. John Wayne fazia pequenos papéis com Ford, mas Walsh deu-lhe a sua oportunidade. Devido a um argumento com defeitos como os actores, o filme, apesar dos seus momentos altos, é um fracasso ­de que Walsh vai demorar tanto tempo como Wayne a recuperar. Antes de se juntar à Warner, Walsh ainda vai fracassar com Comando Negro. O suficiente para fazer esquecer que foi ele quem lançou Victor McLaglen (em O Preço da Glória). Ford vai-se apressar a pôr o irlandês em Mother Mchree, e na sua trupe para o resto da sua carreira. 

Os anos 30 são nefastos para Walsh: Me And My Gal oferece belas trocas de palavras entre o polícia Tracy e a empregada Joan Bennett, e encontrámos-lhe a mesma naturalidade em The Bowery, em que Walsh explora aquele que é sem dúvida o seu filão favorito, as histórias das ruas na viragem do século. Sente-se a sua afeição por este período em The Strawberry Blonde ou Gentleman Jim, desde The Regeneration (1915), em que reencontra a Nova Iorque da sua juventude. 

A exaustividade da retrospectiva parisiense permite verificar a reputação pouco aliciante de outros filmes. Sailor's Luck é vulgar e monótono. Going Hollywood é uma brincadeira. Em 1937, Walsh realiza Hitting a New High, o seu nadir artístico. Acção e ralenti. Chegado à Warner, produz em cadeia os filmes: They Drive by Night, High Sierra, The Strawberry Blonde, Manpower et They Died with their Boots on­ num ano e meio. O resto é conhecido: Objectivo Burma, Colorado Territory, a obra-prima White Heat, sem esquecer a sua incursão pelo film noir (Pursued é um western freudiano: a fotografia arqui-negra de James Wong Howe, com a mesma voz-off resignada, o mesmo Mitchum que desacelera a acção com a sua interpretação sonâmbula). 

Isto não impede Walsh de fazer maus filmes: não se pode fazer um filme de guerra mais repugnante do que Fighter Squadron, e a sua passagem pela Universal é tão boa como os guiões e actores da casa, o que quer dizer que não é terrível. Mesmo nos seus últimos filmes, ele retoma um dos temas que lhe deram sucesso a partir de O Preço da Glória: a rivalidade de dois homens tanto no amor como nos negócios. Os Implacáveis são exactamente o contrário: humanos. Gable é obstinado, Ryan, abastado e paciente, e vai ser Jane Russell a decidir. Se Cagney, Gable e Bogart são os seus actores favoritos, se foi capaz de impulsionar Virginia Mayo até a transformar fugazmente em boa actriz (e numa cabra em White Heat), é finalmente em Jane Russell que vai encontrar uma mulher à altura dos seus Tall Men, título original de Os Implacáveis*. 

Mas é o seu período mudo que continua a ser o mais apaixonante. A sua arte está já contida no seu primeiro filme Fox em 1915, rodado no Lower East Side de Manhattan. Para lá das convenções vitorianas de The Regeneration, encontrámos uma complexidade na forma de mostrar a «conversão» do menino mau, interpretado por Rockliffe Fellowes. Ele reforma-se, ansiando pelos prazeres simples. Os momentos altos abundam: um incêndio num barco com os passageiros a atirarem-se à água. As cenas de luta são de uma vitalidade admirável, bem como uma sequência, que Keaton deve ter visto, em que o vilão zarolho «Skinny» tenta fugir por estendais de secar a roupa atados entre dois edifícios. Filme maravilhoso. 

Natural. Os outros mudos são quase todos espantosos de tão naturais. Mas nenhum ao nível de Macaco Falante, de 1927, em que Walsh se aventura por território Tod Browning. Jacko ganha a vida na pele de um grande macaco. No final, a heroína Olive Borden recebe num armário a companhia de um macaco que julga ser Jacko mas é um orangotango evadido. 

Se um dos prazeres de Walsh era mandar foder a censura, o seu plano pousado sobre a porta fechada do armário tem de ficar como o ponto culminante da sua carreira.

*título francês de Tall Men, mantido e traduzido por entrar na construção das frases desse parágrafo.

in  «Toutes les bobines de Raoul Walsh», Libération, 23 de Março de 2001.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

RAOUL WALSH: A FASE JAMES DEAN


por João Bénard da Costa

Dos grandes cineastas de Hollywood, ditos "primitivos", Raoul Walsh e Allan Dwan continuam a ser os mais desconhecidos.

Num caso e noutro, não me refiro, nas imensas obras (ambas, como se sabe, atravessando seis décadas, dos anos 10 aos anos 60) ao muito que se perdeu dos tempos do mudo. Contam-se pelos dedos os filmes, com paradeiro certo, de Dwan e Walsh entre 1911 (ano em que os dois começaram as carreiras) a 1925. Podemos, contudo, conjecturar (eventualmente mal) que as dezenas (centenas?) de títulos perdidos entre 1911 e 1915, tanto de Walsh como de Dwan (na Biograph ou na American Film Company ou, no caso de Dwan, na Universal, entre 1913 e 1915) quase todos one ou two-reels, correspondem, ainda, a uma fase de aprendizagem em que qualquer deles estava a léguas de distância do homem que respeitosamente tratavam por Mr. Griffith (mais velho que eles dez ou doze anos) e a quem, nas costas, chamavam "the Chief".

Walsh, é sabido, fez de John Wilkes Booth em The Birth of a Nation, mas avaliou essa interpretação dizendo que Griffith, em vez de matar Lincoln, o devia ter morto a ele. Dwan foi sobretudo, nesses tempos, um "engenhocas", o homem do célebre elevador de Intolerance, que permitia à câmara subir e descer, recuar e avançar ao mesmo tempo.

Já a nossa ignorância, em ambos os casos, sobre o período que vai de 1915 a 1925 é muito mais grave, a avaliar pelo que deles ficou, desde os Fairbanks de 1916 ou, muito depois, o Robin Hood de 1922 para Dwan, desde Regeneration de 1915, até muito depois, Kindred of the Dust de 1922 para Walsh.

Mas as obras-primas que de ambos nos ficaram dessa fase, os ecos e as críticas que dos filmes desse período conhecemos, e o prestígio que durante ele alcançaram, permitem-nos, fundamentalmente, supôr que um e outro, entre os 30 e os 40 anos, aproximadamente, estiveram na plena posse dos respectivos talentos. Nada faz crer que hipotéticas descobertas futuras lhes belisquem a fama. Quando me refiro a desconhecimentos, não é a esse período que me refiro, como não é obviamente ao dos finais do mudo, quando Dwan assinou Padlocked, Tin Gods, East Side, West Side ou The Iron Mark e Walsh The Thief of Bagdad (ainda em 1924), East of Suez, The Lady of the Harem, What Price Glory?, The Loves of Carmen, Sadie Thompson ou The Red Dance.

O termo "desconhecimento" ainda é mais descabido para as três últimas décadas (anos 40, 50 e 60) em que trabalharam. É certo que, no caso de Dwan, poucos viram (e quando viram, viram mal) os filmes que vão do fim do seu período Fox (1935-1941) a Sands of Iwo Jima (1949), notoriamente essas obras-primas que são as comédias realizadas para Edward Small (Up in Mabel's Room; Abroad with Two Yanks; Brewster's Millions; Getting Gertie's Garter) em 1944 e 1945. Só essa ignorância tem permitido dizer que Dwan apenas retomou a grandeza de outrora, a partir de 1946, na Republic. Mas Walsh é sabido e revisto de cor e salteado, desde a sua fase Warner (iniciada com The Roaring Twenties, ainda em 1939, e terminada em 1950) até aos vinte e um gloriosos filmes finais, entre 1951 e 1964. Foi mesmo a partir desses filmes, sobretudo destes últimos, que se construiu o seu mito, nos meados dos anos 50, nos Cahiers du Cinéma ou no Arts, e nos princípios dos anos 60 na Présence du Cinéma, com o apogeu do macmahonismo de que Walsh foi, como se sabe, um dos quatro mosqueteiros (data de Maio de 1962 o número especial da Présence du Cinéma dedicado a Walsh e de Abril de 1964 o dossier Walsh dos Cahiers). No ano do seu último filme - A Distant Trumpet - aos 77 anos, Walsh era, graças a essas películas finais, descoberto como um dos "quatro maiores", como "l'homme océan" (Jacques Saada), como, ao lado de Howard Hawks, "o cineasta americano por excelência" (ele, que era quase tão irlandês como Ford).

Quando me refiro a desconhecimento ou - se preferem - silêncio embaraçado, penso, nos dois casos, nos anos 30. Para Walsh, sobretudo no período que vai de 1933 a 1939, para Dwan - mais uma vez o paralelo se impõe - nos anos que decorreram entre 1932 e 1938. Por um lado, à época dos maiores "delírios", esses eram os filmes mais invisíveis, tão inexistentes na cinemateca de Langlois, como nas de Bruxelas, de Londres ou, mesmo, nas cinematecas americanas. Por outro, quando começaram a ser vistos (anos 70) mesmo os mais walshianos ou dwanianos os acharam singularmente desinspirados por comparação com a obra anterior e posterior. Penso que foram extremamente distraídos. Mas percorre-se a bibliografia sobre Walsh ou Dwan e o silêncio ou o tom depreciativo são idênticos. Tavernier e Coursodon, por exemplo, na revista segunda edição dos 50 Ans de Cinéma Américain (1991) não hesitam em chamar aos anos 30 de Walsh "decénnie particulièrement calamiteuse qui constitue le nadir de sa carrière". E falam de um "mélodrame moralisateur" (The Man Who Came Back) de "comédies musicales particulièrement ringardes" (Going Hollywood, Artists and Models, Every Night at Eight) do "pénible" Hitting a New High e dos "tristement anodines" O.H.M.S. e Jump for Glory.

Antes de deixar Dwan em paz (não é sobre ele que escrevo) noto que, para ambos, se usaram explicações aproximáveis para justificar "os anos de crise". Ambos teriam perdido a mão fora de Hollywood, quando trabalharam em Inglaterra e com "o impossível cinema inglês". Ambos se habituaram dificilmente ao sonoro, como aliás os próprios testemunharam em inúmeras declarações. Ambos, despromovidos por estúdios a que já não davam os sucessos de outrora, atravessaram penosas crises pessoais, na fase da "andropause" (cerca dos 50 anos, para qualquer deles). Ambos foram obrigados a cultivar géneros que não apreciavam e para que não eram dotados (os filmes de Shirley para Dwan; os musicais para Walsh).

Nenhum dos argumentos me convence muito. A "fase inglesa" foi, para os dois, efemeríssima. Dos 25 filmes de Dwan nos thirties, só três (1933-34) foram produções inglesas (Her First Affair, Counsel's Opinion, I Spy); dos 22 Walsh da mesma década, apenas dois foram ingleses (O.H.M.S. e Jump for Glory em 1937). Tão breve exílio, tão poucas obras, não dão nem tiram mão a ninguém. Difícil adaptação ao sonoro? Não tiveram, é certo, muita pachorra para a gente da Broadway que Hollywood lhes impingiu, queixaram-se da obrigatoriedade de estúdio a que o som os forçou, deram-se mal com vedetas recta-pronúncias a que chamaram tramps, mas também é certo que The Big Trail, The Yellow Ticket e The Wild Girl (1930 a 1932) são dos Walsh mais admiráveis, como o são, de Dwan, Man to Man, Wicked e While Paris Sleeps dos mesmos anos.

Quem torce o nariz, torce o nariz a filmes da segunda parte da década, quando, obviamente, raposas tão velhas como eles já tinham tido mais que tempo para se habituarem. A tese da crise pessoal foi uma história defendida principalmente por Pierre Rissient, que atribuiu má influência à segunda Mrs. Walsh, a actriz Lorraine Walker, com quem casou em 1935 e de quem se divorciou em 1939. Ignoro as fontes e a história, por isso não as discuto. Mas nenhum traço de amargura perpassa nas páginas das memórias de Walsh (Each Man in His Time) dedicadas a esse período. Quanto aos géneros, se parece ser verdade que Walsh disse não se interessar muito por musicais, também o é que, muito próximo dele, fez, nos anos 40, dois dos seus filmes mais sintomáticos: o scorsesiano The Man I Love (1947) e The Horn Blows at Midnight (1945), o filme que o protagonista, Jack Benny, jamais se perdoou e lhe perdoou. "When the horn blew at midnight it blew for my cinema career". Foi verdade para ele, não foi verdade para Walsh.

Mas talvez seja por esta última ponta que melhor se podem entender as reservas feitas ao Walsh da colheita dos 30. Efectivamente e ao contrário da sua obra conhecida dos anos 20 e da esmagadora maioria da sua obra das três últimas décadas, Raoul Walsh realizou nesse período 13 comédias ou comédias musicais, ou seja, mais de 50% dos filmes dela (22, como já foi dito). Mais sintomático ainda: realizou 13 dos 16 filmes aparentáveis ao género, assinados por ele após o advento do sonoro. E são precisamente essas comédias o que menos lhe levam em gosto ou o que sempre foi visto com atenção mais distraída. É altura de começar a explicar porquê.

Deixando de lado Sailor's Luck (1933) que sempre mereceu encómios, a primeira comédia musical de Walsh é Going Hollywood, do mesmo ano, com Marion Davies, a mítica mulher de Hearst, e Bing Crosby. Produzido pela MGM e a Cosmopolitan Pictures de William Randolph Hearst, o filme ficou com a reputação de ser um dos muitos veículos à glória de Mrs. Hearst, para sempre identificada com a caricatura que dela fez Orson Welles no Citizen Kane.

Nas memórias, Walsh refere-se longamente ao filme num capítulo chamado Hail to the Chief. Nele, faz uma espantosa descrição (sublinhando que o que viu era impossível de descrever) do celebérrimo San Simeon Castle, a lendária casa de férias, com 110 divisões, que Hearst mandou construir para Marion Davies em Santa Monica e que Welles imitou, pedra a pedra, em Xanadu. Conta como ficou instalado no apartamento Della Robbia, uma das seis ou sete casas de hóspedes que rodeavam a moradia principal, todas com nomes de venerandos mestres, E conduz-nos de espanto em espanto, de loucura em loucura, pelo monumento que melhor reflecte "the sometimes shoddy glamour and oppulence of Hollywood in these mid-1930s". A enorme lareira de mármore, oriunda de um palácio italiano, onde Hearst se aquecia quando foram apresentados; a cama em que dormia e que fora cama de Napoleão; os cinco ursos polares do jardim zoológico privado, arrefecidos a camiões de gelo; a primeira conversa com Marion Davies em que esta decidiu baptizá-lo de Rockaway, em homenagem a uma praia com esse nome que ambos teriam frequentado em crianças; uma cavalgada com um bebé durante uma noite inteira, para impedir que o dito - fosse entregue à custódia do pai; a festa de anos de Hearst com 400 convidados mascarados de artistas de circo; uma condessa que foi com ele para a tal cama de Napoleão e, depois, lhe mandou um telegrama assinado Josephine; uma cena de pancadaria com um príncipe romeno, em que lhe valeu a ajuda de Buster Keaton disfarçado de gorila. E não estou a contar nem metade.

Mas se o conto não é para resumir as memórias de Walsh ou a vida de Hearst. É para introduzir ao clima de Going Hollywood que, em diferente contexto, reflecte o mesmo. Quase tudo o que citei, está, de forma transposta, em Going Hollywood, como se Walsh tivesse pensado que para uma loucura daquelas só com loucura equivalente se podia exprimir. Não haverá, na história de Hollywood e dos filmes sobre Hollywood, muitas obras mais desbragadas e mais delirantes. Excessivamente desbragada? Excessivamente delirante? Respondo com outras perguntas: haverá algum filme de Walsh que não seja excessivo? Não é o excesso exactamente um dos traços fundamentais do seu cinema?

E o resto - nesse filme mágico, nesse filme heteróclito, nesse filme bizarro, nesse filme em que Bing Crosby cantou Beautiful Girl e Temptation de Arthur Freed e Nacio Herb Brown, dezanove anos antes de Singin' in the Rain, nesse filme em que Marion Davies parece Mary Pickford e Fifi d'Orsay Ruby Keeler - o resto, dizia eu, é genialmente resumido no primeiro diálogo, que, segundo Walsh, Hearst teve com ele.

"Para começar, disse-me que tinha gostado imenso de The Thief of Bagdad. 'Uma bela história, como todas as histórias das Mil e Uma Noites. Mas se não fosse o senhor a dirigi-la, acho que o público tinha perdido grande parte da magia dela. Felizmente, Senhor Walsh, o Senhor deu-no-la.' Depois, citou vários outros filmes meus, incluindo Sadie Thompson e What Price Glory?, de que também tinha gostado. A certa altura, abanou a cabeça: 'Muitos homens de talento agarram-se a um só tema. Mas o Senhor é capaz de passar da pura fantasia para o sentimentalismo, de sentimentalismo para as guerras mais sórdidas e em todos os registos é sempre bom. Quero felicitá-lo pela sua versatilidade.' Tive um súbito e reprimido impulso de lhe dizer que estava a pensar seriamente na hipótese de realizar O Capuchinho Vermelho. Pelo modo como me gabava, julgo que me teria acreditado".

Se Walsh desmente a fama patética e pateta de Marion Davies ("she was a great girl, she was terrific") corroborando, aliás, a opinião, de King Vidor, que a dirigiu em The Patsy e Show Girl, o diálogo transcrito também desmente a propalada cegueira de Hearst. Se é verdade o que Walsh conta, Hearst viu melhor do que muitos críticos. E Going Hollywood, para além do esplendor visual, é um dos melhores exemplos da arte mágica de Walsh e da versatilidade do autor.

De certo modo, é mesmo O Capuchinho Vermelho feito filme, ou a mais próxima variação que jamais se fez sobre ele. Se Marion Davies e Bing Crosby foram, neste filme, mais angélicos e azuis do que nunca (prenunciando os anjos e as Anjas do inenarrável céu de The Horn Blows at Midnight) esse angelismo só melhor fez ressaltar a "escuridão" de Hollywood, reino dos "lobos maus", da corrupção e lubricidade mais desenfreadas. Particularmente inesquecível é a secção do filme em que Bing Crosby, sucumbindo aos encantos de Fifi d'Orsay, é corrido pela despeitada Marion Davies e se afoga em muitas tequillas em Tijuana. De barba por fazer, instalado no vício, Bing é a própria imagem do anjo decaído. Até que... Até que, do fundo de um copo de tequilla, avança para ele o grande plano de Marion Davies, numa sobreposição inenarrável. Bing Crosby falou, mais tarde, de "very Russian Art Theatre" e se nos lembrarmos de The Red Dance (1928) em que a influência de Stanislavsky se fez sentir através do actor Ivan Linow (um dos muitos discípulos do Mestre que "escolheu a liberdade", quando da digressão do Teatro de Arte de Moscovo pela América) até talvez se lhe dê alguma razão. Mas o maior prodígio é que a coexistência dos dois grandes planos, o plano "real" de Crosby bêbedo e "diabolizado" e o plano "imaginário" de Marion Davies, suplicante e "angelizada", são o prelúdio perfeito para ouvirmos o primeiro cantar Temptation, no mais genial aproveitamento que se fez dessa canção.

Muitas e muitas vezes tenho pensado - na minha vida de programador - num programa que reunisse What Price Hollywood? de Cukor (1932) e Going Hollywood de Walsh. Se o primeiro é, como se sabe, a primeira das muitas versões de A Star is Born, o segundo, de tema muito mais indirecto, completa-o como introdução ao filme de Cukor de 1954. São os dois "retratos" mais ácidos e menos "literários" de Hollywood, sem o negrume dos "films on films" dos fifties mas muito mais cáusticos e directos. Tudo o que Walsh viu em Santa Monica - quer como comédia quer como tragédia - envolve o filme e transforma-se numa metamorfose imperceptível, "just an echo in the valley", como noutra memorável cena canta Bing Crosby, com música de Harry Woods. Secundário, este filme? Gostava que me explicassem porquê.

Daí por diante, Walsh pareceu ter encontrado um princípio para as "encomendas" que os estúdios lhe faziam. Olhar, com a mesma atenção com que olhou Santa Monica e Marion Davies, os "monstros" que lhe punham na frente e hiperbolizá-los.

Flagrantemente, é esse o caso de Klondike Annie (1936) em que o "monstro" foi Mae West. E transformar Mae West em freira era uma aposta que só alguém como Raoul Walsh podia ganhar. Ganhou no box-office (foi provavelmente o filme de Walsh que mais dinheiro deu a ganhar, à excepção de What Price Glory?) mas ganhou, sobretudo, no mesmo excesso que é constante desta fase. "Between two evils, I always pick the one I never tried before" é uma das melhores lines de Mae West no filme e é um dos melhores programas de acção de Raoul Walsh.

E o "mal que ele nunca tinha experimentado antes", entre as muitas hesitações dos argumentistas e dos produtores, temendo-se do que a censura faria ao filme, foi "deserotizar" onde se previa a brejeirice e erotizar onde se previa que as coisas começassem a ser mais sérias.

O princípio do filme é magistral, com a costumeira arte de Walsh em definir um ambiente em meia dúzia de planos e duas ou três sequências breves (neste caso, São Francisco, anos 20 e o "Casino Oriental" de Chan Lo). Frisco Doll, nome artístico de Mae West, sequestrada pelo chinês e principal atracção do dito casino, não desenvolve nem metade do que fizera em filmes anteriores como She Done Him Wrong (Lowell Sherman, 33, o filme da célebre piada do enchumaço no bolso das calças de Cary Grant) ou I'm No Angel (Wesley Ruggles, 33). O que impera é uma atmosfera que James Fox (Films and Filming) comparou e bem à de Broken Blossoms, uma coralidade (os amplos travellings de Walsh) onde Mae West faz de figura de fundo. Como ela própria diz, quando o chinês pergunta pela "pérola das suas pérolas", está "desenfiada"("is getting unstrung").

E "desenfiada" continua a estar até matar o chinês e embarcar para o Klondike, na "quimera do ouro". Começa-se a "enfiar" quando "engata" o Capitão (Victor McLaglen) que não a denuncia à polícia. "Paguei-lhe para ter os olhos bem abertos" diz-lhe o oficial, quando vai a bordo, suspeitoso. "Pois foi. Mas ela pagou-me melhor para ter a boca bem fechada", responde McLaglen.

A mulher que gostava de homens de boca fechada partilha a cabine com uma freira que ia fundar uma missão na terra das pepitas. Os diálogos de beliche a beliche começam a fazer valer Mae West. "You always take the line of least resistente", censura-lhe a Irmã. "Yeah. A good line is hard to resist", responde-lhe Mae.

Até que a freira morre e Mae West se veste dela para escapar a polícia. E é como freira - sobretudo no modo peculiar de animar a Missão - que Mae West atinge o máximo de si própria, particularmente no famosíssimo: "I'm an Occidental woman in an Oriental mood for love". E, num portentoso décor (fulgurante trabalho de Dreier) presidido por uma imensa estátua, que ora sugere Vénus ora sugere a Virgem, confundem-se missão católica e saloon ou bordel, desfeitas todas as fronteiras entre o bem e o mal. A casa de passe é confundida com uma boarding school, os sermões da freira com discursos de frades de Sade e as orgias terminam em catársis colectivas, com toda a gente a berrar: "Little Sister, you'll feel better in the morning". Mae West mete tudo e todos no bolso (até o inspector da polícia que a queria prender) com a convicção de quem converte toda a gente e o trunfo de quem conseguiu mais almas para Deus do que qualquer das suas antecessoras. É uma meia-hora final antológica da arte de Walsh, com esse prodígio - esse sim supremamente americano - de transformar os mais heterodoxos happy ends em vitórias do Bem sobre o Mal, com Deus a escrever mais do que nunca por linhas tortas (segundo o provérbio português que Claudel escolheu para epígrafe do Soulier de Satin) e Walsh a desenhar, mais do que nunca, linhas direitas, nalguns dos movimentos de câmara mais certeiros de toda a sua obra. "Up and down". E quando mais "down" mais "up" e nunca, precisamente nunca, o contrário.

Um ano depois - 1937 - mal regressado de Inglaterra, que guardarei para o fim, puseram-lhe na frente um "monstro" ainda mais estranho e mais exótico do que Marion Davies ou Mae West. Chamava-se Alice Josephine Pons, era filha de um francês e de uma italiana e chegara à América em 1930, com 32 anos, usando o nome, muito mais famoso, de Lily Pons. Era uma cantora de ópera mais do que aclamada e a sua estreia no Met, em 1931, na Lucia di Lammermoor, ficou nos anais da ópera e do teatro, como um acontecimento histórico. Diz-se que cantou a Lucia 280 vezes, entre 1931 e 1962, ano em que se retirou.

Estava no auge da fama como "soprano colloratura" quando a RKO, em plena era dos "rouxinóis da tela", pagou por ela uma fortuna para responder aos êxitos de Grace Moore na Columbia. Só que se Lily Pons terá sido, eventualmente, "the only true soprano colloratura" desde os tempos lendários da Patti, o físico não a ajudava nada: uma cara cavalar, com enormes dentes, um corpo desajeitado e esmagriçado, umas pernas de boneca torta. I Dream Too Much (John Cromwell, 1935) foi o primeiro filme dela, ao lado de Henry Fonda. Fiasco. Pior ainda para That Girl from Paris (Leigh Jason, 36). E foi depois desses desastres, e para tentar o impossível, que tentaram Raoul Walsh e o filme que pôs ponto final à carreira cinematográfica dela: Hitting a New High.

Walsh nunca falou muito de Hitting, a não ser para dizer que não percebia nada de ópera e nunca gostou de Lily Pons. Nada nem ninguém me autoriza, pois, a interpretação que vou propor, mas que é coerentemente walshiana. Se se tratava de fazer um filme para fazer Lily Pons cantar a "cena da loucura" da Lucia, com aquela mulher e aquele argumento, só havia uma maneira de se ser sério. Fazer de todo o filme uma cena de loucura. E o filme é-o.

A história começa com o desespero do empresário e melómano Lucius B. Blynn (Edward Everett Norton) por não conseguir uma voz para o seu teatro. Blynn é também caçador, como o seu amigo "Crony" (Jack Oakie). E este dá-lhe a ideia de procurar a tal voz na selva, em África, juntando o útil ("as vozes naturais são às vezes as melhores") ao agradável (a caçada). Para publicitar a viagem, resolvem fotografar-se com um leão embalsamado, vestidos de caçadores. Horton queria tudo "very real, very nice, very dangerous" (para a foto). E eis que, um ano antes de Bringing Up Baby de Hawks, alguém troca o leão embalsamado por um leão vivo. Oakie dá-se conta do "erro" e bem tenta explicá-lo a Horton, quando este surge para a foto histórica. Não se faz entender. E o que se passa, depois, é, para mim, uma das mais prodigiosas mises en scène de Walsh, com os movimentos cruzados e combinados de Oakie, Horton e do leão.

Dali se passa para Paris em décors de papelão (com Torre Eiffel e tudo) com Oakie a tentar convencer Horton que uma tal Gabrielle, que cantava com a orquestra de André Kostelanetz (Kostelanetz foi metido no filme porque estava noivo de Lily Pons, com quem casou em 1938) podia ser uma bela voz. Não era, e dos décors décors de Paris passamos, sem transição, para os décors décors de África, filmados no que restava das selvas do Zaroff ou do King Kong. E, entre pretos e selvagens, muitos pretos e muitos selvagens, surge "a criatura com voz de pássaro e corpo de mulher, ou voz de mulher e corpo de pássaro, não percebo bem", única maneira de dar a volta a Lily Pons. Ao longe, ouvem-se os "high" mais "high" dela, perante o êxtase de Horton. E, de súbito, entre catatuas, íbis, araras e papagaios, prendida nas árvores, surge, à Dolores del Rio, com tanga e soutien, aquela criatura que desafia toda a imaginação a cantar Saint-Saëns!!!!! Sem obviamente saber palavra de qualquer língua que não a sua imaginária língua nativa. Raras vezes vi no cinema algo de tão delirante e "ce n'est qu'un début". Pouco depois, a selvagem cantora rouba o relógio de Horton e responde aos "tic-tac" com gargarejos onomatopaicos. Não contente, quer ficar com o relógio e tenta despir as calças de Horton que responde: "There is a limit, even in the jungle".

Mas para Walsh nem na selva há limites. E o caminho é sempre o que vai do real como efeito ao do efeito como real, sem jamais os confundir (para isso lá está o prosaico Oakie) e sem jamais os dissociar (para isso lá está o funâmbulo Horton).

A partir daí, acelerador mais a fundo. Lily Pons, sempre em trajes menores, é metida numa jaula e nela viaja para a América e para a ópera.

Lily Pons, ensinada em tempo record a falar e a cantar francês e inglês, "estreia-se", de cabeleira loura, com a ária da Mignon: "Je suis Titania la blonde", ideia tão brilhante na paródia à ópera, como a dos Marx na noite dela ou como a de Hergé com Bianca Castafiore, na ária do Fausto: "Je ris de me voir si belle dans ce miroir".

Eric Blore, empresário rival de Horton, inventa, para ocultar as origens de Lily Pons, uma irmã gémea desta e alternam, sucessivamente, a africana, já domesticada, e a "egyptian catatua".

Lily Pons (e a suposta irmã gémea) desdobram-se entre a ópera e um cabaret exótico, com a cantora a repetir os números de macaca de Marlene em Blonde Venus (mas de shorts).

Finalmente, chega a cena da Lucia. Bem ao contrário do que se passa na ópera, a heroína de Donizetti não é surpreendida por ninguém, mas é literalmente empurrada para a cena, de onde queria fugir. Toda de branco vestida, com decote em bico, entre nenúfares e árvores tropicais, só de facto em loucura varrida era concebível uma cena daquelas. Juro-vos que nunca a "ária da loucura" foi tão louca, nunca se fundiram assim a música de Donizetti com as coreografias de Hermes Pan, o musical de Hollywood com a ópera.

E o triunfo cabe, evidentemente, ao musical de Hollywood (Kostelanetz e Lily Pons) ao burlesco de Hollywood e à ópera como loucura total.

O filme deu cabo das veleidades de Lily Pons, como era previsível que desse com tal desconchavo. Mas se percebo muito bem o desastre que foi em 1937, não percebo que se continue a não ver o que se mete pelos olhos e ouvidos. Hitting a New High não deve ser tomado à letra, como referência à voz de Pons. Mas pode e deve ser tomado à letra como referência ao estilo de Walsh. Com um leão e uma "bird - girl", Walsh "hit a new high" na história das mais loucas farsas que Hollywood alguma vez nos deu.

Como se diz num dos diálogos do filme: "What's a good word for sensation?" "Sensation" é a resposta. Foi sempre a resposta de Walsh quando o queriam arrastar para desvios, perífrases ou ínvios caminhos.

Hitting a New High é uma das quatro produções - todas musicais - de 1937. Antes e depois do seu único encontro com a "bird-Lucia" (em filme feito para a RKO e para Lasky), Walsh fez, para a Paramount e para Zukor, três musicais arquetípicos desses finais dos thirties (na esteira do sucesso e dos "oscars" a The Great Ziegfeld) com vagas intrigas e múltiplos "production numbers". Todos - ao contrário da fama - são extremamente imaginativos, mas quem leva a palma é o primeiro, Artists and Models, onde desfilam, entre as atracções, Louis Armstrong, Martha Raye, Judy Canova, Ben Blue, as "marionettes" de Russel Patterson, Carl Harbaugh e os "Yacht Club Boys", Connie Boswell, André Kostelanetz, etc.

Walsh disse um dia que não há trinta e seis maneiras de filmar alguém que abre uma porta. "Há só uma". Também não há - nunca houve - trinta e seis maneiras de filmar um musical à Artists and Models, onde a intriga deve ser mínima e os números máximos. Essa maneira é a maneira de Walsh em Artists and Models, College Swing e Saint Louis Blues. Que maneira é essa? É a maneira que Jean-Louis Bory um dia definiu a propósito de um dos mais prezados Walsh (Colorado Territory, de 1949) aparentemente a obra que mais se pode opôr a estas "Arrebatamento, delírio, gosto pelas imagens fortes, que em nenhum momento se vergam ao medo do ridículo; uma poderosa mitologia dos lugares; personagens que existem, simultaneamente vigorosos e complexos; um ritmo de cortar a respiração".

Válido para Colorado Territory, inválido para Artists and Models? Porquê? O arrebatamento e o delírio são uma constante desde que o homem da publicidade do teatro (Jack Benny, num dos seus melhores papéis) assiste com desagrado ao ensaio de um novo show até que desata a berrar com toda a gente (e toda a gente, nos filmes de Walsh, é sempre imensa gente) e até que recebe um telefonema do magnate (Townsend (Richard Arlen) a propôr-lhe um milhão de dólares para "Artists and Models" e cai estatelado no chão. Se o ritmo fora já considerável até aí, "corta a respiração" com a confusão que se segue à proposta, entre as aspirantes a vedetas (Ida Lupino e Gail Patrick) e a legião de secretárias.

A partir daí, não se está só no ensaio de um espectáculo. Está-se no ensaio de vários: a produção musical propriamente dita, o casamento de Jack Benny (quer casar-se mas não sabe com quem), o do milionário (com o mesmo dilema) e a renhida luta de bastidores entre as várias aspirantes quer ao estrelato, quer ao leito nupcial, quer aos dois. E a mais fabulosa ideia, para que tudo seja show, é o ensaio do casamento em pleno ensaio da peça, com a secretária (nada desinteressada), a representar o papel que devia caber a Ida Lupino. E há de tudo, como numa "ópera buffa": o médico que examina Benny para verificar se ele está em forma (conclui que não está); uma estatueta nua que, despistado, Benny confunde frequentes vezes com a secretária que lhe faz de noiva; as legendas apropriadas (e inapropriadas) à situação a lerem-se nos mil cartazes que forram o luxuoso gabinete de Benny; o beijo à noiva no exacto momento em que Ida Lupino chega a despropósito; cow-boys que entram a cavalo porque alguém os chamou e não foi para um casamento; as trocas de todos os casais. Os diálogos são óptimos, as auto-paródias constantes e a mise en scène reina soberana sobre toda aquela confusão, em que nunca se sai do espaço do gabinete de Benny.

O espaço dilata-se quando vamos para Miami (onde terá lugar o show) e surgem os primeiros números musicais. Conhecemos pessoalmente o milionário a quem chamam "the Townsend Touch". Não é propriamente o "Lubitsch Touch" mas as elipses andam lá por perto, sobretudo quando percebem que o "touch" dele se aplica muito mais às mulheres do que às ideias. E a festa de Townsend (durante a qual este se apaixona por Ida Lupino) acaba como a da Gata Borralheira, com Ida Lupino a perder o sapato, depois de um trambolhão na piscina.

Enquanto a noiva, que Benny queria impingir como actriz ao milionário, triunfa graças aos seus próprios recursos e troca de par com vantagem, o homem da publicidade continua a experimentar ideias. Ben Blue tem o fabuloso bailado do "rainmaker", sob o pseudónimo de Jupiter Pluvius II, marionettes e instrumentos musicais confundem-se como num Berkeley, e Benny confunde a noiva do milionário (Gail Patrick) com uma corista e manda-a despir-se, ao que ela não se faz rogada. E nunca nenhum dos quatro protagonistas é o estereótipo habitual dos musicais, mas personagens diferentemente ingénuas ou calculistas,  magistralmente definidos em gestos ou palavras.

Mas o melhor vem no fim, como quase sempre em Walsh. Uma inacreditável exposição de pintura, em que a arte abstracta dá lugar ao mais concreto e o número Public Melody nº1, coreografado por Minnelli (um dos seus primeiros trabalhos em Hollywood) e que, dominado por Armstrong, é uma prodigiosa recriação do mundo dos gangsters, que não exagero se disser que anuncia, em raccourci, The Roaring Twenties do ano seguinte. E o "halali impiedoso", que Walsh guarda para o final, é o bailado titular em que melodrama e comédia se fundem assombrosamente.

Note-se que qualquer dos filmes de 1938 justifica a visão pelo lado do aproveitamento da música de jazz e pela inventividade das coreografias de LeRoy Prinz. Que esses aspectos possam ser esquecidos perante a inventividade formal e o brilho da mise en scène não é das mínimas coisas que se podem dizer.

Vendo-os, percebe-se melhor o que Walsh uma vez disse: "Para mim, fazer filmes é como pintar para um tipo que faz pintura. Pinta um tema de que gosta. Tenta várias vezes. Recomeça. Pinta coisas diferentes, até achar o caminho. Mas é preciso que pinte sempre. Tem necessidade disso. Ou pinta ou se embebeda. Esta é para mim a importância do cinema". Entre a arte e a embriaguez, Artists and Models é um dos pontos mais altos.

Se os exemplos que escolhi desmentem - creio - o lugar-comum de um Walsh particularmente pouco à vontade na comédia (e nem sequer citei o delírio absoluto que é The Horn Blows at Midnight, o mais louco filme sobre os céus feito nesta terra) é verdade a crise da "fase inglesa"? Noto, para começar, que dois filmes não chegam propriamente para caracterizar uma fase de que Walsh reteve sobretudo (ver memórias) uma boa partida pregada a Ribbentrop.

Mas é desta fase inglesa uma das maiores surpresas da sua obra e que, provavelmente por ignorância minha, nunca vi referida em parte alguma. Refiro-me ao filme O.H.M.S. (You're in the Army Now, no título americano). Qual é o nome do protagonista, interpretado por Wallace Ford, um Wallace Ford mais do que nunca semelhante a James Cagney? Acreditem ou não, chama-se James Dean. Não vem nas fichas técnicas, nem nas filmografias mais exaustivas? Não vem não, porque o nome do personagem é Jimmy Tracey. Mas, quando decide mudar de identidade, para escapar à polícia, o nome que adopta é precisamente o do actor, nome de um companheiro ocasional, que morreu com uma facada nas costas e cujos papéis e passado usurpou.

À época, James Dean tinha seis anos e nem Walsh nem ninguém tinham ouvido o seu nome. Sendo Dean um apelido relativamente comum (quer na América, quer na Inglaterra) devem ter existido e devem existir centenas ou milhares de anónimos James Dean. Por isso, como é óbvio, à época ninguém estranhou tal nome era totalmente indiferente que ele se chamasse James Dean ou James Tracey. Mas que, depois de James Dean, nunca ninguém tenha relevado a coincidência, quando, que eu saiba, nenhum outro filme tem um protagonista com tal nome, só reforça a minha convicção que estas obras nunca foram revistas ou revisitadas, pelo menos com a devida atenção.

Evidentemente, não sou tão néscio ou tão fanático que defenda O.H.M.S. só por que o protagonista se chama James Dean. Mas por que esse James Dean me parece um dos mais vulneráveis e complexos heróis de Walsh, bem da família do Biff Grimes (James Cagney) de The Strawberry Blonde (1941) ou do Errol Flynn de Uncertain Glory (1944) e Objective, Burma! (1945). Ou, para ser mais exacto, o personagem que faz a ponte entre o Capitão Flagg (Victor McLaglen) de What Price Glory? (1926), The Cock-Eyed World (1929) e Women of All Nations (1931) e os heróis walshianos dos anos 40.

Quem é o futuro ou o passado James Dean? Julgamos saber tudo nas primeiras sequências, como sucede em tantos filmes de Walsh. Um homem, trazido por um travelling, do fundo de um cabaret "louche", que é o "cri de coeur" de todas as coristas e particularmente da principal atracção: Jean Burdett (Grace Bradley), a quem prometeu um casamento que não faz nenhuma tenção de cumprir. Batoteiro, zarageteiro, volúvel. Em menos tempo do que leva a contar, já está envolvido num jogo com parceiros pouco amáveis que provocam uma rixa para lhe roubar o dinheiro ganho e fugir. A polícia intervém. E, quando Jimmy levanta do chão um ocasional companheiro, verifica que este foi morto e tem uma faca nas costas. Com o cadastro dele e um cadáver nos braços, só lhe resta a fuga que o põe também a salvo da exigente Jean. Embarca clandestinamente e resolve assumir a identidade do morto, o tal James Dean. E é hoje gag involuntário ouvi-lo repetir-se a si mesmo: "Jimmy Dean, you are Jimmy Dean, you are Jimmy Dean", como se não acreditasse em tal nome.

Chega a Inglaterra, onde o outro não ia há que séculos e é recebido como o verdadeiro Jimmy Dean, por uns velhos e novos amigos, entre os quais se contam Bert (John Mills) e Sally (Anna Lee). Acham-no bizarro, por comparação com longínquas memórias, mas não desconfiam e informam-no que o exército o espera. James Dean chegou à idade de cumprir serviço militar.

Segue-se a secção que bem conhecemos das histórias de Flagg e Quint e nos dão às desventuras de um soldado sem jeito nem disciplina. Compensa-as, conquistando rapidamente Sally que rapidamente o prefere ao insípido Bert. Mas, a pouco e pouco, como com outros heróis de Walsh, Jimmy Dean assume outra personalidade. Conclui a recruta com distinção. Há muitas sobreposições (tropa e ele) que não são gratuitas porque estão a retratar uma conversão e uma conversão ao Bem. É mobilizado para uma perigosa missão na China. Mas, na festa de despedida, surge-lhe inesperadamente a antiga corista. Para evitar ser desmascarado, Jimmy Dean tem que desertar. É punido, fica na retaguarda.

A situação parece resolver-se, quer militar quer amorosamente, quando, devido a essa posição na retaguarda, lhe cabe defender civis contra um ataque de chineses. Abruptamente, a lentíssima passagem da comédia ao melodrama volve-se tragédia. As tropas inglesas chegam a tempo, os civis são salvos, mas Jimmy é atingido pela última bala dos chineses. O triângulo amoroso refaz-se, na sua agonia, mas, ao contrário do que tudo levava a supôr, Sally casará com Bert, sobre o cadáver de Jimmy. O plano final tem a grandeza das grandes mortes de Walsh. Jimmy revela a sua falsa identidade, confessa o seu passado e expia-o na dádiva de Sally a Bert.

É um longuíssimo grande plano fixo sobre a cara dele, murmurando a confissão, e em que, na imagem, apenas está, para além do rosto do agonizante, o branco braço de Anna Lee que lhe segura a cabeça. Há um vago vento, vaguíssimos movimentos e, depois, mais nada. Como a morte de Picart (Errol Flynn) em Uncertain Glory ou como as mortes de Burma. Jimmy Dean é - ou foi - um outsider. Por isso, a sua expiação o obriga a ficar a leste do éden, deixando à ordem o que na ordem estivera e assumindo incerta glória na sua sublime morte.

Quem foi que escreveu, há séculos, "un sublime si familier"? Claude-Jean Phillippe, citando Godard, que citava Fénelon.

Eu prefiro citar James Dean. E, mantendo a familiaridade do sublime, dizer que o encontro tanto nos excessos e nos paroxismos das loucas comédias dos anos 30 como na inacreditável serenidade da morte de Wallace Ford em O.H.M.S.. E, recordando o citado artigo de Claude-Jean Phillippe (Présence du Cinéma), juntar a todas as citações de Walsh, dispersas ao longe deste artigo, esta que diz: "Il ne s'agit pas d'interroger les arbres pour définir la condition humaine, mais beaucoup plus simplement, de montrer des hommes se frayant un chemin à traver les branches".

O meu Walsh dos anos 30 tem o rosto de Wallace Ford no nome de James Dean.

Publicado originalmente na revista Trafic, nº 28.

in «Raoul Walsh», Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, Lisboa, 2001 [org. Manuel Cintra Ferreira].

DIRECÇÃO DE FOTOGRAFIA EM PELÍCULA PANORÂMICA


Alguns Comentários Sobre o Trabalho de Câmara em 70mm por um Director de Fotografia Prático

por Arthur Edeson, A.S.C.

Se alguns meses atrás alguém me dissesse que não só ia fazer a fotografia de um grande filme em película panorâmica, como também ficar raivosamente entusiasmado com as suas possibilidades artísticas, pensaria que era doido. Porque eu tinha a atitude típica e conservadora de um operador de câmara em relação à película panorâmica: podia estar bem como novidade, mas como meio prático para um trabalho artístico sério era impossível. Conseguia pensar em demasiadas falhas técnicas e artísticas na coisa para pensar que alguma vez fosse ganhar o favor de um operador de câmara. Parecia tudo - especialmente a nova proporção da sua imagem - absolutamente errado.

Desde aí passei mais de seis meses a filmar a versão em 70 milímetros de The Big Trail de Raoul Walsh. Tinha filmado dezenas de milhares de metros de película Grandeur neste intervalo de tempo, e os resultados tinham-me convencido que era eu que estava enganado, e não o processo. E agora que a produção está concluída, sei que vou achar mesmo difícil voltar às proporções limitadas da nossa película-padrão actual. 

Porque a fotografia em 70 milímetros deu-me uma perspectiva completamente nova. Em vez de olhar para as coisas à luz da moldura velha e estreita da Movietone, agora vejo-as fotograficamente como o meu olho as distingue naturalmente - muito nas mesmas proporções do enquadramento baixo e largo do Grandeur. 

Tecnicamente, a direcção de fotografia em 70 milímetros é muito como a direcção de fotografia normal em 35 mm. As câmaras são câmaras Mitchell padrão. A película é Eastman Pancromática Tipo Dois padrão. As lentes são parecidas com as lentes padrão na maior parte dos aspectos. No entanto, é nas lentes que se encontra a principal diferença técnica, porque qualquer lente em película de 70 mm vai abranger um ângulo de visão consideravelmente mais amplo do que na película padrão mais pequena. Portanto, quando se têm de filmar duas versões, como no presente filme, a câmara de 70 milímetros tem de ter uma lente aproximadamente com o dobro de distância focal das lentes usadas para fazer um plano correspondente em 35 mm. Ou, invertendo o exemplo, quando o operador de câmara usa uma lente com uma dada distância focal, o operador de câmara normal tem de usar uma lente aproximadamente com metade desse tamanho para fazer o seu plano correspondente. Uma das lentes de distância focal mais curta que eu usei durante a realização de The Big Trail foi a de 50 mm, embora se afirme que a de 40 mm é teoricamente o mínimo absoluto utilizável. No entanto, como isto era efectivamente trabalho de produção, e não teste de laboratório, preferi jogar pelo seguro e nunca usei algo inferior a cinquenta. Quando usava uma de cinquenta num plano, o operador de câmara normal usava uma de vinte e cinco para produzir um plano correspondente na película mais pequena dele; quando o plano dele pedia uma de cinquenta, o meu exigia uma de dez centímetros, e assim sucessivamente. Neste filme, embora a maior parte das cenas tenham sido duplicadas plano por plano em cada tamanho de película e tantas vezes quando possível, a versão em Grandeur recebeu maior atenção por ser considerada a mais importante. Portanto foram as exigências das câmaras de 70 milímetros que ditaram as lentes que se utilizavam, a instalação do material, a acção, e todas essas questões.

A selecção de lentes para o uso em 70 milímetros é especialmente importante. Uma das principais queixas fotográficas contra a película panorâmica tem sido apenas o facto de haver muitas vezes uma queda acentuada em definição nas extremidades da imagem. A única cura para isto é o uso de lentes da maior das qualidades - as melhores das melhores. Claro que qualquer operador de câmara digno desse nome vai ter muito cuidado na selecção do seu equipamento de lentes, mas ao seleccionar objectivas para a película panorâmica, tem de tomar precauções ainda mais extraordinárias. Naturalmente que isto significa uma quantidade infindável de testes mesmo antes que uma lenta seja escolhida, mas vale bem a pena, porque só as melhores lentes é que dão filmes perfeitos em Grandeur, e só os filmes perfeitos é que conseguem revelar todas as possibilidades dos 70 milímetros. 

No meu caso, quando me incumbiram do trabalho de câmara de 70 milímetros em The Big Trail, percebi a importância do equipamento de lentes adequado, e passei muito tempo a procurar as melhores lentes disponíveis - e garanti que os meus associados no filme fizessem o mesmo. Quando me tinha finalmente decidido na marca particular de lentes que queria usar, pedi aos fabricantes que me abastecessem com uma selecção extremamente grande de lentes de todos os tamanhos por onde escolher. Testei estas de todas as maneiras concebíveis, visual e fotograficamente; descobri que a única indicação verdadeira das suas capacidades era mesmo o seu desempenho em testes fotográficos. E ainda que as lentes que usei tenham sido o produto daquela que é provavelmente a firma óptica mais eficiente e exigente no mundo, descobri que tinha de testar pelo menos dez ou doze lentes individuais para obter uma que que se adequasse perfeitamente a todos os meus testes. Mas estes incómodos e despesas eram amplamente justificados não só na qualidade da fotografia resultante quando o filme começou a produção, como no facto de que agora tenho o equipamento de lentes para direcção de fotografia em 70 mm ou 35 mm mais perfeito que já se montou. Porque estas lentes podem ser usadas de forma intercambiável, seja na minha Mitchell de 70 mm ou na minha Câmara Mitchell normal de 35 mm.

Os principais requisitos para lentes na direcção de fotografia em película panorâmica são, em primeiro lugar, um poder de cobertura extremamente amplo; e em segundo (e quase com tanta importância), uma profundidade de foco extremamente grande. Devido à forma mais natural do quadro em Grandeur, produz-se um certo efeito pseudo-estereocóspico: mas este efeito perde-se se não houver uma profundidade de foco muito considerável na imagem. A fotografia em 70 milímetros tem quase a mesma proporção que o nosso campo natural de visão, o que é responsável por esta pseudoestereocospia, suponho. Mas claro que para tirar vantagem total disto, temos de usar lentes que nos dêem um grau de profundidade que se aproxime pelo menos um pouco do dos nossos olhos. Portanto é vital que as lentes Grandeur sejam seleccionadas com vista a obter esse efeito, para que se consigam as imagens mais puras e profundas.

Outro ponto que tem sido uma fonte de problemas para os primeiros utilizadores da película panorâmica é a sua tendência para a abrasão. Durante os muitos meses em que estávamos a trabalhar em The Big Trail, filmámos mais de cento e cinquenta milhões de metros só em 70 mm, absolutamente libertos de riscos e abrasões de qualquer tipo. Isto foi feito tendo simplesmente muito cuidado na questão sempre importante de manter as câmaras e os magasins limpos. Tornou-se uma regra rápida e rígida as câmaras terem de ser limpas de forma minuciosa todas as noites, não só com escovas, mas com correntes de ar comprimido. E uma vez que estávamos a trabalhar sob todas as espécies de condições nos vários locais em que éramos pioneiros - no calor insuportável, a humidade e a poeira dos desertos do Arizona; o frio húmido das montanhas do Montana e do Wyoming; e a pulverulência húmida das florestas do norte - sem qualquer problema desta origem, parecia que era  só preciso esse cuidado como medida preventiva.

Outro detalhe problemático para o qual encontrámos cuidadosamente um remédio santo foi o da ondulação e curvatura da película. Uma curvatura numa câmara de 70 milímetros é uma coisa terrível, porque não só estraga uma grande quantidade de película valiosa, e danifica muitas vezes a câmara, como transforma invariavelmente o motor numa perda total. Durante a nossa primeira semana de trabalho no filme, tivemos várias más curvaturas - o que significava sempre um novo motor. Isto era naturalmente uma coisa séria; não se podia permitir que continuasse. Portanto dedicámos as nossas energias todas a encontrar a causa destas curvaturas. Eventualmente descobrimos que eram devidas à fricção entre as bordas da película e as paredes dos magasins. Depois disso, tomámos cuidados especiais a fazer o carregamento, certificando-nos de que cada rolo de película utilizado era absolutamente fiel à sua bobina, sem chance alguma de tocar nas paredes do magasin - e não tivemos mais curvaturas no filme. 

Tirando estes detalhes, do ponto de vista técnico a direcção de fotografia em Grandeur não é nada diferente do trabalho de câmara em tamanho normal. Qualquer homem que seja tecnicamente capaz de fazer um bom trabalho em película de 35 mm deve ser capaz de o fazer tão bem em película panorâmica, portanto. Neste contexto, é interessante notar que em The Big Trail, como estávamos constantemente a andar de um lado para o outro do país durante a nossa viagem alargada pelas localizações, nem o Sr. Walsh nem eu éramos capazes de ver o que quer que fosse da película que filmámos até ao nosso regresso a Hollywood - quase cinco meses depois. Que a película - mais de 150,000 metros só de Grandeur - estivesse toda tecnicamente perfeita é não só uma demonstração definitiva de que a direcção de fotografia em película panorâmica é basicamente a mesma que o trabalho 35 mm, como uma homenagem muito grande aos meus associados que se ocuparam das outras câmaras Grandeur. 

Do ponto de vista artístico, a principal exigência da direcção de fotografia em Grandeur é que tanto o operador de câmara como o realizador se aprendam a acomodar à tela mais ampla. O problema do operador provavelmente é o mais fácil, porque aprende rápido que compor uma imagem na tela larga da câmara Grandeur não é essencialmente muito diferente da composição para o velho rectângulo "mudo-padrão", e muito mais fácil do que para a tela quase quadrada da Movietone. Se um homem é artista suficiente para compor com sucesso as suas imagens cinemáticas nos primeiros formatos, deve ser capaz de se acomodar a este novo, tal como um bom pintor se consegue adaptar às exigências da sua tela normal, ou dos painéis de grandes murais. No entanto, num filme em Grandeur o realizador tem de prestar consideravelmente mais atenção à sua acção em segundo plano do que é normalmente o caso, porque, mesmo nos grandes planos, a profundidade de foco exigida pelo Grandeur torna o segundo plano uma parte importante do filme. A propósito, o Grandeur reduz consideravelmente o número de grandes planos, já que as figuras são tão maiores que os planos aproximados normalmente são tudo o que é preciso. 

Ao trabalhar num filme como The Big Trail os 70 milímetros são uma ajuda tremendamente importante, porque a envergadura épica do filme exige que seja desenhado diante de uma grande tela. O Grandeur dá-nos uma tela imensa com que trabalhar, e permite-nos fazer com que o plano de fundo desempenhe o seu papel no filme, tal como o fez nos acontecimentos históricos que estamos a dramatizar. E foi isso o que tentámos fazer ao longo deste filme: fazer a história viver outra vez no ecrã. O principal motivo da história é a perseverança indomável dos pioneiros, como é mostrado pelo seu percurso para oeste através dos grandes desertos, as vastas planícies, as montanhas imponentes, e para as grandes florestas da Califórnia e do Oregon. Portanto, o plano de fundo desempenha um papel vitalmente importante no filme - um papel que só pode ser completamente revelado ao ser mostrado como a película em 70 milímetros o pode mostrar. Lucien Andriot, que fez a fotografia da versão em película-padrão do filme, fez um excelente trabalho, mas o meio com que estava a trabalhar não conseguia começar sequer a captar o vasto alcance da história e do seu plano de fundo como fazia o Grandeur. Trabalhando em película de 35 mm, ele era simplesmente incapaz de dramatizar os planos de fundo como o fazia a película maior, porque em 35 mm ele não podia tentar mostrar adequadamente tanto os vastos planos de fundo como a acção íntima em primeiro plano num só enquadramento, como as câmaras Grandeur conseguiam. As ilustrações que reproduzem a cena idêntica tratada pelas câmaras Grandeur e de 35 mm mostram isto de forma admirável.

Partindo da minha experiência com fotografia em 70 milímetros em The Big Trail, posso dizer com confiança que a película panorâmica é não só o formato futuro para grandes filmes desta envergadura, como se vai tornar indubitavelmente o favorito para todos os tipos de filmes. Marca um avanço definitivo em técnica de cinema, e a partir dele evoluirão sem dúvida os filmes verdadeiramente estereoscópicos do futuro, na direcção dos quais tantas pessoas há muito se empenham. Como até agora só trabalhei com a película 70 mm, dificilmente me sinto qualificado para profetizar em relação à dimensão que a indústria acabará por adoptar como padrão, embora me incline naturalmente para o Grandeur, ao qual estou mais habituado. No entanto, a película mais panorâmica é uma melhoria desejável de forma tão definitiva que espero que seja aceite em breve um padrão definitivo. Assim que esse padrão for determinado, e se lhe derem filmes adequados em película panorâmica, o público vai sem dúvida mostrar uma preferência por ele. De qualquer forma, as versões em 35 mm têm de continuar a ser feitas durante muito tempo: mas isso não será muito difícil, já que se podem fazer reduções de negativos em Grandeur de forma perfeitamente satisfatória, por impressão óptica, e com uma despesa muito menor do que filmando duas versões, como tem sido feito com todos os filmes em película panorâmica produzidos até agora. Claro que isto vai impor aos operadores de câmara e aos realizadores uma necessidade de um cuidado invulgarmente grande em produzir as suas composições: mas dificilmente será mais trabalhoso que o seu problema actual de compor filmes em 35 mm para que sejam adequados para todas as diversas aberturas de projecção usadas em todo o mundo. Aqui a maior dificuldade vai ser a de comporem os seus planos de conjunto, que vão ter de ser feitos de maneira a que se possam transformar em dois grandes planos separados na impressão de redução. Mas esta é só uma dificuldade menor quando comparada com as enormes vantagens que a fotografia em 70 milímetros oferece em todos os outros aspectos. E quando estas vantagens, e as que a banda-sonora da película panorâmica oferece aos engenheiros de som, forem combinadas com um sistema aperfeiçoado de fotografia a cores, os directores de fotografia e os realizadores vão ter mesmo um instrumento digno dos seus melhores esforços artísticos e técnicos.

in «Wide Film Cinematography», American Cinematographer, Setembro de 1930.