sexta-feira, 29 de novembro de 2019

ALONG THE GREAT DIVIDE (1951)


por Miguel Marías

Muito pouco conhecido, e quase sempre esquecido, rodado integralmente em exteriores com uma simplicidade e uma ausência de floreios apenas comparáveis à beleza seca do seu cenário deserto e fronteiriço, cheio de humor e de amor, Along the Great Divide sempre foi, apesar da sua modéstia, um dos filmes de Walsh pelos quais mais carinho sinto. 

Com uma das melhores actuações de Kirk Douglas, e as que prefiro tanto de Virginia Mayo como de Walter Brennan, Walsh soube tirar o máximo proveito em todos os campos — a intriga, o drama, a aventura e a comédia — de uma trama convencional (no papel) e (de um modo geral, mas nunca no detalhe) previsível, demonstrando as grandes possibilidades — hoje em dia quase desconhecidas — da narração linear. 

Along the Great Divide é um filme de itinerário cujo argumento se poderia resumir em três linhas, e que portanto se baseia numa direcção de actores flexível e inventiva. É possível esquecer a ordem das cenas, mas não a paisagem, a poeira, a luz; é possível não prestar atenção aos diálogos, mas é impossível desviar o olhar; pode ser que, com o passar do tempo, uma história tão bem narrada se ofusque e se confunda com outras semelhantes, mas vou recordar para sempre uma Virginia Mayo teimosa e briguenta; um Walter Brennan trocista e mal-humorado, que se dedica a chatear Kirk Douglas com uma cantiga e umas alusões insidiosas; um Douglas que morre de sono e que se debate entre cumprir o seu dever de agente federal e confiar no seu instinto — que lhe diz que o velho Pop Keith é inocente—, e que se está a apaixonar por uma rapariga que o parece detestar e não pára de o irritar. No final tudo se revolve como é devido: as personagens eram mesmo inteligentes.

in «Casablanca» nº2, Fevereiro de 1981.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

ESTHER AND THE KING (1960)


por Jean Douchet

A distribuição constante de Ester e o Rei volta a pôr em destaque um dos maiores realizadores de Hollywood, e certamente o menos conhecido. Efectivamente, Raoul Walsh foi considerado muito tempo um desses admiráveis fazedores de filmes de que Hollywood parece ter a exclusividade. Os seus filmes, todos filmes de aventuras, narram acções apaixonantes, e os críticos só viam neles o protótipo de obras bem feitas e perfeitamente distractivas.

Ora de uma dezena de anos a esta parte, graças à visualização dos seus novos filmes e à reposição dos antigos, os jovens cinéfilos e os críticos competentes voltaram a pô-lo no seu lugar verdadeiro: como um dos maiores.

Raoul Walsh revela ser de facto o cineasta da aventura mas no seu sentido mais profundo, pela graça de uma mise en scène cada vez mais refinada. É por isso que em Ester e o Rei lhe interessa visivelmente, não a magnificência do espectacular que a grande mise en scène bíblica permite, mas antes a aventura dos homens e das mulheres naquilo que têm de maior em si mesmos quando a sua paixão se confronta. Ester e o Rei é a tragédia intimista de duas almas nobres separadas por tudo e que no entanto vão vencer as resistências para fazer triunfar o seu amor.

Raoul Walsh é realmente um dos nossos grandes poetas do cinema. Ninguém soube pintar o mar melhor que ele. É incontestavelmente o poeta do oceano e «o grande sonhador da água», como diria Bachelard. Em cada uma das suas obras, o mar prolonga os estados de alma das personagens. Walsh é também um cineasta da eficácia e da simplicidade. «Não há trinta e seis formas de filmar alguém a abrir uma porta», diz ele, «há só uma.» O milagre requer que a câmara esteja sempre no sítio onde tem de estar, mas esse sítio nunca é o mesmo nos diferentes filmes. Porque o segredo que Raoul Walsh possui ao mais alto grau é o de saber que realmente há apenas uma forma de rodar um plano, mas que esta depende da ideia original que preside à mise en scène e portanto à própria concepção do tema.

in «Arts» nº 825, 7 a 13 de Junho de 1961.