sábado, 23 de agosto de 2014

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Lauren Bacall, actriz:


To Have and Have Not (1944) de Howard Hawks


The Big Sleep (1946) de Howard Hawks


The Cobweb (1955) de Vincente Minnelli


Written on the Wind (1956) de Douglas Sirk


Designing Woman (1957) de Vincente Minnelli


The Shootist (1976) de Don Siegel

João Bénard da Costa sobre os seus encontros com Lauren Bacall: A abelha morta mordeu em Lisboa.


"Slim" já não era quando, vinda de Tróia sem falar de Helena, pousou na Cinemateca, no Verão de 1993. Também não vinha vestida com uma saia-gabardine e um sweater, como Hawks conta que a conheceu.

Cinquenta anos é muito ano, sobretudo para as estrelas que imaginamos sempre alimentadas a néctar e a ambrósia. Ver Lauren Bacall aos 69 anos e não aos 19, de olhar velado e não cortante, de vestido preto com decote em bico, clássico e senhorial, "sans réparer des ans l'irréparable outrage" não é fácil. Mas - carnes do ofício - para esse choque já estava preparado. Mas - carnes do ofício - tocar em Lauren Bacall, falar com Lauren Bacall, era sempre mais, muito mais, do que alguma vez havia pedido.

Por qualquer razão, de que já não me lembro, ela não podia chegar à Cinemateca às 6 e meia, hora da sessão com To Have and Have Not (Ter ou Não Ter), de Hawks que tinha programado em honra dela e não podia ficar até às 8 e 10, hora do fim do filme.

Propus-lhe - sem dizer água vai ao público - que entrasse na sala depois da cena famosa do "just whistle" ("basta assobiar"). Tempo para ela escrever no "livro de honra": "It is a privilege for me to be received in this impressive house" ("É um privilégio para mim ser recebida nesta extraordinária casa") - "line" impensável num filme de Hawks -, tempo para ela beber um Porto "porque a si lhe apetece um copo e eu tenho que dar o sinal". Depois, ainda esperámos alguns segundos junto à porta traseira do cinema. Ambos ouvíamos o diálogo e Lauren disse-me: "Desta vez, ela vai virar-me as costas a mim e não a Bogey." Não era só eu que sabia que na tela estava "outra". Mas as luzes acenderam-se, Lauren entrou e a sala à cunha festejou-a com uma das mais delirantes standing ovations (aplausos de pé), que recordo na Cinemateca. Quando se fez silêncio, falou de preservação dos filmes e do combate que, nessa altura, lhe era prioritário: contra a colorização dos filmes a preto e branco. Para ela, aí se separavam as águas entre quem gosta de cinema e quem não gosta. Para mim, também. Depois, os troianos, já asseabrados, organizaram-lhe um jantar impossível. Não pus lá os pés mas ouvi-lhe os comentários. Apropriados.

No dia seguinte, Mário Soares convidou-a para almoçar em Belém, num daqueles almoços em que ele é mestre e que era, em tudo, o oposto do jantar da véspera. Modestamente, atribuo ao cargo o lugar à direita de Lauren, com o Presidente entre ela e Amália. Herman José, Beatriz Costa, também estavam na mesa de honra com os representantes da América (na altura, não havia embaixador).

Foi nesse almoço que vi "aquela espécie de insolência" que deslumbrou Hawks e seduziu Bogey. Herman José falou-lhe das memórias mas tinha aprendido mal a lição e, em vez de By Myself (Na Minha Opinião), julgava que o título era Be Myself (Ser Eu Mesma). Fez-lhe uma digressão elogiosa sobre a lição contida na última expressão e disse-lhe que se esforçava, como ela, por ser sempre ele mesmo. "Who said That?" ("Quem disse isso?") perguntou-lhe, de olhos semicerrados. Espantadíssimo, Herman citou-a. "Não me lembro de ter dito isso." Fui em socorro dele e expliquei o equívoco. "I hate misquotations" ("Detesto citações erradas") foi o gélido comentário.

Depois, foi a minha vez. Contei-lhe a história da púdica tradução portuguesa "Depende do jockey" para a réplica que deu a Bogart quando este a comparou a uma égua selvagem ("It depends who rides me" - "Depende de quem me monta"). Mas troquei os títulos e falei-lhe de To Have and Have Not. Riu-se e comentou: "É uma boa história, mas essa cena não é de To Have and Have Not, mas de The Big Sleep ("À Beira do Abismo"). "Tive vontade de me sumir debaixo da mesa. Só consegui dizer-lhe "And you hate misquotations" ("E você detesta erros de citação"). "I do" ("Detesto"), ouvi.

No fim do almoço, já à porta do Palácio, demorou-se numa conversa de trapos, deixando o Presidente à espera. Herman José, que tinha comprado um belo carro de sport descapotável, deu algumas voltas ao pátio, com toda a gente a rir. Excepto ela, que lhe chamou exibicionista e moralizou sobre luxos de ricos num mundo de pobres. Depois, quando achou que era tempo e sem fazer caso dos discretos sinais dos diplomatas americanos e da visível impaciência de Mário Soares, enfiou-se na limusina. À despedida, ofereci-lhe um retrato de Bogart que ela tinha visto na véspera na Cinemateca e me disse não conhecer. Foi só nessa altura - acreditem-me ou não - que o olhar dela se tornou finalmente igual ao olhar com que devolveu a Brennan a pergunta célebre: "Já foste mordida por uma abelha morta?", em To Have and Have Not, e, desta vez, se ela me ler, não há misquotation (erro de citação).

in Suplemento Vida, 7 de Fevereiro de 1997, págs. 21 e 22

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Double-bill (XIX)


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Put your lips against: Bogey e "Slim"


por João Bénard da Costa

É já no próximo domingo, día 10 de Dezembro, que, pelas 15h30, Humphrey Bogart e Lauren Bacall voltam a ser "pendurados" no ecrã do Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian para a visão, ou revisão, dos primeiros filmes que fizeram juntos: To Have and Have Not (1944) e The Big Sleep (1945). Double feature, duplo facto.

Bogey tinha 45 anos durante as filmagens de To Have and Have Not se é verdade, contra a lenda, que não foi o Menino Jesus quem o pôs no sapatinho dos pais no Dia de Natal de 1899, mas nascera a 23 de Janeiro do mesmo ano, sob o signo do Aquário. Era já celebérrimo, embora estivesse longe de o ser tanto como hoje é, quase 33 anos depois de ter morrido, a 14 de Janeiro de 1957, de "um cancro no esófago e meio milhão de uísque" segundo o requiem célebre de Bazin.

Lauren Bacall nascida a 16 de Setembro de 1924, sob o signo da Virgem, tinha 19 anos e nenhuma câmara de filmar olhara jamais para ela. Nessa altura, chamava-se Betty Joan Perske e fora capa do "Harper's Bazaar" no número de Natal de 1943.

Do modo como passou de Betty Joan a Lauren, de Perske a Bacall e de modelo a instant star, conta hawks, inimitavelmente. Preguiçoso e metido em Hawks até ao pescoço, limitei-me a traduzi-lo.

"Bacall teve de passar por quatro meses de treinos tramados antes de me decidir a dar-lhe o papel de To Have and Have Not".

"Vi o retrato de Bacall na capa do 'Harper's Bazaar' e a minha secretária enganou-se e mandou-a vir de Nova Iorque. O que eu queria era saber que género de background tinha ela, se tinha estudado e aonde, se já tinha representado e com quem, o que é que tinha feito. Em vez de me trazerem isso, trouxeram-me ela.  De surpresa, a miúda entrou-me pelo gabinete, com uma saia-gabardine e um sweater. Tinha apenas 19 anos. Tinha uma voz levemente anasalada e um bocadinho esganiçada. Mas estava tão ansiosa, queria tanto trabalhar e mais isto e mais aquilo, que não fui capaz de a mandar para casa. Senti que tinha de lhe dar uma possibilidade. Disse à minha secretária: 'Ouça, arranje-lhe um carro, leve-a a meia dúzia de estúdios e depois mande-a passear'. Mas ela não quis ir a estúdios nenhuns. Queria era começar a trabalhar e já. E tive de lhe dizer que andava à procura de uma rapariga sofisticadíssima, e que esse género de raparigas, no cinema, não costumavam ter vozes anasaladas, nem em falsete. E disse-lhe: 'Você nunca vai ser capaz de dizer os diálogos que já tenho, de maneira aceitável'. Aparentemente, as minhas palavras não a incomodaram nada. Perguntou-me: 'O que é que devo fazer para mudar de voz?' Respondi-lhe: 'Não sei. Tudo o que lhe posso dizer é o que o melhor actor com quem já trabalhei, o Walter Huston, me contou sobre o modo como conseguiu a voz que tem'. Talvez se lembrem que Walter Huston, da primeira vez que cantou num filme, gravou um disco de que se venderam milhões: September Song. Fazia o que queria com a voz. Expliquei-lhe o que o Huston tinha contado e ela desapareceu durante três semanas (…)"

"(…) Passadas as três semanas, apareceu-me: 'Hello, how are ya?' (voz funda e cava). Comecei a acreditar nela".

"Nessa altura, costumava dar umas festas em minha casa, todos os sábados à noite. Convidei-a. Andou por ali, a certa altura saiu, e quando a festa acabou vi-a na rua, à espera. Tive que lhe dar uma boleia até casa dela. Disse-lhe: 'Não é capaz de arranjar uma boleia, para eu me poder embebedar à vontade e não ter que me preocupar em trazê-la a casa?'. Respondeu-me: 'Não tenho lá muito jeito para lidar com homens'. 'O que é que faz, trata-os bem?'. Disse-me que os tratava o melhor possível. Respondi-lhe: 'Talvez seja esse o seu mal. Porque é que não experimenta não os tratar bem? Porque é que não experimenta insultá-los?'".

"No sábado seguinte voltou e, a certa altura, apareceu-me com o ar de gata que já tinha comido o canário. 'Vou-me embora. Arranjei uma boleia'. Perguntei-lhe o que é que se tinha passado e ela disse-me: 'Insultei o homem'. 'O que é que lhe disse?'. 'Perguntei-lhe onde é que ele tinha arranjado aquela gravata. Ele quis saber porque é que eu queria saber. Respondi-lhe que era para poder dizer aos meus amigos que não pusessem os pés em tal loja'. 'Oh', disse eu, 'quem é o homem?', respondeu-me: 'Clark Gable'".

"Na segunda-feira seguinte, fui ter com Jules Furthman (co-autor do argumento de To Have and Have Not, a meias com Faulkner e com Hawks) e perguntei-lhe: 'O que é que achas se a rapariga do filme for insolente, tão insolente como Bogart? Achas que se ela insultar as pessoas e tiver sempre um risinho trocista, o público vai gostar?'. Furthman perguntou-me onde é que eu ia arranjar uma criatura assim. Respondi-lhe: 'Não sei, mas podíamos começar a tentar desenhar um personagem desse género'. Achou graça à ideia e começámos a construir o personagem. Entretanto, eu comecei a ensaiar esse género de cenas com Bacall. Trabalhou que nem uma moura. Uma das coisas que fiz foi dar-lhe uma das cenas de que mais gostava e pedir-lhe que a estudasse. Quando ela apareceu, perguntei-lhe: 'Já sabe a cena?'. 'Yeah'. 'Sabe-a mesmo bem?'. 'Acho que a sei menos mal'. Disse-lhe então: 'Pois é. Mas, entretanto, mudei de ideias. A rapariga do filme deve falar com sotaque espanhol. Diga o diálogo todo com sotaque espanhol'. Respondeu-me que não sabia falar com sotaque espanhol. Disse-lhe: 'Não lhe estou a perguntar se sabe ou não. Estou a mandá-la falar com sotaque espanhol'. Falou tão mal que eu desatei aos berros e depois às gargalhadas. Perdeu a cabeça e chamou-me filho da mãe. Interrompi-a: 'Páre com isso. Peça 50 notas à minha secretária. E depois faça o que eu lhe digo: vá ter com alguém que a ensine a falar com sotaque'. Respondeu-me: 'Vou'. Da próxima vez que me apareceu, disse-me que já era capaz de fazer a cena. Respondi-lhe: 'O pior é que mudei de ideias, outra vez. Quero uma sueca'. Nunca a deixei ler o diálogo da maneira como ela o tinha trabalhado. Teve de aprender sete sotaques diferentes. Quando já não podia mais, tudo quanto eu lhe pedisse deixava de ser problema. Já era capaz de fazer fosse o que fosse. Cada vez estava melhor e melhor. No fim, disse-lhe: 'Vou-te dar o papel da protagonista'. Toda a gente me disse que eu estava doido. Mas ela conseguiu tudo e tornou-se numa estrela de um dia para o outro. Tudo estava naquela espécie de insolência. Uma insolência como nunca fora vista. Ou fora, mas o público já não se lembrava. Porque Marlene Dietrich veio ver-me. Não lhe vou contar o que ela me chamou, só lhe digo que me perguntou se eu sabia que Lauren Bacall era ela, há vinte anos. Respondi-lhe: 'Sei muito bem. E daqui a vinte anos há-de aparecer outra com a mesma insolência (…)'".

Durante as filmagens, Bogey e Bacall, tratada por "Slim", que era o petit nom que Hawks também dava à mulher com quem então era casado (Nancy Raye Gross, que em 1947 foi classificada "The Best Dressed American Woman"), apaixonaram-se. Casaram-se depois do filme.

Quando Joseph McBride - cujo livro-entrevista Hawks on Hawks tenho vindo a citar - lhe perguntou que tal foi, o realizador respondeu: "Quando dois actores se apaixonam um pelo outro, não é nada fácil trabalhar com eles, garanto-lhe. Mas Bogey foi maravilhoso. Tinha-lhe dito que ele tinha de a ajudar. Ao fim de alguns dias, começou a ficar bem apanhado pela rapariga. É claro que a ajudou cada vez mais. E não foi difícil, para nenhum deles. Descobriram que o público ia gostar dela e que o papel não lhes ia fazer mal nenhum. Durante todo o filme, ela andou a pairar nas nuvens. Infelizmente, não foi suficientemente esperta para continuar no terceiro filme (Confidential Agent, de Herman Schumlin) o que fez nos dois comigo. Esqueceu-se de tudo quanto eu a tinha ensinado. E não teve Bogey a ajudá-la (foi Charles Boyer o par de Bacall nesse filme). Vi o filme e fiquei horrorizado. Disse-lhe: "Bogey, não a ajudaste nesta coisa?". Respondeu-me que não. "Não a podes deixar à solta". "Betty" disse-lhe a ela "porque é que não te lembraste do que eu te ensinei?". "Acho que me esqueci", respondeu-me ela. Meu Deus, era pavoroso. Foi por isso que, a seguir, Bogey a ensaiou sempre e a obrigou a trabalhar mesmo com ele até ela conseguir ser outra vez boa. Tinha de "praticar" seis a oito meses para manter a voz "em baixo". Agora já lhe é perfeitamente natural. Mas o mais engraçado é que Bogey se apaixonou mais pela personagem dela nesses dois filmes do que por ela. Foi por isso que ela teve de continuar a representar durante o resto da vida.

No mais célebre diálogo de To Have and Have Not, Lauren Bacall diz a Humphrey Bogart que quando ele precisar dela, basta-lhe assobiar ("just whistle"). Depois, sai do quarto de Bogart, pára à porta, volta-se para ele e diz, com o tal celebérrimo "grin": "You know how to whistle, don't you? You just put your lips together and blow".

To Have and Have Not nasceu de uma aposta de Hawks contra Hemingway em como era capaz de fazer um bom filme do pior livro dele. Esse famoso diálogo foi escrito, entre gargalhadas, por Faulkner e Furthman, com Faulkner a achar que estava a pregar a Hemingway a pior partida que já lhe pregara. Aquilo, escrito, parecia-lhe o mais puro nonsense. Hawks pediu-lhe que esperasse e visse. E quando Faulkner viu Bogey e Bacall nessa cena, esfregou os olhos e não quis acreditar. O nonsense é o mais espantoso diálogo da mais espantosa cena dos dois actores. Quando se casaram, Bacall mandou gravar na aliança de Bogart "just whistle". Lá ficou, até que a morte de Bogey - doze anos depois - os separou. Só nessa altura, deixou de haver, para Bacall, "nothing that you can't fix", última réplica do segundo e último dos filmes de Hawks-Bogart-Bacall: The Big Sleep.

in Muito Lá de Casa, crónica no Suplemento Vida do Semanário Independente, 7 de Dezembro de 1989