segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A melhor canção do mundo!

RIO BRAVO


por Jorge Silva Melo

Ao Manuel M.
y muchas gracias

Se há filmes que me fizeram mal?
Este.
Rio Bravo.
Mal em tudo: na vida, nos amores, na profissão, quando penso em fazer um filme, quando me ponho a escrever uma história, quando vou ao cinema, naquelas horas plenas (e ainda tão raras!) em que posso filmar ou trabalhar.
Ah, não o tivesse eu visto. Nunca visto.
(Pensava nisto ontem à noite: quem seria eu se naquela tarde de domingo, há muitos anos muitos anos, não tivesse ido com o meu pai - com o meu pai! - aqui mesmo ao lado, ao cinema Europa, então cinema e então cinema de reprise? Teria ainda cabelo?
Saber-me-ia vestir? Teria cartão Multibanco? Teria já lido o Quijote? Ou saberia de cor passagens do Saramago? Quem teria eu sido se...).
E neste se, Rio Bravo.E a estupidez é esta: comovido sempre a olhar para aquilo (mesmo nesta inacreditável cassete vídeo que para aí vendem, com grão e chuva e tão descafeinada como agora os cafés mais caros), eu acredito em tudo o que lá está. Este filme tomou conta de mim - e não há alho nem cravo que me afaste este vampiro aqui mesmo cravado.
(Então fui propôr-me para escrever sobre ele?)
E olho-o de novo.
E aprendamos.

1. Que o cinema é uma coisa simples.(É).
Não falemos da primeira (admirável) cena - por agora. Mas um nadinha mais para a frente. Já lá vão dez minutos de filme. Já sabemos mais ou menos quem são John Wayne, Dean Martin, Ricky Nelson, Walter Brennan... Mas ainda não percebemos bem qual é o problema principal, qual a acção que vai reunir aquela gente toda num gesto único e comum. Então não é que, num plano largo, Ward Bond se junta a John Wayne, se vão os dois encostar à entrada de uma casa (Bond de pé, Wayne sentado), Bond diz umas coisas que acabam por What is it all about? (!) e Hawks corta? Como quem ao fim da mais banal das frases mete dois pontos para continuar. E aproxima dos dois. E num longo plano (mas devem ser duas as takes), cortado apenas por um ponto de vista sobre o inquietante movimento na cidadezinha, John Wayne responde à entrevista. Bond de pé, mais ou menos imóvel; Wayne sentado, agitando-se e olhando para todos os lados. E o texto são as informações necessárias para o prosseguimento da intriga. Acaba o racconto, corta: a câmara colocada mais atrás - como na introdução à cena. E os dois interlocutores - quando digo interlocutores é de propósito para não dizer protagonistas, pois é diálogo e não acção o que aqui frontalmente se nos apresenta - afastam-se e lá vão à sua vida.
Ó homérica simplicidade!
Quando qualquer aprendiz de argumentista ou artista cineasta (e eu próprio, que bem prega Frei Tomás!) ao chegar a este momento do filme (o terrível fim da primeira, início da segunda bobina), todos se arrebicam para deixar passar as informações como quem não quer a coisa, quando uma das mais apreciadas capacidades profissionais da mise-en-scène - ou da escrita - é precisamente o evitar com habilidade e estilo a posta de informações que todos sabemos que são necessárias - eis Hawks mergulhado a fundo (aprendamos! vejamos!) naquilo que a tradição romanesca e teatral vinda do naturalismo mais rejeita.
Ó admirável conversa!
Ó admirável simplicidade de planificação!
Não estamos aqui para brincar.
E para Hawks o cinema tem de comum com a linha recta ser a distância mais curta entre dois pontos.
(A evidência da mise-en-scène tão louvada e descoberta nos Cahiers de outros tempos).
Filmar é pôr a câmara diante de. E filmar.
Depende do assunto, é claro.
E a gente, mais filhos do Ulisses (mesmo nunca lido) do que da Odisseia (e quem a leu?), a vergonha que tem!
Mas será verdade que o cinema se compadece deste pudor? E será pudor ou falta de frontalidade?
Também na vida. Porquê tantos olhares de esguelha, tanta palavra falsa? Tanta pequenez?
Não podíamos viver com mais hombridade?
Parece que não.
É pena.
(Mas é também se calhar por isso que este filme é assim bonito; porque nele se desenha isso mesmo: uma utopia).

2. Que a vida é a dois.Há, é claro, a cena do terraço da Viagem em Itália (Tempio dello Spirito!). E há a cena do cigarro nos Only Angels; e a pancadaria John Wayne - Montgomery Clift no Red River.
Mas há esta cena qui. E viesse Mephisto e se calhar eu cedia-lhe não à procura da juventude ou da Gretchen de tranças (que ideia!) mas só para saber viver assim.
Está lá o Dean Martin e torce-se de dores por falta de álcool. Vai sair - quer beber.
(Beber para esquecer, beber para beber, beber para chamar a Lei, beber para se humilhar...).
O momento é tenso.
E Wayne sabe que Martin se perderá se beber.
Anda daí dar uma volta.
À noite?
Travelling e travelling. Martin num passeio, Wayne noutro. Noite de silêncio. Uma daquelas bolas de ramos vindas do deserto e do departamento de adereços liga o campo e o contra-campo antes de emigrar para o western-spaguetti e se tornar num produto regional de Almeria. Silêncio, noite, ruídos ao longe, um batente que range, Wayne que pára, Martin que atravessa a rua e depois o burro que surge atrás de Wayne.
Anda daí dar uma volta.Ainda no outro dia me disseram isso e não era por eu ir beber mas porque era noite e a vida se complicara, e o dia fora turvo e a esperança estava longe.
Este ideal (tão burro! tão estupidamente católico!): saber do outro, estar disponível para o outro, saber encontrar não tanto a palavra certa, mas o gesto. E se fôr preciso ir noite fora de um lado e de outro do passeio inventando uma missão (ver onde é que estão os maus, dactilografar um texto de promoção, fazer os telefonemas chatos, colar fotografias, meter unhas, dar ordens duras e, se fôr preciso, ameaçar partir a cara!).Estar disponível.
(Estar intolerantemente disponível).
Uma história que podia ser de Hawks e que foi verdade uma noite parva e eram umas quantas pessoas e entre elas a Maria Paola. Noite parva de automóvel, eu suspiro e digo a parva frase: Apetece-me ir a Nova Iorque. E a Maria Paola acorda da sonolência em que estava perdida, levanta-se e diz com o seu tão querido sotaque: A que horas? Pronta a partir, disponível, e podia não ser Nova Iorque mas porque não a Costa da Caparica. Amar assim: intuir o que de mais fundo há no desejo do outro. Não adiar este amor (esta acção: o coração) para outro século.
Estar assim contigo.
Anda daí dar uma volta.
(A que horas?).
Adivinha: qual é a mais bela sequência musical da história do cinema? Resposta: Oh whiskey leave me alone do Big Sky! (E ainda há quem torça o nariz perante Kirk Douglas!).
Haverá provavelmente cenas na filmografia de Hawks e no próprio Rio Bravo onde esta pontaria comum, este incontrolado encontro com o outro, este impertinente estar à disposição (é isso a Graça?) serão mais espectaculares.
Desde logo a cena 3, quando Dean Martin vem em auxílio de Wayne. Ou o perpétuo e vigilante resmungar de Brennan. Há a redenção do aviador culpado no Only Angels; há o Brenan de To Have and Have Not; há o he wasn't good enough de cary Grant nos Angels; há, é claro, os vasos que a Dickinson maneja lá para o fim do Rio Bravo.
Hawks já nos dissera que a vida é subir um rio mesmo a custo de um dedo amputado; já nos dissera que é levar o gado ao longo do Chisholm Trail e que a amizade passa inevitavelmente por uns quantos murros sem piedade. Mas o que me comove nesta cena sublime é que é uma rua, dois travellings paralelos, um figurante, uma bola de ramos secos, um burro.
Quem não acha que é para isso que muitos foram chamados e tão poucos os escolhidos?
É claro que é uma sequência impossível.
A guerra deste lado do Atlântico, o cataclismo literário dos muitos modernismos, a nossa própria situação de inconscientes vencidos não nos permitem esta plenitude viril.
E quando Rossellini ataca este amor do outro é nesse nervoso, trágico, tocado pela Graça, ansioso Europa 51. Simone Weil (a da Pesanteur et la Grace!) - ou Graham Greene nesse esquecido (e tão lindo!) The End of the Affair. Ou é a Chantal de Bernanos (La Joie).
Talvez seja então ecologista este olhar nostálgico por essa civilização viril e perdida para nós, entrevista apenas na noite eterna dos cinemas.
Mas não é possível vivermos só neste frágil e pleno Anda daí dar uma volta?

3. O cinema é espaço comandado pelas personagens.Quando me perguntam - e ainda ontem, ali ao pe dos Correios - então e Teatro? e eu respondo era o que mais faltava tem a ver com tudo o que atrás se diz mas também com isto: a grande chatice do teatro é que temos que ver todas as entradas e saídas das personagens! Ou entram pela esquerda, ou pela direita, ou às escuras, ou atrás do pano... Mas têm que entrar e uma das artes da encenação (palmas al signor Strehler!) é a habilidade com que as entradas e saídas se fazem como quem não quer ou quer a coisa.
Entradas e saídas que estão bem marcadas nas formas mais rígidas (mais indispensáveis?) do teatro: quantos compassos para a entrada de Suzanna no Acto II das Nozze? Nem mais um passo. Como nem mais um verso para que Fedra ou Hipólito cheguem do fundo à boca de cena.
Mas vejamos a beleza pura - a pura beleza - da chegada de Dean Martin na cena 3 de Rio Bravo. Plano 1: Joe Burdette (o mau) entra no segundo saloon; Plano 2: aproxima-se do balcão - travelling à frente que aconchega a cena; o dono do saloon olha para a direita, Joe segue o seu olhar. Plano 3: John Wayne entra, avança (travelling), ameaça, um outro defende Joe - no travelling perdemos de vista a porta mas atrás de Wayne vemos uma janela onde um vulto e depois outro passam da Esquerda para a Direita. Plano 4: contracampo: Joe Burdette. Plano 5: a entrada. E, encostado à porta de batentes, ao fundo, já está Dean Martin (ninguém o viu entrar, nem na montagem sonora se preocuparam a justificar com um ranger de gonzos pouco oleados, nem sequer no plano a porta está a balançar como que justificando a recente entrada..). E está lá porque é necessário. Entre o verosímil e o necessário, Hawks prefere o necessário (é a mesma escolha que fez na découpage da cena de Ward Bond - John Wayne...). E isto deve-se ao profundo entendimento da realidade ontológica da imagem cinematográfica - que torna o necessário em verosímil como Aristóteles nunca o teria pensado.
Agora que o chamado cinema de acção (o que eu mexo e remexo nas cadeiras!) gasta pelo menos um terço da película em mostrar os protagonistas a entrar e sair de portas, de automóveis ou acompanhando-os timtimportimtim rua afora (e, Pimba!, música) - e lá porque é em décors naturais os sócios dos vídeo-clubes (e os seus patrões - que assinam os recibos na auto-proclamada qualidade de críticos, pobres servidores que são do estado das coisas...) julgam que é cinema, o bem que sabe olhar para estas entradas em cena dos protagonistas de Hawks! Já viram? Não é o espaço que o cinema reconstitui como se as câmaras fossem um Lego sofisticado e só à disposição de alguns mas tendo como fim a reprodução. É sim a necessidade do outro. Por isso Dean Martin está no sítio onde já se viu segundos antes que não estava - nem tempo teve para entrar. Porque Wayne precisa dele. E o cinema permite (e essa é a sua lei material e bela) saltar portas, enganar o tempo, matar a matéria. Ao desejo e vontade das personagens... Mas olhemos para as entradas das cinco personagens principais deste Rio Bravo. Primeiro plano: uma porta abre-se e Dean Martin entra. Irresistivelmente atraído mas como quem pede desculpa. trazendo já no corpo, no fato (genial a figurinista! Aquele casaco sobre a camisola interior que lhe deixa o peito suado e nu - só isso valia um artigo; ou um beijo) as marcas da sua desgraça. O plano é lento (como são quase todos os planos de Hawks, que, americano, não é tão estúpido como os europeus que pensam que os americanos andam sempre a correr atrás de um tal ritmo que não vêem que é tantas vezes demoradamente atento e não ansiosamente apressado), Dean Martin entra e olha.
Não vemos como John Wayne chega. Um pontapé no escarradouro trá-lo até nós. E logo para ser visto com a câmara à altura do olhar de um homem (acocorado): Para Dean Martin, Wayne é um gigante e do fundo da sua miséria física e social, ele só pode olhar para Wayne em contrapicado.
Também não vemos como chega Brennan. Está lá. Atrás da porta da cadeia, vigilante, desobedecendo às ordens que Wayne lhe dera e resmungando interiormente, pronto a salvá-lo mas nunca a dizer o que lhe vai (e se vai!) no coração! É Ricky Nelson quem o vê antes de nós.
Pelo contrário, Ricky Nelson é-nos apresentado. É Ward Bond que o designa a Wayne. E a câmara corta como quem faz dois pontos e lá vemos Colorado imóvel e insolente em cima do seu cavalo. Mas o que é bonito é que Colorado se revolta com a sua situação de objecto da conversa dos outros (de referente). Também sei falar inglês, diz o simpático (eu gosto) rapaz. E, imóvel, arrogante, com um sorriso irónico e indolente, esuivo e frontal, ficamos a saber quem é Ricky Nelson. O que é divertido é pensarmos que esta juvenil impertinência, este diálogo gato-rato que vemos sempre em Hawks quando o homem pleno encontra O Rapaz (Kirk Douglas - Dewey Martin no Big Sky; Wayne-Caan no El Dorado; Wayne-Blain no Hatari!, e claro Wayne-Clift no Red River!) é o mesmo tipo de diálogo, marota arrogância e picante erotismo que temos naqueles celebrados e merecidamente admirados momentos em que o mesmo homem pleno encontra A Rapariga (Has anybody here got a match?). Rapariga que não me lembro se alguma vez foi virgem (a Bacall virgem? ou a Prentiss? ou a Martinelli?), que quase nunca tem nome próprio mas responde quase sempre a inventadas e obstinadas alcunhas (aqui a Dickinson é Feathers como a Bacall foi Skinny e Martinelli They call me Dallas), que só nas comédias é casada (e mesmo assim que rico casamento o de Ginger Rogers-Cary Grant que precisa que Cupido ele próprio venha mesmo até à cama nesse admirável Monkey Business!) e repetidamente morre de cio (How do you like to kiss?, pergunta Martinelli a Wayne no Hatari! como a Prentiss a Hudson no Man's Favourite Sport?
Dickinson entra em vox off. Está Wayne com o dono do hotel e estão (ó sancta simplicitas!) a olhar para umas calcinhas vermelhas de senhora. É a voz de Dickinson (que, imagine-se, queria era tomar um banho!) que os faz olhar para trás. E passamos a perceber que vai haver gato.
Mas... a mesma découpage, a mesma mise-en-scène repete-se daí a nada. Está Wayne no quarto com a Dickinson e uma voz na porta. Olhares para a porta, corta: e é - acoincidência! - Ricky Nelson. Que da mesma maneira insolente e molengona (e agora vemos que é a mesma enérgica indolência da Dickinson cenas atrás - e não esqueçamos que entretanto os vimos juntos e não sabemos como é que eles se conheceram, gatos que são da mesma raça dedicada e rebelde, independente e atenta, disponível e amorosamente arisca...). E Ricky Nelson vem oferecer-se (por outras palavras, é claro!) a Wayne; como Dickinson. Como daí a nada - depois de desmascarar o batoteiro, vai oferecer Wayne a Dickinson que, ó santa mise-en-scène, ficou no alto a meio das escadas.
Talvez aqui se perceba o que queria dizer com o espaço estar à disposição das personagens. Wayne nasce da humilhação de Martin - é Martin quem do seu subterrâneo (de profundis clamando) o chama; e um íman vai ligá-os e fazer entrar Martin no segundo saloon quando Wayne, sem o saber, o deseja. Dickinson nasce da equívoca cena das calcinhas. E Ricky Nelson aparece por duas vezes a Wayne: à porta da cadeia, como eventual companheiro; à porta do quarto como tentadora juventude.
Wayne vai ter que decidir: continuar a viver, magoado, na sociedade viril em que se refugiou (e que tem o seu picante), ou voltar a aceitar o outro sexo (mesmo que esse outro sexo tenham como quem diz, pêlo na venta).
Ah, os homens apavorados que desistiram das mulheres em Hawks!
Bogart no Have and Have Not!
Wayne no Red River!
Pertencem a uma raça: à dos homens que perdem as mulheres por causa dos amigos. Há outra: a dos homens que perdem os amigos por causa das mulheres. Esta raça não entra no Olimpo de Hawks. (E quem nos livrasse dela!).
Se é verdade o que Hawks diz ao afirmar que quis fazer Rio Bravo num movimento de pura irritação contra O Comboio que Apitou Três Vezes isso tem a ver com isto mesmo: esta moral que é mise-en-scène. Um homem só não vale nada; e o sal da vida não é a razão de um homem - mesmo que santo como o Cooper - mas sim o que de um homem passa a outro. As marcas que um olhar, um gesto, uma acção, uma piada, um convite se deixam gravar no corpo e no destino de um outro. E a determinação que cada um de nós cria nesse outro.
Mas não sejamos piegas.
Para dizer quero-te as personagens de Hawks, amargas e modernas, só conseguem dizer vai-te embora (vejam a cena Wayne-nelson depois da morte de Ward Bond).
Porque não é a palavra a expressão mais curta.
Em Hawks é a abstracção do espaço - as linhas rectas que ele desenha nas pontes que vão de mim para o outro e que nada têm a ver com o pobre tédio das mesas de café mesmo bem rimadas.
É nessa clareza - desenho, limpidez, rectidão que as relações se tecem. E é curiosamente a palavra que adoravelmente complica tudo - vejam a Rosalind Russell de His Girl Friday!
Mas se a vida é a dois, e o cinema é o que vai de um a outro, a mise-en-scène é menos narrativa (qual a causa de que efeito) do que dramática (que se passa entre quem). E daí que sejam as relações das personagens mais - muito mais que a sua acção - o assunto eternamente encenado por Hawks.

4. A acção é expectativa.O cinema de Hawks é um cinema de acção. Porque é a acção e o gesto e a salvação das personagens. Redenção.
Mas a acção não é andar tudo sempre a correr aos tiros.
E, como na cena do terraço da Viagem em Itália, as personagens de Hawks encontram-se muitas vezes sentadas à espera. As noites de expectativa aqui em Rio Bravo (já falámos do passeio que culmina com o burro, há aquela sublime da cantiga!), como as noites nos bungalows de Hatari!, os acampamentos de Red River ou do Big Sky, os jantares dos Angels.
Diz-se que Hatari! foi filmado em dois tempos: as cenas de caçada primeiro; depois, toda a gente sentada no gabinete de escrita de argumentos (Leigh Brackett!) e escreveram-se então as cenas de bungalow, tentando dar uma intriga àquilo que era um documentário brilhante. Isto terá a verdade que estas histórias têm - mas quer dizer qualquer coisa. Dá realmente conta da escrita dos filmes de Hawks. Tempos de espera, tempos de acção. Sempre em grupo. Grupo que não se constrói facilmente - cada um parte ferido e solitário, apavorado e muito, muito desconfiado para esta estadia comum. E é a acção mas também o suor partilhado nestes longos tempos de espera em que nada se passa (mesmo que ao longe a música ameace como aqui em Rio Bravo!) que cimenta as relações. Hawks não é estúpido nenhum: e é onde nada se passa que ele gosta de desenhar o seu impávido caminho para o Outro.
já repararam que quase ninguém tem casa própria nos filmes de Hawks? (Nem as mulheres, tão donas de casa no american way). E que é em acampamentos e hotéis que tudo se entrelaça - nesses cenários onde ninguém existiu antes, onde não há marcas do passado das personagens mas onde os destinos se cruzam, se justapõem, se entrelaçam e se definem?
Hotéis do To Have and Have Not, dos Angels, do Red Line, do Rio Bravo, da Girl in Every Port ou do Man's Favourite Sport. Transatlânticos nos Gentlemen. Acampamentos no Hatari!, no Big Sky ou no Red River.
Espaços anónimos, encontros e estadas provisórios, que são aquilo que as personagens deles fizerem - e fazem.
E é aí que a atenção incessante de Hawks os não larga.
Se no microscópio as amibas têm interesse, no espaço criado por Hawks só os homens agem. Mesmo quando a acção é - e tantas vezes é só isso - expectativa, medo, corpos sentados noite fora entre o sono, o cio e o pavor.

5. O cinema inventou o campo - contra campo para alguma coisa.
Há um desses puritanismos por aí que despreza o campo - contra campo. Achando que é uma forma menor, que é uma facilidade de rodagem, que é no plano-sequência que se vê a pata da arte pousar do seu inegualável peso.
(Rossellini!).
Mas como filmar a sério isto que se passa entre dois homens? Aquilo que a pura presença (ou seja: presença activa) de um provoca no outro - aquilo que o gesto de um revela no outro, aquilo que o decide e faz mover?
Sejamos modestamente viris, é o que eu penso que diz Hawks.
Câmara para um, câmara para outro.
Se não se perceber que é o contracampo o desenho perfeito destas relações veja-se a primeira cena de Rio Bravo. Nem uma palavra. O contracampo define as relações entre Martin - Burdette e Wayne e não é como nas séries TV fórmula convencional para fazer passar o diálogo. Pelo contrário, nas cenas em que o diálogo é mais importante Hawks recorre muitas vezes ao plano pelo joelho em que dois (ou as mais das vezes três) personagens estão admiravelmente à mesma distância da câmara, alinhados e lá falam.
Não ter medo da simplicidade das formas.
Que é de homens simples (ou seja, bem complicados!) que aqui se trata.
E é esse o seu assunto: o peso do ser.
É por isso (eu diria: só por isso) que eu gosto do cinema.
Porque me dá conta disso porque sonho, porque aspiro.
Não sou eu que me posso salvar.
Alguém há-de vir para me dizer Anda daí dar uma volta.E viver assim os dias é (maldito filme!) esta espera.
Mesmo agora que há telefones.
(do catálogo 'Howard Hawks', editado pela Cinemateca Portuguesa)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Keep Movin' On

PROFONDO ROSSO (1975)


Movies are pieces of film stuck together in a certain rhythm, an absolute beat, like a musical composition. The rhythm you create affects the audience.

Unfortunatelly, he takes himself so seriously, these days. He's an artist now (sobre David Cronenberg, aqui)

John Carpenter

Il fallait de l'audace pour oser pasticher le lyrisme de ces deux films testaments en forme de calligraphies baroques. Le résultat est inattendu. Comme si Hongkong avait inventé son western-spaghetti, le Mizoguchi-spaghetti.

Louis Skorecki, sobre Raining in the Mountain

É difícil para muita gente transpôr - ultrapassar - a barreira do Género, a barreira do conteúdo, a que parece distinguir os pequenos dos grandes temas (e os pequenos dos grandes filmes). Parece fácil perceber quem faz disto o cinema, uma brincadeira - os realizadores de género - e quem abraça a coisa de uma forma mais séria - os "autores", os "artistas", os "realizadores". Isto, como é óbvio, é tudo exterior aos filmes, tem que ver com "credibilidade", com os meios e festivais que se frequentam, com as coisas que se dizem, com a "ambição" que se tem, com a sociedade, um bocado. Em termos de cinema, é muito fácil - e parece lógico, até - dizer que alguém como o Haneke é um artista e que o John McTiernan é um "gajo que faz filmes". Torna muito difícil perceber, se for caso disso, que o segundo é melhor cineasta que o primeiro, porque até pode ser verdade - e eu, por acaso, acho que sim; acho até que o Haneke nunca há-de fazer um filme tão prodigioso como o terceiro Die Hard. Isto tudo para dizer o quê? Que sim, talvez, tem-se muitas vezes por arte no cinema aquilo que nos fala de coisas "filosóficas", "profundas" (sem tentar perceber ou desenvolver bem esses conceitos), enfim, envolvidas numa paleta "austera" e "bonita" que um grande director de fotografia pode oferecer, muito própria para tertúlias "filosóficas" em que se martela e insiste no óbvio, com "de factos", "realmentes" e outras introduções pomposas de discurso. E isto é muito triste.. por isso é que é preciso dizer coisas como "ao melhor Haneke oponho o pior McTiernan".. mesmo não sendo verdade que Medicine Man seja melhor que Funny Games.. (e daí talvez até seja..)

Os filmes são coisas muito concretas, têm todos uma equipa, realizador, técnicos variados, sejam gravados em película ou digital. Vêm todos em latas de metal (a tendência é passarem a vir cada vez menos) e podem - devem! - ser comparados. Um filme é um filme.

Os temas sociais?

Isso. A televisão, felizmente para o cinema, recuperou uma grande parte dessas discussões, e hoje é a televisão que se deve encarregar, e é muito bem feito, de tratar os grandes temas, a sociedade, o bem e o mal, o racismo e tutti quanti. O que não quer dizer que os filmes se devam desinteressar do bem e do mal, do racismo, etc. Mas portanto Chabrol dizia, em traços gerais: é preciso pegar nos pequenos temas que não têm nada de especial e transformá-los em grandes filmes, em vez de pegar nos grandes temas e fazer com eles pequenos filmes!

(Jacques Rivette, em entrevista)

É preciso pegar nos pequenos temas e transformá-los em grandes filmes.


Dario Argento não tem grandes pretensões para além de levar uma cena, mesmo um plano, até às últimas consequências, é um cineasta de obsessões formais e criativas. Rítmicas. Sim, trabalhar um filme como se de uma composição musical se tratasse. Não me parece que quisesse (ou queira) reclamar um lugar ao sol, respeitabilidade ou grande recepção crítica. O prémio por fazer um filme é fazer o filme, não há segundas intenções. Se é mesmo assim ou não, não sei, mas há uma aura de artesanismo e amor ao trabalho que passa através dos filmes do italiano, por explosões de côr, travellings impensáveis, conjugação de som e imagem, música e cores, que se nos invadem e nos fazem crer nisso mesmo. Nuns mais que noutros, é verdade. Talvez mais neste e no La Sindrome di Stendhal, as obras-primas de Argento (com a certeza, ainda assim, de que tenho que ver alguns e de rever outros).

Mas o que advém disto tudo, é o acreditar-se nos pormenores mais recônditos de uma estória, de escavar e escavar (e escavar) a fundo no que ela pode oferecer. Andar em círculos dispostos em camadas até ao full circle, até ao fechar narrativo, onde tudo bate com tudo. Minuciosamente. Há uma cena, um dos círculos da estória que mostra Marcus (David Hemmings) a tentar desvendar a história da "casa assombrada". Argento, como Marcus, perde bastante tempo a desenvolver esse "desvendar" por estar absorto (e nos absorver a nós) em pormenores, justamente (diferentes pontos de vista, subidas de escadas, passos na escuridão, panos a cair, garrafas pisadas no chão, paredes e o que elas escondem). Não é a meta que interessa, é o caminho.. Depois de chegar a um dos pisos superiores da casa, Marcus pega numa lixa para ver o que esconde uma das paredes:








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Parece-me uma cena ilustrativa da força argentiniana: o escavar, a obsessão, a ponte entre Antonioni e DePalma (mais concretamente, Blow-Up e Blow Out), ter a perfeita noção e conhecimento dos conceitos e das formas com que se trabalha.. de perceber que tudo tem implicações, de explorar isso no fim com inteligência, sim, mas respeitando a nossa, também.

Dizia o Tarantino há uns tempos que já não via filmes em que surgiam dados novos a cada minuto que passava, porque havia medo de arriscar em termos narrativos (ou coisa parecida). Devia estar a pensar que já não se fazem filmes como este..

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012