segunda-feira, 7 de abril de 2014

THE MARK OF ZORRO (1940)


por João Bénard da Costa

Em 1941, The Mark of Zorro levou ao Odéon e ao Palácio meia-Lisboa adolescente e masculina sequiosa de ver o famoso Z, as cavalgadas de Tyrone Power e o celebradíssimo duelo final com Basil Rathbone. Mas levou outra meia-Lisboa, essa feminina e talvez menos adolescente, que ia para ver a única sequência tão famosa como o duelo: aquela em que Tyrone Power dança com Linda Darnell El Sombrero Blanco ("deja que te pona mi sombrero blanco / deja que te quite mi sombrero blanco").

Revendo, hoje, este soberbo filme, é fácil verificar que todos e todas tinham razão. The Mark of Zorro é um filme de duelos e danças (embora só haja um duelo e uma dança) com os primeiros coreografados como se fossem ballets e as segundas como se fossem combates. Em nenhum momento do filme, temos tanto a sensação da dança (coreografada ao milímetro) como no duelo entre Power e Rathbone; em nenhum momento do filme temos tanto a sensação de combate (através de uma astuciosíssima montagem dos brief shots que foram apanágio de Mamoulian) do que na sequência do Sombrero.

Em qualquer delas, Tyrone Power é subvalorizado pelos seus pares que, nem num momento nem noutro, sabem que têm diante de si o famoso Zorro. Quer Linda Darnell, quer Basil Rathbone o julgam como Diego Vargas, mole, peralta, e incapaz de muitos feitos quer com mulheres quer com espadas.

Na sequência do Sombrero, Linda Darnell, ainda envolta na perturbação que lhe causara a descoberta do Zorro no suposto Frade, está desconsoladíssima com o futuro marido que os tios lhe arranjaram. Não disfarça, durante o jantar, nem o enfado, nem a agressão. O comportamento de Tyrone Power só lhe reforça esses sentimentos. Até que o grupo local começa a tocar e, a instância dos tutores, tem que aceder, muito a contragosto, em dançar com Diego. E bastam dois grandes planos dos pés deste, três planos em que ele a agarra e dois curtos planos gerais, para que aquela mulher se sinta transportada ao sétimo céu. Raras danças, no cinema, foram tão eróticas e tanto exprimiram essa carga. A expressão de Lolita roda 360 graus, tantos quantos os dos movimentos que Tyrone Power com ela conjugou. E quando a dança acaba, só consegue dizer: "I never dreamed dancing could be so wonderful". Senhor da sua vitória, Tyrone Power (regressando à imagem de Diego) responde-lhe secamente: "I found it rather fatiguing". E nova meia volta de Linda Darnell, desta vez para, furiosa com tal réplica, sair de cena e se fechar no quarto.

Igualmente, no grande duelo com Rathbone, este está longe de imaginar (como, de resto, o alcaide) que é Zorro quem tem na frente. Progressivamente irritado com Diego, desafia-o com a certeza da vitória. E é durante o duelo - tarde de mais - que percebe quem tem na frente. E o duelo - como um ballet - divide-se em três planos (níveis, é melhor para não fazer confusão). Aquele soberbo início com o "Ha! Ha!" de Rathbone e o corte de luzes (gesto repetido, em torno das velas); o duelo, propriamente dito, em que um e outro rivalizam em elegância; e a morte de Rathbone, com o coração atravessado, arrastando na queda o quadro que ocultava o Z que Tyrone Power tinha desenhado na parede, da primeira vez que, como Zorro, visitara o alcaide. Só então este - única testemunha do duelo - percebe que Diogo e Zorro são um só e o manda prender, julgando, efemeramente, ter morto dois coelhos com uma só cajadada.

Essa aura balética que envolve este inspiradíssimo filme é anunciada desde a primeira sequência, quando, ainda em Espanha, vemos os planos dos esgrimistas, também coreografados ao milímetro. Da dança - sempre os brief shots - passamos à aventura, quando vemos Power pela primeira vez, na prova hípica. Logo a seguir (perfeita solução de continuidade) Diego anuncia aos amigos que parte para a Califórnia. "What will you do with your sword, there", perguntam-lhe. "This", responde Tyrone e a espada crava-se no tecto (plano repetido no final). Três breves sequências, e o espadachim romântico está definido.

Rouben Mamoulian, bem sabia, quando lhe encomendaram o Zorro, que "toda a gente" iria comparar este filme com a lendária obra de Fred Niblo, com o mesmo título e baseada no mesmo romance, realizado em 1920 e em que Douglas Fairbanks tivera a sua mais aclamada criação. Teve a suprema inteligência (que já não assistiu a Don McDougall na mais recente adaptação, a de 1974. com Frank Langella) de não procurar competir com o filme de antanho. Se este insistia sobretudo no carácter vingador de Zorro e em Fairbanks embuçado (o lado mistério), Mamoulian ficou-se sobretudo na aventura e no desenho, procurando, acima de tudo, o divertimento e não o "suspense". Nunca duvidamos (nunca nenhum espectador duvidou) que Tyrone Power saia incólume de todas as suas aventuras. O próprio Power - permanente sorriso, permanente à vontade, permanente "jogo" - também jamais duvidou. E, como bem notou um dos melhores exegetas de Mamoulian (Tom Milne), a primeira coisa a notar é quão pouco Zorro actually does. Quase tudo o que nele é ameaçador, é sugerido por breves apontamentos, quase tudo o que o caracteriza - como Zorro - é mostrado "por rápidos movimentos de câmara na semi-obscuridade da paisagem".

Apetece-me prosseguir essa nota de Milne a notar que o mesmo se passa nas múltiplas (e brevíssimas) conotações eróticas do personagem. Para começar este assume, à chegada à Califórnia, um lado quase se podia dizer efeminado que serve de espelho e réplica ao sofisticadíssimo (mas sexualmente neutro) Rathbone. Depois, deixa-se aparentemente envolver nas fantasias da mulher de meia-idade que é D. Ines Quintero - magnífica Gale Sandergaard - a quem dedica, até, uma idílica cena campestre. Mas não lhe escapou - rabo do olho - a sobrinha, pela primeira vez entrevista no jardim, de mantilha e com cruz ao pescoço e gato ao colo, num soberbo aproveitamento da profundidade de campo.

Prodigioso lugar de equívocos é a sequência na capela quando, disfarçado de padre, ouve de Linda Darnell essa espécie de confissão, em que esta lhe manifesta as suas fracas disposições para a vida conventual. Para além do paralelismo da máscara (a marca de Zorro, e a marca do padre) prevalece o movimento - nada inocente - em que Linda Darnell descobre o embuste, ao descobrir-lhe a espada que lhe ultrapassa o hábito. Apesar do susto, Linda Darnell cala-se e não o denuncia, óbvio sinal de quanto essa ostensiva marca a atraiu.

Bastante tempo depois - após a já citada sequência do jantar, em que Linda Darnell vem de branquíssimo e Tyrone Power de monóculo - quando aquela se retira para os aposentos, entrevemos deste uma cama de casal, com duas almofadas. Na varanda, ressurge-lhe Zorro (mais como fantasma erótico do que como anjo exterminador) respondendo ao apelo desse quarto vazio. O tio interrompe-os, em protesto contra a deserção dela. Tyrone Power tira a máscara e reaparece como Diogo. E, enquanto o alcaide, filosoficamente, comenta que afinal ela talvez saiba mais do que ele, Linda Darnell comena (percebendo tudo) que "perhaps I could learn to tolerate Diego. I do so want to please uncle Luis". A rosa é a metáfora do resto.

Mas não posso acabar sem citar a fabulosa fuga de Tyrone Power, após a cena da capela. Se toda essa sequência dá uma impressão de movimento contínuo, raros planos duram mais do que alguns segundos. É a soma deles (e repare-se no perfeito Z, traçado pelos movimentos cruzados de cavalo e perseguidores, quando Tyrone Power se lhes escapa na floresta) que dá essa "impressão" de continuidade, cortada a cada plano para que este geometricamente se acrescente ao anterior.

Também não posso acabar sem devidas vénias a Rathbone (desencadeando em Tyrone Power uma antipatia tão instintiva quanto a que sempre desencadeara em Errol Flynn) a Pallette (quem imaginaria que de tão obeso frade saísse o espadachim que ainda desafia Rathbone) a Arthur Miller (fabulosa fotografia) e a Alfred Newman (fabuloso score).

Mas posso e devo acabar lembrando uma frase que os "Cahiers du Cinéma" em tempos aplicaram ao realizador de musicais e filmes de aventuras chamado George Sidney. Diziam que Sidney, "professor de dança transformado em professor de esgrima" nos provava "que qualquer movimento é coreográfico e qualquer duelo um 'pas de deux'".

Sem desmerecer nos méritos de Sidney, essas palavras são sobretudo aplicáveis a Mamoulian. Como escreveu Tom Milne: "The Mark of Zorro may be only a swashbuckler, but it is one of the most elegant and intelligent films". Alguém duvida?

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