quinta-feira, 3 de julho de 2014

O terror dos sete mares


por João Bénard da Costa

A criancinha estava a ler o jornal. A dado passo, parou, e perguntou à avó: "Avó, o que é que quer dizer amante?". A velha ficou a olhar para a neta, calada e perplexa. E de repente, exclamou: "Amante? Amante! Ai a minha cabeça!". Levantou-se muito depressa e foi abrir o armário enorme do corredor. Assim que abriu a porta, caíu-lhe aos pés um esqueleto.

Também me caiu aos pés um esqueleto quando, nos anos 60, numa reposição, revi "O Terror dos Sete Mares" ("The Spanish Main") filme de 1945, de Frank Borzage. É que eu tinha visto o filme aos 11 anos, em Abril de 1945, no Politeama. Aos 11 anos - fui de aprendizagem lenta nessas matérias - não só ignorava o que queria dizer amante, como quase tudo aquilo que se chama - nunca percebi porquê - os factos da vida. E a melhor prova que não são factos nem vida é que fiquei perturbadíssimo com esse filme de piratas. Perturbadíssimo e qualquer coisa mais que tive pudor de contar seja a quem for. Ora, se era tão ignorante - e julgo que era - como é que isso me podia ter acontecido? Não sei explicar mas sei que é verdade.

Tão verdade que vi o filme (em 1946) três vezes numa só semana. E só não vi mais porque os zeladores dos meus ócios e do dinheiro que me davam, acharam desperdício tantas horas e tantos quatro melreis a ver a mesma coisa. À quarta vez obrigaram-me a trocar o Politeama pelo Tivoli e "O Terror dos Sete Mares" por "As Chaves do Reino" de John M. Stahl. Gregory Peck estreou-se nesse filme, a fazer de padre, de sotaina. "Todo braguilha", teria dito, embevecido, um "gay" que nesses tempos se chamavam "papos-secos". A mim, e não quero armar ao macho, comoveu-me muito menos do que o Paul Henreid de calções à século XVII e infinitamente menos - infinitíssimamente menos - do que a Maureen O'Hara de rendas holandesas por baixo e vestidos de veludo verde por cima.

Dizia à família que ia ser pirata, mas era a ela quem eu ia ver, com os decotes enormes, o risco do peito e aquele brilho nos olhos quando o pirata lhe entrava pelo beliche a dentro. Ai, a minha cabeça.

Hoje, é muito fácil explicar. Mas naquela altura… Como é que se me gravaram tão real e perfeitamente quanto estão nos mares, as quatro ou cinco cenas que eu vou descrever?

Maureen O'Hara - chamava-se Condessa Francisca de Guzman y Andamora - era filha do Vice-Rei do México. Vinha a bordo de um galeão magnífico (dourado e todo pintado com Virgens) para casar com Dom Alvarado, Governador de Cartagena. Ela não sabia, mas o Governador era Walter Slezak, gordíssimo, mauzíssimo, cobardíssimo. E via, pela escotilha do camarote, Paul Henreid, pendurado na amurada. Ela também não sabia (nem ninguém, porque ele viajava disfarçado de tripulante) que era "O Terror dos Sete Mares" que usava por nome Barracuda. Ainda hoje estou para saber se foi em homenagem a ele que chamaram assim à "boite" mais mal afamada de Lisboa, essa que fica em frente do Tavares. Se o nome tem tal origem, tenho mais almas gémeas do que suponho. Até porque o Barracuda diante do Tavares é aproximadamente a mesma coisa do que Paul Henreid diante de Maureen O'Hara.

Mas volto à história, que já me estou a perder. Maureen O'Hara imediatamente seduzida pela loureza de Henreid (devia ter visto "Casablanca", certamente) saía do Tavares - perdão, do camarote - e ia meter conversa com o Barracuda, desafiando tabus e preconceitos. O homem, que nascera holandês e de seu vero nome se chamava Laurent Van Horn, portava-se muito friamente (Henreid foi sempre frio). A mostarda chegava ao nariz de Maureen O'Hara. Sempre chegou - e facilmente. Dizia-lhe coisas pouco amáveis sobre a Holanda. Barracuda, rápido, deitava-lhe as mãos às saias do vestido (verde esmeralda), levantava-as um bocado e respondia-lhe que holandesas eram as rendas dos interiores dela. "How dare you?" era obviamente a pergunta da Condessa. E chamava logo ali o comandante para denunciar o marujo que ousara pôr as mãos em cima (ou em baixo) dela. Servil, o oficial escolhia logo o mastro grande para o atrevido ser enforcado. Aí, O'Hara hesitava. E com um estranho brilho nos olhos - o que eu me lembro desse brilho - objectava que a forca era demais e preferia o chicote. O brilho só lhe aumentava, quando o Barracuda, despido da cintura para cima, era chicoteado por alguns dos mais possantes marinheiros da nau.

Lá mais para diante, os piratas do Barracuda abordavam. Vitorioso, este decidia casar com a Condessa. Quando, ainda mais para diante, ela lhe perguntava porquê, o pirata respondia-lhe com um trilema: "ou para me vingar" (o "promesso sposo" dela era o pior inimigo dele); "ou porque gosto de ti", "ou por causa do chicote". Já aos 11 anos eu preferia a terceira hipótese.

Outra cena: Maureen O'Hara e Paul Henreid lá casavam, com um bispo apavorado a celebrar a cerimónia. "I will" dizia ele. "Fondu" (esta aprendi depois) e de novo o camarote. À noite, noite de núpcias, expressão - volto a explicar - então vazia de sentido para mim. Maureen O'Hara, toda vestida, preparava-se para a defesa. Henreid abria-lhe a mala, tirava de lá uma magnífica camisa de noite de renda holandesa (outra vez) e mandava-a pô-la depressa Agarrava-a e dava-lhe um beijo. A câmara dava uma volta e via-se em grande plano a mão de Maureen com um punhal a aproximar-se das costas de Henreid. Meu não dito, meu não feito. O punhal caía ao chão e Maureen O'Hara caía nos braços de Henreid. O brilho nos olhos voltava, como lhe voltava o sangue à cara. No plano seguinte, já estava de camisa de noite.

E era ela, então, quem lentamente se auto-descrevia para o marido perguntando-lhe de que é que ele gostava mais: "my figure"; "my eyes", "my lips" e acabava no cabelo (ah, o cabelo ruivo de Maureen O'Hara): "Fire, isn't it?". Era, era, era. Embora naquele tempo eu não possa jurar se o preferia aos olhos, os olhos em amêndoa de Maureen.

Depois, ele ajudava-a a meter-se na cama. Tapava-a com uma colcha azul. Os olhos de Maureen já eram de todas as cores, mais azuis do que a colcha, mais verdes do que o vestido, mais brancos do que a camisa de noite, embora na verdade, fossem castanhos. Paul Henreid curvava-se sobre ela, dava-lhe um beijinho na testa e ia-se embora. Porque é que nessa altura eu me lembrava do que ela tinha dito antes sobre os holandeses? Porque é que era essa a cena que eu queria ver e rever, só para ver e rever os olhos de Maureen O'Hara?

A seguir, mais ou menos, o navio dos piratas chegava a uma ilha dos ditos. Maureen O'Hara, toda de azul, sob fundo dourado, desembarcava com Henreid e entrava numa taberna, com a clientela imaginável. O que não era imaginável era que, de repente, aparecesse, no meio dos homens, outra mulher, de calças e desenvoltura. Era Anne Bonny, presumível namorada do Barracuda, a quem logo se atirava ao colo com um beijo na boca. Era Binnie Barnes, que eu já conhecia como Milady de Winter dos "Três Mosqueteiros" de Allan Dwan, quem fazia o papel que acabava - para ela - tão mal como o de Catherine Howard, quando foi mulher de Henrique VIII no filme de Korda. Conhecendo Maureen, conhecendo Binnie, ou conhecendo Anne e conhecendo a Condessa, a cena de ciúmes era inevitável. E iam mesmo às de cabo, em duelo de pistola que só não acabava mal (para Maureen, valente mas inexperiente) porque Henreid antes carregara as armas com pólvora seca.

Nos anos 60, vendo essa cena, ou, depois, a da vingança de Binnie, percebi donde vinha a minha fatal atracção pelo ódio fatal de Emma e Vienna no "Johnny Guitar". Aquelas mulheres aos tiros lembravam-me as desaparecidas que lutavam comovidas numa tasca da Tortuga. A origem da emoção era a mesma. E não tenho que me repetir a dizer que em 1946 nem sabiam o que eram lésbicas.

Finalmente, que são horas de acabar e eu tenho de ir apanhar o avião para Madrid daqui a bocado, chegava a altura em que todos eram presos por Walter Slezak e todos tinham que fugir. Recorriam a disfarces e - essa ainda hoje não percebi - todos se disfarçavam de frades. Maureen O'Hara para entrar na prisão onde estavam os sete terrores dos mares, Paul Henreid para fingir, no fim, que estava a casar Maureen O'Hara com Slezac. E era como frades que tanto ela como ele ficavam ainda mais tecnicoloridos, mais derretidos, mais acendidos. E era como frades que matavam melhor, enganavam melhor e beijavam melhor. Finalmente, que se comiam melhor. Ou que comiam melhor os frutos que Slezak deixara para o pequeno-almoço do dia seguinte que já não chegou a ter.

Foi esta - resumindo muito - a nobilíssima visão dos meus dez anos. Os ossos dos amantes - ou a carne deles - encontram-se onde menos se espera. E o pior é que com o tempo nos esquecemos. Até que alguém - grandemente inocente - diz qualquer coisa e saltam cá para fora os fantasmas de que nunca julgámos que nos íamos lembrar tanto. Mas não há nada a fazer se a carne, certa vez, foi fraca em nossas mãos. Com carne e mão já nascemos. Bastam os olhos ou bastam as visões - um filme neste caso - para nos jurar que nisso, como noutras coisas, já nascemos ensinados.

in Nobilíssimas Visões, crónica no Suplemento Vida do Semanário Independente, 21 de Junho de 1991

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