domingo, 21 de junho de 2015
A paixão segundo Scorsese
"JL" convidou o autor de "Belarmino" a escrever sobre Jake La Motta. Mas "O touro enraivecido" é muito mais do que uma "tranche de vie": Fernando Lopes descobre nele traços da busca agostiniana.
Que posso dizer dum filme destes - visto apenas uma vez, em sessão da meia-noite - que me devolve, de chofre, uma riquíssima mitologia do cinema americano (Walsh, Wise, Huston, entre outros), e até, porque não confessá-lo, me remete para a minha primeira experiência cinematográfica?
Que ele é, para mim, a obra maior de Scorsese - na medida em que sintetiza magistralmente todas as suas obsessões -, e que Robert De Niro atinge neste Raging Bull o cume da sua carreira de actor, parece-me uma "lapalissade" que fica, como todos os lugares comuns, aquém da grandeza e da densidade desta obra. Não apenas uma poderosa descrição "behaviourista" do mundo do boxe, a que não falta sequer (coisa rara e difícil) a presença física do cheiro acre dos bastidores; não apenas a metáfora (batida) do boxe como imagem do "struggle for life" que constitui, ainda hoje, o alimento de tanto cinema americano; não apenas o nostálgico mergulho no tecido americano da "Little Italy" de Scorsese e do seu duplo La Motta; não apenas - e por fim - uma das mais belas histórias de amor que me foi dado ver no cinema, até pela sua impossibilidade (como todas as grandes paixões); mas - sobretudo - uma desesperada viagem até à verdade ontológica.
O que me toca profundamente neste filme - para lá do óbvio rigor da sua "mise-en-scène" - é a busca agostiniana de La Motta (e não será a inquieta procura da luz, do absoluto, o tema maior de Scorsese, de Taxi Driver a Alice?).
Não serão os combates de boxe, neste filme, o equivalente das estações da Via Sacra, tão liturgicamente diferentes uns dos outros, até desembocarem na comovente agonia da prisão, quando La Motta se descobre como ser e, do mesmo passo, recebe (na penumbra dolorosa e púdica) a luz da verdade? Também La Motta nos diz nesta cena (nuclear) o mesmo que Santo Agostinho nas suas Confissões: "Eu procurava, assim, donde vinha o mal, mas procurava mal; sem ver, no fundo da minha busca, o mal."
Não se trata pois - e apenas - de um filme sobre o boxe. Este Touro enraivecido é, principalmente, a descrição crepuscular de um trajecto - a passagem (terrível) de Santo La Motta pelo deserto, com suas tentações, seus anjos e demónios, oscilando entre céu e inferno, numa procura paranóica do bem e do mal. Um desafio cego, primitivo, animal, que se oficia nesse lugar, metaforicamente sagrado, que é o "ring" (e a este propósito é de ver com os sentidos o derradeiro combate com Sugar Ray Robinson).
Deste filme se pode ainda dizer que ele é uma violenta ilustração da luta do espírito e da carne, através da relação de Vickie (essa esplendorosa Cathy Moriarty) e La Motta, no seu erotismo ascético e na sua mediterrânea "gelosia". Mais uma vez Santo Agostinho está aqui presente: "Eu compreendia, por uma experiência pessoal, como a carne conspira contra o espírito e o espírito conspira contra a carne." Digamos que é destes dilaceramentos que Jake La Motta vai emergir, no fim do filme, como um homem que descobriu a sua verdade e Scorsese nos revela o luminoso cristal que o obceca desde a primeira e desfocada imagem.
Espero que este depoimento, escrito sob o choque profundo do filme, não seja tomado como um exercício pretensioso, mas que ele suscite - como desejo - a disponibilidade e a abertura de espírito dos eventuais espectadores para aquilo que me parece ser, desde já, uma das maiores obras do recente cinema americano e, simultaneamente, a confirmação de um dos seus mais completos autores: Scorsese.
Para terminar: gostaria que este filme se tivesse chamado As Confissões de La Motta. Não seria comercial, mas reflectia, na minha opinião, o verdadeiro sentido de O touro enraivecido.
O que não é dizer pouco.
in Jornal de Letras, Ano I nº3, 1981, p. 29
Que ele é, para mim, a obra maior de Scorsese - na medida em que sintetiza magistralmente todas as suas obsessões -, e que Robert De Niro atinge neste Raging Bull o cume da sua carreira de actor, parece-me uma "lapalissade" que fica, como todos os lugares comuns, aquém da grandeza e da densidade desta obra. Não apenas uma poderosa descrição "behaviourista" do mundo do boxe, a que não falta sequer (coisa rara e difícil) a presença física do cheiro acre dos bastidores; não apenas a metáfora (batida) do boxe como imagem do "struggle for life" que constitui, ainda hoje, o alimento de tanto cinema americano; não apenas o nostálgico mergulho no tecido americano da "Little Italy" de Scorsese e do seu duplo La Motta; não apenas - e por fim - uma das mais belas histórias de amor que me foi dado ver no cinema, até pela sua impossibilidade (como todas as grandes paixões); mas - sobretudo - uma desesperada viagem até à verdade ontológica.
O que me toca profundamente neste filme - para lá do óbvio rigor da sua "mise-en-scène" - é a busca agostiniana de La Motta (e não será a inquieta procura da luz, do absoluto, o tema maior de Scorsese, de Taxi Driver a Alice?).
Não serão os combates de boxe, neste filme, o equivalente das estações da Via Sacra, tão liturgicamente diferentes uns dos outros, até desembocarem na comovente agonia da prisão, quando La Motta se descobre como ser e, do mesmo passo, recebe (na penumbra dolorosa e púdica) a luz da verdade? Também La Motta nos diz nesta cena (nuclear) o mesmo que Santo Agostinho nas suas Confissões: "Eu procurava, assim, donde vinha o mal, mas procurava mal; sem ver, no fundo da minha busca, o mal."
Não se trata pois - e apenas - de um filme sobre o boxe. Este Touro enraivecido é, principalmente, a descrição crepuscular de um trajecto - a passagem (terrível) de Santo La Motta pelo deserto, com suas tentações, seus anjos e demónios, oscilando entre céu e inferno, numa procura paranóica do bem e do mal. Um desafio cego, primitivo, animal, que se oficia nesse lugar, metaforicamente sagrado, que é o "ring" (e a este propósito é de ver com os sentidos o derradeiro combate com Sugar Ray Robinson).
Deste filme se pode ainda dizer que ele é uma violenta ilustração da luta do espírito e da carne, através da relação de Vickie (essa esplendorosa Cathy Moriarty) e La Motta, no seu erotismo ascético e na sua mediterrânea "gelosia". Mais uma vez Santo Agostinho está aqui presente: "Eu compreendia, por uma experiência pessoal, como a carne conspira contra o espírito e o espírito conspira contra a carne." Digamos que é destes dilaceramentos que Jake La Motta vai emergir, no fim do filme, como um homem que descobriu a sua verdade e Scorsese nos revela o luminoso cristal que o obceca desde a primeira e desfocada imagem.
Espero que este depoimento, escrito sob o choque profundo do filme, não seja tomado como um exercício pretensioso, mas que ele suscite - como desejo - a disponibilidade e a abertura de espírito dos eventuais espectadores para aquilo que me parece ser, desde já, uma das maiores obras do recente cinema americano e, simultaneamente, a confirmação de um dos seus mais completos autores: Scorsese.
Para terminar: gostaria que este filme se tivesse chamado As Confissões de La Motta. Não seria comercial, mas reflectia, na minha opinião, o verdadeiro sentido de O touro enraivecido.
O que não é dizer pouco.
in Jornal de Letras, Ano I nº3, 1981, p. 29
quarta-feira, 3 de junho de 2015
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