terça-feira, 3 de agosto de 2021

WHILE THE CITY SLEEPS (1956)


1956 – USA (100') ● Prod. RKO (Bert E. Friedlob) ● Real. FRITZ LANG ● Gui. Casey Robinson a p. do R. «The Bloody Spur» de Charles Einstein ● Fot. Ernest Laszlo ● Mús. Herschel Burke Gilbert ● Int. Dana Andrews (Edward Mobley), Rhonda Fleming (Dorothy Kyne), George Sanders (Mark Loving), Thomas Mitchell (John Day Griffith), Vincent Price (Walter Kyne, Jr.), Sally Forrest (Nancy Liggett), Ida Lupino (Mildred Donner), John Barrymore, Jr. (Robert Manners, o “assassino do batom”), James Craig (Harry Kritzer), Robert Warwick (Amos Kyne), Ralph Peters (Meade), Vladimir Sokoloff (George Pilski), Mae Marsh (Senhora Manners), Sandy White (Judith Fenton, a primeira vítima). 

Depois da morte de Amos Kyne, o patrão de um império de imprensa que se estende por toda a América e cuja jóia da coroa é o diário «New York Sentinel», o seu filho e herdeiro, Walter Kyne, Jr., desprovido de qualquer competência jornalística, adivinha facilmente que os quatro principais responsáveis pelo jornal, Mark Loving, director da agência de notícias Kyne, Griffith, o editor-chefe, Harry Kritzer, chefe do departamento de fotografia e Edward Mobley, o editor nº 1, o desprezam. Para ser valorizado aos olhos deles, cria o lugar de director geral e deixa entender que o vai confiar àquele de entre eles que fizer melhor o seu trabalho, particularmente em descobrir “o assassino do batom” que matou recentemente uma mulher solteira na sua casa deixando esta inscrição na parede «Perguntem à minha mãe». É provável que o assassino já tenha cometido ou vá cometer outros crimes semelhantes e, pouco antes de morrer, Amos Kyne tinha manifestado o seu interesse por este caso. Mobley, jornalista talentoso mas sem ambição pessoal – pelo menos é o que ele afirma – não se envolve directamente no concurso. Mas cada um dos três concorrentes oficiais, Loving, Griffith e Kritzer, procuram ainda assim tê-lo do seu lado, principalmente por causa das suas ligações na polícia. Mobley está noivo de Nancy Liggett, a secretária de Loving. Ela pede-lhe para se pôr ao serviço de Griffith, o mais honesto dos três na sua opinião. Mobley contacta o seu amigo, o tenente da polícia Kaufman, que lhe diz que uma jovem professora foi assassinada nas mesmas circunstâncias que a primeira vítima. Por seu lado, Loving não ficou parado e conseguiu de Meade, o especialista em processos penais do jornal, uma pista: detiveram o porteiro do prédio da primeira vítima. Por causa disso, Loving acredita por um momento que ficou em vantagem. Mas a pista vem duma fonte não oficial e de qualquer maneira não será confirmada. Loving tem de interromper a transmissão pela sua agência de notícias por recear um processo por difamação. Mobley relata a Griffith o que soube por Kaufman sobre o assassinato da professora. Por integridade profissional, Griffith comunica a informação a Loving pela sua agência. Na sua emissão diária de televisão, Mobley decide dar um grande golpe endereçando-se directamente ao criminoso que descreve como um homem jovem e forte, fã de banda desenhada ao relatar os crimes, com problemas com a mãe dele e obcecado pelo seu ódio pelas mulheres. O criminoso realmente ouve-o e corresponde a esse relato. Mobley faz todos os possíveis para o exasperar e o desafiar. Ele pede então a Nancy, que tinha apresentado no ar – sem perguntar a opinião dela – como sua noiva oficial, para servir de isca numa eventual tentativa de assassinato da parte do «assassino do batom». Loving, por sua vez, não renunciou a obter o apoio de Mobley e encarrega a amante dele, Mildred Donner, jornalista do Sentinel, de o seduzir para que ele se junte ao lado deles. Mildred, para quem a missão não é desagradável, faz o que pode, mas como Mobley está completamente bêbado nessa noite, não vai conseguir mais nada além de se fazer beijar num táxi. Os seus mexericos vão excitar o ciúme de Nancy sem servir a causa de Loving. O terceiro candidato, Harry Kritzer, dá-se muito menos mal que os seus dois rivais. Como é o amante e o protegido da esposa de Walter Kyne, Dorothy, acredita que tem aí o mais sólido dos trunfos. Ao colocar o homem que ela escolheu para o lugar criado pelo seu marido, Dorothy quer vingar-se assim do desprezo dele pelas suas faculdades intelectuais e do facto de ele a ter «comprado», por assim dizer, quando casou com ela. Tendo marcado pontos graças às informações entregues por Griffith, Loving também acaba de assinar um contrato muito importante com uma cadeia de televisão. Mais do que nunca, acha-se seguro da vitória. Nancy, ciumenta das pseudo-escapadas do seu noivo com Mildred, recusa-se a fazer mais de isco para Mobley. Mas é tarde demais: o assassino seguiu-a, depois de encontrar o seu apartamento, situado no mesmo andar que o estúdio onde Kritzer recebe Dorothy habitualmente. Simulando a voz de Mobley, bate à porta. Nancy recusa abrir justamente por achar que se trata de Mobley. Louco de raiva, o assassino corre para o apartamento de Kritzer no momento em que Dorothy está a entrar. Agride-a e tenta estrangulá-la. Ela defende-se como uma leoa e consegue refugiar-se na casa de Nancy. O assassino foge. Da sua janela, Nancy indica a Mobley e ao tenente Kaufman a direcção que ele tomou. Depois de uma longa perseguição no túnel do metro, ele é detido. Disposto a tudo para o apanhar, o «honesto» Griffith, sabendo através de Mobley da notícia da detenção antes de toda a gente, prepara apressadamente uma edição especial. Ela aparecerá até mesmo antes que Loving seja posto ao corrente, e sem foto para que Kritzer se mantenha longe. Para aperfeiçoar a sua «manchete», Griffith lançou Mildred no encalço da mulher agredida pelo assassino, ou seja, Dorothy. Mildred vai encontrar Kritzer e Dorothy a saírem juntos da casa de Nancy. Entre os três, vão preparar um plano que dará a vitória e o posto de director-geral a... Kritzer. Enojado, Mobley demite-se. Em viagem de núpcias na Flórida com Nancy, vai descobrir pela imprensa que Kyne voltou atrás na sua decisão. Griffith é nomeado director-geral, Mildred torna-se a secretária pessoal de Kyne, Kritzer será o embaixador itinerante do grupo Kyne e o próprio Mobley vê-se projectado a editor-chefe do Sentinel... 
 
► Penúltimo filme americano de Lang. Um dos pontos mais altos da sua carreira; na nossa opinião, o seu melhor filme. Baseado num romance, mas sobretudo baseado em relatos de notícias variadas recortadas de jornais e que ele tinha o hábito – mantido até ao fim da sua vida, embora já não trabalhasse mais – de coleccionar, Lang escreveu o guião minuciosamente com Casey Robinson e será um dos mais sofisticados da sua carreira. A preparação não menos minuciosa da rodagem e que permitiu manter, sendo o orçamento do filme bastante razoável, os intérpretes prestigiosos reunidos no conjunto (George Sanders, Ida Lupino, Thomas Mitchell, Rhonda Fleming, etc) só quatro ou cinco dias cada um, quando temos a impressão de os ver presentes ao longo de toda a intriga. (Só a Dana Andrews foi concedido um número de dias ligeiramente superior.) A ambição do filme é imensa, a perfeição do seu estilo, cujos elementos desdenham dar nas vistas, sóbria e eficaz. Lang quer dar a ver um panorama bastante vasto da sociedade americana, fundada aos seus olhos na competição e no crime. Como a competição e o crime se tornaram indissoluvelmente ligados, é este o seu tema, a partir do qual surgem as características do seu estilo, obedecendo todas a uma estética da necessidade que nenhum outro cineasta levou tão longe. Criador solitário e exigente, Lang não está totalmente à parte da corrente americana mais inovadora. While the City Sleeps integra e até interioriza de alguma maneira a revolução trazida no ano anterior ao relato policial por Kiss Me Deadly. Doravante já não há bons nem maus nos enredos. A ferocidade da competição trouxe todas as personalidades ao mesmo nível, o grau zero da moral e da consideração pelos outros. Se examinarmos à lupa (é o que faz o filme) o comportamento de cada uma das personagens envolvidas na acção, vemos ou que eles não têm ideia nenhuma do que lhes poderia servir de moral, ou então – e ainda é pior – que eles sacrificam à sua ambição quaisquer escrúpulos que pudessem ter, comportamento considerado como normal na sociedade em que estão inseridas. A partir daí, o criminoso que os jornalistas procuram com tanto ardor para conseguir um cargo torna-se não só a sua presa, mas também o seu reflexo. Às vezes é mais digno de piedade do que eles. Lang leva aqui a um grau de perfeição absoluta a sua arte das ligações necessárias ou mesmo fatais entre as sequências. Seja por um elemento de diálogo, por um elemento visual, por uma personagem ou pelo efeito de uma causa dramática específica, as sequências encadeiam-se umas às outras a um ritmo e a uma progressão lógica que parece obedecer a alguma fatalidade, que na verdade não é senão a consequência das acções cruzadas de cada um dos protagonistas ocupados em suplantar, a usar ou a destruir o próximo – grande teia de aranha onde por fim todos se encontram presos. Requinte supremo da mise en scène: aquelas divisórias de vidro que, dentro dos escritórios do jornal, separam as personagens permitindo-as verem-se umas às outras e dão à história a possibilidade de executar várias sequências frontais, ligadas numa interacção permanente. Este entrelaçado magistral é visto na luz soberba de uma chapa metálica rasgada a bisturi. Depois de muitos avatares e metamorfoses, redesenhados através da experiência e do estilo de um cineasta meticuloso e genial, o microcosmos expressionista reaparece aqui – talvez pela última vez – lavado de todas as suas histórias, dotado de uma pureza expressiva cuja abstracção e concentração fascinam. É um pequeno pedaço de inferno onde as criaturas estão ocupadas, achando-se livres e activas, sob o olhar de um cineasta que não procura outra coisa senão ver bem e dar bem a ver a realidade, mas mantendo o ponto de vista de Sirius sobre todas as coisas. 
 
N.B. O formato do filme coloca, como com Beyond a Reasonable Doubt, o filme seguinte de Lang, um problema complicado que só podemos resolver apelando a um ponto de vista estético. O filme, não rodado em Cinemascope, foi explorado originalmente em Superscope (formato largo utilizado na RKO e resultante de um tratamento de imagem efectuado em laboratório) e depois em formato normal. Qual é o melhor? A nosso ver, é o formato largo, o único em que, por exemplo, os movimentos de câmara ou o cenário do jornal encontram o seu impacto verdadeiro. Mesmo que o Superscope tenha sido « fabricado » em laboratório, Lang sabia que o filme ia estrear em ecrã largo e a sua mise en scène foi pensada em função disso mesmo. A mesma nota para Beyond a Reasonable Doubt em que, para citar apenas essa, a primeira sequência do condenado à morte a avançar em direcção à cadeira eléctrica, é evidentemente concebida para o formato largo. A análise de imagens do filme revela que um certo número de sequências ou fins de sequências foram suprimidos da montagem final num propósito de constrição, como evidencia de resto toda a concepção do filme. A ausência de uma dessas sequências é contudo um pouco lamentável: a do pequeno conluio entre James Craig, Rhonda Fleming e Ida Lupino (de que vemos os começos no pátio interior do apartamento de Sally Forrest) e que se situava no apartamento de James Craig. Essa lacuna torna uma das sequências seguintes um pouco enigmática (aquela em que James Craig é condescendente com Vincent Price e em que Ida Lupino anuncia a Sanders e a Mitchell que estão empatados em segundo lugar) e tira sobretudo uma pequena parte da unidade à construção geral do filme, precisando esta construção efectivamente que cada uma das personagens mais importantes tenham num momento ou noutro uma relação com todas as outras. Seria só nessa sequência que a relação Rhonda Fleming-Ida lupino podia existir. Testemunhos amistosos e favoráveis a Lang vindos de colaboradores do seu período americano dos anos 50 são relativamente raros. O do operador Ernest Laszlo é, neste contexto, ainda mais precioso. Ele confessou a Frederick W. Ott (in «The Films of Fritz Lang», The Citadel Press, Secausus, N.J. 1979): «Fritz Lang era o artista e o técnico completo, nesse sentido superior mesmo a William Dieterle. Eu tive claramente a impressão que ele sabia todos os aspectos da criação dos filmes. Podia ser, claro, um mestre-de-obras bem duro, mas se fizesses o teu trabalho e mostrasses entusiasmo, ele tornava-se o melhor amigo que já tiveste. Eu admirava o seu profissionalismo, como a maior parte dos intérpretes e técnicos. Houve alguns momentos difíceis, principalmente com Dana Andrews e John Barrymore, Jr., mas no essencial a rodagem correu sem conflitos». Ver também o testemunho do montador Gene Fowler, Jr. in Alfred Eibel: «Fritz Lang», Présence du Cinéma, 1964.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

Sem comentários: