segunda-feira, 12 de setembro de 2022

CROSS OF IRON (1977)


Sam Peckinpah disse em entrevista nos anos 70 que “hoje em dia não se consegue tornar a violência real para o público sem lha esfregar nos narizes. Nós assistimos às nossas guerras e vemos homens a morrer, a morrer mesmo, todos os dias na televisão, mas não nos parece real. Não acreditamos que aquilo são pessoas verdadeiras a morrer naquele ecrã. Fomos anestesiados pela comunicação social. O que eu faço é mostrar às pessoas como é mesmo — não tanto mostrando-a como é mas intensificando-a, estilizando-a. A maior parte das pessoas nem sequer sabe qual é o aspecto do buraco de uma bala num corpo humano. Eu quero que vejam qual é o aspecto. A única forma de eu conseguir fazer isso é não os deixando fazer vista grossa sobre a aparência das coisas, como se fosse o noticiário das sete da DMZ”[1]. Cross of Iron, filme infelizmente ainda muito pouco conhecido, parece a demonstração suprema destas afirmações, em que a violência é tão mas tão distorcida que chega a beirar a abstracção, o que acaba por se confundir com o aturdimento das próprias personagens, fartas de sangue e de lama, de armas e de patentes, de russos e de alemães, da coragem e da cobardia, do bem e do mal. 
 
Durante o seu serviço militar na China com os Fuzileiros durante a 2ª Guerra Mundial, para os quais se voluntariou de forma a provar-se a si próprio junto da família, o realizador americano descreveu o ataque a tiro a um comboio e a morte de um passageiro como as fracções de segundo mais longas da sua vida. “Lembro-me de cair, e foi tão longo…” disse ele. “Reparei que o tempo dilatou.”[2] A América foi aliada da China durante a guerra civil que opôs Chiang Kai-shek ao Exército de Libertação Popular de Mao Tsé-Tung, mas no terreno nenhum deles parecia boa rés, apenas mercenários capazes de arrastar camponeses para a morte, promover enforcamentos públicos, matar o inimigo à fome, desvalorizar e equiparar a vida do ser humano à vida de um animal ou de um insecto. Assistindo a tudo isto, também os americanos começavam a acreditar que a vida dos chineses valia muito pouco e havia fuzileiros que faziam concursos de tiro dos comboios sobre trabalhadores nos campos. Houve ainda um fuzileiro que se gabou à frente de Peckinpah de ter violado e matado uma mulher chinesa. “Decidi mesmo que o ia matar,” disse Peckinpah. “Saí dali e roubei uma arma, uma arma russa, e ofereci-me para lha vender. Tu sabes, a mentalidade das lembranças. Quando lha vendesse, ia-o matar. Pôr-lhe o cano da arma mesmo por baixo do queixo e carregar no gatilho. Na noite anterior ao nosso encontro, vi-o para ali especado, completamente cego. Tinha bebido mau whisky. Se não fosse por isso, podia estar hoje na prisão.”[3] 
 
O tumulto formal e narrativo de Cross of Iron pode ser confundido como um defeito, só que o que parece é que ilustra muitíssimo bem a desordem moral e psicológica dos campos de batalha. É uma grande escalada até à ruptura dos sentidos. Quando está prestes a terminar e julgamos que vamos assistir a uma confrontação culminante ditada pelas regras da sacrossanta da narrativa o filme recusa-se a continuar e rebenta pelas costuras. Depois de se ver um capitão cobarde e sedento por uma cruz de ferro a chantagear um tenente homossexual para que este minta e mate por ele, uma criança a ser morta pelo exército do seu país, um homem a recusar-se a brindar e a festejar um aniversário porque não consegue estar feliz, um pelotão a ser abandonado à sua sorte por um batalhão inteiro, um soldado alemão a tentar violar uma soldada russa que lhe arranca os genitais e é morta logo a seguir, esse soldado a ser esventrado pelo destacamento feminino russo como um “estamos quites” ditado pelo seu sargento, e um pelotão a ser dizimado à entrada de uma nova base pelas próprias tropas, já não se pode acreditar mesmo em nada e os uniformes cuja diferença já era muito turva tornam-se indistinguíveis, as vinganças e os ressentimentos esquecem-se e já só se luta pela sobrevivência, a loucura apodera-se de todos e a realidade toma outros contornos, as explosões sucedem-se e os mortos ganham vida, o grande antagonista, o grande prussiano nem uma arma sabe carregar, a única reacção e a única defesa possível é desatar a rir com o fastio e a exasperação disto tudo. Não é o único filme de Peckinpah a acabar desta forma, mas aqui as gargalhadas não são nada animadoras. 
 
Com a cantiga infantil que inaugura e encerra o filme, e que em Portugal conhecemos como “O Balão do João”, fica-se com a certeza de que as coisas serão cíclicas e nunca hão-de mudar. A canção fala de um pequeno Hans que sai de casa para ver o mundo e de uma mãe que chora e lhe deseja boa sorte. Quando ele volta passaram muitos anos e já não é o mesmo. Depois de Steiner e Eva, a enfermeira, passarem uma noite juntos no hospital militar, ele é confrontado com a escolha entre ficar com ela ou partir com o seu pelotão, numa cena que faz lembrar muito o encontro de Pike com a mexicana antes da investida final de A Quadrilha Selvagem. Namora-se um bom bocado com a ideia do que poderia ter sido, noutra vida ou noutras circunstâncias. Talvez fosse possível uma vida a dois longe do mundo e longe das guerras. Se a soldada russa e o jovem alemão do pelotão de Steiner se conhecessem noutro contexto, em vez de uma facada ela dava-lhe um beijo. Só que como ficaram todos a saber, e como souberam antes Thomas Wolfe, Nicholas Ray e o próprio Sam Peckinpah, “you can’t go home again”.

[1] in “Sam Peckinpah: Playboy Interview”, William Murray, 1972.
[2] citado in “If They Move… Kill ‘Em! - The Life and Times of Sam Peckinpah”, o fabuloso livro de David Weddle sobre Sam Peckinpah, 1994.
[3] in “MASTER OF VIOLENCE: Director SAM PECKINPAH goes to work on his new film, The Getaway”, P.F. Kluge, Time, 11 de Agosto de 1972.

texto escrito para o catálogo dos Encontros Cinematográficos de 2022.

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