domingo, 27 de agosto de 2023

SOBRE MICKEY ONE


por Louis Skorecki

Arthur Penn terá realizado apenas um bom filme, e um muito bom, um daqueles que o amigo Daney qualificava de grande filme doente, e que valem centenas de filmes demasiado salubres, compatíveis à partida com a ideia que fazemos deles. Chama-se Mickey One, e é inesquecível. Excessivo, estilizado, falhado, felliniano, lírico, irregular, Mickey One não se deixa esquecer. Anos mais tarde, continua a bater à porta da memória. Primeiro pela sua sublime banda-sonora: Eddie Sauter/Stan Getz na música, o que já não é pouco, são o clássico e o barroco que se conjugam num só fôlego, num apenas; não há volta atrás. Ghislain Cloquet na fotografia, noutras palavras o preto e branco imaculado de um tempo em que também o cinzento, toda a gama de cinzentos, existia. Um guião intimamente ligado aos seus actores (ou o contrário, já não sabemos). E ainda tantas outras coisas, indizíveis. Mickey One é um apelo veemente à paranóia, ou antes um apelo da paranóia, ardente, febril, que ocupa o tempo dum filme com o corpo de um comediante de stand up prestes a enlouquecer (Warren Beatty no seu melhor papel). O que é que o agita, a Mickey? Será mesmo perseguido (em certos momentos, duvida-se) pela máfia (na pessoa do misterioso Hurt Hatfield - 1918-1998 -, o actor genial de O Retrato de Dorian Gray de Albert Lewin, e sobretudo de O Diário de Uma Criada de Quarto, uma das obras-primas americanas de Jean Renoir). 
 
Raramente os sintomas, digamos para sermos rápidos os de Lenny Bruce ou de Phil Spector, foram tão bem encarnados. O regresso violento, o ódio de si próprio, o medo de si próprio… está tudo em Mickey One. Será verdade? Não sei nada, mas todo o ser humano minimamente honesto (que não tenha demasiado medo de si mesmo) reconhecer-se-á aqui. 
 
PS. Arthur Penn fez treze filmes. Esqueçam os outros doze. Esqueçam The Left Handed Gun (1958), a sua primeira longa-metragem torturada com tiques do Actor’s Studio, com um Paul Newman medíocre e epiléptico. Esqueçam O Milagre de Anne Sullivan (1962), melodrama hiper-realista igualmente embebido de tiques expressionistas. Esqueçam The Chase (1966). Esqueçam o demasiado célebre Bonnie e Clyde (1967), clipe demasiado longo cheio de poses e de languidez. Esqueçam Alice’s Restaurant (1969), com o deplorável Arlo Guthrie, que envelheceu tão mal, O Pequeno Grande Homem (1970), com o medíocre do Dustin Hoffman, ou Night Moves (1975), ou Missouri Breaks (1976), ou Quatro Amigos (1981), ou ainda Target (1985). Esqueçam todos estes filmes demasiado teatrais, demasiado trabalhados, demasiado preparados, para reter de Arthur Penn apenas este estranho Mickey One, OVNI americano com aparência de experimentação da Nouvelle Vague, cuja versão final parece ter sido literalmente massacrada no seu lançamento, em 1965. 

PS 2. Ouçam os dois inéditos dum mestre esquecido do rockabilly, Billy Lee Riley, que acaba de morrer, publicados pela Bear Family. Era um dos ídolos de Dylan, que tinha recuperado o seu muito actual "Reposession Blues", e que o tinha encorajado a voltar aos palcos. Ouçam também o último Robert Wyatt, "For The Ghosts Within". A versão dele de "What a wonderful world" é uma maravilha absoluta.

in «club skorecki», publicação de 14 de Outubro de 2010.

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