sexta-feira, 31 de maio de 2024

Arthur Penn e a Nouvelle Vague


por Luc Lagier (com a colaboração de Nicholas Franklin)

Nascido no início dos anos 20, Arthur Penn realizou o seu primeiro filme, The Left Handed Gun com Paul Newman, no final dos anos 50 pouco antes do surgimento da Nouvelle Vague. Penn foi então próximo de Truffaut e Godard. O seu interesse pelo cinema europeu sente-se em filmes como Mickey One com Warren Beatty, Um Lance no Escuro com Gene Hackman (com essa magnífica citação de A Minha Noite em Casa de Maud de Éric Rohmer, aqui) e sobretudo Bonnie e Clyde que Truffaut e Godard quase realizaram antes dele. 
 
Na altura de comemorar os 50 anos da Nouvelle Vague, Arthur Penn aceitou portanto imediatamente a nossa proposta de entrevista («Como é que poderia recusar?» disse-nos ele). Concedeu-nos então um encontro no seu apartamento nova-iorquino junto ao Central Park para evocar lembranças antigas, alguns meses antes do seu desaparecimento que aconteceu no mês de Setembro de 2010. 
 
Qual foi o primeiro filme da Nouvelle Vague que descobriu? 
Arthur Penn: Penso que foi Os Quatrocentos Golpes. Lembro-me de ter ficado muito emocionado com o filme e com o seu aspecto autobiográfico, a forma como Truffaut tinha concebido o filme como uma necessidade vital, uma forma de se salvar a si próprio de uma infância dolorosa. E depois, claro, o último plano com a imagem parada de Jean-Pierre Léaud na praia marcou-me muito. Foi o início de uma libertação em relação ao meio cinematográfico à qual não estávamos de todo habituados. Pouco tempo depois saiu O Acossado que também teve o efeito de uma revolução. A montagem, a forma de contar uma história, era completamente nova na altura… 
 
Nessa altura já tinha realizado The Left Handed Gun
Sim, eu tinha feito The Left Handed Gun em Hollywood no final dos anos 50 e aquilo tinha sido uma experiência terrível porque assim que a rodagem terminara, outra pessoa qualquer tinha-o montado e para mim isso era inaceitável. Portanto deixei Hollywood e regressei a Nova Iorque para trabalhar em teatro na Broadway. Pensei em parar de fazer filmes. E depois The Left Handed Gun teve muito boas críticas na Europa e especialmente em França. André Bazin defendeu muito o filme nos Cahiers du cinéma e creio que Godard e Truffaut também o tinham adorado. Eles tinham gostado que o filme não respeitasse totalmente os esquemas hollywoodianos tradicionais. Havia lá um aspecto um pouco bruto, um pouco ingénuo em The Left Handed Gun que talvez tenha influenciado os futuros cineastas da Nouvelle Vague. Essa recepção tocou-me imenso e o filme tinha encontrado finalmente o seu público em França e na Europa. 
Algum tempo depois, realizei O Milagre de Anne Sullivan e o filme teve algum sucesso. Como resultado, para o meu filme seguinte, coloquei-me a questão: «quero fazer filmes originais ou apenas ganhar dinheiro?». Cometi o erro de querer antes ganhar dinheiro, aceitei o guião de O Comboio com Burt Lancaster, comecei as audições, escolhi inclusivamente Jeanne Moreau de quem tinha gostado em Jules e Jim e nos filmes de Louis Malle, mas alguns dias antes do início das rodagens abandonei a produção. Em suma, nessa altura, travei muitas batalhas contra o sistema hollywoodiano e perdi-as a todas. Por isso, é inútil dizer-vos que depois destas experiências dolorosas, os filmes de Truffaut ou de Godard eram para mim o exemplo a seguir. 
 
Nessa altura, sentiu que o próprio cinema americano estava num momento de viragem, que tinha chegado a altura para tentativas cinematográficas mais originais ? 
Sim, sem dúvida. O cinema americano estava a atravessar uma crise de identidade. Os estúdios continuavam a produzir filmes ultrapassados que já não queríamos ver. Havia um apetite por filmes mais originais, mais aventurosos, em todo o caso diferentes mesmo se ainda não se soubesse exactamente o quê. De qualquer das formas, os filmes da Nouvelle Vague, por serem mais pessoais, pareciam-nos ser os modelos a seguir. 
 
Há uma cena célebre em O Acossado, Belmondo diante de uma fotografia de Bogart ou ainda em Os Quatrocentos Golpes, Jean-Pierre Léaud a roubar uma fotografia de Mónica e o Desejo de Bergman. Os filmes da Nouvelle Vague não foram os primeiros filmes cinéfilos da História do cinema, a citar abertamente os filmes do passado? 
Com certeza. Mas isso, era apenas a superfície. Porque a originalidade desses filmes ia muito mais longe do que essas simples citações. Havia uma dimensão quase anárquica no cinema deles, como se nos estivessem a dizer: «estou-me bem a marimbar para saber se isso foi feito antes, é assim que eu quero contar a minha história e não de outra forma». Então é claro que havia inúmeras referências explícitas ao passado, mais subjacente a isso, também havia essa dimensão iconoclasta que parecia justamente varrer com o cinema do passado. 
 
Nunca foi tão próximo de Truffaut e de Godard como na altura de Bonnie e Clyde no final dos anos 60. Pode-nos contar a génese desse filme que Truffaut e depois Godard quase realizaram ? 
O argumento tinha sido escrito por David Newman e Robert Benton e eles na altura foram muito influenciados por Jules e Jim e Disparem Sobre o Pianista de Truffaut. No início dos 60, eles mandaram-me o argumento para saber se eu estava interessado mas já me tinha comprometido com The Chase, uma produção bastante pesada com Marlon Brando. Para mais, o argumento não estava totalmente concluído. Então, eles enviaram-no a François Truffaut que estava interessado. Ele encontrou Newman e Benton, fez-lhes inúmeras sugestões, acho que a cena do poema, quando Bonnie recita a sua prosa a Clyde e o poema vai parar aos jornais e depois à esquadra foi ateada por Truffaut. Truffaut hesitou muito, não se conseguia decidir. Finalmente disse que não, mas disse a Benton e Newman: «Porque é que não se propõe o filme a Godard?». Os dois argumentistas ficaram bastante entusiasmados, os produtores um pouco menos. Godard teve uma reunião com a produção e disse-lhes: «OK, rodamos o filme imediatamente em pleno Inverno, em duas semanas, no Texas». Os produtores ficaram assustados, responderam-lhe que não era possível, que o argumento era suposto desenrolar-se no Verão. Godard respondeu então: «Eu falo-vos de cinema, vocês falam-me de meteorologia. Adeus». Basicamente eram dois mundos radicalmente diferentes. E depois um dia Warren Beatty veio a Paris, nessa altura ele estava com Leslie Caron. Eles jantaram com Truffaut que lhes falou do argumento de Benton e Newman. De volta a Hollywood, Warren Beatty pediu uma cópia e comprou os direitos. Benton e Newman insistiram de novo para que Truffaut ou Godard realizassem o film. Também creio que houve um encontro entre Warren Beatty e Godard. Mas Beatty depois disse a Benton e a Newman que a partir do momento em que tinham um guião muito Nouvelle Vague, definitivamente que não precisavam de um cineasta francês mas antes americano. E o Warren, com quem tinha rodado Mickey one, propôs que eu o realizasse e desta vez aceitei. Eis toda a história. 
 
Na sua opinião, porque é que Truffaut acabou por não realizar Bonnie e Clyde
Não há dúvida nenhuma que ele desconfiava imenso dos produtores. Suspeitava certamente que o sistema americano não combinaria com ele, que nunca iria encontrar a liberdade que tinha em França. 
 
Falou com ele sobre Bonnie e Clyde, na altura ? 
Não. Uma vez que aceitei realizá-lo, decidi fazê-lo à minha maneira sem me preocupar com aquilo que se tinha passado. E no final não sei o que é que Truffaut achou do filme terminado. Sei que Godard não gostou nada… 
 
Isso dito nessa altura, poucos filmes encontravam favor aos seus olhos… 
Sim, foi o que me foi dado a entender… 
 
Assim que aceitou realizar Bonnie e Clyde, alterou muito o argumento ? 
Sim, porque o argumento era um bocado complexo demais, sofisticado demais, elaborado demais. Faltava-lhe algo de rústico, de natural. Apesar de tudo, aquilo falava de gente simples, Bonnie e Clyde não eram intelectuais. Então, introduzi um estilo mais directo ao filme e simplifiquei as personagens. No argumento havia uma espécie de relação a três inspirada por Jules e Jim. Warren Beatty e Michael Pollard estavam os dois apaixonados por Faye Dunaway, o que na verdade já não está no filme terminado. O fim também era diferente. Bonnie e Clyde eram simplesmente abatidos como num filme de gangsters clássico e eu não queria fazer exactamente um filme de gangsters clássico. Queria algo mais emblemático da nossa época, mais alinhado com a violência que vivíamos na América no final dos anos 60. Portanto deitei fora o final previsto e impus outro enquanto poucas pessoas me apoiavam e compreendiam aquilo que queria fazer. E isso resultou no final sangrento que vocês conhecem. 

Em que é que Bonnie e Clyde é um filme inspirado pela Nouvelle Vague ? 
Sabem que no final dos anos 60, a Nouvelle Vague quase tinha entrado na linguagem comum. A Nouvelle Vague já não era assim tão nova quanto isso. Toda a gente a começava a absorver nos Estados Unidos e noutros lugares. E não só a Nouvelle Vague, aliás, mas também o cinema de Bergman ou o do neo-realismo italiano no mesmo período. Portanto, é difícil dizer hoje em dia quais são especificamente os aspectos de Bonnie e Clyde inspirados pela Nouvelle Vague. Praticamente tudo, sem dúvida. Mais uma vez, estávamos em 1967, havia um sentimento de revolta que iria explodir na América e na França por volta do ano de 68. Era o advento de uma nova juventude, de movimentos contestatários contre a guerra do Vietname. Nessa altura já não se podia dizer que tal elemento vinha de um filme de Truffaut ou de Godard, esse cinema já tinha sido admitido e integrado por toda a gente. 
 
Pode falar-nos da sequência de abertura de Bonnie e Clyde com aquela série de grandes planos sobre o rosto de Faye Dunaway sem nenhum diálogo. É uma abertura quase experimental… 
Sim, lembro-me disso, claro. Vi-me naquele quarto pequeno com pouco espaço à minha disposição para rodar. Então perguntei-me «como é que se apresenta esta rapariga?». Disse a mim mesmo que era preciso mostrar o apetite dela, a sua sede de liberdade. Foi por isso que optei por uma série de grandes planos da boca dela, dos olhos, etc. e depois não parei de fazer a minha câmara mexer. Sem dúvida, era uma forma pouco habitual de começar um filme em Hollywood. E é curioso porque essa sequência de abertura foi muito bem aceite. Foi antes o final sangrento que provocou debate e suscitou fortes críticas, o que era evidentemente ridículo. Estávamos em plena guerra do Vietname e a violência invadia todos os ecrãs de televisão. Que hipocrisia, querer escondê-la nos filmes! 
 
Há um detalhe engraçado. Em Bonnie e Clyde, a personagem de Michael Pollard passa o polegar por cima dos lábios, imitando Belmondo que já imitava Humphrey Bogart como se, para a vossa geração, fosse preciso fazer um desvio pela Europa para encontrar algo de tipicamente americano… 
Sim, eu lembro-me bem desse detalhe e foi muito intencional da parte do Michael. Mas é normal, nessa altura todos os actores roubavam maneiras, atitudes e tiques aos outros. E claro que os actores viam os filmes da Nouvelle Vague. Faye Dunaway gostava imenso de Jeanne Moreau e tomou-lhe a sua forma de fumar, etc. Toda a gente tomava emprestadas pequenas coisas dos filmes dos outros. 
 
Para si, o final dos anos 60 nos Estados Unidos corresponde a uma idade de ouro comparável ao que se passou em França dez anos antes? 
Sim, mudou tudo no final de 60. Os estúdios perderam o poder em favor das televisões. Começaram tornar-se cautelosos e já não sabiam que género de filmes era preciso fazer. O velho sistema dos anos 50 já não funcionava. Apesar de os estúdios produzirem, os filmes eram fracassos, o público preferia ficar em casa a ver televisão. Na altura em que realizava Bonnie e Clyde, Jack Warner estava em Nova Iorque para vender o estúdio. Então não havia mais ninguém no comando para controlar Bonnie e Clyde e Warren Beatty, que era um tipo muito esperto, fez a ligação entre nós e o estúdio. Pudemos partir para rodar no Texas e fazer o filme que queríamos fazer. Foi por isso que Bonnie e Clyde se tornou um filme de autor, não tinha o estúdio às costas. 
 
Porque é que, durante essa idade de ouro, os cineastas americanos como o senhor, Coppola, Altman e os outros não formaram por vossa vez um colectivo comparável à Nouvelle Vague? 
Porque isso simplesmente não era possível na América. Alguns cineastas vivem em Los Angeles, outros em Nova Iorque ou noutros sítios. Não há proximidade nenhuma, nenhuma oportunidade de se encontrarem, de se reunirem, de partilharem. A América é um país grande demais para esse género de movimento. Temos apenas o Francis Coppola que tentou formar um colectivo com George Lucas e outros estudantes da USC na Califórnia ou o grupo que se formou com Michael Wadleigh, Scorsese, De Palma em torno da New York University. Mas isso nunca durou muito tempo e eles dispersaram-se rápido pelos quatro cantos da América. Em Paris, era diferente. Toda a gente se podia encontrar, discutir, debater, ir ao cinema em conjunto, etc. Mas aqui é impossível. Eu gostava de Monte Hellman mas nunca o via. O mesmo com William Friedkin que não vejo há trinta anos. Portanto aqui não temos a possibilidade de formar um grupo. Jonas Mekas tentou com o New American Cinema em Nova Iorque mas manteve-se um colectivo bastante marginal sem grande influência sobre o público. 
 
Finalmente, 50 anos depois, que imagem é que guarda da Nouvelle Vague? 
A imagem de filmes em acordo com a juventude do seu tempo. Filmes novos, refrescantes. Uma certa insolência também, o que deu filmes que inventaram novas regras. Era uma forma de afirmar: «eu sei como é que os filmes se faziam até aqui, então agora vamos fazê-los como queremos e não temos regra alguma para respeitar».

in «Arthur Penn et la Nouvelle Vague», entrevista com Arthur Penn, Blow Up, 2010.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

BONNIE E CLYDE (1967)


1967 – USA (111') ● Prod. Tatira-Hiller Production/Warner ● Real. ARTHUR PENN ● Gui. David Newman e Robert Benton ● Fot. Burnett Guffey (Technicolor) ● Mús. Charles Strouse ● Int. Warren Beatty (Clyde Barrow), Faye Dunaway (Bonnie Parker), Michael J. Pollard (C. W. Moss), Gene Hackman (Buck Barrow), Estelle Parsons (Blanche Barrow), Dub Taylor (Ivan Moss), Gene Wilder (Eugene Grizzard), Denver Pyle (Frank Hamer), Evans Evans (Velma Davis). 
 
A odisseia sangrenta de Bonnie Parker e de Clyde Barrow começa no Texas nos anos 30. Bonnie ficou fascinada com Clyde a partir do momento em que o viu e deixou o bar onde trabalhava por ele. Ele tinha estado na prisão. Rouba uma loja à frente dela, para a impressionar, depois desaparecem de carro. Ele avisa-a logo que se interessa pouco no amor (de qualquer forma, é impotente). Ensina-a a servir-se de uma arma. Encontram uma família de camponeses despojados da sua quinta por um banco. Convidam o camponês a disparar sobra a sua antiga casa, para descomprimir. Clyde quer assaltar um banco, mas – cúmulo dos azares – foi à falência. Um gasolineiro, o jovem C. W. Moss, encontrado na estrada, deixa a sua estação de serviço para acompanhar Bonnie e Clyde nas suas viagens e nos seus saques. Depois de um assalto, Clyde mata um homem agarrado ao seu carro que lhes obstruía a fuga. O trio vai-se juntar ao irmão de Clyde, Buck, acabado de sair da prisão, e a sua esposa Blanche na sua quinta. A polícia cerca a casa e, durante o tiroteio, Buck mata um polícia. O grupo consegue escapar. No carro deles, que agora é a sua verdadeira casa, os gangsters lêem com orgulho os artigos abundantes que a imprensa lhes dedica. No Missouri, capturam um ranger do Texas, Frank Hamer, e obrigam-no a posar com eles. Depois de outro assalto, apoderam-se do carro de um desconhecido que se tornará amigo deles durante algumas horas. Mas, quando descobrem que é agente funerário, abandonam-no na natureza. O grupo vai depois a casa da mãe de Bonnie, que a quer ver uma última vez. Piquenique familiar. Moss e Blanche fazem recados e são detectados pela polícia. No tiroteio geral. Buck é ferido mortalmente. Blanche, igualmente ferida, é capturada. Bonnie, Clyde e Moss vão refugiar-se em casa do pai deste último, Malcolm Moss. Frank Hamer questiona Blanche de forma engenhosa na clínica. A ferida dela deixou-a cega. Ela dá a identidade de Moss, até aí desconhecida pela polícia. Bonnie e Clyde conseguiram fazer amor pela primeira vez. Clyde quer-se casar com a companheira. Numa estrada, não longe da quinta de Malcolm Moss, Bonnie e Clyde são abatidos por atiradores postados em emboscada. 
 
► Em 1958, num pequeno filme B nervoso e crepuscular, William Witney tinha contado a história de Bonnie Parker (The Bonnie Parker Story). Bonnie aparecia como uma verdadeira fúria libertária, desprezando os homens da sua comitiva (o seu marido e os seus amantes), comandando-os pela sua astúcia, a sua determinação, a sua audácia. Sob o plano estritamente narrativo, o filme de Penn, mais rico e mais trabalhado, não traz nenhum elemento novo (e Faye Dunaway parece-se muito com Dorothy Provine, a Bonnie de Witney, menos violenta). Não é verdadeiramente superior ao filme de Witney e é frequentemente mais convencional. A sua principal originalidade, que deve em parte ao imortal Gun Crazy de Joseph H. Lewis, é descrever a saga de dois fora-da-lei sangrentos como uma história de um casal : um casal vacilante formado por um impotente e uma mulher frustrada (que o era, parece, mesmo antes de conhecer o seu parceiro). Na altura do seu lançamento, o filme já estava um pouco desactualizado na sua concepção de personagens, herdada de Kazan, de quem Penn sempre foi uma espécie de sucessor menos criativo : a saber, dois neuróticos cheios de problemas psicológicos e sexuais procuram exorcizá-los de forma confusa pela violência. Foi sobretudo a imaturidade das duas personagens que parece ter fascinado Arthur Penn. Ele pintou-os como duas crianças degeneradas, sem objectivos, revoltadas contra uma sociedade de adultos que só lhes tem para oferecer a sua incoerência, a sua fraqueza, a sua ordem absurda e injusta. Os agricultores são arruinados pelos bancos que por sua vez vão à falência. Bonnie e Clyde colhem a sua parte ao passar, opondo-se a um sistema, não a indivíduos. O imenso sucesso do filme (lançado em França no início de 1968) veio em grande medida da sua actualidade sociológica. A crise dos anos da Depressão descrita aqui com humor e um grande sentido do absurdo dizia também respeito, de uma certa maneira, à década que nessa altura terminava, tanto pelo seu conteúdo como pelo tom com o qual ela foi abordada. O filme agradou igualmente pela sua violência barroca, coreográfica, estetizante e bastante complacente, adiantado mais de um ano em relação a A Quadrilha Selvagem que precedeu pelos seus movimentos sangrentos em câmara lenta da sua última sequência mostrando os solavancos e a queda dos dois heróis crivados de balas. 
 
N.B. Os dois argumentistas, David Newman e Robert Benton passaram rápido para a realização. Robert Benton assinou vários filmes interessantes. Mais do que o sobrevalorizado Kramer vs Kramer (1979), convém assinalar Bad Company (1972), o seu primeiro filme, western na veia da crueldade, essa veia em que se encontram nos anos 70 os raros filmes de valor de um género em vias de extinção (cf. A Gunfight, Um de Nós Tem de Morrer de Lamont Johnson, 1971; Ulzana's Raid, Ulzana, O Perseguido de Robert Aldrich, 1972; The Spikes Gang de Richard Fleischer, 1974). 

BIBLIO. : guião e diálogos in «The Bonnie and Clyde Book» editado por Sandra Wake e Nicola Hayden, Lorrimer, Londres, 1972. O volume contém entrevistas aos principais colaboradores e artigos críticos. Igualmente no volume «Best American Screenplays» editado por Sam Thomas, Crown Publishers, Nova Iorque, 1987.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire des films. **De 1951 à nos jours Suivi d’Écrits sur le cinéma», Robert Laffont, Paris, 2022.