Após o genérico, o écran fica por uns momentos totalmente negro. Ouve-se o apito de um comboio e, segundos depois, vozes. Quando se "faz luz" encontramo-nos numa carruagem, com Joan Fontaine num banco e Cary Grant no outro. Frente a frente. O espectador apercebe-se, então, que a escuridão provinha da travessia de um túnel.
No escuro, um homem e uma mulher, sentados frente a frente, viajam juntos, com um silvo como fundo sonoro. Assim começa Suspicion, o quarto filme americano de Hitchcock.
Quando começamos a ver, a câmara subjectiva-se (como ao longo de todo o filme, será uma constante) no olhar de Joan Fontaine, de óculos, chapéu, com ar assustado, lendo um livro sobre psicologia infantil. É pelos olhos dela que vemos Cary Grant, ostentando por contraste um magnífico à-vontade (a história do bilhete, o "cravanço" a Joan Fontaine). Temos a sensação (o ajustar dos óculos de Fontaine) que aquela mulher dificilmente se habitua à luz, ao contrário do seu companheiro de viagem, à vontade nela. De que escuridão provém Joan Fontaine? Ao longo das primeiras sequências vão-nos sendo dadas informações: o peso puritano da família (repare-se na omnipresença do pai, perpetuada, depois da morte, pelo retrato), a fixação no estádio infantil (a psicologia das crianças tanto se aplica a ela, como ela a aplica a Cary Grant que tende a ver como "criança grande", chegando a perguntar-lhe se não será tempo de ele crescer), o medo do amor físico (o fabuloso plano do primeiro beijo-luta, visto de tão longe), a timidez, o desequilíbrio interior e exterior (o plano dela a cavalo). "Monkey face" chama-lhe Cary Grant, enquanto a ela vão sendo associadas imagens tutelares das grandes instituições: igreja, polícia, família. Tudo, no seu modo de vestir e de andar, insinua um mal-estar, um medo, uma aflição que provém dum background mais insinuado do que explicitado mas de que não são dados os elementos suficientes (Donald Spoto aproximou-a, e com razão, da Marnie do filme do mesmo nome que Hitchcock faria 23 anos mais tarde).
A sequência do baile (primeira sequência plenamente iluminada, primeira sequência em que Joan Fontaine abandona os óculos) parece preparar-nos para outra claridade que rima com a rápida passagem pela lua de mel e pela primeira casa do casal. Mas a rápida descoberta de que o marido não tem um vintém e a suspeita de que terá casado com ela por dinheiro, lançam-na outra vez na mesma obscuridade.
Daí para diante, o filme prossegue com a alternância de momentos claros (aqueles em que Joan Fontaine acredita ou volta a acreditar) e de momentos escuros (aqueles em que totalmente suspeita). E os elementos iniciais vão-se conjugando como num puzzle para reforçar esse sentimento de escuridão. Alguns exemplos mais notórios:
Joan Fontaine sabe que o marido fez um desfalque. Este chega com ar sombrio, julgando ela (e nós) que se prepara para a confissão. Mas vem-lhe anunciar a morte do pai, da qual, evidentemente, espera receber lucros. Só na escura sequência da leitura do testamento, o espectador saberá até que ponto Cary Grant se sente frustrado ("You win, old boy"). A morte do pai não liberta a filha, mas mais e mais a introduz na escuridão.
Joan Fontaine, Cary Grant e Nigel Bruce jogam um puzzle de letras. Joan Fontaine forma a palavra mudder (uma raça de cavalos) mas muda-a para murder (crime) e depois murderer (assassino). É nessa obscuríssima sequência que ela se convence que o marido quer matar Nigel Bruce e imediatamente tem o assombroso sonho em que vemos Grant a lançar o amigo do alto da falésia. O cavalo ligou-se ao crime, recordando a associação inicial (na sequência da caçada) quando a primeira tentativa de Cary Grant para a beijar tem algo (porque filmada de longe) de uma tentativa de agressão. A claridade intervém quando os dois regressam, com Bruce são e salvo. Mas a obscuridade volta quando Bruce conta que esteve quase a morrer.
Joan Fontaine convence-se que o marido a quer matar (o inadjectivável jantar, requintadamente hitchcockiano, em casa da escritora, com o marido de óculos). A morte virá na intensa claridade do copo de leite (Hitchcock meteu-lhe um projector lá dentro "porque era preciso que o copo fosse extremamente luminoso") contrastando com todas as sombras que rodeiam Cary Grant.
E, quando se podia pensar num final luminoso (após a explicação de Cary Grant) tudo se volta a obscurecer, porque, de facto, é só mais uma explicação e ninguém tem muitas razões para acreditar que esta seja mais convincente ou verdadeira do que as outras.
Acabamos como começámos: num túnel escuro, sem saber a verdade. Acabamos como começámos: na suspeita.
Sabe-se que Hitchcock teve que aceitar (como já tinha acontecido em Rebecca) mudar o final do livro donde o filme foi extraído. No livro ("Before the Fact") Cary Grant matava mesmo a mulher. Mais uma vez os códigos de Hollywood impediram que o herói fosse um criminoso. Mas esta modificação só introduziu mais ambiguidade: como notou Truffaut, a história de uma mulher que descobre que o marido é um assassino transformou-se na história de uma mulher que julga que o marido é um assassino. Todas as descobertas de Joan Fontaine são pseudo-descobertas ou, pelo menos, nunca provam nada cabalmente. Cary Grant tem sempre uma explicação. Mas as explicações de Cary Grant (inclusivé ou sobretudo a final) são também pseudo-explicações que também nunca provam nada cabalmente. A suspeita continua indefinidamente. Dela vive (ou morre?) a protagonista, a ponto de se poder dizer (e volte-se de novo à sequência do sonho) que tudo o que se passa é ficção de Joan Fontaine, projecção do seu próprio desejo de continuar permanentemente no túnel e no escuro onde conheceu Cary Grant. Se quisermos aplicar ao filme a lógica do sonho, podemos dizer que tudo não passou de um pesadelo, entre a obscuridade inicial e os frequentes sonhos e sonos da protagonista, cujo olhar nos guia ao longo do filme. Só que só se acorda (ela e nós) para um pesadelo pior, de que o happy end não nos liberta. Antes pelo contrário.
Tudo neste filme fica suspenso. No espaço que vai do desequilíbrio de Joan Fontaine ao equilíbrio de Cary Grant. No medo, na vertigem e na voragem.
Se o final fosse esclarecedor (num sentido ou noutro) podíamos abandonar a suspeita. Readquiríamos a confiança ou confirmávamos a desconfiança. Assim, qualquer desses caminhos nos está vedado. Temos todos os indícios para continuar a suspeitar mas nunca saberemos se essa suspeita era fundada. O que é a própria definição do termo suspeita: algo de sempre suspenso entre uma confiança e uma desconfiança.
Por isso, este filme que começa num túnel termina numa falésia. Saímos do lugar das trevas e chegámos à beira do abismo. Suspicion, que pessoalmente não tenho dúvidas em considerar um dos momentos culminantes da obra de Hitchcock, é a história da viagem de um lugar a outro.
in AS FOLHAS DA CINEMATECA - Alfred Hitchcock
Quando começamos a ver, a câmara subjectiva-se (como ao longo de todo o filme, será uma constante) no olhar de Joan Fontaine, de óculos, chapéu, com ar assustado, lendo um livro sobre psicologia infantil. É pelos olhos dela que vemos Cary Grant, ostentando por contraste um magnífico à-vontade (a história do bilhete, o "cravanço" a Joan Fontaine). Temos a sensação (o ajustar dos óculos de Fontaine) que aquela mulher dificilmente se habitua à luz, ao contrário do seu companheiro de viagem, à vontade nela. De que escuridão provém Joan Fontaine? Ao longo das primeiras sequências vão-nos sendo dadas informações: o peso puritano da família (repare-se na omnipresença do pai, perpetuada, depois da morte, pelo retrato), a fixação no estádio infantil (a psicologia das crianças tanto se aplica a ela, como ela a aplica a Cary Grant que tende a ver como "criança grande", chegando a perguntar-lhe se não será tempo de ele crescer), o medo do amor físico (o fabuloso plano do primeiro beijo-luta, visto de tão longe), a timidez, o desequilíbrio interior e exterior (o plano dela a cavalo). "Monkey face" chama-lhe Cary Grant, enquanto a ela vão sendo associadas imagens tutelares das grandes instituições: igreja, polícia, família. Tudo, no seu modo de vestir e de andar, insinua um mal-estar, um medo, uma aflição que provém dum background mais insinuado do que explicitado mas de que não são dados os elementos suficientes (Donald Spoto aproximou-a, e com razão, da Marnie do filme do mesmo nome que Hitchcock faria 23 anos mais tarde).
A sequência do baile (primeira sequência plenamente iluminada, primeira sequência em que Joan Fontaine abandona os óculos) parece preparar-nos para outra claridade que rima com a rápida passagem pela lua de mel e pela primeira casa do casal. Mas a rápida descoberta de que o marido não tem um vintém e a suspeita de que terá casado com ela por dinheiro, lançam-na outra vez na mesma obscuridade.
Daí para diante, o filme prossegue com a alternância de momentos claros (aqueles em que Joan Fontaine acredita ou volta a acreditar) e de momentos escuros (aqueles em que totalmente suspeita). E os elementos iniciais vão-se conjugando como num puzzle para reforçar esse sentimento de escuridão. Alguns exemplos mais notórios:
Joan Fontaine sabe que o marido fez um desfalque. Este chega com ar sombrio, julgando ela (e nós) que se prepara para a confissão. Mas vem-lhe anunciar a morte do pai, da qual, evidentemente, espera receber lucros. Só na escura sequência da leitura do testamento, o espectador saberá até que ponto Cary Grant se sente frustrado ("You win, old boy"). A morte do pai não liberta a filha, mas mais e mais a introduz na escuridão.
Joan Fontaine, Cary Grant e Nigel Bruce jogam um puzzle de letras. Joan Fontaine forma a palavra mudder (uma raça de cavalos) mas muda-a para murder (crime) e depois murderer (assassino). É nessa obscuríssima sequência que ela se convence que o marido quer matar Nigel Bruce e imediatamente tem o assombroso sonho em que vemos Grant a lançar o amigo do alto da falésia. O cavalo ligou-se ao crime, recordando a associação inicial (na sequência da caçada) quando a primeira tentativa de Cary Grant para a beijar tem algo (porque filmada de longe) de uma tentativa de agressão. A claridade intervém quando os dois regressam, com Bruce são e salvo. Mas a obscuridade volta quando Bruce conta que esteve quase a morrer.
Joan Fontaine convence-se que o marido a quer matar (o inadjectivável jantar, requintadamente hitchcockiano, em casa da escritora, com o marido de óculos). A morte virá na intensa claridade do copo de leite (Hitchcock meteu-lhe um projector lá dentro "porque era preciso que o copo fosse extremamente luminoso") contrastando com todas as sombras que rodeiam Cary Grant.
E, quando se podia pensar num final luminoso (após a explicação de Cary Grant) tudo se volta a obscurecer, porque, de facto, é só mais uma explicação e ninguém tem muitas razões para acreditar que esta seja mais convincente ou verdadeira do que as outras.
Acabamos como começámos: num túnel escuro, sem saber a verdade. Acabamos como começámos: na suspeita.
Sabe-se que Hitchcock teve que aceitar (como já tinha acontecido em Rebecca) mudar o final do livro donde o filme foi extraído. No livro ("Before the Fact") Cary Grant matava mesmo a mulher. Mais uma vez os códigos de Hollywood impediram que o herói fosse um criminoso. Mas esta modificação só introduziu mais ambiguidade: como notou Truffaut, a história de uma mulher que descobre que o marido é um assassino transformou-se na história de uma mulher que julga que o marido é um assassino. Todas as descobertas de Joan Fontaine são pseudo-descobertas ou, pelo menos, nunca provam nada cabalmente. Cary Grant tem sempre uma explicação. Mas as explicações de Cary Grant (inclusivé ou sobretudo a final) são também pseudo-explicações que também nunca provam nada cabalmente. A suspeita continua indefinidamente. Dela vive (ou morre?) a protagonista, a ponto de se poder dizer (e volte-se de novo à sequência do sonho) que tudo o que se passa é ficção de Joan Fontaine, projecção do seu próprio desejo de continuar permanentemente no túnel e no escuro onde conheceu Cary Grant. Se quisermos aplicar ao filme a lógica do sonho, podemos dizer que tudo não passou de um pesadelo, entre a obscuridade inicial e os frequentes sonhos e sonos da protagonista, cujo olhar nos guia ao longo do filme. Só que só se acorda (ela e nós) para um pesadelo pior, de que o happy end não nos liberta. Antes pelo contrário.
Tudo neste filme fica suspenso. No espaço que vai do desequilíbrio de Joan Fontaine ao equilíbrio de Cary Grant. No medo, na vertigem e na voragem.
Se o final fosse esclarecedor (num sentido ou noutro) podíamos abandonar a suspeita. Readquiríamos a confiança ou confirmávamos a desconfiança. Assim, qualquer desses caminhos nos está vedado. Temos todos os indícios para continuar a suspeitar mas nunca saberemos se essa suspeita era fundada. O que é a própria definição do termo suspeita: algo de sempre suspenso entre uma confiança e uma desconfiança.
Por isso, este filme que começa num túnel termina numa falésia. Saímos do lugar das trevas e chegámos à beira do abismo. Suspicion, que pessoalmente não tenho dúvidas em considerar um dos momentos culminantes da obra de Hitchcock, é a história da viagem de um lugar a outro.
in AS FOLHAS DA CINEMATECA - Alfred Hitchcock
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