por Raoul Walsh
Estava na sala de projecção a ver algumas provas de rodagem, quando o telefone tocou. Era Frank Woods, que disse que Griffith me queria ver no escritório dele imediatamente. Estava lá com um par de homens, em representação da Mutual Film Company. Quando lá cheguei, Griffith estava a passear pela porta como de costume. Raramente encontrei Griffith sentado, em toda a minha associação com ele.
“O Sr. Woods disse-me que passou algum tempo no México,” disse ele. Eu acenei com a cabeça.
Ele fez-me um dos seus sorrisos pouco frequentes e acenou a um dos homens do dinheiro. “Este cavalheiro é do escritório da Mutual em Nova Iorque. A Mutual fez um acordo com Pancho Villa, o revolucionário mexicano, para rodar um filme com ele e com o seu exército. Os rumores dizem que Villa vai marchar em breve até à Cidade do México para atacar o general Carranza. Quer o trabalho?”
Aí estava, mesmo no meu colo. Disse que sim e Frank deu-me um assentimento com a cabeça à medida que Griffith continuava: “Vai realizar o filme, a Mutual fornece um operador de câmara e o General Villa vai receber quinhentos dólares em ouro todos os meses enquanto a produção continuar.” Ele não me disse que Villa tinha matado um aspirante a promotor que lhe ofereceu papel-moeda. “Alguma pergunta?”
A velha coceira estava de volta e a única coisa que dava para fazer era sorrir para ele e perguntar, “Quando começo?”
Frank Woods olhou para o relógio dele. “Em quatro horas e vinte minutos.”
“Não há guião,” prosseguiu Griffith. “Aqui está um livro sobre Villa. “Não é novo mas vai pô-lo a par do início da vida dele. O comboio leva três dias a ir de Los Angeles para El Paso. Isso deve-lhe dar tempo para começar a história. As sequências resolvem-se por si próprias.”
Ele interrompeu o passeio dele tempo suficiente para me apertar a mão. “Boa sorte, Sr. Walsh.” Não disse adeus. Parecia pensar que eu ia voltar vivo. Isso pelo menos era encorajador.
O Frank levou-me ao caixa e levantou quinhentos dólares. “Aqui está dinheiro para as tuas despesas, e isto é o teu bilhete de comboio e a reserva para as dormidas. O Sunset Limited sai às oito. Pensa numa história que o general goste e, por amor de Deus, nunca te refiras a ele como bandido. Pela parte que nos toca, ele é um libertador.”
Li o livro sobre Villa duma ponta à outra, e rabisquei um traçado das sequências de abertura enquanto a Califórnia do Sul passava pela janela da carruagem. Griffith tinha indicado uma história que começasse com Villa em rapaz. O resto, se eu não parasse uma bala, seria história. Quanto mais pensava no assunto, mais entusiasmado ficava. Ia correr tudo de forma natural. Tudo o que eu tinha de fazer era continuar a respirar. Arranjei tempo para me lembrar da bela María Domínguez. Ainda estaria no convento em Santa Ynez?
Apanhei um táxi da estação de El Paso para o Hotel Paso del Norte, onde era suposto encontrar-me com um Sr. Harris. Era o representante da Mutual e ia lá ficar como meu contacto enquanto trabalhasse no México. Mandei-o chamar e subi para o quarto dele no elevador rangente.
Harris era um homem alto com óculos de aros de aço. A conduta dele era condescendente e o aperto de mão, superficial. Decidi não gostar do Sr. Harris.
Enquanto nos sentávamos, fez-me um olhar desconfiado. “Tem a certeza que consegue lidar com esta encomenda?” A conduta dele expressava dúvida.
Se dependesse de mim, dizia-lhe para ir para o diabo e ia-me embora. Mas tinha de pensar em Griffith e Frank. Tinham-me confiado o trabalho (fazendo de mim um dos primeiros realizadores americanos a rodar um filme estrangeiro) quando o podiam ter dado a Cabanne ou a alguém com mais experiência. Os meus sentimentos privados não eram importantes.
“Vou dar tudo o que tenho,” garanti-lhe eu. “O meu operador de câmara já cá está?”
“Não. Esperamo-lo amanhã. Entretanto, sugiro que contacte o general Villa. Está do outro lado do rio, acampado com o seu exército do lado contrário de Juárez.”
Portanto era para conhecer imediatamente o intérprete principal. Tudo bem. O bater da porta cortou a conversa adicional. Quando Harris a abriu, entrou um mexicano de meia idade com o maior sombrero que já tinha visto e deu-nos a ambos um aperto de mão.
“Este é o Manuel Ortega, o tenente de Villa,” apresentou Harris. “Ele vai levá-lo para o outro lado e servir-lhe de intérprete. O general Villa não fala inglês. Vou lá abaixo à secretária buscar o ouro. Tem de lhe pagar, voltar e apresentar-se assim que puder.”
Havia um carro aberto à espera lá fora. Ortega deslizou para trás do volante e partiu como um morcego para fora do inferno. À medida que o carro fazia guinchar os pneus por esquinas e ia dar à ponte internacional sobre o Rio Grande, a ameaça de ser morto num acidente de automóvel parecia anti-climática. Se tivesse de morrer, seria mais ajustado apanhar com uma bala federal.
Ortega pisou os travões assim que alcançámos o lado mexicano do rio e tirou um lenço de seda preto. “Peço desculpa,” disse ele de forma apologética. “Tenho de pôr a venda. São ordens do general.”
Atou-me os olhos e partimos de novo. Desta vez guiou mais devagar e, pelos sons e pelos cheiros, sabia que estávamos a atravessar a cidade. Porque é que tinha de estar vendado, pensei eu, quando todas as crianças em Juárez e a maior parte dos pais delas conheciam certamente o paradeiro de Villa? Fosse qual fosse a razão, acrescentava mais drama à situação. Pensei nas muitas vezes em que eu e a Virginia jogávamos aos polícias e aos ladrões no pomar lá de casa. A última vez que me tinham atado os olhos foi quando fiquei de pé contra a parede da garagem para que ela me pudesse “matar” com o cabo de uma vassoura.
Os barulhos da cidade dissiparam-se e nós andámos por volta de uma hora. Respirei o ar limpo de campos cultivados e drenagens de irrigação em vez do fedor que tínhamos deixado. O Ortega não teve nada para dizer até pararmos e eu ouvir o “Quien és?” afiado de um sentinela. O meu guia removeu-me o lenço e vi que estávamos nos limites de um acampamento militar.
O campo alastrado de Villa não tinha nada que ver com qualquer instalação do exército que tivesse visto do lado americano. Não havia tendas. Estava toda a gente estendida em tapetes ou sarapes[1] e nenhum dos soldados usava uniforme. Tudo o que os distinguia dos mascates e dos vendedores de enchilada era um grande sombrero, calças e camisas de algodão sujas, uma bandoleira de balas e uma arma. Alguns estavam descalços, e havia bastantes mulheres.
Quando viram que eu estava com Ortega, nenhum dos soldados olhou para mim segunda vez. Fizemos o nosso caminho a pé pelo campo até uma casa de adobe no perímetro distante. Villa estava no interior a falar com um par de ajudantes ferozes de bigode e a estudar alguns mapas numa mesa. Reconheci-o imediatamente da fotografia dele no livro.
Villa olhou para cima quando chegámos e acenou para Ortega. Os ajudantes foram-se embora com um gesto de Villa. Ortega apontou para uma cadeira enquanto o general se sentava. “Sente-se, por favor. Vou falar com o general.”
Enquanto falavam longamente, eu tive uma oportunidade para inspeccionar o homem que tinha a maior parte do norte do México nas suas mãos excitadas. Nessa altura os biógrafos de Villa punham-lhe a idade em trinta e sete anos, mas ele não tinha a certeza de quando tinha nascido. Era um homem grande fisicamente: bigode grande e preto, cabeça grande, ombros largos, corpo espesso, e olhos que me faziam pensar em qualquer coisa de selvagem numa jaula. Tinha o olhar severo e a coloração escura de um índio e para mim era o clássico exemplar de um bandido mexicano. Ao ouvi-lo a disparar perguntas a Ortega conseguia compreender porque é que se dizia que os homens dele o seguiam de forma cega para onde quer que ele fosse. Era um homem a sério.
Ortega endireitou-se e fez-me uns gestos. “É favor vir mais perto. O general quer olhar para si.”
Agora era a vez de Villa. O rosto escuro dele não me disse nada. Ele examinou-me dos pés à cabeça e os olhos dele detiveram-se na maleta que eu segurava. Depois olhou para o seu tenente, que acenou com a cabeça. “O general quer ver o dinheiro.”
Abri a sacola e pu-la por cima da mesa. Villa pegou numa moeda de ouro de vinte dólares e virou-a ao contrário com os dedos. Deixou-a cair e pesou o saco antes de dizer o que quer que fosse. Depois ele e Ortega tiveram outra conferência.
Até ao momento ele não tinha reconhecido a minha presença de forma alguma. Não se ofereceu para me apertar a mão nem mostrou de outra maneira que sabia que eu lá estava. Fiquei contente por ter tido a previdência de vestir uma camisa do Oeste e um par de Levis novas antes de sair de L.A. As minhas botas cosidas à mão e o meu casaco de couro, rematados com um chapéu Stetson cuidadosamente enrolado, faziam-me sentir mais em sintonia com o lugar. Villa tinha armas suficientes para nós dois. Ostentava dois revólveres montados a prata por cima de cintos de cartuchos duplos. E usava botas. Tirando isso era como os soldados de lá de fora.
Pensei tê-lo visto a sorrir quando acabaram de falar. Ortega fez sinal para me voltar a sentar. “O General Villa queria saber se era um jornalista. Ele não gosta da gente dos jornais. Eu disse que era o grande realizador de Hollywood, veio fazer o filme da vida dele. Ele só queria ter a certeza.”
Agora era altura de pôr o meu guião à prova. Não o entreguei a Ortega porque não tinha a certeza se ele conseguia ler inglês. Em vez disso contei-lho.
“O filme vai ser visto por milhões de pessoas nos Estados Unidos e noutros países. Vai mostrar o general Villa em criança, a viver com a mãe e a irmã nos arredores de Hidalgo del Parral.” (Tinha copiado isto do livro.) “À medida que crescia, arranjou emprego como vaquero num rancho próximo. Era mal pago, e quando ouviu falar de uma oportunidade na grande hacienda de Terrazas a sul de Chihuahua, abraçou a mãe e a irmã e foi embora a cavalo, depois de lhes deixar o pouco dinheiro que tinha. Traduza isso e pergunte ao general se gosta.”
Nenhum músculo da cara escura de Villa se mexeu enquanto ouvia. A memória do seu regresso a Parral para encontrar a mãe e a irmã violadas e massacradas pelos soldados federais deve ter sido dolorosa. Mas só os olhos é que mudaram. Tinham sido totalmente críticos quando nós chegámos. Agora brilhavam enquanto ele lambia brevemente os lábios. Imaginei um jaguar a preparar-se para dar um salto.
“Continue,” incitou Ortega.
Recitei a sequência em que ele jurava vingar as mortes da mãe e da irmã depois do padre da paróquia lhe contar o que tinha acontecido. Pu-lo a dizer, “Juro por Deus que vou reunir um exército e destruir estes assassinos. Depois vou cavalgar até à Cidade do México e derrubar o governo que os contrata.”
Villa tinha estado a olhar fixamente e de forma melancólica para o saco do dinheiro enquanto o tenente dele traduzia. Quando Ortega chegou à parte sobre o ataque ao governo, ele olhou para cima e os olhos dele penetraram nos meus.
“As pessoas que me enviaram aqui chamam-lhe o libertador do povo mexicano; outro Juárez, vindo para escrever uma nova constituição.” Achei que estava a exagerar mas, afinal, não estava longe da verdade. Três anos depois foi elaborada uma nova constituição, apesar de Villa não a ter escrito.
O rosto decidido do general relaxou e ele sorriu e acenou com a cabeça. “Ele quer dar-lhe os parabéns,” disse Ortega.
Ambos nos levantámos e apertámos as mãos por cima dos mapas enrolados pela metade. Ortega fechou a sacola do dinheiro e levou-a para outra sala. Quando voltou, falou outra vez com Villa e virou-se para mim. “O general diz que ficará satisfeito se fizer a história. E vai tratar bem de si, porque se for morto não haverá filme para o mundo ver.”
Ortega levou-me para um quarto com uma bacia e uma cama. Na manhã seguinte, bem cedo, fomos para o carro dele e voltámos para El Paso.
Harris parecia surpreendido por me ver. Talvez pensasse e até esperasse que a minha garganta tivesse sido cortada horas antes. Mas agora tinha-o onde doía. Precisava dele como uma terceira perna. Villa queria o filme. De alguma forma, se tivesse de roubar uma câmara e fugir, conseguia, e a Mutual podia ir dar uma curva com o seu dinheiro todo.
Ele pareceu adivinhar como eu me sentia mesmo antes de começar a falar. O tom dele era menos arrogante quando perguntou, “Como correu tudo?”
“Entrámos. Villa parte amanhã para sul. Ontem mencionou um carro e um motorista. Quero um camião com uma lona e colchão e cobertores em vez disso. O irmão de Ortega, o Miguel, vai conduzi-lo.”
“Um minuto.” A velha conduta do “aqui sou eu o chefe” estava de volta. “Não conseguimos arranjar tudo assim. Vai levar um dia ou dois.”
“Leve o tempo que quiser. Mas se não tiver aqui o camião atestado e pronto a partir quando o Miguel passar para o buscar de manhã, apanho o próximo comboio de volta para Los Angeles.”
O camião esteve lá a horas com o meu operador de câmara, um alemão chamado Aussenberg, e uma pilha de magasins para a película. Miguel apareceu e Harris saiu do átrio quando ele ligou o motor. “Eu vou estar por aqui,” gritou o homem da Mutual. “Envie os negativos à medida que os vai fazendo. Boa sorte.” Tinha descido do pedestal dele. Tinha tido a noite toda para descobrir o que a Mutual lhe faria a ele se eu desistisse. O bluff tinha funcionado.
“Vámonos.” Sorri para Miguel. “Vamos rolar.”
Os soldados rebeldes tinham apreendido um comboio inteiro pertencente à Ferrovia Central Mexicana. Contei doze vagões. Havia alguns rasos entre eles, carregados com equipamento, e duas carruagens normais na parte de trás. O vagão da tripulação tinha sido desengatado e direccionado para uma linha de desvio. Sentámo-nos no camião, a ver a azáfama do carregar de mantimentos e água, enquanto o Aussenberg carregava as suas câmaras. Quando estava pronto, fi-lo filmar alguma metragem e levar algumas fotografias de promoção para o departamento de publicidade da Mutual.
Enquanto estávamos a rodar, Villa chegou num grande cavalo preto e conseguimos algumas imagens dele a falar com os ajudantes. Manuel Ortega estava com ele, e quando me viu, cavalgou até mim e perguntou-me se precisava de alguma coisa. “Começamos daqui a uma hora. O Miguel toma conta de si.”
Começou a ranger uma fila de carroças ao lado do comboio e os condutores passaram uma dúzia ou assim de tanques de água galvanizada para dois vagões rasos. Tinha-os visto a encher os tanques no rio enquanto passávamos pela ponte. A água era amarela e lamacenta. Não lavava lá um cão, quando mais beber a coisa. Perguntei ao Manuel se me podia arranjar um daqueles barris. “Um vazio?” Ele acenou com a cabeça e falou com irmão dele. Partiram e passado um bocado o Miguel apareceu com um tanque na traseira do camião. “Vai a El Paso e enche-o no primeiro terminal hidráulico que encontrares,” disse-lhe eu. A água do lado americano era potável. O grande barril ocupava imenso espaço, mas o incómodo era melhor do que arriscar a febre tifóide ou a disenteria.
A comida não ia ser um problema. Os condutores tinham com eles à volta de uma centena de cabeças de gado, todas roubadas de ranchos vizinhos. Estavam sacos de arroz e milho e farinha, também “libertados”, empilhados nos vagões e havia mais a caminho. Havia muitas carroças de chili rebocadas por burros e coroadas com fogões, incluíndo um especial onde Villa e os seus ajudantes comiam. Quando perguntei a um vendedor se vinha connosco, ele olhou para mim surpreendido. “Guio esta carroça para a Cidade do México antes. Vou fazê-lo outra vez.”
A ordem para marchar veio quando Miguel voltou com um tanque a transbordar. As duas máquinas silvaram e largaram vapor e o comboio ganhou velocidade lentamente. Os soldados de infantaria viajavam nos vagões rasos e em cima dos vagões normais, enquanto que os azarados iam a pé. Havia muitas mulheres entre os homens e eu lembrei-me do velho gag sobre seguidoras de acampamentos[2] - a maior parte delas prostitutas. Também havia mais de cem dos que eram vulgarmente conhecidos como soldados a cavalo.
Os condutores levavam o gado com cordas ao longo da via e a cavalaria flanqueava os homens que marchavam. Eu pus Aussenberg nas traseiras do camião e viajei com Miguel. A máquina silvou outra vez e fomos para sul na direcção da miragem à deriva.
A marcha de Villa de Juárez até à Cidade do México é familiar a todos os estudantes mexicanos. Foi um épico – sangrento, violento e cheio de rapina – mas um épico, ainda assim. A via férrea seguia a velha Estrada da Liberdade que Miguel Hidalgo, o pai da independência mexicana, tinha tomado com outro exército esfarrapado para derrotar os espanhóis. A sua tentativa tinha sido inútil e foi morto e decapitado. Esperei que tivéssemos melhor sorte.
A progressão era necessariamente lenta. A velocidade do comboio era controlada pela dos homens a vagar e do gado. Villa era um bom líder. Manteve a expedição junta e não permitia desvios ou que se ficasse para trás. Ortega disse-me que as tropas federais de guarnição nas cidades ao longo do caminho tinham patrulhas exteriores nos nossos flancos, de vigia. Os retardatários podiam ser recolhidos, castrados ou então mutilados. Às vezes víamos poeira no horizonte mas não houve qualquer ataque.
Aussenberg sabia funcionar com uma câmara. Fizemos alguns bons planos no êxodo de Juárez. O sol foi para trás das nuvens à volta do meio-dia e o tempo nublado durou até ao anoitecer. Mas eu estava satisfeito. Tinha o início do filme. Onde e quando é que ia filmar o fim?
A marcha perdeu a sua novidade e transformou-se numa rotina monótona. Depois do segundo dia, e tirando uns planos de progressão, filmámos pouco antes de Chihiahua. O campo estava vazio e árido, o deserto plano era cortado apenas ocasionalmente por dunas e afloramentos. Uma sequência mostrava isto tudo.
Não havia soldados federais em Chihuahua. Villa já a tinha tomado. Refreou-se de saquear e só parou para reabastecer suprimentos. Eu e Aussenberg visitámos a área comercial e fizemos algumas sequências extra de tropas villistas na Plaza Hidalgo, onde o patriota foi executado em 1811. Depois, Villa partiu de novo.
Eu rezei por claridade à medida que nos aproximávamos das colinas em redor de Hidalgo del Parral onde Villa tinha nascido. A casa da mãe dele tinha sido queimada por soldados do governo, mas eu filmei algumas quintas de adobe, podendo qualquer uma ter sido a dele. O sol cooperou.
A sul de Parral, a topografia mudou: o deserto plano ficou para trás de nós e apareceram montanhas azuis adiante. A nossa velocidade decrescia constantemente, e passou mais de uma semana até saltarem à vista os edifícios de Durango.
Villa parou nas imediações da cidade. Os refugiados tinham trazido notícias de uma forte guarnição federal à espera para o desafiar. Ele conferenciou com ajudantes e depois enviou a cavalaria dele, agora com cerca de trezentos ao todo, para cercar a cidade e atacar do lado mais distante. Ofereceram o comando dos soldados a cavalo a Manuel Ortega. Villa esperou até eles terem desaparecido e depois liderou a infantaria num ataque frontal. Queria apanhar as tropas governamentais com a tenaz e esmagá-los até à derrota.
Agora estávamos prestes a ver alguma acção. A câmara fotográfica de Aussenberg tinha sido roubada algures para sul de Parral e as futuras fotografias de promoção teriam de ser ampliadas da película de 35mm. Eu queria acompanhar Villa, mas outro dos seus tenentes avisou-me através do Miguel para ficar para trás. “O general não o quer morto.” Os dentes brancos dele cintilaram por um momento debaixo do seu bigode preto. “Eu não me importo.”
Antes de começar, a batalha de Durango estava quase no fim. Fiz com que o Miguel seguisse Villa o mais perto que eu me atrevesse, e Aussenberg, a filmar da cabina do camião e a fazer lentamente uma panorâmica, gravou o avanço. Era bom mas eu estava desapontado. Queria pôr a câmara onde a luta decorria e tudo o que estava a fazer era tirar fotografias de posteriores de rebeldes.
Houve uma fuzilada de tiros quando alcançámos o primeiro edifício, e vieram alguns soldados em uniforme a correr na nossa direcção. Pararam quando nos viram, mas era tarde demais. Villa levantou o braço e os homens dele dispararam no sítio. Foi a única acção real em grande plano que consegui filmar. As outras sequências mostravam homens a ajoelharem-se e a disparar e a correr para a frente só com o fumo das armas a flutuar por cima dos edifícios ocupados pelos federais a mostrar que havia alguma resistência. Consegui apanhar alguns planos gerais de rebeldes a perseguir soldados governamentais pela praça, e a trepar telhados para conseguirem disparar para janelas e portas em baixo. Depois veio a cavalaria com algumas selas vazias a tinir pelos pavimentos e apareceu um lençol branco na janela do palácio do governador. A batalha tinha acabado.
Eu e Aussenberg demos uma volta e apanhámos planos dos mortos, incluíndo de alguns federais que tinham sido enforcados em árvores. Os cidadãos que tinham fugido da cidade quando a luta começou voltaram a aparecer. Falei com alguns deles enquanto se dava à manivela da câmara. Era tudo boa metragem, mas eu queria melhor. Até agora perto de tudo o que tinha nas bobines era acção de retaguarda e alguns tiroteios posteriores. Os únicos federais que tinha filmado eram federais mortos. Queria mais sequências ao vivo. Que fazer?
Levei os meus problemas a Ortega, a minha torre de força. Gostaria o general de alguns planos que mostrassem a sua entrada triunfante em Durango com as suas tropas vitoriosas? Sim, o general gostaria imenso disso. (Villa, como muitas outras pessoas, tinha um fraquinho por publicidade.) “Diga-lhe para montar o cavalo dele e cavalgar para a entrada com duas centenas de homens,” dirigi eu. “Sem ajudantes. Só Villa e os soldados.” Quando o general veio a cavalgar por ali acima, liderando os seus homens esfarrapados, eu fiquei ao lado de Aussenberg nas traseiras do camião e fiz com que o Miguel conduzisse a baixa velocidade enquanto a câmara rodava. Levámo-lo para o zócalo, a praça principal, e fui beliscado por outra ideia. Fui outra vez a Ortega e apontei para as flores nos jardins da praça. “Pode-me arranjar vinte raparigas bonitas?”
Ele sorriu. “Vinte? És o cavalo garanhão, é?”
“Não é dessa maneira que eu quero dizer. Quero que espalhem muitas dessas flores enquanto o general cavalga à volta da praça. Ele vai nessa?”
“Vou perguntar.” Voltou com um sorriso ainda maior. Sim, o general ia nessa. E se eu quisesse, dizia aos soldados para se deitarem num dos fossos de drenagem aberta e para saírem de lá a disparar como se estivessem a atacar os federales.
As raparigas das flores, com as suas pernas nuas e o cabelo preto, atiraram rosas para Villa e para baixo dos cascos do seu cavalo preto. A infantaria “escondeu-se” no fosso e saiu a “disparar” armas vazias. Ainda assim não estava satisfeito. Tinha de haver mais qualquer coisa. Mas o quê?
Ortega deixou de sorrir quando eu lhe disse que queria o consentimento do general para vestir alguns dos seus homens com uniformes federais e encenar uma batalha simulada com os camaradas deles. “Mierda! Vão atirar sobre mim ou os outros vão atirar sobre eles.” Ele foi embora e passado pouco tempo ouvi gritos entre os soldados que tinham marchado para aqui. Evidentemente, a minha proposta era pouco popular. Depois vi um homem a pousar a espingarda e a caminhar de forma relutante para um federal morto e tirar o casaco ensanguentado. Seguiram-lhe outros o exemplo sob o olhar de Villa; em breve estávamos a olhar para uma centena de híbridos, federais da cabeça à cintura e rebeldes daí para baixo. Os homens do norte recusaram usar calções e botas federais. As capas e os casacos eram o máximo a que eles iam. Tinha de prevenir Aussenberg sobre a fotografia. O público dificilmente aceitaria equipamento governamental e pés descalços. “Aponta para cima. Só a acção.”
Dessa vez usámos fossos na periferia da cidade porque eu queria fumo de armas verdadeiro. Os “rebeldes” e os “federais” foram ordenados a apontar para o deserto. Pedi a Ortega para me dar umas rondas de balas vazias. Depois filmámos “Carranzistas” a disparar para “Villistas” e vice-versa. Isto significava trabalhar perto da linha de fogo. Aussenberg deu diligentemente à manivela até o chapéu ir para o chão e ele cair. Eu agarrei a câmara e continuei a sequência enquanto ele se levantava e esfregava a cabeça. “Schwein!” rugiu ele. “Fui atingido!” Gritou-me uma bala pela orelha e acreditei nele. Saímos dali numa pressa e preparámo-nos para acabar os planos de ponto de vista. Aussenberg ficou com um fragmento permanente no cabelo durante semanas depois disso. No entanto o nosso maior problema não eram as balas. Era impedir os federais de rir. Depois de ultrapassarem a relutância em pôr os odiados uniformes, tornou-se tudo uma grande piada para os homens de Sonora. Nunca tinha ouvido falar de tropas a sorrir como macacos umas para as outras e para o inimigo debaixo de fogo.
Aussenberg não estava tão preocupado com o sulco no escalpe como com os estragos na capa. Ele era particular em relação às suas roupas. Mesmo quando estava a tragar água e a ladrar “Gott in bimmel!” depois de comer um tamale extra-quente, tinha cuidado em não sujar os prendedores brilhantes ou entornar comida na camisa branca. Fez mais alarido sobre a racha na capa do que se tivesse perdido as calças.
Quando Ortega me disse que Villa ia soltar os prisioneiros na cadeia de Durango, eu fiquei interessado. Mais acção. Alertei o Miguel e fomos de carro até à penitenciária e montámos as coisas do outro lado da rua, em frente ao portão principal. Para minha decepção, só saíram alguns presos às pinguinhas e foi tudo. Disse a Aussenberg para cortar e fui outra vez atrás de Ortega. “Foi um fracasso,” protestei eu. “Parecia que iam para a frente de um pelotão de fuzilamento. Precisamos de mais. E reúna as putas todas da cidade.”
O próprio Villa resolveu o problema. Acho que se estava a sentir benévolo depois da cena com as raparigas das flores. O general era imprevisível. Quando estava zangado, galopava pela câmara, levantando poeira e tornando impossível segui-lo. Ortega tinha de ser diplomático na preservação da paz. Se não fosse por ele, acho que por vezes o nosso autocrata a cavalo nos mandaria matar sem pensar duas vezes. Agora ordenava a uns duzentos soldados para tirar os sombreros e as bandoleiras e empilhar as suas espingardas. Arengou-lhes e depois mandou-os para a cadeia. Quando eu acenei, um ajudante disparou a pistola dele e os soldados-tornados-prisioneiros vieram a correr dali para fora, gritando “Viva Villa” por todo o lado. Descobri mais tarde que Villa tinha prometido executá-los solenemente se eles não fossem realistas. Um até tentou beijar-lhe a bota e acabou por lhe beijar o cavalo.
Usámos as putas que se reuniram como esposas e namoradas. Fiz Ortega passar palavra de que andávamos à procura de talento interpretativo e elas armaram um belo espectáculo.
Foi o fim da batalha de Durango. A sala de montagem em Hollywood juntava as sequências. Eu estava satisfeito e disse ao Miguel para de manhã estar pronto para levar o filme de volta a Harris em El Paso.
Nessa noite Villa mandou vir Ortega até mim com um convite para jantar. Em Juárez tinham removido os assentos da segunda carruagem e transformaram-na na viatura de jantar privada do general. A última carruagem eram o escritório e os seus aposentos de repouso. Havia uma razão prática para isto. No caso das locomotivas encontrarem uma ponte explodida ou uma via arrancada, a ponta da frente do comboio apanhava com o embate.
Os cozinheiros tinham matado e nós comemos alguns bifes, com muito vinho saqueado para os empurrar para dentro. Villa não teve muito para dizer. Comeu três grandes bifes e depois disse a Ortega que estava satisfeito com a forma como eu estava a lidar com o filme dele. Queria saber quando é que o podia ver e ficou carrancudo quando Ortega lhe explicou por mim que os negativos tinham de ir primeiro para Hollywood. “Alguém o vai roubar! Os gringos são todos ladrões!” profetizou ele sombriamente. Eu tentei atenuar o desapontamento dele. “Diga-lhe que eu passo o filme pessoalmente para ele no palácio nacional quando for presidente do México.”
“Mas o general não quer ser el presidente. Ele apoia o general Obregón.”
“Então diga-lhe que o entrego em Parral.”
Villa estendeu as mãos e encolheu os ombros quando Ortega traduziu, mas pensei tê-lo enganado quando perfurou um lombo suculento com a faca e o sacudiu para o meu prato.
Mais tarde desejei ter tido luzes para as filmagens nocturnas e som e cor para gravar as cenas que tiveram lugar na praça nessa noite. A maior parte dos soldados estavam bêbados e contentes, e muitos dos cidadãos não estavam em melhor estado. Contrariamente à prática habitual de quando um exército invasor ameaçava uma cidade, as mulheres jovens não tinham sido levadas para longe para se esconderem até as tropas partirem. Isso tinha sido uma das razões porque Ortega tinha recrutado as minhas raparigas das flores tão facilmente. Talvez toda a gente estivesse feliz pela guarnição ter sido morta e expulsa.
A grande praça, com as caras de pedra de heróis revolucionários a olhar e a parecer acenar em aprovação, ganhou vida num carnaval frenético de canções e de danças e bebida e amores. Trocava um ano de salário para o conseguir apanhar em película. O próprio Villa dançou com um bando de parceiras risonhas antes de se retirar para a viatura de repouso. Os gritos de várias casas por cima da praça indicavam que havia algumas pilhagens e violações a acontecer. As prostitutas da cidade, depois do seu “teste de selecção” à frente da prisão, fizeram um negócio animado nos bancos de jardim e debaixo das barbas dos foliões. Tornou-se difícil determinar quem celebrava mais, as pessoas ou os soldados. Foi uma noite que Durango não iria esquecer tão cedo. Nem eu.
Villa enterrou os seus mortos e marchou para fora de Durango ao nascer do sol da manhã seguinte. O exército estava ressacado mas houve poucas queixas. O rumor originado em Juárez de que a intenção de Villa era entregar a Cidade do México às suas gentes ganhou um novo impulso. Oito mil homens seguiam agora o general, mais cinco mil dos que tinham partido de Juárez.
A serra alta abrandou o nosso progresso. Quando uma das locomotivas avariou, Villa soltou o exército pelos campos. Os destacamentos de pilhagem trouxeram mais gado. Foram queimadas algumas fazendas e circulavam jóias e dinheiro entre os soldados, enquanto as suas mulheres se passeavam com ornamentos roubados. Incumbi Aussenberg de filmar muitas destas coisas para metragem de segundo plano. Uma das imagens que ele filmou era a de uma mulher índia gorda a pavonear-se num vestido de Paris (eu sabia porque tinha olhado para a etiqueta), arejando a sua cara suada com um leque de seda e marfim e usando um espartilho comprido do lado de fora do vestido.
O motor demorou três dias a reparar. Embora não tenham aparecido federais, as várias secções de via arrancada provavam que as patrulhas deles não andavam longe. A maior preocupação de Villa, expressa à minha pessoa por Ortega, era que os Carranzistas dinamitassem uma das pontes e o forçassem a abandonar o comboio. Talvez estivessem com falta de explosivos. As pontes permaneciam intactas.
Os coruchéus da igreja de Léon começaram a perfurar o céu algures na segunda semana depois de Durango. Villa só parou tempo suficiente para saquear as lojas antes de partir. Não houve resistência. Os comerciantes não mostraram muito entusiasmo quando os seus bens foram roubados, mas o golpe da coronha de uma espingarda era um incentivo poderoso à cooperação. Conseguimos algumas boas filmagens, mas decidi não enviar o Miguel numa segunda viagem à fronteira. A Cidade do México não era longe. Acabava lá o filme e eu levava o negativo de volta.
Aglomeraram-se voluntários nas fileiras entre Léon e Querétaro. Contingentes inteiros esvaziavam as fazendas e as comunidades ao longo do caminho para se juntarem ao general. Quando Villa passou a cavalo pelo Zócalo da capital e desmontou para entrar no Palácio Nacional deserto, tinha mais de vinte mil homens atrás de si.
Não houve sangue na ocupação da Cidade do México. Os federais tinham abandonado a cidade quando viram a alta nuvem de poeira por trás do exército de Villa a aproximar-se. Ele deu ordens para que se controlasse a pilhagem e foram mortos alguns soldados por desobedecer ao mandato. A longa marcha tinha terminado. Francisco Villa, o “índio ignorante,” era o mestre do México em tudo menos no nome. Quando Emiliano Zapata apareceu com o seu exército sulista e Álvaro Obregón chegou de Veracruz, os três generais comandavam entre eles mais de cinquenta mil homens armados. O resto é história.
Depois dos meses passados a captar imagens do exército do norte, nos quais registámos tudo excepto planos de continuidade em interiores e sequências nocturnas, eu senti que uma ênfase excessiva no final da marcha ia ser anti-climático. Virando portas abertas e persianas no palácio a meio da tarde, tive luz suficiente para filmar os três generais sentados numa mesa de conferências. Pela parte que me tocava isto era o fim da estrada. Estava pronto para voltar para Hollywood.
Dei um aperto de mão a Villa e a Ortega e disse ao Miguel para atestar o carro e carregar comida suficiente para vários dias. Não havia questões de dinheiro. Ainda tinha um bolso cheio de dólares, mas não eram precisos. Por essa altura, na Cidade do México, qualquer pessoa que desfrutasse da protecção de Villa meramente se servia do que quer que precisasse.
Um dos primeiros actos de Villa ao entrar na capital tinha sido confiscar o dinheiro todo de Carranza. Para o substituir, emitiu o dele. As máquinas de impressão em Isabel la Católica funcionaram fora de horas. Villa entregou-me uma mala cheia de novos pesos quando se despediu. Ortega deu-me outra com um pedido de que a remetesse à mulher dele em El Paso, e eu achei mais que justo insistir numa terceira para Aussenberg. Para nos escoltar de volta ao norte, providenciaram-se três camiões furtados tripulados por soldados que tinham regressado, transportando comida e barris de gasolina. Quando passámos de carro por Chapultepec para apanhar a estrada de Querétaro, eu comandava o meu próprio exército.
Nessa altura não havia autoestradas no México e a viagem de camião era lenta e arriscada. Normalmente devíamos ter chegado a Juárez em cerca de uma semana. Em vez disso, levou mais de um mês. Para rematar o clímax, o camião avariou. Tivemos de parar e forragear por comida, e não deixava de faltar gasolina. Muitas vezes ficávamos presos nas montanhas ou lá no deserto e tínhamos de esperar que passasse um carro ou um camião. Quando aparecia um, os soldados paravam-no e escorriam o tanque da gasolina, às vezes à mão armada. Sempre que isto acontecia, eu sondava a minha mala e distribuía maços de pesos novos e frescos para apaziguar os viajantes abandonados.
Foram necessários longos desvios para iludir os bandos de guerrilheiros itinerantes que tinham surgido na esteira de Villa. Ao longo do caminho, as pessoas avisavam os soldados a tempo e nós conseguíamos evitar qualquer tipo de luta. Foi uma viagem lúgubre, tornada ainda mais fastidiosa quando Aussenberg se foi abaixo com disenteria. Perdeu trinta quilos e era um esqueleto ambulante quando atravessámos o Rio Grande em direcção a El Paso.
Eu e Aussenberg passámos pelo banco em Juárez para trocar os nossos pesos Villa por dinheiro americano. Calculei pela antiga taxa de câmbio que a minha parte ia valer mais do que quarenta mil dólares. Tinha feito planos. Ia comprar uma casa com uma piscina e uma garagem para o Stutz, e convidar o meu pai e o George para viverem comigo. Portanto fiquei compreensivelmente chocado quando o banqueiro abanou a cabeça e disse que o dinheiro de Villa não tinha valor algum. Os pesos de Obresón tinham-no substituído. Aussenberg soltou um berro que se conseguia ouvir do outro lado rio. “Schweinhund! Trabalho como um cão estes meses todos e queimo as entranhas com aquela comida traffe toda e acabo com uma sacola cheia de Dreck!” Na altura não sabia o que é que ele queria dizer. Mas Aussenberg sabia. Quando o encontrei passado uns anos, ele lembrou-me.
Quando dei a mala do marido à Señora Ortega, rasguei algumas das notas à frente dos olhos horrorizados dela e sugeri que usasse o resto como papel de parede. Disse adeus a Aussenberg e aconselhei-o a procurar um médico. Depois disse ao Miguel para estacionar o camião à frente do Paso del Norte e apanhei o comboio nocturno para Los Angeles.
Griffith e Frank Woods deram-me os parabéns pela cobertura mexicana, mas eu estava com um bocado de dúvidas em relação ao filme. Tinha dirigido Villa ou tinha sido ele a dirigir-me? “Alguns dos planos são bons e sangrentos,” comentou Griffith. “Os censores podem desmaiar. Mas isso é uma dor de cabeça para a Mutual.” Por uma vez ele sentou-se enquanto falava. “Estão-nos a pressionar para a longa-metragem completa. Vai acabá-lo interpretando o jovem Villa. O Cabanne realiza.”
Nesses primeiros anos, como faltava sempre dinheiro e o transporte era difícil, as equipas de cinema nunca viajavam para longe para os exteriores. O alcance habitual era do San Fernando Valley para as cenas mexicanas à Portuguese Bend e San Pedro para os planos no mar, e San Bernardino para os filmes no deserto. Fizemos as cenas em estúdio de Life of Villa na Fine Arts e filmámos a maior parte dos exteriores, incluíndo a “casa de Villa em Parral”, ao redor da velha missão de San Fernando. Quando acabámos e a sala de montagem tinha terminado, tínhamos um filme de cinco bobines com duração de longa. Como era típico a Mutual nunca nos disse quanto dinheiro fez o filme, mas esteve em cartaz durante muito tempo no teatro mexicano e foi parte regular da festa do Cinco de Mayo durante alguns anos.
Um dia, quando estava a relaxar entre planos no estúdio, Buck Friedman veio à minha procura. “Estão dois tipos no portão a perguntar por si. Um diz que o nome dele é London.”
“Qual é o primeiro nome dele?”
“Não perguntei.”
“Se for Jack, diz-lhes para entrarem.”
Foi assim que conheci Jack London e Wyatt Earp. London andava-se a dar bem há anos, mas a cara enrugada dele ainda era tão áspera como as suas histórias, que me tinham emocionado quando estava a crescer. Os seus livros tinham sido publicados na maior parte dos países do mundo. O lendário Earp era alto e um bocado encurvado, mas ainda o conseguia ver como oficial de justiça em Tombstone.
“Então é o homem que cavalgou com Villa?” London deu-me um aperto de mão e os meus dedos formiguejaram. Para um homem que só tinha mais um ano de vida, ele parecia estar com uma saúde vigorosa. “Como é que foi? Eu e o Wyatt gostávamos de ouvir falar sobre ele.” Earp acenou com a cabeça e parecia interessado.
Eu fiz-lhes um curto resumo do que tinha acontecido entre Juárez e a Cidade do México. Quando tinha acabado, London olhou para Earp. “Que me dizes disto? Nós aqui a tentar viver de acordo com as nossas reputações e este tipo vem de lado nenhum e cavalga com o homem que fez caretas ao Presidente Wilson.” Voltou-se para mim. “Muito bem. Invejo-o.”
Jack mencionou que andava a pensar em escrever um livro sobre Villa. “O homem é fabuloso.”
Eu aconselhei-o a esperar. “Neste momento, o México é simplesmente um grande clube de tiro. Provavelmente não teria muitos problemas a entrar mas as probabilidades estão contra a sua saída.”
“O senhor saiu,” sublinhou ele.
“Sim, mas estava sob a protecção do exército mais poderoso do México. Tinha vinte mil soldados a apoiarem-me.”
Convidei-os para jantar nessa noite antes de ser chamado de volta para o estúdio. Fomos ao Levy's e London começou quase imediatamente a insultar os seus editores. “São piores que os seus censores,” queixou-se ele. “Não querem ouvir falar em mim a dormir com uma mulher, por mais que eu o tente expurgar. São uma cambada de eunucos malditos.”
Eu disse-lhe que tinha o mesmo problema com os moralistas do cinema e depois tentei sacar dos dois homens qualquer coisa sobre os seus próprios feitos. Nenhum quis falar de si próprio, mas consegui receber alguns bons detalhes de Earp sobre a família Clanton e o famoso tiroteio no OK Corral. London relembrou velhas histórias sobre os dias no Klondike e as circunstâncias que o induziram a escrever O Apelo da Selva.
Estava a escutar com ambos os ouvidos quando Charlie Chaplin, sentado com amigos noutra mesa, se levantou e começou o seu número do empregado. Eu chamei-o e ele fez-nos uma vénia com um guardanapo por cima de um braço e desencantou um bloco de pedidos. “Pára com isso,” avisei-o eu, “senão digo ao Sennett que estás a quebrar o teu contrato.”
Ele arqueou uma ponta do bigode com um olhar malicioso típico. Quando o apresentei aos meus convidados, ele olhou para Earp com uma reverência evidente. “É o tipo do Arizona, não é? Domou os bandidos, hã?” Olhou para London e acenou com a cabeça. “Também o conheço, a si. Quase me fez ir para o Alaska e procurar ouro.” Sentou-se e relatou algumas das experiências dele “quando era um pirralho em Cheapside.” Passei um belo bocado só a ouvi-los e mais tarde desejei ter tido alguma forma de registar a conversa deles. Para que conste, Jack voltou para a sua casa no Vale da Lua e morreu lá sem escrever a sua história sobre Villa. Earp seguiu-se-lhe alguns anos mais tarde. Não voltei a ver Chaplin durante dez anos.
Quando se acabaram as sequências com Villa, Frank Woods disse-me para tirar uma semana de folga. Ele parecia interessar-se quase de forma paternal por mim e estava preocupado por eu ter perdido peso no México. “Põe alguma comida genuína americana no estômago. Essa dieta de feijões e chili vai-te matar.” Por esta altura eu gostava de feijões e de chili, mas deixei-os.
Vagueei por aí sem nada para fazer até Tommy O'Brien, o meu assistente, me arrastar até Venice para ver o circo de Al G. Barnes. O'Brien, um fã de circos, conhecia os artistas todos e apresentou-mos depois do espectáculo. Conheci Olga Petrovich, uma domadora de animais russa, cujo número eu tinha admirado anteriormente pelo desdém dela para com o perigo. Ela tinha colocado dois pedestais a três metros de distância e chicoteou um leão até cada um deles; depois ficou no meio e fez um leão que protestava saltar por cima da cabeça dela. “Aquele é o que matou o marido dela há um ano,” sussurrou o Tommy. “Em vez de pousar no pedestal vazio, o leão saltou para cima dele. Estava morto antes dos participantes conseguirem tirar-lhe o leão de cima.” Não me consegui impedir de comparar esta rapariga vivaz e atraente à safra corrente de belezas de estúdio que quase desmaiavam por ver um rato.
O assassino de Cupido deve ter aceitado um contrato para a minha pessoa nessa noite. Durante o resto da semana fui ao circo todas as noites, e levei a Olga a jantar no Ship Café depois do espectáculo. O Ship tinha boa comida e uma orquestra. Como a maior parte dos russos, ela era uma bela bailarina. Esteve em tão boa forma na pista de dança que as pessoas nos aplaudiram.
A tristeza foi-se rápido. A Olga tinha um pequeno apartamento na praia, onde fiquei. Hollywood não me viu de novo até ser altura de me apresentar ao trabalho. Se esta rapariga notável me fascinava, era porque nunca tinha conhecido alguém como ela. Depois de termos dado um mergulho, por exemplo, ela mostrou um par de toalhas grandes e secámo-nos um ao outro. “Na Rússia,” disse ela de forma simples, “é costume.” Tive todo o gosto em concordar com ela. Uma vez, enquanto dávamos um longo passeio pela praia, ela parou, pôs os braços dela à minha volta e disse qualquer coisa em russo. Quando fiz um olhar em branco, ela riu-se e afirmou, “Disse simplesmente que te amo.”
Fizemos uma viagem até Catalina e ela ofereceu-me o mesmo tratamento. Quando a interroguei, beijou-me e informou-me de que aquilo era a nossa lua-de-mel.
Convidei-a mais tarde ao estúdio para ver como é que os filmes eram feitos. Tornou-se rotina. Ou ela estava em Hollywood comigo ou estava eu com ela no seu apartamento em Venice. Esta felicidade mútua continuou até eu voltar a Nova Iorque.
Seria difamar um bom homem chamar a D. W. Griffith um condutor de escravos. No entanto, ele esperava um dia de trabalho completo pelo que era considerado na altura um bom pagamento diário. Enquanto eu estava no México a fazer o filme sobre Villa, Griffith tinha começado a filmar o seu primeiro épico de longa-metragem, O Nascimento de Uma Nação. Eu suspeitava que ele me tinha em mente para o papel de John Wilkes Booth, mas quando voltei ao estúdio Frank Woods não fez menção ao assunto. No seu escritório, Griffith parou de passear tempo suficiente para me perguntar como me sentia. “Estou a ver que ganhaste algum peso.”
Depois dos dias tórridos com a Olga, duvidava que assim fosse, mas parecia a altura errada para o dizer. “Estou óptimo,” menti eu.
Virou-se todo para os negócios. “Sr. Walsh, estamos atrasados. Preciso da sua ajuda com as cenas de batalha. Leia o guião que o Sr. Woods lhe vai dar e apresente-se amanhã de manhã às oito em ponto.
“Sim, chefe.” Ia-me tornar um general de celulóide em vez de um assassino presidencial. Recebi o guião de Frank e descobri que o meu primeiro trabalho como assistente do realizador era reunir quinhentos figurantes. No processo, tive a sorte de conhecer um ex-sargento dos fuzileiros chamado Jim Kilgore.
Griffith estava com pressa e eu comecei a carregar a multidão de figurantes em camiões (que eram mais baratos de alugar que os autocarros) às seis da segunda manhã. O exterior escolhido para as cenas de batalha foi o Providencia Ranch, a cerca de trinta minutos de carro do estúdio. Pelo meio da manhã, os “soldados” estavam lá todos. A equipa de exteriores tinha preparado uma linha de tendas para os camarins e eu mandei o Jim mostrar aos homens como pôr os seus uniformes confederados e segurar numa espingarda como se fosse uma arma e não um taco de bilhar. Depois ordenei meia-hora de exercícios em flancos cerrados para afinar as ideias dos inevitáveis brincalhões e aquecer as companhias para o avanço inaugural.
Griffith veio às nove e mandou Billy Bitzer montar as coisas numa colina baixa com vista sobre o vale onde estávamos reunidos. Acenou com a cabeça quando viu uma faixa de bosques por cima da colina. “As árvores vão-se adequar à cena.” Olhou de soslaio para o sol. “Não há nuvens. Se a luz se aguentar, acabamos de rodar a sequência da batalha amanhã.” Por ler o guião, sabia que as cenas de multidões iam ser as mais difíceis de realizar. Era típico dele querer fazer a filmagem mais dura primeiro. “Tiram-se as sequências difíceis do caminho e o resto é fácil” era o mote de Griffith. Manteve-se fiel a ele.
“Lembre-se das direcções,” disse ele antes de subir para a câmara. “Os confederados movem-se da direita para a esquerda e o exército da União sempre da esquerda para a direita. Uma reversão que seja vai só confundir o público.” O génio deste homem, como alguém definiu essa qualidade elusiva, consistia numa capacidade infindável para dar o máximo. Cada ordem que ele dava era cuidadosamente pensada primeiro. A mente dele filmava cada cena antes da câmara a captar.
Segundo o guião, as tropas confederadas iam-se esconder entre algumas árvores na extremidade direita do vale, depois avançar na direcção dos bosques e atacar uma força da União imaginária a defender o lado esquerdo. Colocar quinhentos figurantes em posição foi um bocado como conduzir gado mas, com Tommy O'Brien a ajudar, instalámo-los finalmente na madeirada. Eu queria um teste piloto e mandei-os seguir, depois pedi ao Jim Kilgore para os instruir sobre como avançar em ordem espontânea em vez de se agruparem.
Dedicou-se a isso de coração. “Dispersem! Espalhem-se! Os azuis ali vão-vos aniquilar se fecharem as fileiras.” Pela altura em que acabou, acho que tinha os falsos rebeldes todos a pensar que era a sério. Mais tarde, quando alguns deles caíram como se estivessem feridos, fizeram parecer que tinham sido mesmo atingidos.
Além do seu grande megafone, Griffith tinha uma bandeira branca. Tínhamos acordado um código de sinais e quando a bandeira foi para baixo arrancámos as tropas dos esconderijos e começámos o avanço. O falecido instrutor militar tinha feito um bom trabalho. Só houve uma repetição de filmagem, feita porque Griffith queria o avanço abrandado. Eles dapareceram pelos bosques “inimigos” numa carga realista e Griffith ficou satisfeito.
Outra das suas máximas era a de que um bom realizador tinha de ser capaz de inspirar quem quer que estivesse a dirigir para que o actor “vivesse” a cena. O faz-de-conta tem de se tornar realidade. Mais tarde, quando chegou a altura dos “confederados” mudarem de uniformes e se tornarem soldados da “União”, a inspiração devia estar a trabalhar a tempo inteiro. Muitos rebeldes de outrora recusaram categoricamente vestir uniformes nortistas. Um rosnou para mim, “O meu papá cavalgou com Jeb Stuart em Yellow Tavern. Eu não sou diabo de ianque nenhum.” Atirou a espingarda ao chão e afastou-se. Outros seguiram-no. Tanto quanto soube, nenhum deles apareceu no estúdio pelo seu salário. E portanto perdemos alguns. Mas a realidade de Griffith foi justificada. E ainda tínhamos gente suficiente para combater a Guerra Civil.
Eu tive um momento de inspiração e disse a O'Brien que desse um número a cada homem. Afinal, os exércitos funcionavam por números, portanto porque é que este não havia de ser igual? Depois dividi-os por escalões em que certos números eram instruídos a cair para o chão e fazer-se de mortos. Outros eram ordenados a tropeçar e depois levantarem-se. Não precisei de megafone; tinha um bom par de pulmões e eles ouviam-me quando gritava os sinais a cada vaga. Pela altura em que Billy Bitzer tinha montado as coisas noutra colina, nós tínhamos as tropas a suar dos ensaios. A segunda disposição era mais próxima e a câmara captava planos médios, depois movia-se outra vez para fazer os novos grandes planos, pelos quais Griffith e Bitzer foram legitimamente creditados. Agora que os verdadeiros rebeldes estavam eliminados, os restantes consideravam o assunto a sua guerra pessoal. Fizemo-los investir de trás para a frente em roupas de batalha confederadas e unionistas até ser altura de parar para o nosso almoço de lancheiras (uma sandes de presunto seco, um dónute rançoso, uma maçã e uma embalagem de chicletes Beeman, alimentação escassa para marchar para Appomattox e para a vitória.
O departamento de adereços tinha ressuscitado oito canhões da Guerra Civil e um obstrucionista qualquer tinha mexido nos fusíveis de modo a que, no primeiro dia de planos com a artilharia, só três armas é que dispararam. Griffith era um homem paciente e nunca ficava excitado. No entanto, as retaliações calmas dele eram frequentemente mais eficientes do que ameaças. Quando foi para o megafone eu estava à espera de fogo-de-artifício, mas tudo o que ele fez foi dizer que ninguém era pago se os disparos da artilharia falhassem outra vez. Na repetição do plano, conseguimos uma salva perfeita.
Os planos de ângulos altos e baixos e os grandes planos transformaram um bom filme num grande filme. Bitzer aproximou-se, com a direcção de Griffith. Focou um detentor de cor cinzenta e seguiu-o com uma panorâmica lenta até ele cair. Grande plano do coronel confederado (Henry Walthall) a apanhar a bandeira e a forçá-la no bocal fumegante de um canhão da União. Depois, planos médios e gerais dos azuis em retirada. Fez a cena funcionar. A única coisa de que senti falta foram as ondas de aplausos quando o Sul ganhou o dia. Teriam aplaudido assim em Manassas em '61 quando Jubal Early fez a investida para derrotar McDowell?
As sequências de batalha entraram no segundo dia e, por aclamação geral, resultaram em algumas das maiores cenas de guerra já captadas em película. Quando a câmara deixou de correr, Griffith apertou-me a mão e esboçou mesmo um sorriso. Eu fiquei uns centímetros mais alto quando ele disse, “Sr. Walsh, se tivesse sido um general confederado, o Sul nunca teria perdido a guerra.” Depois disso, até a rendição de Lee a Grant parecia uma casualidade, embora Donald Crisp tenha interpretado um bêbado honrado quando aceitou a espada de Lee.
Assim que os planos individuais em continuidade foram levados para o estúdio, Griffith desimpediu o espaço todo e pôs a equipa de cenografia a trabalhar na construção do Ford's Theater. Estava-se a preparar para matar um grande homem. Só nessa altura é que recebi a dica de Frank Woods de que ia interpretar o papel do assassino.
Entretanto queimei as milhas até Venice para jogar a nossa versão privada da roleta russa com a minha domadora de leões. Como observaria Bob Mitchum muitos anos mais tarde, ser um actor é certamente bem melhor que trabalhar. Olga pediu para vir e para me ver na cena do assassinato. Fi-la entrar para o teatro com centenas de figurantes que tinham pago dinheiro de forma ostensiva para ver Our American Cousin[3]. Ela depois disse-me que ficou assustada o tempo todo; uma estranha confissão vinda de uma rapariga que tinha passado metade da vida a exercitar leões imprevisíveis.
Enquanto o guarda foi buscar uma bebida (como a história nos diz), eu fiz a minha subida furtiva para o camarote presidencial e “matei” Lincoln (Joseph Henabery) em imitação do homicídio verdadeiro. Quando brandi a pistola e gritei, “Sic semper tyrannis,” enquanto saltava para o palco para a minha fuga, o meu pé ficou emaranhado à bandeira americana. Segui a história em todos os detalhes à falta de uma perna partida. Dessa maneira, choquei com o meu joelho defeituoso e desloquei o tornozelo, o que tornou as provas de rodagem mais convincentes. Depois pus-me a pensar se as pessoas iam começar a odiar o meu irmão George como tinham odiado o irmão de John Wilkes, Edwin. Quando disse a Griffith que a trapalhada com a bandeira tinha sido um acidente, ele disse, “Um excelente acidente.”
O Dr. McCoy mandou-me para o hospital de St. Vincent para fazer raios-X e puseram-me na cama. E há aqui toda uma história.
A Olga veio ao hospital nessa noite com um ramo de flores. Contou-me como tinha achado emocionante a cena em que eu matava o presidente. “Mas estou com tanta pena que tenhas magoado a perna.” Garanti-lhe que nada estava partido e que ia sair num dia ou dois e íamos estar a dançar no Ship Café. Olga beijou-me, falou muito em russo, e pela cara sorridente dela soube que me estava a dizer algo de muito agradável. Beijou-me outra vez docemente e saiu.
Estava a dormitar quando Crazy Wolf[4] entrou no quarto com uma braçada de flores. Repreendi-o por gastar do dinheiro dele quando eu ia sair do hospital num dia ou dois. Ele disse, “Eu gostar de ti – arranjar flores. Vejo que matares homem hoje – tu bom.”
Depois saiu. A enfermeira entrou na manhã seguinte, viu o ramo de flores enorme e gritou, “Agora sabemos para onde foram as flores do jardim!”
Como o mundo sabe, O Nascimento de Uma Nação tornou-se uma obra-prima do cinema. Na indústria do cinema, marcou o fim do nickelodeon com o pianista omnipresente. Exigia a sua própria partitura musical interpretada por uma orquestra completa e seria adaptado para uma digressão. O público ia pagar mais para o ver e entreter-se-iam com ele mais pessoas do que com qualquer outro filme anterior. Essas foram só algumas das novidades.
Até 1915, quando o épico de Griffith estava concluído, os espectadores tinham andado a ser presenteados com uma sucessão de filmes de uma e duas bobines de segunda categoria. Eu devia sabê-lo; tinha andado a entrar neles durante vários anos, antes de me darem a tarefa de Villa. Villa foi uma pausa na rotina enfastiante. Pelo menos tínhamos conseguido rodar alguma acção real, porque estávamos a registar história. Mas foi preciso O Nascimento de Uma Nação para convencer o mundo de que a infantil Hollywood tinha atingido a maioridade. Este filme de longa-metragem foi o ponto de viragem. A opinião pública afastou-se da convicção popular de que os filmes eram na melhor das hipóteses uma forma menor de entretenimento. Treze anos mais tarde, o som ia revolucionar os filmes outra vez, mas foi O Nascimento de Uma Nação que convenceu a América e o mundo de que os filmes eram uma arte por direito próprio e não apenas a prole ilegítima do teatro.
O meu irmão George veio para a Costa enquanto estávamos a filmar O Nascimento, e eu pu-lo nalgumas das cenas de batalha. Pelo menos tinha um “rebelde” que não se recusaria a vestir um uniforme ianque. Griffith e Woods gostaram ambos de George, e Cabanne usou-o em alguns dos seus filmes. Foi escolhido por Griffith como o noivo na sequência judia do seu filme seguinte, Intolerância.
O triunfo de Griffith com O Nascimento não veio sem uma mistura de sarilhos. Foi requerido um processo civil contra ele em Chicago por um grupo que se ofendeu com as sequências do Ku Klux Klan. Enquanto ele estava na Cidade Ventosa a responder a uma citação para aparecer em tribunal, eu recebi uma chamada telefónica de Winfield Sheehan, o vice-presidente da William Fox Company, a organizar-se na altura em Nova Iorque.
Sheehan levou-me a jantar ao Hotel Alexandria e disse-me que o Sr. Fox tinha visto Home from the Sea. Fox, acrescentou ele, tinha-o enviado a Hollywood para encontrar o homem que o tinha realizado. “Ele quer-lo. Como é que está com a Fine Arts?” Mencionei que ia realizar outra coboiada mas não tinha contrato.
“Esqueça a Fine Arts,” respondeu ele, “até ouvir o que eu tenho para dizer. A Fox Studios é financiada por muito dinheiro do Leste.” Ele deu o nome de uma grande companhia de seguros e de uma série de bancos. “Como vice-presidente, posso-lhe dizer que vamos ser a maior na indústria. Eu e o Sr. Fox gostávamos que tivesse uma mão na construção da companhia.”
“Tudo bem. Agradeço o elogio. Mas estou feliz aqui. Além disso, sou um novo realizador. Home from the Sea e The Life of Villa são os únicos filmes que eu fiz que valem alguma coisa.” Ele foi polido e aparentemente sincero. Mas eu não ia morder na mão que me pagava por um trabalho que parecia mentira – a não ser que a Fox me garantisse muito mais dinheiro do que estava a fazer.
Sheehan sorriu como se soubesse algo que eu não sabia.
“Não olhe agora, mas a sua lealdade está à mostra. Respeito-o por isso. Nós sabemos tudo sobre si e estamos convencidos de que é o homem que precisamos. Quanto é que a Fine Arts lhe está a pagar?”
Eu sorri-lhe de volta. “A modéstia impede-me de o dizer.” Se ele sabia tanto sobre mim, o salário foi com certeza uma das primeiras coisas que ele deve ter investigado. Se não sabia, não tinha intenção de lhe dizer que estava a sacar quarenta dólares por semana, dez vezes mais do que quando comecei. A Fine Arts estava a produzir com orçamentos apertados até começarem a entrar os recibos de O Nascimento de Uma Nação. Henry Walthall estava a conseguir cinquenta e cinco por semana e Frank Woods, sessenta; estes eram salários de topo, tirando os rumores de que Griffith estava a pagar cem a si próprio.
Sheehan mudou o sorriso dele para uma risada. “Não importa. Não se sinta ofendido quando eu lhe disser que sabemos qual é o seu ordenado até ao último centavo; os salários de todos os realizadores, actores e actrizes na ficha salarial da Fine Arts também. Por esta altura pensei que já tivesse feito a sua oferta. Quanto?”
Ele andava atrás de mim rápido demais, sem me dar tempo para pensar. Pensei que podiam jogar dois aquele jogo. Lembrando-me do gabanço dele em relação ao financiamento carregado, eu indiquei o primeiro valor que me veio à cabeça: “Quatrocentos. Semanais.” Estava à espera que ele gritasse e me dissesse para ir dar uma curva, mas nem sequer vacilou. Continuava ali sentado, a dar bafos pequenos no charuto enquanto estudava a minha cara. Não disse nada durante um longo minuto e eu quase conseguia ouvir a engrenagem a rodar na mente dele. Também estava a rodar na minha. Quatrocentos dólares por semana era ridículo demais para pensar, sequer. Os presidentes dos bancos ganhavam menos, tirando quando se baixavam ao nível de uma pequena fraude. Depois acenou com a cabeça. “Vou telefonar ao Sr. Fox de manhã. Ligo-lhe para o estúdio e digo-lhe qual é a decisão dele.”
Às oito da manhã seguinte entrei no escritório de Frank Woods e contei-lhe o que tinha acontecido. Ele ouviu-me e depois bateu ao de leve nos dentes com um lápis. “Ainda bem que veio ter comigo, Raoul.” Deixou cair o lápis e olhou directamente para mim. “Antes de sair, o Sr. Griffith referiu que lhe ia dar um aumento a si, ao Walthall e a Wally Reid. Receio que o consiga, porque por esta altura a Fox provavelmente mandou Sheehan de volta para Nova Iorque.”
Mesmo antes do meio-dia, fui chamado para fora do estúdio para atender o telefone. Quase caí quando ouvi a voz de Sheehan.
“Pode jantar comigo hoje à noite outra vez, à mesma hora e no mesmo sítio?”
“Claro.” Ele desligou antes que eu pudesse dizer mais. Fiquei aliviado quando o pôr-do-sol deu por terminado o dia de rodagens. Felizmente, a coboiada avançava mais ou menos por si. A única direcção que fiz nessa tarde devia ter-me merecido a expulsão das instalações. O que é que tinha dito Fox? Como é que tinha tomado a minha oferta escandalosa? Tinha de haver algum interesse; senão o Sheehan não se tinha dado ao trabalho de telefonar. A lógica continuava a amontoar-se na minha cabeça. Quando cheguei ao Alexandria, estava quinze minutos adiantado.
A cara de Sheehan não me disse nada. Depois do empregado se afastar, ele tirou um papel dobrado do bolso e largou-o à minha frente. Eu li-o e as palavras desfocavam-se como se precisasse de óculos. Era um contrato para fazer três filmes para a Fox Studios a quatrocentos dólares por semana. Ouvi vagamente Sheehan a dizer, “Despache-se e assine. Estou cheio de fome.”
Levei a minha cópia do contrato a Frank Woods logo que fui trabalhar. Vi-o de boca aberta sem dizer nada pela primeira vez na nossa associação.”Eles pagaram para ver”! deu ele meias-risadas quando pôde falar. “Se não o tivesse acabado de ler, chamava-lhe um mentiroso.” Deu a volta à secretária para me apertar as mãos. “Fico contente por si. Vai fazer mais dinheiro em Nova Iorque num mês do que se ficasse com a Fine Arts o ano inteiro.” Quando estava a sair, ouvi-o a murmurar, “Quem é que os está a financiar – Deus?”
Ele fez-me um dos seus sorrisos pouco frequentes e acenou a um dos homens do dinheiro. “Este cavalheiro é do escritório da Mutual em Nova Iorque. A Mutual fez um acordo com Pancho Villa, o revolucionário mexicano, para rodar um filme com ele e com o seu exército. Os rumores dizem que Villa vai marchar em breve até à Cidade do México para atacar o general Carranza. Quer o trabalho?”
Aí estava, mesmo no meu colo. Disse que sim e Frank deu-me um assentimento com a cabeça à medida que Griffith continuava: “Vai realizar o filme, a Mutual fornece um operador de câmara e o General Villa vai receber quinhentos dólares em ouro todos os meses enquanto a produção continuar.” Ele não me disse que Villa tinha matado um aspirante a promotor que lhe ofereceu papel-moeda. “Alguma pergunta?”
A velha coceira estava de volta e a única coisa que dava para fazer era sorrir para ele e perguntar, “Quando começo?”
Frank Woods olhou para o relógio dele. “Em quatro horas e vinte minutos.”
“Não há guião,” prosseguiu Griffith. “Aqui está um livro sobre Villa. “Não é novo mas vai pô-lo a par do início da vida dele. O comboio leva três dias a ir de Los Angeles para El Paso. Isso deve-lhe dar tempo para começar a história. As sequências resolvem-se por si próprias.”
Ele interrompeu o passeio dele tempo suficiente para me apertar a mão. “Boa sorte, Sr. Walsh.” Não disse adeus. Parecia pensar que eu ia voltar vivo. Isso pelo menos era encorajador.
O Frank levou-me ao caixa e levantou quinhentos dólares. “Aqui está dinheiro para as tuas despesas, e isto é o teu bilhete de comboio e a reserva para as dormidas. O Sunset Limited sai às oito. Pensa numa história que o general goste e, por amor de Deus, nunca te refiras a ele como bandido. Pela parte que nos toca, ele é um libertador.”
Li o livro sobre Villa duma ponta à outra, e rabisquei um traçado das sequências de abertura enquanto a Califórnia do Sul passava pela janela da carruagem. Griffith tinha indicado uma história que começasse com Villa em rapaz. O resto, se eu não parasse uma bala, seria história. Quanto mais pensava no assunto, mais entusiasmado ficava. Ia correr tudo de forma natural. Tudo o que eu tinha de fazer era continuar a respirar. Arranjei tempo para me lembrar da bela María Domínguez. Ainda estaria no convento em Santa Ynez?
Apanhei um táxi da estação de El Paso para o Hotel Paso del Norte, onde era suposto encontrar-me com um Sr. Harris. Era o representante da Mutual e ia lá ficar como meu contacto enquanto trabalhasse no México. Mandei-o chamar e subi para o quarto dele no elevador rangente.
Harris era um homem alto com óculos de aros de aço. A conduta dele era condescendente e o aperto de mão, superficial. Decidi não gostar do Sr. Harris.
Enquanto nos sentávamos, fez-me um olhar desconfiado. “Tem a certeza que consegue lidar com esta encomenda?” A conduta dele expressava dúvida.
Se dependesse de mim, dizia-lhe para ir para o diabo e ia-me embora. Mas tinha de pensar em Griffith e Frank. Tinham-me confiado o trabalho (fazendo de mim um dos primeiros realizadores americanos a rodar um filme estrangeiro) quando o podiam ter dado a Cabanne ou a alguém com mais experiência. Os meus sentimentos privados não eram importantes.
“Vou dar tudo o que tenho,” garanti-lhe eu. “O meu operador de câmara já cá está?”
“Não. Esperamo-lo amanhã. Entretanto, sugiro que contacte o general Villa. Está do outro lado do rio, acampado com o seu exército do lado contrário de Juárez.”
Portanto era para conhecer imediatamente o intérprete principal. Tudo bem. O bater da porta cortou a conversa adicional. Quando Harris a abriu, entrou um mexicano de meia idade com o maior sombrero que já tinha visto e deu-nos a ambos um aperto de mão.
“Este é o Manuel Ortega, o tenente de Villa,” apresentou Harris. “Ele vai levá-lo para o outro lado e servir-lhe de intérprete. O general Villa não fala inglês. Vou lá abaixo à secretária buscar o ouro. Tem de lhe pagar, voltar e apresentar-se assim que puder.”
Havia um carro aberto à espera lá fora. Ortega deslizou para trás do volante e partiu como um morcego para fora do inferno. À medida que o carro fazia guinchar os pneus por esquinas e ia dar à ponte internacional sobre o Rio Grande, a ameaça de ser morto num acidente de automóvel parecia anti-climática. Se tivesse de morrer, seria mais ajustado apanhar com uma bala federal.
Ortega pisou os travões assim que alcançámos o lado mexicano do rio e tirou um lenço de seda preto. “Peço desculpa,” disse ele de forma apologética. “Tenho de pôr a venda. São ordens do general.”
Atou-me os olhos e partimos de novo. Desta vez guiou mais devagar e, pelos sons e pelos cheiros, sabia que estávamos a atravessar a cidade. Porque é que tinha de estar vendado, pensei eu, quando todas as crianças em Juárez e a maior parte dos pais delas conheciam certamente o paradeiro de Villa? Fosse qual fosse a razão, acrescentava mais drama à situação. Pensei nas muitas vezes em que eu e a Virginia jogávamos aos polícias e aos ladrões no pomar lá de casa. A última vez que me tinham atado os olhos foi quando fiquei de pé contra a parede da garagem para que ela me pudesse “matar” com o cabo de uma vassoura.
Os barulhos da cidade dissiparam-se e nós andámos por volta de uma hora. Respirei o ar limpo de campos cultivados e drenagens de irrigação em vez do fedor que tínhamos deixado. O Ortega não teve nada para dizer até pararmos e eu ouvir o “Quien és?” afiado de um sentinela. O meu guia removeu-me o lenço e vi que estávamos nos limites de um acampamento militar.
O campo alastrado de Villa não tinha nada que ver com qualquer instalação do exército que tivesse visto do lado americano. Não havia tendas. Estava toda a gente estendida em tapetes ou sarapes[1] e nenhum dos soldados usava uniforme. Tudo o que os distinguia dos mascates e dos vendedores de enchilada era um grande sombrero, calças e camisas de algodão sujas, uma bandoleira de balas e uma arma. Alguns estavam descalços, e havia bastantes mulheres.
Quando viram que eu estava com Ortega, nenhum dos soldados olhou para mim segunda vez. Fizemos o nosso caminho a pé pelo campo até uma casa de adobe no perímetro distante. Villa estava no interior a falar com um par de ajudantes ferozes de bigode e a estudar alguns mapas numa mesa. Reconheci-o imediatamente da fotografia dele no livro.
Villa olhou para cima quando chegámos e acenou para Ortega. Os ajudantes foram-se embora com um gesto de Villa. Ortega apontou para uma cadeira enquanto o general se sentava. “Sente-se, por favor. Vou falar com o general.”
Enquanto falavam longamente, eu tive uma oportunidade para inspeccionar o homem que tinha a maior parte do norte do México nas suas mãos excitadas. Nessa altura os biógrafos de Villa punham-lhe a idade em trinta e sete anos, mas ele não tinha a certeza de quando tinha nascido. Era um homem grande fisicamente: bigode grande e preto, cabeça grande, ombros largos, corpo espesso, e olhos que me faziam pensar em qualquer coisa de selvagem numa jaula. Tinha o olhar severo e a coloração escura de um índio e para mim era o clássico exemplar de um bandido mexicano. Ao ouvi-lo a disparar perguntas a Ortega conseguia compreender porque é que se dizia que os homens dele o seguiam de forma cega para onde quer que ele fosse. Era um homem a sério.
Ortega endireitou-se e fez-me uns gestos. “É favor vir mais perto. O general quer olhar para si.”
Agora era a vez de Villa. O rosto escuro dele não me disse nada. Ele examinou-me dos pés à cabeça e os olhos dele detiveram-se na maleta que eu segurava. Depois olhou para o seu tenente, que acenou com a cabeça. “O general quer ver o dinheiro.”
Abri a sacola e pu-la por cima da mesa. Villa pegou numa moeda de ouro de vinte dólares e virou-a ao contrário com os dedos. Deixou-a cair e pesou o saco antes de dizer o que quer que fosse. Depois ele e Ortega tiveram outra conferência.
Até ao momento ele não tinha reconhecido a minha presença de forma alguma. Não se ofereceu para me apertar a mão nem mostrou de outra maneira que sabia que eu lá estava. Fiquei contente por ter tido a previdência de vestir uma camisa do Oeste e um par de Levis novas antes de sair de L.A. As minhas botas cosidas à mão e o meu casaco de couro, rematados com um chapéu Stetson cuidadosamente enrolado, faziam-me sentir mais em sintonia com o lugar. Villa tinha armas suficientes para nós dois. Ostentava dois revólveres montados a prata por cima de cintos de cartuchos duplos. E usava botas. Tirando isso era como os soldados de lá de fora.
Pensei tê-lo visto a sorrir quando acabaram de falar. Ortega fez sinal para me voltar a sentar. “O General Villa queria saber se era um jornalista. Ele não gosta da gente dos jornais. Eu disse que era o grande realizador de Hollywood, veio fazer o filme da vida dele. Ele só queria ter a certeza.”
Agora era altura de pôr o meu guião à prova. Não o entreguei a Ortega porque não tinha a certeza se ele conseguia ler inglês. Em vez disso contei-lho.
“O filme vai ser visto por milhões de pessoas nos Estados Unidos e noutros países. Vai mostrar o general Villa em criança, a viver com a mãe e a irmã nos arredores de Hidalgo del Parral.” (Tinha copiado isto do livro.) “À medida que crescia, arranjou emprego como vaquero num rancho próximo. Era mal pago, e quando ouviu falar de uma oportunidade na grande hacienda de Terrazas a sul de Chihuahua, abraçou a mãe e a irmã e foi embora a cavalo, depois de lhes deixar o pouco dinheiro que tinha. Traduza isso e pergunte ao general se gosta.”
Nenhum músculo da cara escura de Villa se mexeu enquanto ouvia. A memória do seu regresso a Parral para encontrar a mãe e a irmã violadas e massacradas pelos soldados federais deve ter sido dolorosa. Mas só os olhos é que mudaram. Tinham sido totalmente críticos quando nós chegámos. Agora brilhavam enquanto ele lambia brevemente os lábios. Imaginei um jaguar a preparar-se para dar um salto.
“Continue,” incitou Ortega.
Recitei a sequência em que ele jurava vingar as mortes da mãe e da irmã depois do padre da paróquia lhe contar o que tinha acontecido. Pu-lo a dizer, “Juro por Deus que vou reunir um exército e destruir estes assassinos. Depois vou cavalgar até à Cidade do México e derrubar o governo que os contrata.”
Villa tinha estado a olhar fixamente e de forma melancólica para o saco do dinheiro enquanto o tenente dele traduzia. Quando Ortega chegou à parte sobre o ataque ao governo, ele olhou para cima e os olhos dele penetraram nos meus.
“As pessoas que me enviaram aqui chamam-lhe o libertador do povo mexicano; outro Juárez, vindo para escrever uma nova constituição.” Achei que estava a exagerar mas, afinal, não estava longe da verdade. Três anos depois foi elaborada uma nova constituição, apesar de Villa não a ter escrito.
O rosto decidido do general relaxou e ele sorriu e acenou com a cabeça. “Ele quer dar-lhe os parabéns,” disse Ortega.
Ambos nos levantámos e apertámos as mãos por cima dos mapas enrolados pela metade. Ortega fechou a sacola do dinheiro e levou-a para outra sala. Quando voltou, falou outra vez com Villa e virou-se para mim. “O general diz que ficará satisfeito se fizer a história. E vai tratar bem de si, porque se for morto não haverá filme para o mundo ver.”
Ortega levou-me para um quarto com uma bacia e uma cama. Na manhã seguinte, bem cedo, fomos para o carro dele e voltámos para El Paso.
Harris parecia surpreendido por me ver. Talvez pensasse e até esperasse que a minha garganta tivesse sido cortada horas antes. Mas agora tinha-o onde doía. Precisava dele como uma terceira perna. Villa queria o filme. De alguma forma, se tivesse de roubar uma câmara e fugir, conseguia, e a Mutual podia ir dar uma curva com o seu dinheiro todo.
Ele pareceu adivinhar como eu me sentia mesmo antes de começar a falar. O tom dele era menos arrogante quando perguntou, “Como correu tudo?”
“Entrámos. Villa parte amanhã para sul. Ontem mencionou um carro e um motorista. Quero um camião com uma lona e colchão e cobertores em vez disso. O irmão de Ortega, o Miguel, vai conduzi-lo.”
“Um minuto.” A velha conduta do “aqui sou eu o chefe” estava de volta. “Não conseguimos arranjar tudo assim. Vai levar um dia ou dois.”
“Leve o tempo que quiser. Mas se não tiver aqui o camião atestado e pronto a partir quando o Miguel passar para o buscar de manhã, apanho o próximo comboio de volta para Los Angeles.”
O camião esteve lá a horas com o meu operador de câmara, um alemão chamado Aussenberg, e uma pilha de magasins para a película. Miguel apareceu e Harris saiu do átrio quando ele ligou o motor. “Eu vou estar por aqui,” gritou o homem da Mutual. “Envie os negativos à medida que os vai fazendo. Boa sorte.” Tinha descido do pedestal dele. Tinha tido a noite toda para descobrir o que a Mutual lhe faria a ele se eu desistisse. O bluff tinha funcionado.
“Vámonos.” Sorri para Miguel. “Vamos rolar.”
Os soldados rebeldes tinham apreendido um comboio inteiro pertencente à Ferrovia Central Mexicana. Contei doze vagões. Havia alguns rasos entre eles, carregados com equipamento, e duas carruagens normais na parte de trás. O vagão da tripulação tinha sido desengatado e direccionado para uma linha de desvio. Sentámo-nos no camião, a ver a azáfama do carregar de mantimentos e água, enquanto o Aussenberg carregava as suas câmaras. Quando estava pronto, fi-lo filmar alguma metragem e levar algumas fotografias de promoção para o departamento de publicidade da Mutual.
Enquanto estávamos a rodar, Villa chegou num grande cavalo preto e conseguimos algumas imagens dele a falar com os ajudantes. Manuel Ortega estava com ele, e quando me viu, cavalgou até mim e perguntou-me se precisava de alguma coisa. “Começamos daqui a uma hora. O Miguel toma conta de si.”
Começou a ranger uma fila de carroças ao lado do comboio e os condutores passaram uma dúzia ou assim de tanques de água galvanizada para dois vagões rasos. Tinha-os visto a encher os tanques no rio enquanto passávamos pela ponte. A água era amarela e lamacenta. Não lavava lá um cão, quando mais beber a coisa. Perguntei ao Manuel se me podia arranjar um daqueles barris. “Um vazio?” Ele acenou com a cabeça e falou com irmão dele. Partiram e passado um bocado o Miguel apareceu com um tanque na traseira do camião. “Vai a El Paso e enche-o no primeiro terminal hidráulico que encontrares,” disse-lhe eu. A água do lado americano era potável. O grande barril ocupava imenso espaço, mas o incómodo era melhor do que arriscar a febre tifóide ou a disenteria.
A comida não ia ser um problema. Os condutores tinham com eles à volta de uma centena de cabeças de gado, todas roubadas de ranchos vizinhos. Estavam sacos de arroz e milho e farinha, também “libertados”, empilhados nos vagões e havia mais a caminho. Havia muitas carroças de chili rebocadas por burros e coroadas com fogões, incluíndo um especial onde Villa e os seus ajudantes comiam. Quando perguntei a um vendedor se vinha connosco, ele olhou para mim surpreendido. “Guio esta carroça para a Cidade do México antes. Vou fazê-lo outra vez.”
A ordem para marchar veio quando Miguel voltou com um tanque a transbordar. As duas máquinas silvaram e largaram vapor e o comboio ganhou velocidade lentamente. Os soldados de infantaria viajavam nos vagões rasos e em cima dos vagões normais, enquanto que os azarados iam a pé. Havia muitas mulheres entre os homens e eu lembrei-me do velho gag sobre seguidoras de acampamentos[2] - a maior parte delas prostitutas. Também havia mais de cem dos que eram vulgarmente conhecidos como soldados a cavalo.
Os condutores levavam o gado com cordas ao longo da via e a cavalaria flanqueava os homens que marchavam. Eu pus Aussenberg nas traseiras do camião e viajei com Miguel. A máquina silvou outra vez e fomos para sul na direcção da miragem à deriva.
A marcha de Villa de Juárez até à Cidade do México é familiar a todos os estudantes mexicanos. Foi um épico – sangrento, violento e cheio de rapina – mas um épico, ainda assim. A via férrea seguia a velha Estrada da Liberdade que Miguel Hidalgo, o pai da independência mexicana, tinha tomado com outro exército esfarrapado para derrotar os espanhóis. A sua tentativa tinha sido inútil e foi morto e decapitado. Esperei que tivéssemos melhor sorte.
A progressão era necessariamente lenta. A velocidade do comboio era controlada pela dos homens a vagar e do gado. Villa era um bom líder. Manteve a expedição junta e não permitia desvios ou que se ficasse para trás. Ortega disse-me que as tropas federais de guarnição nas cidades ao longo do caminho tinham patrulhas exteriores nos nossos flancos, de vigia. Os retardatários podiam ser recolhidos, castrados ou então mutilados. Às vezes víamos poeira no horizonte mas não houve qualquer ataque.
Aussenberg sabia funcionar com uma câmara. Fizemos alguns bons planos no êxodo de Juárez. O sol foi para trás das nuvens à volta do meio-dia e o tempo nublado durou até ao anoitecer. Mas eu estava satisfeito. Tinha o início do filme. Onde e quando é que ia filmar o fim?
A marcha perdeu a sua novidade e transformou-se numa rotina monótona. Depois do segundo dia, e tirando uns planos de progressão, filmámos pouco antes de Chihiahua. O campo estava vazio e árido, o deserto plano era cortado apenas ocasionalmente por dunas e afloramentos. Uma sequência mostrava isto tudo.
Não havia soldados federais em Chihuahua. Villa já a tinha tomado. Refreou-se de saquear e só parou para reabastecer suprimentos. Eu e Aussenberg visitámos a área comercial e fizemos algumas sequências extra de tropas villistas na Plaza Hidalgo, onde o patriota foi executado em 1811. Depois, Villa partiu de novo.
Eu rezei por claridade à medida que nos aproximávamos das colinas em redor de Hidalgo del Parral onde Villa tinha nascido. A casa da mãe dele tinha sido queimada por soldados do governo, mas eu filmei algumas quintas de adobe, podendo qualquer uma ter sido a dele. O sol cooperou.
A sul de Parral, a topografia mudou: o deserto plano ficou para trás de nós e apareceram montanhas azuis adiante. A nossa velocidade decrescia constantemente, e passou mais de uma semana até saltarem à vista os edifícios de Durango.
Villa parou nas imediações da cidade. Os refugiados tinham trazido notícias de uma forte guarnição federal à espera para o desafiar. Ele conferenciou com ajudantes e depois enviou a cavalaria dele, agora com cerca de trezentos ao todo, para cercar a cidade e atacar do lado mais distante. Ofereceram o comando dos soldados a cavalo a Manuel Ortega. Villa esperou até eles terem desaparecido e depois liderou a infantaria num ataque frontal. Queria apanhar as tropas governamentais com a tenaz e esmagá-los até à derrota.
Agora estávamos prestes a ver alguma acção. A câmara fotográfica de Aussenberg tinha sido roubada algures para sul de Parral e as futuras fotografias de promoção teriam de ser ampliadas da película de 35mm. Eu queria acompanhar Villa, mas outro dos seus tenentes avisou-me através do Miguel para ficar para trás. “O general não o quer morto.” Os dentes brancos dele cintilaram por um momento debaixo do seu bigode preto. “Eu não me importo.”
Antes de começar, a batalha de Durango estava quase no fim. Fiz com que o Miguel seguisse Villa o mais perto que eu me atrevesse, e Aussenberg, a filmar da cabina do camião e a fazer lentamente uma panorâmica, gravou o avanço. Era bom mas eu estava desapontado. Queria pôr a câmara onde a luta decorria e tudo o que estava a fazer era tirar fotografias de posteriores de rebeldes.
Houve uma fuzilada de tiros quando alcançámos o primeiro edifício, e vieram alguns soldados em uniforme a correr na nossa direcção. Pararam quando nos viram, mas era tarde demais. Villa levantou o braço e os homens dele dispararam no sítio. Foi a única acção real em grande plano que consegui filmar. As outras sequências mostravam homens a ajoelharem-se e a disparar e a correr para a frente só com o fumo das armas a flutuar por cima dos edifícios ocupados pelos federais a mostrar que havia alguma resistência. Consegui apanhar alguns planos gerais de rebeldes a perseguir soldados governamentais pela praça, e a trepar telhados para conseguirem disparar para janelas e portas em baixo. Depois veio a cavalaria com algumas selas vazias a tinir pelos pavimentos e apareceu um lençol branco na janela do palácio do governador. A batalha tinha acabado.
Eu e Aussenberg demos uma volta e apanhámos planos dos mortos, incluíndo de alguns federais que tinham sido enforcados em árvores. Os cidadãos que tinham fugido da cidade quando a luta começou voltaram a aparecer. Falei com alguns deles enquanto se dava à manivela da câmara. Era tudo boa metragem, mas eu queria melhor. Até agora perto de tudo o que tinha nas bobines era acção de retaguarda e alguns tiroteios posteriores. Os únicos federais que tinha filmado eram federais mortos. Queria mais sequências ao vivo. Que fazer?
Levei os meus problemas a Ortega, a minha torre de força. Gostaria o general de alguns planos que mostrassem a sua entrada triunfante em Durango com as suas tropas vitoriosas? Sim, o general gostaria imenso disso. (Villa, como muitas outras pessoas, tinha um fraquinho por publicidade.) “Diga-lhe para montar o cavalo dele e cavalgar para a entrada com duas centenas de homens,” dirigi eu. “Sem ajudantes. Só Villa e os soldados.” Quando o general veio a cavalgar por ali acima, liderando os seus homens esfarrapados, eu fiquei ao lado de Aussenberg nas traseiras do camião e fiz com que o Miguel conduzisse a baixa velocidade enquanto a câmara rodava. Levámo-lo para o zócalo, a praça principal, e fui beliscado por outra ideia. Fui outra vez a Ortega e apontei para as flores nos jardins da praça. “Pode-me arranjar vinte raparigas bonitas?”
Ele sorriu. “Vinte? És o cavalo garanhão, é?”
“Não é dessa maneira que eu quero dizer. Quero que espalhem muitas dessas flores enquanto o general cavalga à volta da praça. Ele vai nessa?”
“Vou perguntar.” Voltou com um sorriso ainda maior. Sim, o general ia nessa. E se eu quisesse, dizia aos soldados para se deitarem num dos fossos de drenagem aberta e para saírem de lá a disparar como se estivessem a atacar os federales.
As raparigas das flores, com as suas pernas nuas e o cabelo preto, atiraram rosas para Villa e para baixo dos cascos do seu cavalo preto. A infantaria “escondeu-se” no fosso e saiu a “disparar” armas vazias. Ainda assim não estava satisfeito. Tinha de haver mais qualquer coisa. Mas o quê?
Ortega deixou de sorrir quando eu lhe disse que queria o consentimento do general para vestir alguns dos seus homens com uniformes federais e encenar uma batalha simulada com os camaradas deles. “Mierda! Vão atirar sobre mim ou os outros vão atirar sobre eles.” Ele foi embora e passado pouco tempo ouvi gritos entre os soldados que tinham marchado para aqui. Evidentemente, a minha proposta era pouco popular. Depois vi um homem a pousar a espingarda e a caminhar de forma relutante para um federal morto e tirar o casaco ensanguentado. Seguiram-lhe outros o exemplo sob o olhar de Villa; em breve estávamos a olhar para uma centena de híbridos, federais da cabeça à cintura e rebeldes daí para baixo. Os homens do norte recusaram usar calções e botas federais. As capas e os casacos eram o máximo a que eles iam. Tinha de prevenir Aussenberg sobre a fotografia. O público dificilmente aceitaria equipamento governamental e pés descalços. “Aponta para cima. Só a acção.”
Dessa vez usámos fossos na periferia da cidade porque eu queria fumo de armas verdadeiro. Os “rebeldes” e os “federais” foram ordenados a apontar para o deserto. Pedi a Ortega para me dar umas rondas de balas vazias. Depois filmámos “Carranzistas” a disparar para “Villistas” e vice-versa. Isto significava trabalhar perto da linha de fogo. Aussenberg deu diligentemente à manivela até o chapéu ir para o chão e ele cair. Eu agarrei a câmara e continuei a sequência enquanto ele se levantava e esfregava a cabeça. “Schwein!” rugiu ele. “Fui atingido!” Gritou-me uma bala pela orelha e acreditei nele. Saímos dali numa pressa e preparámo-nos para acabar os planos de ponto de vista. Aussenberg ficou com um fragmento permanente no cabelo durante semanas depois disso. No entanto o nosso maior problema não eram as balas. Era impedir os federais de rir. Depois de ultrapassarem a relutância em pôr os odiados uniformes, tornou-se tudo uma grande piada para os homens de Sonora. Nunca tinha ouvido falar de tropas a sorrir como macacos umas para as outras e para o inimigo debaixo de fogo.
Aussenberg não estava tão preocupado com o sulco no escalpe como com os estragos na capa. Ele era particular em relação às suas roupas. Mesmo quando estava a tragar água e a ladrar “Gott in bimmel!” depois de comer um tamale extra-quente, tinha cuidado em não sujar os prendedores brilhantes ou entornar comida na camisa branca. Fez mais alarido sobre a racha na capa do que se tivesse perdido as calças.
Quando Ortega me disse que Villa ia soltar os prisioneiros na cadeia de Durango, eu fiquei interessado. Mais acção. Alertei o Miguel e fomos de carro até à penitenciária e montámos as coisas do outro lado da rua, em frente ao portão principal. Para minha decepção, só saíram alguns presos às pinguinhas e foi tudo. Disse a Aussenberg para cortar e fui outra vez atrás de Ortega. “Foi um fracasso,” protestei eu. “Parecia que iam para a frente de um pelotão de fuzilamento. Precisamos de mais. E reúna as putas todas da cidade.”
O próprio Villa resolveu o problema. Acho que se estava a sentir benévolo depois da cena com as raparigas das flores. O general era imprevisível. Quando estava zangado, galopava pela câmara, levantando poeira e tornando impossível segui-lo. Ortega tinha de ser diplomático na preservação da paz. Se não fosse por ele, acho que por vezes o nosso autocrata a cavalo nos mandaria matar sem pensar duas vezes. Agora ordenava a uns duzentos soldados para tirar os sombreros e as bandoleiras e empilhar as suas espingardas. Arengou-lhes e depois mandou-os para a cadeia. Quando eu acenei, um ajudante disparou a pistola dele e os soldados-tornados-prisioneiros vieram a correr dali para fora, gritando “Viva Villa” por todo o lado. Descobri mais tarde que Villa tinha prometido executá-los solenemente se eles não fossem realistas. Um até tentou beijar-lhe a bota e acabou por lhe beijar o cavalo.
Usámos as putas que se reuniram como esposas e namoradas. Fiz Ortega passar palavra de que andávamos à procura de talento interpretativo e elas armaram um belo espectáculo.
Foi o fim da batalha de Durango. A sala de montagem em Hollywood juntava as sequências. Eu estava satisfeito e disse ao Miguel para de manhã estar pronto para levar o filme de volta a Harris em El Paso.
Nessa noite Villa mandou vir Ortega até mim com um convite para jantar. Em Juárez tinham removido os assentos da segunda carruagem e transformaram-na na viatura de jantar privada do general. A última carruagem eram o escritório e os seus aposentos de repouso. Havia uma razão prática para isto. No caso das locomotivas encontrarem uma ponte explodida ou uma via arrancada, a ponta da frente do comboio apanhava com o embate.
*
Os cozinheiros tinham matado e nós comemos alguns bifes, com muito vinho saqueado para os empurrar para dentro. Villa não teve muito para dizer. Comeu três grandes bifes e depois disse a Ortega que estava satisfeito com a forma como eu estava a lidar com o filme dele. Queria saber quando é que o podia ver e ficou carrancudo quando Ortega lhe explicou por mim que os negativos tinham de ir primeiro para Hollywood. “Alguém o vai roubar! Os gringos são todos ladrões!” profetizou ele sombriamente. Eu tentei atenuar o desapontamento dele. “Diga-lhe que eu passo o filme pessoalmente para ele no palácio nacional quando for presidente do México.”
“Mas o general não quer ser el presidente. Ele apoia o general Obregón.”
“Então diga-lhe que o entrego em Parral.”
Villa estendeu as mãos e encolheu os ombros quando Ortega traduziu, mas pensei tê-lo enganado quando perfurou um lombo suculento com a faca e o sacudiu para o meu prato.
Mais tarde desejei ter tido luzes para as filmagens nocturnas e som e cor para gravar as cenas que tiveram lugar na praça nessa noite. A maior parte dos soldados estavam bêbados e contentes, e muitos dos cidadãos não estavam em melhor estado. Contrariamente à prática habitual de quando um exército invasor ameaçava uma cidade, as mulheres jovens não tinham sido levadas para longe para se esconderem até as tropas partirem. Isso tinha sido uma das razões porque Ortega tinha recrutado as minhas raparigas das flores tão facilmente. Talvez toda a gente estivesse feliz pela guarnição ter sido morta e expulsa.
A grande praça, com as caras de pedra de heróis revolucionários a olhar e a parecer acenar em aprovação, ganhou vida num carnaval frenético de canções e de danças e bebida e amores. Trocava um ano de salário para o conseguir apanhar em película. O próprio Villa dançou com um bando de parceiras risonhas antes de se retirar para a viatura de repouso. Os gritos de várias casas por cima da praça indicavam que havia algumas pilhagens e violações a acontecer. As prostitutas da cidade, depois do seu “teste de selecção” à frente da prisão, fizeram um negócio animado nos bancos de jardim e debaixo das barbas dos foliões. Tornou-se difícil determinar quem celebrava mais, as pessoas ou os soldados. Foi uma noite que Durango não iria esquecer tão cedo. Nem eu.
Villa enterrou os seus mortos e marchou para fora de Durango ao nascer do sol da manhã seguinte. O exército estava ressacado mas houve poucas queixas. O rumor originado em Juárez de que a intenção de Villa era entregar a Cidade do México às suas gentes ganhou um novo impulso. Oito mil homens seguiam agora o general, mais cinco mil dos que tinham partido de Juárez.
A serra alta abrandou o nosso progresso. Quando uma das locomotivas avariou, Villa soltou o exército pelos campos. Os destacamentos de pilhagem trouxeram mais gado. Foram queimadas algumas fazendas e circulavam jóias e dinheiro entre os soldados, enquanto as suas mulheres se passeavam com ornamentos roubados. Incumbi Aussenberg de filmar muitas destas coisas para metragem de segundo plano. Uma das imagens que ele filmou era a de uma mulher índia gorda a pavonear-se num vestido de Paris (eu sabia porque tinha olhado para a etiqueta), arejando a sua cara suada com um leque de seda e marfim e usando um espartilho comprido do lado de fora do vestido.
O motor demorou três dias a reparar. Embora não tenham aparecido federais, as várias secções de via arrancada provavam que as patrulhas deles não andavam longe. A maior preocupação de Villa, expressa à minha pessoa por Ortega, era que os Carranzistas dinamitassem uma das pontes e o forçassem a abandonar o comboio. Talvez estivessem com falta de explosivos. As pontes permaneciam intactas.
Os coruchéus da igreja de Léon começaram a perfurar o céu algures na segunda semana depois de Durango. Villa só parou tempo suficiente para saquear as lojas antes de partir. Não houve resistência. Os comerciantes não mostraram muito entusiasmo quando os seus bens foram roubados, mas o golpe da coronha de uma espingarda era um incentivo poderoso à cooperação. Conseguimos algumas boas filmagens, mas decidi não enviar o Miguel numa segunda viagem à fronteira. A Cidade do México não era longe. Acabava lá o filme e eu levava o negativo de volta.
Aglomeraram-se voluntários nas fileiras entre Léon e Querétaro. Contingentes inteiros esvaziavam as fazendas e as comunidades ao longo do caminho para se juntarem ao general. Quando Villa passou a cavalo pelo Zócalo da capital e desmontou para entrar no Palácio Nacional deserto, tinha mais de vinte mil homens atrás de si.
*
Não houve sangue na ocupação da Cidade do México. Os federais tinham abandonado a cidade quando viram a alta nuvem de poeira por trás do exército de Villa a aproximar-se. Ele deu ordens para que se controlasse a pilhagem e foram mortos alguns soldados por desobedecer ao mandato. A longa marcha tinha terminado. Francisco Villa, o “índio ignorante,” era o mestre do México em tudo menos no nome. Quando Emiliano Zapata apareceu com o seu exército sulista e Álvaro Obregón chegou de Veracruz, os três generais comandavam entre eles mais de cinquenta mil homens armados. O resto é história.
Depois dos meses passados a captar imagens do exército do norte, nos quais registámos tudo excepto planos de continuidade em interiores e sequências nocturnas, eu senti que uma ênfase excessiva no final da marcha ia ser anti-climático. Virando portas abertas e persianas no palácio a meio da tarde, tive luz suficiente para filmar os três generais sentados numa mesa de conferências. Pela parte que me tocava isto era o fim da estrada. Estava pronto para voltar para Hollywood.
Dei um aperto de mão a Villa e a Ortega e disse ao Miguel para atestar o carro e carregar comida suficiente para vários dias. Não havia questões de dinheiro. Ainda tinha um bolso cheio de dólares, mas não eram precisos. Por essa altura, na Cidade do México, qualquer pessoa que desfrutasse da protecção de Villa meramente se servia do que quer que precisasse.
Um dos primeiros actos de Villa ao entrar na capital tinha sido confiscar o dinheiro todo de Carranza. Para o substituir, emitiu o dele. As máquinas de impressão em Isabel la Católica funcionaram fora de horas. Villa entregou-me uma mala cheia de novos pesos quando se despediu. Ortega deu-me outra com um pedido de que a remetesse à mulher dele em El Paso, e eu achei mais que justo insistir numa terceira para Aussenberg. Para nos escoltar de volta ao norte, providenciaram-se três camiões furtados tripulados por soldados que tinham regressado, transportando comida e barris de gasolina. Quando passámos de carro por Chapultepec para apanhar a estrada de Querétaro, eu comandava o meu próprio exército.
Nessa altura não havia autoestradas no México e a viagem de camião era lenta e arriscada. Normalmente devíamos ter chegado a Juárez em cerca de uma semana. Em vez disso, levou mais de um mês. Para rematar o clímax, o camião avariou. Tivemos de parar e forragear por comida, e não deixava de faltar gasolina. Muitas vezes ficávamos presos nas montanhas ou lá no deserto e tínhamos de esperar que passasse um carro ou um camião. Quando aparecia um, os soldados paravam-no e escorriam o tanque da gasolina, às vezes à mão armada. Sempre que isto acontecia, eu sondava a minha mala e distribuía maços de pesos novos e frescos para apaziguar os viajantes abandonados.
Foram necessários longos desvios para iludir os bandos de guerrilheiros itinerantes que tinham surgido na esteira de Villa. Ao longo do caminho, as pessoas avisavam os soldados a tempo e nós conseguíamos evitar qualquer tipo de luta. Foi uma viagem lúgubre, tornada ainda mais fastidiosa quando Aussenberg se foi abaixo com disenteria. Perdeu trinta quilos e era um esqueleto ambulante quando atravessámos o Rio Grande em direcção a El Paso.
Eu e Aussenberg passámos pelo banco em Juárez para trocar os nossos pesos Villa por dinheiro americano. Calculei pela antiga taxa de câmbio que a minha parte ia valer mais do que quarenta mil dólares. Tinha feito planos. Ia comprar uma casa com uma piscina e uma garagem para o Stutz, e convidar o meu pai e o George para viverem comigo. Portanto fiquei compreensivelmente chocado quando o banqueiro abanou a cabeça e disse que o dinheiro de Villa não tinha valor algum. Os pesos de Obresón tinham-no substituído. Aussenberg soltou um berro que se conseguia ouvir do outro lado rio. “Schweinhund! Trabalho como um cão estes meses todos e queimo as entranhas com aquela comida traffe toda e acabo com uma sacola cheia de Dreck!” Na altura não sabia o que é que ele queria dizer. Mas Aussenberg sabia. Quando o encontrei passado uns anos, ele lembrou-me.
Quando dei a mala do marido à Señora Ortega, rasguei algumas das notas à frente dos olhos horrorizados dela e sugeri que usasse o resto como papel de parede. Disse adeus a Aussenberg e aconselhei-o a procurar um médico. Depois disse ao Miguel para estacionar o camião à frente do Paso del Norte e apanhei o comboio nocturno para Los Angeles.
*
Griffith e Frank Woods deram-me os parabéns pela cobertura mexicana, mas eu estava com um bocado de dúvidas em relação ao filme. Tinha dirigido Villa ou tinha sido ele a dirigir-me? “Alguns dos planos são bons e sangrentos,” comentou Griffith. “Os censores podem desmaiar. Mas isso é uma dor de cabeça para a Mutual.” Por uma vez ele sentou-se enquanto falava. “Estão-nos a pressionar para a longa-metragem completa. Vai acabá-lo interpretando o jovem Villa. O Cabanne realiza.”
Nesses primeiros anos, como faltava sempre dinheiro e o transporte era difícil, as equipas de cinema nunca viajavam para longe para os exteriores. O alcance habitual era do San Fernando Valley para as cenas mexicanas à Portuguese Bend e San Pedro para os planos no mar, e San Bernardino para os filmes no deserto. Fizemos as cenas em estúdio de Life of Villa na Fine Arts e filmámos a maior parte dos exteriores, incluíndo a “casa de Villa em Parral”, ao redor da velha missão de San Fernando. Quando acabámos e a sala de montagem tinha terminado, tínhamos um filme de cinco bobines com duração de longa. Como era típico a Mutual nunca nos disse quanto dinheiro fez o filme, mas esteve em cartaz durante muito tempo no teatro mexicano e foi parte regular da festa do Cinco de Mayo durante alguns anos.
Um dia, quando estava a relaxar entre planos no estúdio, Buck Friedman veio à minha procura. “Estão dois tipos no portão a perguntar por si. Um diz que o nome dele é London.”
“Qual é o primeiro nome dele?”
“Não perguntei.”
“Se for Jack, diz-lhes para entrarem.”
Foi assim que conheci Jack London e Wyatt Earp. London andava-se a dar bem há anos, mas a cara enrugada dele ainda era tão áspera como as suas histórias, que me tinham emocionado quando estava a crescer. Os seus livros tinham sido publicados na maior parte dos países do mundo. O lendário Earp era alto e um bocado encurvado, mas ainda o conseguia ver como oficial de justiça em Tombstone.
“Então é o homem que cavalgou com Villa?” London deu-me um aperto de mão e os meus dedos formiguejaram. Para um homem que só tinha mais um ano de vida, ele parecia estar com uma saúde vigorosa. “Como é que foi? Eu e o Wyatt gostávamos de ouvir falar sobre ele.” Earp acenou com a cabeça e parecia interessado.
Eu fiz-lhes um curto resumo do que tinha acontecido entre Juárez e a Cidade do México. Quando tinha acabado, London olhou para Earp. “Que me dizes disto? Nós aqui a tentar viver de acordo com as nossas reputações e este tipo vem de lado nenhum e cavalga com o homem que fez caretas ao Presidente Wilson.” Voltou-se para mim. “Muito bem. Invejo-o.”
Jack mencionou que andava a pensar em escrever um livro sobre Villa. “O homem é fabuloso.”
Eu aconselhei-o a esperar. “Neste momento, o México é simplesmente um grande clube de tiro. Provavelmente não teria muitos problemas a entrar mas as probabilidades estão contra a sua saída.”
“O senhor saiu,” sublinhou ele.
“Sim, mas estava sob a protecção do exército mais poderoso do México. Tinha vinte mil soldados a apoiarem-me.”
Convidei-os para jantar nessa noite antes de ser chamado de volta para o estúdio. Fomos ao Levy's e London começou quase imediatamente a insultar os seus editores. “São piores que os seus censores,” queixou-se ele. “Não querem ouvir falar em mim a dormir com uma mulher, por mais que eu o tente expurgar. São uma cambada de eunucos malditos.”
Eu disse-lhe que tinha o mesmo problema com os moralistas do cinema e depois tentei sacar dos dois homens qualquer coisa sobre os seus próprios feitos. Nenhum quis falar de si próprio, mas consegui receber alguns bons detalhes de Earp sobre a família Clanton e o famoso tiroteio no OK Corral. London relembrou velhas histórias sobre os dias no Klondike e as circunstâncias que o induziram a escrever O Apelo da Selva.
Estava a escutar com ambos os ouvidos quando Charlie Chaplin, sentado com amigos noutra mesa, se levantou e começou o seu número do empregado. Eu chamei-o e ele fez-nos uma vénia com um guardanapo por cima de um braço e desencantou um bloco de pedidos. “Pára com isso,” avisei-o eu, “senão digo ao Sennett que estás a quebrar o teu contrato.”
Ele arqueou uma ponta do bigode com um olhar malicioso típico. Quando o apresentei aos meus convidados, ele olhou para Earp com uma reverência evidente. “É o tipo do Arizona, não é? Domou os bandidos, hã?” Olhou para London e acenou com a cabeça. “Também o conheço, a si. Quase me fez ir para o Alaska e procurar ouro.” Sentou-se e relatou algumas das experiências dele “quando era um pirralho em Cheapside.” Passei um belo bocado só a ouvi-los e mais tarde desejei ter tido alguma forma de registar a conversa deles. Para que conste, Jack voltou para a sua casa no Vale da Lua e morreu lá sem escrever a sua história sobre Villa. Earp seguiu-se-lhe alguns anos mais tarde. Não voltei a ver Chaplin durante dez anos.
*
Quando se acabaram as sequências com Villa, Frank Woods disse-me para tirar uma semana de folga. Ele parecia interessar-se quase de forma paternal por mim e estava preocupado por eu ter perdido peso no México. “Põe alguma comida genuína americana no estômago. Essa dieta de feijões e chili vai-te matar.” Por esta altura eu gostava de feijões e de chili, mas deixei-os.
Vagueei por aí sem nada para fazer até Tommy O'Brien, o meu assistente, me arrastar até Venice para ver o circo de Al G. Barnes. O'Brien, um fã de circos, conhecia os artistas todos e apresentou-mos depois do espectáculo. Conheci Olga Petrovich, uma domadora de animais russa, cujo número eu tinha admirado anteriormente pelo desdém dela para com o perigo. Ela tinha colocado dois pedestais a três metros de distância e chicoteou um leão até cada um deles; depois ficou no meio e fez um leão que protestava saltar por cima da cabeça dela. “Aquele é o que matou o marido dela há um ano,” sussurrou o Tommy. “Em vez de pousar no pedestal vazio, o leão saltou para cima dele. Estava morto antes dos participantes conseguirem tirar-lhe o leão de cima.” Não me consegui impedir de comparar esta rapariga vivaz e atraente à safra corrente de belezas de estúdio que quase desmaiavam por ver um rato.
O assassino de Cupido deve ter aceitado um contrato para a minha pessoa nessa noite. Durante o resto da semana fui ao circo todas as noites, e levei a Olga a jantar no Ship Café depois do espectáculo. O Ship tinha boa comida e uma orquestra. Como a maior parte dos russos, ela era uma bela bailarina. Esteve em tão boa forma na pista de dança que as pessoas nos aplaudiram.
A tristeza foi-se rápido. A Olga tinha um pequeno apartamento na praia, onde fiquei. Hollywood não me viu de novo até ser altura de me apresentar ao trabalho. Se esta rapariga notável me fascinava, era porque nunca tinha conhecido alguém como ela. Depois de termos dado um mergulho, por exemplo, ela mostrou um par de toalhas grandes e secámo-nos um ao outro. “Na Rússia,” disse ela de forma simples, “é costume.” Tive todo o gosto em concordar com ela. Uma vez, enquanto dávamos um longo passeio pela praia, ela parou, pôs os braços dela à minha volta e disse qualquer coisa em russo. Quando fiz um olhar em branco, ela riu-se e afirmou, “Disse simplesmente que te amo.”
Fizemos uma viagem até Catalina e ela ofereceu-me o mesmo tratamento. Quando a interroguei, beijou-me e informou-me de que aquilo era a nossa lua-de-mel.
EU: Mas nem sequer estamos casados.
OLGA: O que é que o casamento tem que ver com o amor? Temo-nos um ao outro.
Convidei-a mais tarde ao estúdio para ver como é que os filmes eram feitos. Tornou-se rotina. Ou ela estava em Hollywood comigo ou estava eu com ela no seu apartamento em Venice. Esta felicidade mútua continuou até eu voltar a Nova Iorque.
Seria difamar um bom homem chamar a D. W. Griffith um condutor de escravos. No entanto, ele esperava um dia de trabalho completo pelo que era considerado na altura um bom pagamento diário. Enquanto eu estava no México a fazer o filme sobre Villa, Griffith tinha começado a filmar o seu primeiro épico de longa-metragem, O Nascimento de Uma Nação. Eu suspeitava que ele me tinha em mente para o papel de John Wilkes Booth, mas quando voltei ao estúdio Frank Woods não fez menção ao assunto. No seu escritório, Griffith parou de passear tempo suficiente para me perguntar como me sentia. “Estou a ver que ganhaste algum peso.”
Depois dos dias tórridos com a Olga, duvidava que assim fosse, mas parecia a altura errada para o dizer. “Estou óptimo,” menti eu.
Virou-se todo para os negócios. “Sr. Walsh, estamos atrasados. Preciso da sua ajuda com as cenas de batalha. Leia o guião que o Sr. Woods lhe vai dar e apresente-se amanhã de manhã às oito em ponto.
“Sim, chefe.” Ia-me tornar um general de celulóide em vez de um assassino presidencial. Recebi o guião de Frank e descobri que o meu primeiro trabalho como assistente do realizador era reunir quinhentos figurantes. No processo, tive a sorte de conhecer um ex-sargento dos fuzileiros chamado Jim Kilgore.
Griffith estava com pressa e eu comecei a carregar a multidão de figurantes em camiões (que eram mais baratos de alugar que os autocarros) às seis da segunda manhã. O exterior escolhido para as cenas de batalha foi o Providencia Ranch, a cerca de trinta minutos de carro do estúdio. Pelo meio da manhã, os “soldados” estavam lá todos. A equipa de exteriores tinha preparado uma linha de tendas para os camarins e eu mandei o Jim mostrar aos homens como pôr os seus uniformes confederados e segurar numa espingarda como se fosse uma arma e não um taco de bilhar. Depois ordenei meia-hora de exercícios em flancos cerrados para afinar as ideias dos inevitáveis brincalhões e aquecer as companhias para o avanço inaugural.
Griffith veio às nove e mandou Billy Bitzer montar as coisas numa colina baixa com vista sobre o vale onde estávamos reunidos. Acenou com a cabeça quando viu uma faixa de bosques por cima da colina. “As árvores vão-se adequar à cena.” Olhou de soslaio para o sol. “Não há nuvens. Se a luz se aguentar, acabamos de rodar a sequência da batalha amanhã.” Por ler o guião, sabia que as cenas de multidões iam ser as mais difíceis de realizar. Era típico dele querer fazer a filmagem mais dura primeiro. “Tiram-se as sequências difíceis do caminho e o resto é fácil” era o mote de Griffith. Manteve-se fiel a ele.
“Lembre-se das direcções,” disse ele antes de subir para a câmara. “Os confederados movem-se da direita para a esquerda e o exército da União sempre da esquerda para a direita. Uma reversão que seja vai só confundir o público.” O génio deste homem, como alguém definiu essa qualidade elusiva, consistia numa capacidade infindável para dar o máximo. Cada ordem que ele dava era cuidadosamente pensada primeiro. A mente dele filmava cada cena antes da câmara a captar.
Segundo o guião, as tropas confederadas iam-se esconder entre algumas árvores na extremidade direita do vale, depois avançar na direcção dos bosques e atacar uma força da União imaginária a defender o lado esquerdo. Colocar quinhentos figurantes em posição foi um bocado como conduzir gado mas, com Tommy O'Brien a ajudar, instalámo-los finalmente na madeirada. Eu queria um teste piloto e mandei-os seguir, depois pedi ao Jim Kilgore para os instruir sobre como avançar em ordem espontânea em vez de se agruparem.
Dedicou-se a isso de coração. “Dispersem! Espalhem-se! Os azuis ali vão-vos aniquilar se fecharem as fileiras.” Pela altura em que acabou, acho que tinha os falsos rebeldes todos a pensar que era a sério. Mais tarde, quando alguns deles caíram como se estivessem feridos, fizeram parecer que tinham sido mesmo atingidos.
Além do seu grande megafone, Griffith tinha uma bandeira branca. Tínhamos acordado um código de sinais e quando a bandeira foi para baixo arrancámos as tropas dos esconderijos e começámos o avanço. O falecido instrutor militar tinha feito um bom trabalho. Só houve uma repetição de filmagem, feita porque Griffith queria o avanço abrandado. Eles dapareceram pelos bosques “inimigos” numa carga realista e Griffith ficou satisfeito.
Outra das suas máximas era a de que um bom realizador tinha de ser capaz de inspirar quem quer que estivesse a dirigir para que o actor “vivesse” a cena. O faz-de-conta tem de se tornar realidade. Mais tarde, quando chegou a altura dos “confederados” mudarem de uniformes e se tornarem soldados da “União”, a inspiração devia estar a trabalhar a tempo inteiro. Muitos rebeldes de outrora recusaram categoricamente vestir uniformes nortistas. Um rosnou para mim, “O meu papá cavalgou com Jeb Stuart em Yellow Tavern. Eu não sou diabo de ianque nenhum.” Atirou a espingarda ao chão e afastou-se. Outros seguiram-no. Tanto quanto soube, nenhum deles apareceu no estúdio pelo seu salário. E portanto perdemos alguns. Mas a realidade de Griffith foi justificada. E ainda tínhamos gente suficiente para combater a Guerra Civil.
Eu tive um momento de inspiração e disse a O'Brien que desse um número a cada homem. Afinal, os exércitos funcionavam por números, portanto porque é que este não havia de ser igual? Depois dividi-os por escalões em que certos números eram instruídos a cair para o chão e fazer-se de mortos. Outros eram ordenados a tropeçar e depois levantarem-se. Não precisei de megafone; tinha um bom par de pulmões e eles ouviam-me quando gritava os sinais a cada vaga. Pela altura em que Billy Bitzer tinha montado as coisas noutra colina, nós tínhamos as tropas a suar dos ensaios. A segunda disposição era mais próxima e a câmara captava planos médios, depois movia-se outra vez para fazer os novos grandes planos, pelos quais Griffith e Bitzer foram legitimamente creditados. Agora que os verdadeiros rebeldes estavam eliminados, os restantes consideravam o assunto a sua guerra pessoal. Fizemo-los investir de trás para a frente em roupas de batalha confederadas e unionistas até ser altura de parar para o nosso almoço de lancheiras (uma sandes de presunto seco, um dónute rançoso, uma maçã e uma embalagem de chicletes Beeman, alimentação escassa para marchar para Appomattox e para a vitória.
O departamento de adereços tinha ressuscitado oito canhões da Guerra Civil e um obstrucionista qualquer tinha mexido nos fusíveis de modo a que, no primeiro dia de planos com a artilharia, só três armas é que dispararam. Griffith era um homem paciente e nunca ficava excitado. No entanto, as retaliações calmas dele eram frequentemente mais eficientes do que ameaças. Quando foi para o megafone eu estava à espera de fogo-de-artifício, mas tudo o que ele fez foi dizer que ninguém era pago se os disparos da artilharia falhassem outra vez. Na repetição do plano, conseguimos uma salva perfeita.
Os planos de ângulos altos e baixos e os grandes planos transformaram um bom filme num grande filme. Bitzer aproximou-se, com a direcção de Griffith. Focou um detentor de cor cinzenta e seguiu-o com uma panorâmica lenta até ele cair. Grande plano do coronel confederado (Henry Walthall) a apanhar a bandeira e a forçá-la no bocal fumegante de um canhão da União. Depois, planos médios e gerais dos azuis em retirada. Fez a cena funcionar. A única coisa de que senti falta foram as ondas de aplausos quando o Sul ganhou o dia. Teriam aplaudido assim em Manassas em '61 quando Jubal Early fez a investida para derrotar McDowell?
As sequências de batalha entraram no segundo dia e, por aclamação geral, resultaram em algumas das maiores cenas de guerra já captadas em película. Quando a câmara deixou de correr, Griffith apertou-me a mão e esboçou mesmo um sorriso. Eu fiquei uns centímetros mais alto quando ele disse, “Sr. Walsh, se tivesse sido um general confederado, o Sul nunca teria perdido a guerra.” Depois disso, até a rendição de Lee a Grant parecia uma casualidade, embora Donald Crisp tenha interpretado um bêbado honrado quando aceitou a espada de Lee.
Assim que os planos individuais em continuidade foram levados para o estúdio, Griffith desimpediu o espaço todo e pôs a equipa de cenografia a trabalhar na construção do Ford's Theater. Estava-se a preparar para matar um grande homem. Só nessa altura é que recebi a dica de Frank Woods de que ia interpretar o papel do assassino.
Entretanto queimei as milhas até Venice para jogar a nossa versão privada da roleta russa com a minha domadora de leões. Como observaria Bob Mitchum muitos anos mais tarde, ser um actor é certamente bem melhor que trabalhar. Olga pediu para vir e para me ver na cena do assassinato. Fi-la entrar para o teatro com centenas de figurantes que tinham pago dinheiro de forma ostensiva para ver Our American Cousin[3]. Ela depois disse-me que ficou assustada o tempo todo; uma estranha confissão vinda de uma rapariga que tinha passado metade da vida a exercitar leões imprevisíveis.
Enquanto o guarda foi buscar uma bebida (como a história nos diz), eu fiz a minha subida furtiva para o camarote presidencial e “matei” Lincoln (Joseph Henabery) em imitação do homicídio verdadeiro. Quando brandi a pistola e gritei, “Sic semper tyrannis,” enquanto saltava para o palco para a minha fuga, o meu pé ficou emaranhado à bandeira americana. Segui a história em todos os detalhes à falta de uma perna partida. Dessa maneira, choquei com o meu joelho defeituoso e desloquei o tornozelo, o que tornou as provas de rodagem mais convincentes. Depois pus-me a pensar se as pessoas iam começar a odiar o meu irmão George como tinham odiado o irmão de John Wilkes, Edwin. Quando disse a Griffith que a trapalhada com a bandeira tinha sido um acidente, ele disse, “Um excelente acidente.”
O Dr. McCoy mandou-me para o hospital de St. Vincent para fazer raios-X e puseram-me na cama. E há aqui toda uma história.
A Olga veio ao hospital nessa noite com um ramo de flores. Contou-me como tinha achado emocionante a cena em que eu matava o presidente. “Mas estou com tanta pena que tenhas magoado a perna.” Garanti-lhe que nada estava partido e que ia sair num dia ou dois e íamos estar a dançar no Ship Café. Olga beijou-me, falou muito em russo, e pela cara sorridente dela soube que me estava a dizer algo de muito agradável. Beijou-me outra vez docemente e saiu.
Estava a dormitar quando Crazy Wolf[4] entrou no quarto com uma braçada de flores. Repreendi-o por gastar do dinheiro dele quando eu ia sair do hospital num dia ou dois. Ele disse, “Eu gostar de ti – arranjar flores. Vejo que matares homem hoje – tu bom.”
Depois saiu. A enfermeira entrou na manhã seguinte, viu o ramo de flores enorme e gritou, “Agora sabemos para onde foram as flores do jardim!”
Como o mundo sabe, O Nascimento de Uma Nação tornou-se uma obra-prima do cinema. Na indústria do cinema, marcou o fim do nickelodeon com o pianista omnipresente. Exigia a sua própria partitura musical interpretada por uma orquestra completa e seria adaptado para uma digressão. O público ia pagar mais para o ver e entreter-se-iam com ele mais pessoas do que com qualquer outro filme anterior. Essas foram só algumas das novidades.
Até 1915, quando o épico de Griffith estava concluído, os espectadores tinham andado a ser presenteados com uma sucessão de filmes de uma e duas bobines de segunda categoria. Eu devia sabê-lo; tinha andado a entrar neles durante vários anos, antes de me darem a tarefa de Villa. Villa foi uma pausa na rotina enfastiante. Pelo menos tínhamos conseguido rodar alguma acção real, porque estávamos a registar história. Mas foi preciso O Nascimento de Uma Nação para convencer o mundo de que a infantil Hollywood tinha atingido a maioridade. Este filme de longa-metragem foi o ponto de viragem. A opinião pública afastou-se da convicção popular de que os filmes eram na melhor das hipóteses uma forma menor de entretenimento. Treze anos mais tarde, o som ia revolucionar os filmes outra vez, mas foi O Nascimento de Uma Nação que convenceu a América e o mundo de que os filmes eram uma arte por direito próprio e não apenas a prole ilegítima do teatro.
O meu irmão George veio para a Costa enquanto estávamos a filmar O Nascimento, e eu pu-lo nalgumas das cenas de batalha. Pelo menos tinha um “rebelde” que não se recusaria a vestir um uniforme ianque. Griffith e Woods gostaram ambos de George, e Cabanne usou-o em alguns dos seus filmes. Foi escolhido por Griffith como o noivo na sequência judia do seu filme seguinte, Intolerância.
O triunfo de Griffith com O Nascimento não veio sem uma mistura de sarilhos. Foi requerido um processo civil contra ele em Chicago por um grupo que se ofendeu com as sequências do Ku Klux Klan. Enquanto ele estava na Cidade Ventosa a responder a uma citação para aparecer em tribunal, eu recebi uma chamada telefónica de Winfield Sheehan, o vice-presidente da William Fox Company, a organizar-se na altura em Nova Iorque.
Sheehan levou-me a jantar ao Hotel Alexandria e disse-me que o Sr. Fox tinha visto Home from the Sea. Fox, acrescentou ele, tinha-o enviado a Hollywood para encontrar o homem que o tinha realizado. “Ele quer-lo. Como é que está com a Fine Arts?” Mencionei que ia realizar outra coboiada mas não tinha contrato.
“Esqueça a Fine Arts,” respondeu ele, “até ouvir o que eu tenho para dizer. A Fox Studios é financiada por muito dinheiro do Leste.” Ele deu o nome de uma grande companhia de seguros e de uma série de bancos. “Como vice-presidente, posso-lhe dizer que vamos ser a maior na indústria. Eu e o Sr. Fox gostávamos que tivesse uma mão na construção da companhia.”
“Tudo bem. Agradeço o elogio. Mas estou feliz aqui. Além disso, sou um novo realizador. Home from the Sea e The Life of Villa são os únicos filmes que eu fiz que valem alguma coisa.” Ele foi polido e aparentemente sincero. Mas eu não ia morder na mão que me pagava por um trabalho que parecia mentira – a não ser que a Fox me garantisse muito mais dinheiro do que estava a fazer.
Sheehan sorriu como se soubesse algo que eu não sabia.
“Não olhe agora, mas a sua lealdade está à mostra. Respeito-o por isso. Nós sabemos tudo sobre si e estamos convencidos de que é o homem que precisamos. Quanto é que a Fine Arts lhe está a pagar?”
Eu sorri-lhe de volta. “A modéstia impede-me de o dizer.” Se ele sabia tanto sobre mim, o salário foi com certeza uma das primeiras coisas que ele deve ter investigado. Se não sabia, não tinha intenção de lhe dizer que estava a sacar quarenta dólares por semana, dez vezes mais do que quando comecei. A Fine Arts estava a produzir com orçamentos apertados até começarem a entrar os recibos de O Nascimento de Uma Nação. Henry Walthall estava a conseguir cinquenta e cinco por semana e Frank Woods, sessenta; estes eram salários de topo, tirando os rumores de que Griffith estava a pagar cem a si próprio.
Sheehan mudou o sorriso dele para uma risada. “Não importa. Não se sinta ofendido quando eu lhe disser que sabemos qual é o seu ordenado até ao último centavo; os salários de todos os realizadores, actores e actrizes na ficha salarial da Fine Arts também. Por esta altura pensei que já tivesse feito a sua oferta. Quanto?”
Ele andava atrás de mim rápido demais, sem me dar tempo para pensar. Pensei que podiam jogar dois aquele jogo. Lembrando-me do gabanço dele em relação ao financiamento carregado, eu indiquei o primeiro valor que me veio à cabeça: “Quatrocentos. Semanais.” Estava à espera que ele gritasse e me dissesse para ir dar uma curva, mas nem sequer vacilou. Continuava ali sentado, a dar bafos pequenos no charuto enquanto estudava a minha cara. Não disse nada durante um longo minuto e eu quase conseguia ouvir a engrenagem a rodar na mente dele. Também estava a rodar na minha. Quatrocentos dólares por semana era ridículo demais para pensar, sequer. Os presidentes dos bancos ganhavam menos, tirando quando se baixavam ao nível de uma pequena fraude. Depois acenou com a cabeça. “Vou telefonar ao Sr. Fox de manhã. Ligo-lhe para o estúdio e digo-lhe qual é a decisão dele.”
Às oito da manhã seguinte entrei no escritório de Frank Woods e contei-lhe o que tinha acontecido. Ele ouviu-me e depois bateu ao de leve nos dentes com um lápis. “Ainda bem que veio ter comigo, Raoul.” Deixou cair o lápis e olhou directamente para mim. “Antes de sair, o Sr. Griffith referiu que lhe ia dar um aumento a si, ao Walthall e a Wally Reid. Receio que o consiga, porque por esta altura a Fox provavelmente mandou Sheehan de volta para Nova Iorque.”
Mesmo antes do meio-dia, fui chamado para fora do estúdio para atender o telefone. Quase caí quando ouvi a voz de Sheehan.
“Pode jantar comigo hoje à noite outra vez, à mesma hora e no mesmo sítio?”
“Claro.” Ele desligou antes que eu pudesse dizer mais. Fiquei aliviado quando o pôr-do-sol deu por terminado o dia de rodagens. Felizmente, a coboiada avançava mais ou menos por si. A única direcção que fiz nessa tarde devia ter-me merecido a expulsão das instalações. O que é que tinha dito Fox? Como é que tinha tomado a minha oferta escandalosa? Tinha de haver algum interesse; senão o Sheehan não se tinha dado ao trabalho de telefonar. A lógica continuava a amontoar-se na minha cabeça. Quando cheguei ao Alexandria, estava quinze minutos adiantado.
A cara de Sheehan não me disse nada. Depois do empregado se afastar, ele tirou um papel dobrado do bolso e largou-o à minha frente. Eu li-o e as palavras desfocavam-se como se precisasse de óculos. Era um contrato para fazer três filmes para a Fox Studios a quatrocentos dólares por semana. Ouvi vagamente Sheehan a dizer, “Despache-se e assine. Estou cheio de fome.”
Levei a minha cópia do contrato a Frank Woods logo que fui trabalhar. Vi-o de boca aberta sem dizer nada pela primeira vez na nossa associação.”Eles pagaram para ver”! deu ele meias-risadas quando pôde falar. “Se não o tivesse acabado de ler, chamava-lhe um mentiroso.” Deu a volta à secretária para me apertar as mãos. “Fico contente por si. Vai fazer mais dinheiro em Nova Iorque num mês do que se ficasse com a Fine Arts o ano inteiro.” Quando estava a sair, ouvi-o a murmurar, “Quem é que os está a financiar – Deus?”
*
A Olga veio ao comboio para se despedir de mim. Começou-me a falar suavemente em russo, enquanto tinha o meu braço à volta dela. Quando lhe perguntei o que é que estava a dizer, ela explicou, “Tenho um pressentimento no coração de que um dia nos iremos encontrar novamente. E estejas onde estiveres, nunca vais estar longe de mim.” Beijei-lhe a linda boca e andei tristemente até ao comboio.
[1] Tipo de tapete.
[2] "Camp followers", no original.
[3] "My American Cousin", no original.
[4] Lobo louco.
[1] Tipo de tapete.
[2] "Camp followers", no original.
[3] "My American Cousin", no original.
[4] Lobo louco.
in «Each Man in His Time», Farrar, Strauss and Giroux, Nova Iorque, 1974 - pp. 85-113.
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