por Jorge Silva Melo
Objective Burma! 1945: é o paradigma do filme de guerra centrado no cumprimento de uma missão e baseado na sua árdua execução. Uns pára-quedistas têm que destruir uma estação nipónica e deveriam, depois, ser repescados de avião. Só que não se pode aterrar - e "a meio do caminho das suas vidas", aqueles homens vão errar "na selva escura", por entre "grandes e gravíssimos perigos", "tanta guerra, tanto engano", tanto pântano e riacho, nunca certo que está o "caminho da vida".
Como?... Dante e Camões para falar deste filme em louvor do esforço militar americano na Birmânia que até oculta a participação inglesa (e assim foi proibido no Reino Unido quando da estreia)? Este filme que "muitos e conhecidos amigos" de Cintra Ferreira (também ouvi e até contei essa história, será verdade?) "garantiram que era exibido aos soldados portugueses antes da partida para as colónias"? E eu, refractário ao serviço militar, que à continência nunca achei graça, que nunca votei no Eanes, o de peito feito em cima de carros, que nunca consegui acertar o passo..., comovo-me e exalto-me com este filme, "verdadeira profissão de fé na hierarquia militar" (Cintra Ferreira)?
É que a aventura dos homens do capitão Nelson (um Errol Flynn realista. longe do ferrabraz tão nosso amigo, por exemplo, do Gentleman Jim do mesmo Walsh) é uma pura aventura bélica que nenhuma outra intriga vai "romancear". E é filmada didacticamente: vejam a demorada descida dos pára-quedistas. Uma aula? Não falta um gesto, não falta um corpo, todos os soldados respondem à chamada. E o que outros resolveriam pela elipse - para fazer avançar a imperiosa "intriga" - recusa-o Walsh por uma espécie de obsessão minuciosa. Como a caça à baleia no Moby Dick de Melville, ou as cotações na Bolsa de César Birotteau de Balzac, a expedição é aqui documentada em todos os seus gestos. Disse "gestos", não disse "feitos", Walsh filma gestos, apenas gestos, filma "todos os gestos", prefere a "reportagem" à "narrativa", e por isso cinge o filme às personagens e a um imenso off que só trespassa o ecrã pela sumptuosa banda sonora.
E é assim (por ser tão concreto...) que, como os grandes épicos, Walsh transforma a tão exacta guerra que vemos numa longa caminhada metafísica que é tão-só uma marcha cansativa (extraordinário travelling em que Flynn vai dando quinino aos soldados com os pés na água), um suor no rosto, um último estertor, um trabalho monótono e cinzento de que Deus se ausentou. E eles têm que continuar pelas selvas à espera de um avião (presença de Deus, aqui, como depois para a Harriet Anderson do Atrás do Espelho* de Bergman...), abandonados, morrendo, sobrevivendo. Até que o céu parece florir em centenas de pára-quedistas, divina, americana Graça.
Limitando-se ao observar dos gestos (isto acontece e mais isto e mais isto), distanciando-se das relações causa-efeito da "narrativa" (isto aconteceu porque antes acontecera aquilo), Walsh filma uma aventura bélica que é mais do que uma aventura bélica (como todas, não é? "A mais alta forma do drama é a do homem em perigo", Hawks...). E é assim que este filme pergunta e responde àquele engulho que tantas noites nos atormenta, a "meio caminho das nossas vidas": que é que um gajo anda aqui a fazer, "bicho da terra tão pequeno"?
Só que, humanista rubensiano, Walsh nunca subscreveria tão belo verso. Preferiria um verso coxo ele que nunca hesitou perante o "feio": "Bicho da terra, sim, mas tão grande".
Os homens sem Deus de Walsh serão irmãos dos vagabundos de Godot; caminham, esperam, morrem sem sentido, um deles dirá mesmo: "A arte militar é uma coisa que os soldados não compreendem". E o seu filme é sobre os que não compreendem, aqueles para quem os dias não têm fim e os pés têm bolhas, os que obedecem e dizem piadas e morrem, os que avançam pelos pântanos e de quem ficará apenas uma chapa com o nome. As chapas que Flynn mostrará dizendo: "Custou isto". Seco, lacónico, metálico (ah, a fotografia de James Wong Howe!!!), feito de coisas, de actos, feito de rostos vividos (vejam como o rosto suado de Flynn se confunde com o dos outros soldados e ele parece um daqueles actores não actores que por esses anos aparecem em Itália...), é um filme que vê a vida (a minha vida, a minha como a tua) como uma militar missão, lenta, penosa, divertida e estúpida, trivial e calorosa, longa caminhada sem norte, escura noite em que os corpos se desfazem e o único favor que se pede é o que pede Jacobs a Nelson, numa das mais belas cenas do filme e do cinema: "Faz-me um favor, mata-me".
Este filme de propaganda está longe de conceber a "Pátria - ou o Estado ou a Prússia... - como fim último do homem".
É que os homens têm corpo. E é o corpo que vence a adversidade, esse corpo que vence a natureza, que vence o medonho silêncio de Deus, esse corpo viril que é o fim último do homem de Walsh. Por isso não tenta aqui "dramatizar" pela planificação - ele, vindo do mudo, e que, de entre os grandes, foi o que talvez mais e mais estoicamente resistiu à "teatralização/broadwayização" que o som trouxe quer para a planificação, quer para o argumento, quer para a representação. A montagem deste filme, a escala de planos e o "tempo" das sequências - muito, muito lentas - têm a ver com os grandes poemas sinfónicos que foram os últimos filmes mudos e está longe da "planificação utilitária" que o sonoro iria impor e a TV normalizar. Tudo neste filme é construcção rítmica, alternância de timbres, insistência temática (Walsh e Dovjenko, todos por um e por um todos?). Como se Walsh quisesse filmar o próprio movimento e não o seu reflexo.
Um poema sinfónico, este filme castrense? E agora, que a música toca, poderei falar da minha juventude? É que vi este filme no Condes em 65. Dias antes vira Un Condamné à Mort s'est Echappé de Robert Bresson. E andava a ler (em francês e latim) Júlio César. E nunca vi dois filmes mais próximos... e quem acredita em mim quando tal digo? E nunca vi dois estilos mais próximos (o exacto César, o rude Walsh?), um de interiores (o de Bresson?), ambos filmados com a mesma atenção não às acções mas ao acumular dos gestos, ambos tratando do "silêncio dos Homens", ambos modesta e obstinadamente filmando homens abandonados por Deus e trabalhando para que "o vento sopre onde queira". E se, ao sair do Bresson, me precipito a ler Pascal, ao sair do Walsh penso é na prosa exacta do César. Júlio César, Walsh? E se disser que o que mais me toca é o Walsh?
Porque não canta o "esforço de um homem só", porque não descreve uma conquista... Ao filmar a deriva de mais uma patrulha perdida, ao filmar a "hierarquia militar" como um colectivo, é o "grupo" o que Walsh exalta (chama-lhe "espírito de corpo", os tropas?). E se há filme onde "nenhum homem é uma ilha" é este, feito de planos médios, o mais democrático dos planos, com mais do que uma personagem em campo, filme em que a própria vedeta (Flynn, vedeta de Hollywood e capitão Nelson) se vai diluindo no esforço humano (sobre-humano) dos seus homens. Até ser uma mão com umas chapas.
Não fosse a ideia original do argumento ser de Alvah Bessie, acabado de chegar a Hollywood, vindo das Brigadas Internacionais... E, se é verdade que os capitães de Abril viram Objective, Burma! antes de partir para as colónias, terão com ele aprendido a combater, a sobreviver no mato (sei lá, não fui à tropa)... Mas terão, sobretudo, aprendido a ser solidários. E se calhar foi por isso que um dia foram para um monte perto de Évora e redescobriram a resposta que este filme dá à mais nocturna das perguntas: "Um gajo tem que fazer qualquer coisa".
in Público de 4 de Março de 1995
* J.S.M. refere-se a Sasom I En Spiegel que se chamou em Portugal Em Busca da Verdade. Atrás do Espelho é o título português de Bigger than Life, de Nicholas Ray. A confusão do autor nasce do título francês do filme de Bergman, Comme Dans un Miroir. (nota de MCF).
in Raoul Walsh - Cinemateca Portuguesa
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