"Se pudesse contar a história por palavras, não precisava de andar com uma câmara às costas"
Lewis Hine
1. Há uma inocência no romancear: a de quem, como tantas tardes eu, se senta numa esplanada e vai olhando para as mesas ao lado tecendo sobre quem chega e quem parte ficções inúteis e improváveis. Quem é a rapariga que beija a senhora que faz tricot e agora se levanta para cumprimentar o rapaz de pull-over ao pescoço e sapatos sem peúgas? Primos, irmãos, namorados, relações? Podem-se inventar relações que logo se dissolvem mal a gente se levanta da esplanada e retoma o caminho de casa. Romances incompletos, histórias sem fim, princípios ou meios. Verosímeis, improváveis: não ferem mal.
Também na expressão "biografia romanceada" que agora parece regressar, se inclui esta inocência. Anuncia-nos o propósito a sua própria desculpabilização: nem tudo ali é verdade, nem tudo será provado, basta o título para ilibar de responsabilidades factuais quem a tal se propõe.
Estes romances correm paralelos às imagens fragmentárias que os suscitam (documentos, certidões, cartas, depoimentos, papelada para as biografias; corpos, gestos, movimentos para a demorada ficção das tardes de esplanada). Mas ambos se propõem não como exactos, não como determinantes, mas como prováveis, ou improváveis, que é só questão de percentagem.
Primos, irmãos, tios, aqueles nossos vizinhos de esplanada? Camões amantes de Natércia ou porque não de Jau? Porque não? Que importância tem?
2. Quem vê Paixão, está todo o tempo nesta imaginária esplanada: quem é Piccoli? Dono de que empresa? Amante de que Hanna? Que faz Jerzy? Que relações tem Isabelle com Piccoli? Já dormiu com Jerzy? Sabemos que não é por aí que vamos penetrar no tecido do filme e no entanto é nisso que inevitavelmente vamos passando o tempo da projecção: a romancear. A tentar descobrir a hegemonia de uma ficção ao mesmo tempo que a perfeita concreção de cada momento nos vai, com a sua veracidade, distraindo da linha narrativa com que nos íamos entretendo. É como antes do sono, aquelas linhas paralelas de pequenas frases que se vão repetindo antes de se lhes perder o sentido e penetrarmos na noite interior.
3. Como falar do movimento?
Muybridge fê-lo parando-o: justapondo os momentos, dividindo-o. Mas é ainda do movimento que ele nos fala?
O romance do século XIX (o que ainda para nós é "o romance") fala atribuindo-lhe um sentido: a ficção combate o caos como o detective mais tarde combaterá o mundo do crime - fixando-o, identificando momento e destino histórico.
Quem quer que tenha feito a estátua de Laocoonte formalizou para nós, ocidentais, o momento pleno do movimento: depois de o gesto começar, antes de o gesto se concluir, esse equilíbrio de tensões em que as serpentes ainda voam e os músculos do homem já as vencem.
Mas o sentido ronda o movimento. Substituiu-se-lhe: de dentro do movimento não lhe vemos o fim, de fora, o fim ocupa o que antes foi errância. Como se não houvesse nem túneis nem noites e só a luz ou a manhã do fim do tempo que vai andando.
4. Há no Petit Soldat uma cena à volta da qual Godard não parou de variar: a inevitável cena em que Michel Subor tira retratos a Anna Karina.
Que é a fotografia? "Um objecto que fala da perda, da destruição, do desaparecimento dos objectos. Que não fala de si. Fala dos outros. Será que os inclui?" pergunta Jasper Johns.
Mas no Vivre sa vie já se diz mais ou menos:
"O cinema? É como a fotografia?
Não. É cinema".
Ou seja, há o movimento.
Há quem identifique movimento a ficção.
O cinema será fotografias com histórias?
Eu diria que o ontológico realismo que Godard persegue tem a ver com isto: é possível filmar o movimento desligando-o da narrativa?
Criar uma narrativa tão provisória que a irrefutável presença do movimento (não das coisas, como em Ponge: mas do seu movimento) prescinda da ficção? Ou melhor, que a ficção presente seja incapaz de dar conta da imprevisível errância das coisas e das pessoas? Da imprescindível liberdade do ser?
Nesse sentido, Godard opõe-se à ideia de ser ele próprio um criador. Não se substitui ao oculto sentido do mundo, não tem como antagonista Deus. Na sua modéstia ou na sua ambição ele apenas invoca o sentido do Mundo, e se na Paixão Isabelle entoa o Agnus Dei é porque o seu movimento (ou o movimento da sua personagem) se cumpre finalmente: e só pode existir não na revelação de um sentido mas na evocação do mistério - e aqui o do próprio cordeiro de Deus.
Nesse mesmo sentido, o que Godard filma é a pele.
E que é Bardot no Mépris? Pele ou mistério?
Por isso ele não quer que os actores sejam máquinas produtoras de sentidos, nada mais oposto à arte de representar em Godard do que esse stakhanovismo da significação que é o Actor's Studio. O actor é fotografado. Filmado, ou seja, fotografado no seu movimento.
A anedota que se conta sobre Isabelle Huppert durante a rodagem de Passion será improvável mas é igualmente pertinente: chegava a actriz ao local das filmagens e Godard dizia que ela tinha era que ir para a fábrica continuar a ser operária. E se ele filma Isabelle, não é o trabalho de Huppert eventual detentora e portanto reveladora do sentido da sua personagem mas a Isabelle feita apenas secreto, concreto movimento entre as coisas. Também não uma operária. Mas uma operária fingida.
Porque o sentido pertence a Deus?
E não havendo Deus como parecia não haver no tempo do Mépris o sentido será o da Produção?
5. Há um outro momento que eu diria paradigmático de Godard. Num filme que só vi uma vez, e tantas vezes me volta, Comment ça va. É uma fotografia recorrente da revolução portuguesa. Aparece e reaparece. E sempre uma voz (ou duas?) a vão tentando ler, tentando encontrar as histórias subjacentes ou as histórias prováveis. A cada nova análise, mais o segredo da fotografia se torna primordial. Cada nova ficção vem libertar de sentido o momento da fotografia.
Sempre me fascinaram as polaroids mal tiradas. Vamos vendo surgir a imagem e às vezes acontece que o mesmo movimento a vai matando: e à medida que o negro vai recobrindo, o pequeno quadrado vai guardando o segredo da imagem que por um instante quase foi. É muito assim que vejo a ficção nos filmes de Godard; como se o movimento fosse de tal forma irradiante que fosse ele a queimar o diafragma que a narrativa é.
6. Dizia Deleuze num já esquecido número dos Cahiers: "Creio que a força de Godard é a de viver e pensar, de mostrar o e de uma maneira nova, e de o fazer operar activamente. O e não é um nem outro, é o entre duas coisas, é a fronteira, há sempre uma fronteira, uma linha de fuga ou de fluxo, só que não a vemos, porque é pouco perceptível. E é nessa linha de fuga que as coisas passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam".
Como falar do movimento?
Romanceando.
E Godard não pára de romancear. De, como eu nas mesas das esplanadas, inventar sobre as coisas históricas verosímeis mas improváveis. Que se vão juntando e aniquilando. Há uma máquina imparável de romanesco nos filmes de Godard como só em Espinosa conheço idêntica máquina de raciocínio. Em ambos este desejo imperioso de não parar. De inventar histórias, de repensar o pensado. Em nome, diria, do movimento.
7. Num espectáculo que representei no ano passado intitulado Vermeer et Spinoza eu, que fazia de Spinoza, tinha que dizer isto:
"São as coisas singulares que fazem o tecido da vida, elas para quem o pensamento é rígido demais, muito pouco dúctil na sua linguagem. Mas, ao fim e ao cabo, a linguagem não é o pensamento... Porque a matéria da linguagem é de um tecido extremamente grosseiro. E é nessa matéria que se forma uma imitação do pensamento que muitas vezes só evoca de longe o próprio pensamento. Por isso é que eu penso que não é tão mau passar de uma língua a outra quando nos queremos explicar. Todas as línguas são más. Só o seu uso permite extrair-lhes qualquer coisa. Tudo depende da arte com que delas nos servimos. Tal é a origem da necessidade da poesia. E a da música é a mesma, e a da pintura também. Como traduzir de outra maneira que não pelas inflexões dos sons a maneira como nós acariciamos as coisas, ou seja, como somos acariciados por elas?".
Houve pessoas que me disseram - e eu fiquei tão contente - que lhes tinha feito pensar em Godard. Era esta maneira teimosa de ir batendo com a cabeça na parede das coisas e das palavras: ou dos romances inocentes.
8. Terá dito o escritor japonês Terayama Shuji: "Na fotografia, as luzes vão-se, a ficção fica". Mas no cinema?
in JEAN-LUC GODARD - CINEMATECA PORTUGUESA, 1985
Muybridge fê-lo parando-o: justapondo os momentos, dividindo-o. Mas é ainda do movimento que ele nos fala?
O romance do século XIX (o que ainda para nós é "o romance") fala atribuindo-lhe um sentido: a ficção combate o caos como o detective mais tarde combaterá o mundo do crime - fixando-o, identificando momento e destino histórico.
Quem quer que tenha feito a estátua de Laocoonte formalizou para nós, ocidentais, o momento pleno do movimento: depois de o gesto começar, antes de o gesto se concluir, esse equilíbrio de tensões em que as serpentes ainda voam e os músculos do homem já as vencem.
Mas o sentido ronda o movimento. Substituiu-se-lhe: de dentro do movimento não lhe vemos o fim, de fora, o fim ocupa o que antes foi errância. Como se não houvesse nem túneis nem noites e só a luz ou a manhã do fim do tempo que vai andando.
4. Há no Petit Soldat uma cena à volta da qual Godard não parou de variar: a inevitável cena em que Michel Subor tira retratos a Anna Karina.
Que é a fotografia? "Um objecto que fala da perda, da destruição, do desaparecimento dos objectos. Que não fala de si. Fala dos outros. Será que os inclui?" pergunta Jasper Johns.
Mas no Vivre sa vie já se diz mais ou menos:
"O cinema? É como a fotografia?
Não. É cinema".
Ou seja, há o movimento.
Há quem identifique movimento a ficção.
O cinema será fotografias com histórias?
Eu diria que o ontológico realismo que Godard persegue tem a ver com isto: é possível filmar o movimento desligando-o da narrativa?
Criar uma narrativa tão provisória que a irrefutável presença do movimento (não das coisas, como em Ponge: mas do seu movimento) prescinda da ficção? Ou melhor, que a ficção presente seja incapaz de dar conta da imprevisível errância das coisas e das pessoas? Da imprescindível liberdade do ser?
Nesse sentido, Godard opõe-se à ideia de ser ele próprio um criador. Não se substitui ao oculto sentido do mundo, não tem como antagonista Deus. Na sua modéstia ou na sua ambição ele apenas invoca o sentido do Mundo, e se na Paixão Isabelle entoa o Agnus Dei é porque o seu movimento (ou o movimento da sua personagem) se cumpre finalmente: e só pode existir não na revelação de um sentido mas na evocação do mistério - e aqui o do próprio cordeiro de Deus.
Nesse mesmo sentido, o que Godard filma é a pele.
E que é Bardot no Mépris? Pele ou mistério?
Por isso ele não quer que os actores sejam máquinas produtoras de sentidos, nada mais oposto à arte de representar em Godard do que esse stakhanovismo da significação que é o Actor's Studio. O actor é fotografado. Filmado, ou seja, fotografado no seu movimento.
A anedota que se conta sobre Isabelle Huppert durante a rodagem de Passion será improvável mas é igualmente pertinente: chegava a actriz ao local das filmagens e Godard dizia que ela tinha era que ir para a fábrica continuar a ser operária. E se ele filma Isabelle, não é o trabalho de Huppert eventual detentora e portanto reveladora do sentido da sua personagem mas a Isabelle feita apenas secreto, concreto movimento entre as coisas. Também não uma operária. Mas uma operária fingida.
Porque o sentido pertence a Deus?
E não havendo Deus como parecia não haver no tempo do Mépris o sentido será o da Produção?
5. Há um outro momento que eu diria paradigmático de Godard. Num filme que só vi uma vez, e tantas vezes me volta, Comment ça va. É uma fotografia recorrente da revolução portuguesa. Aparece e reaparece. E sempre uma voz (ou duas?) a vão tentando ler, tentando encontrar as histórias subjacentes ou as histórias prováveis. A cada nova análise, mais o segredo da fotografia se torna primordial. Cada nova ficção vem libertar de sentido o momento da fotografia.
Sempre me fascinaram as polaroids mal tiradas. Vamos vendo surgir a imagem e às vezes acontece que o mesmo movimento a vai matando: e à medida que o negro vai recobrindo, o pequeno quadrado vai guardando o segredo da imagem que por um instante quase foi. É muito assim que vejo a ficção nos filmes de Godard; como se o movimento fosse de tal forma irradiante que fosse ele a queimar o diafragma que a narrativa é.
6. Dizia Deleuze num já esquecido número dos Cahiers: "Creio que a força de Godard é a de viver e pensar, de mostrar o e de uma maneira nova, e de o fazer operar activamente. O e não é um nem outro, é o entre duas coisas, é a fronteira, há sempre uma fronteira, uma linha de fuga ou de fluxo, só que não a vemos, porque é pouco perceptível. E é nessa linha de fuga que as coisas passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam".
Como falar do movimento?
Romanceando.
E Godard não pára de romancear. De, como eu nas mesas das esplanadas, inventar sobre as coisas históricas verosímeis mas improváveis. Que se vão juntando e aniquilando. Há uma máquina imparável de romanesco nos filmes de Godard como só em Espinosa conheço idêntica máquina de raciocínio. Em ambos este desejo imperioso de não parar. De inventar histórias, de repensar o pensado. Em nome, diria, do movimento.
7. Num espectáculo que representei no ano passado intitulado Vermeer et Spinoza eu, que fazia de Spinoza, tinha que dizer isto:
"São as coisas singulares que fazem o tecido da vida, elas para quem o pensamento é rígido demais, muito pouco dúctil na sua linguagem. Mas, ao fim e ao cabo, a linguagem não é o pensamento... Porque a matéria da linguagem é de um tecido extremamente grosseiro. E é nessa matéria que se forma uma imitação do pensamento que muitas vezes só evoca de longe o próprio pensamento. Por isso é que eu penso que não é tão mau passar de uma língua a outra quando nos queremos explicar. Todas as línguas são más. Só o seu uso permite extrair-lhes qualquer coisa. Tudo depende da arte com que delas nos servimos. Tal é a origem da necessidade da poesia. E a da música é a mesma, e a da pintura também. Como traduzir de outra maneira que não pelas inflexões dos sons a maneira como nós acariciamos as coisas, ou seja, como somos acariciados por elas?".
Houve pessoas que me disseram - e eu fiquei tão contente - que lhes tinha feito pensar em Godard. Era esta maneira teimosa de ir batendo com a cabeça na parede das coisas e das palavras: ou dos romances inocentes.
8. Terá dito o escritor japonês Terayama Shuji: "Na fotografia, as luzes vão-se, a ficção fica". Mas no cinema?
in JEAN-LUC GODARD - CINEMATECA PORTUGUESA, 1985
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