"The whole point of brutality in war is that the nicest people do it. The sweetest, the most lovable. The most affectionate people do it"
Elia Kazan
Com The Visitors - um dos seus filmes menos vistos e mais amados - Elia Kazan abordou o problema do Vietname. Do Vietname só temos neste filme um fugitivo plano, "flash-back" rapidíssimo, que, nem por isso ou por isso mesmo, deixa de ser das coisas mais espantosas que há nele. Tudo o resto se passa em Connecticut, na própria casa de Kazan "in location". E de Connecticut nunca saímos. Quem lá mora e quem lá vai é que não esquece que esteve no Vietname.
Mas tudo o que passa na hora e meia deste filme insólito, realizado "em família" por Kazan, com argumento do seu próprio filho, actores quase estreantes, rodado em Super 16mm e pelo preço inacreditável de 135.000 dólares, tudo o que se passa dizia eu, tem a ver com o Vietname? Esse é um dos grandes mistérios deste filme fascinante e intrigante. Aparentemente tem, porque foi lá que se conheceram Harry, Bill e Tony* e porque foi lá que se passou a história da violação que tanto medo causa a Harry. Mas realmente não tem, porque o que se vai passar não foi premeditado pelos "visitantes" mas resulta do medo de Harry, da memória de Harry. É a vítima (vítima da guerra, vítima da visita) quem desencadeia, com o seu misterioso pavor, a repetição do que se passou no Vietname, quem traz o Vietname para Connecticut.
Muita gente escreveu ou disse que o medo era a principal razão de todos os nossos males. Este filme faz-me vir à memória (outro tema central dele) um texto admirável publicado em 1968 por Nuno Bragança em que tal hipótese era exposta. E Nuno Bragança recordava (cito de memória) que o medo foi a primeira palavra que ocorreu a Adão depois do pecado ("tivemos medo e escondemo-nos) e que, de cada vez que Deus ou os seus anjos nos visitaram, começaram por dizer, invariavelmente, "não temais". Semelhante insistência dizia ele (Nuno Bragança) talvez nos obrigue a pensar duas vezes.
Se há filme que me parece ilustrar essa moral é The Visitors. Tudo é tão calmo no início, naquelas neves de Connecticut, não tão bela luz daquele Inverno, e na simpática casa daquele casal com um bébé (só depois saberemos que não são casados e que talvez haja alguma razão para isso). Tudo é tão silencioso (neste filme, até se ouvir Bach, não há música e toda a música que depois se ouve é música "in"). Tudo é tão calmo também na casa do pai de Martha, de quem ela toma tanta conta como do "marido" ou do filho. Mas há qualquer coisa e logo o "sentimos": os cães que ladram (ao longe) o vento que sopra (de leve). Se nos dissessem que era um filme de terror (estou a voltar ao medo) pensávamos que o realizador nos estava a manipular, género espera um bocadinho e já vais ver o susto que apanhas. Mas não é - nesse sentido - um filme de terror. E quando chegam os "Kansas Dealers" (um porto riquenho e um americano de origem alemã) parece não haver razão para qualquer sobressalto. São "Visitors, friends of the army", que não tiveram tanta sorte na vida como Harry e andam por aqui e por ali à busca de emprego. Martha recebe-os com a maior naturalidade e o pai dela gosta muito deles, tanto que lhes pede que fiquem mais tempo, já que por ali a companhia é pouca e ele gosta dela. Quem tem medo (ou se quiserem mal-estar) é Harry. Porquê? Tony explica-lhe e explica-nos que não há "hard feelings". E quando Harry conta à mulher a história da vietnamita, esta não se escandaliza nem se indigna. Guerra é guerra e tanta gente fez coisas dessas. Porque demorou ele tanto tempo a contar essa história "insignificante"? E a história só deixa de ser "insignificante" quando é repetida e repetida na pessoa dela. Porquê? Repito-o: nada leva a supor que Bill tenha voltado para se vingar ou para violar a mulher do amigo. Aquele "nice guy" que vimos a dormir junto ao velho Harry (no plano de que Kazan mais gosta) que ouvimos referir-se a Martha tão ternamente como "a good - looking girl" não é um violador compulsivo ou um tarado sexual. Mas cada olhar que Harry lhe lança tem contida essa recordação comum, algo nela faz muito medo a Harry. E esse algo é bastante mais complexo do que a violação da rapariga vietnamita. E não é só medo dos "visitantes". É medo do pai de Martha (a sequência do dedo cortado e do sangue, a sequência da morte do cão) é medo da própria Martha que talvez por causa desse medo nunca se tenha querido casar com ele. E esse medo é contagiante e vai provocar tudo quanto Harry talvez fantasiasse e que certamente o seu comportamento precipita. "Há algo de masoquista nele" - escreveu Kazan - "não tenham dúvidas quanto a isso. Tenta lutar contra esse masoquismo e para isso continua a ler no mesmo jornal ou a tomar conta da casa durante todo o tempo do filme - mas não faz nada nunca e, no fim, fica ainda em casa. Já devia ter saído dali, há tanto tempo". E eu acrescento a Kazan a última frase que ele diz, aquele assombroso "are you all right?" Depois de tudo o que se passou e como se alguma coisa entre ele e a mulher pudesse voltar a estar all right. E até talvez o acredite, como acreditou que estava all right depois do Vietname. E o seu medo dos "visitantes" talvez não fosse sequer o de que a mesma cena se passasse duas vezes, mas que a primeira lhe fosse lembrada pelas meras presenças deles.
Mas se o medo de Harry tudo contagia, ecoa-o em surdina - como tudo neste filme - o desejo de Martha. Também não é ostensivo, mas há uma sequência fabulosa que o insinua mais do que qualquer ostentação: a sequência na casa de banho, quando, depois da chegada dos "visitantes", ela tira os óculos e põe as lentes de contacto. Vêmo-la (só a cara) num espelho. A câmara recua e a seguir mostra-a, em calcinhas, semi-nua, para essa oferenda secreta e aparentemente inocente. Mas, depois da violação, voltamo-la a ver de óculos, esses que já nos esquecêramos que usara no início do filme. E há a relação dela com o pai e há o plano em que toca no casaco de Bill. Dou de novo a palavra a Kazan: "She feels almost motherly towards him, as though he needs someone. She's touched by him (...) It's a fascinating character. She sometimes looks very cruel, and very harsh: and other times she looks like a baby. The actresses I like (...) are able to look both plain and lovely, good-looking and brutish, to be both cruel and sweet. This girl is just a beginner, but she has some of that quality".
Nesse sentido - ou em todos deste filme tão densa e belamente elíptico - o casal e os visitantes estão, naquele paraíso, a leste dele (talvez por isso a luta entre Harry e Bill tanto lembra a luta dos irmãos em East of Eden, com o automóvel a surgir como figura de ocultação). Todos estão marcados por esse medo (sobretudo medo de si próprio). Por isso vem o "flash" do Vietname, de que ninguém quer falar e em que todos pensam. Porque, ao contrário do pai que fala ainda da II Guerra como de coisa épica, da "necessary war", todos estão divididos pelas dúvidas de terem sido portadores do mal e jamais salvadores de coisa ou causa nenhuma.
Quanto maior é essa dúvida - ou esse medo - mais perto se está de coisas terríveis. Talvez fosse a coisa mais necessária para dizer aos americanos em 1972, quando ainda havia guerra no Vietname. Talvez por isso ninguém (ou raros) tenham querido entender o filme e tenham falado dele como de obscura história (favores de pais a filhos, neste caso de Elia Kazan a Chris Kazan, argumentista e produtor de The Visitors) sem qualquer nexo.
Mas tudo lá está e mesmo para quem achar que deliro e persistir em considerar The Visitors um Kazan menor, terá que concordar (se souber ver) que há nele três das mais fabulosas sequências da obra de Kazan. Já falei do velho e de Bill deitados; já falei de Martha na casa de banho. Resta-me falar do plano da mão de Bill a convidá-la a dançar, nesse gesto repetido com que se inicia a repetição do que ninguém queria que se repetisse e acabou por se repetir. O Vietname em Connecticut e o "flash-back". Depois, "the visitors" podem-se ir embora. Já tudo ficou mais dentro.
in AS FOLHAS DA CINEMATECA - Elia Kazan
* Nós, que temos a sorte de ter nomes de personagens e actores muito à mão nem por isso conseguimos escrever textos que mereçam coçar as côdeas desta (e doutras frases): "nesse gesto repetido com que se inicia a repetição do que ninguém queria que se repetisse e acabou por se repetir". Certo, o "Harry" de que Bénard da Costa tanto fala nesta folha deve-se ler "Bill" (o nome da personagem de James Woods) e "Bill" deve-se ler "Mike". Harry é o nome do pai de Martha. Enfim, ninharias.
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