domingo, 21 de fevereiro de 2016

THE NAKED DAWN (1955)


por João Bénard da Costa

Aparentemente, um western feito com poucos tostões, The Naked Dawn, para quem o souber ver, é uma portentosa alegoria moral. Dentro do espaço mítico do oeste (reduzido, aliás, a alguns sinais), o que nos surge é o tempo e o espaço do Kammerspielfilm alemão, que este filme tão poderosamente evoca (e mais, talvez, O Rail ou A Noite de São Silvestre de Lupu Pick que o tão citado Murnau). Tudo se passa finalmente, com poucas saídas, no espaço duma casa, entre três personagens cujo comportamento incessantemente varia e surpreende.

Dos três, o mais surpreendente é Manuel. A sua primeira imagem é do homem servil, do homem que "não é homem" para Betta St. John. Mas a partir do assalto e da assombrosa sequência da taberna (a partir da viagem) Manuel revela novas facetas: o seu amor a Santiago (chega-lhe a propor que partilhe a cama com a mulher, enquanto dormirá no chão) e a sua prodigiosa capacidade de alegria e de pura apreensão das coisas. Mas Ulmer jamais se fixa numa linearidade. Vemo-lo depois insistir em comportamentos cobardes, pensar sobretudo em apanhar o dinheiro de Santiago e tentar matá-lo por duas vezes à traição. Na última - a lapidar sequência da cobra - nova mudança do personagem. Com um "álibi" fácil, Manuel podia ter escondido a Santiago as suas intenções, mas, como o personagem que morre no princípio, insiste em confessar-se e, quase dostoievkianamente, humilha-se perante Santiago. Manuel vai-se tornando, assim, quase tão misterioso como o próprio Ulmer: percorre toda a gama de sentimentos, dos mais baixos aos mais belos, numa complexidade crescente que faz vacilar permanentemente a certeza do espectador.

O mesmo se passa com Santiago que nunca é o "bandido clássico" dos westerns, mas o homem capaz de saber (com ele e com os outros) que o mal não é o que parece ("e quando os anjos vierem, dirão a São Pedro quem tu eras e São Pedro te pegará na mão e te mostrará todas as glórias do paraíso") e capaz de perceber, no fundo, as motivações de Manuel e Maria. Por isso, se, num momento, decide levar Maria e deixar Manuel, volta sobre os seus passos e entregando-os um ao outro, oculta deles, até, a sua própria morte ("My way is not for you"). Santiago é o homem que sabe que "todas as alegrias do mundo vêm de Deus" e que percebe em Manuel a dor pelos erros próprios e dos outros ("E quando um homem tem pena do que fez, pode mudar"). Acredita nessa mudança e no fundo acredita, profundamente (e mais do que Maria) na relação entre esta e Manuel. Por ela morre, por ela é capaz de largar o dinheiro que arriscara a vida para roubar.

Finalmente, temos a estranhíssima personagem de Maria, vista pela primeira vez por Santiago, num plano belíssimo que podia ser assinado por Murnau. Se o seu desejo a leva para Santiago (a antológica sequência do banho), se é Santiago que lhe dá consciência da mediocridade da sua vida com Manuel, é através de Santiago que ela descobre Manuel e descobre a complexidade dum personagem que, como espectador, vira linearmente até aí. Por isso, é quem mais depressa se apercebe do que se passa na cena da cobra e quem, a partir dessa altura, muda de comportamento face ao marido.

Essas rupturas no interior do próprio filme e no interior dos seus três personagens centrais, que alguns confundirão com fraquezas de argumento, são o que confere a The Naked Dawn toda a sua carga de insólito. Dum tema convencional, de um ambiente convencional, Ulmer extraiu o menos convencional dos filmes, que é bem possível ver-se como uma transposição da visita do anjo a Tobias. Kennedy é o visitador, o homem que vem de longe, para ensinar a Maria e Manuel que a religiosidade se inscreve também no amor e no desejo físicos. E para transformar as várias relações duais (Maria-Manuel, Manuel-Santiago, Maria-Santiago) numa relação em que cada um é igualmente essencial a todos os outros e nada tem que ver com o habitual ménage à trois. O que não se passou na facilidade duma noite de bebedeira (e é Santiago quem o recusa) passa-se através da traição, da fidelidade e da morte, nos sonhos de há muito tempo, tornados presentes e fatais.

"There is a weakness in me", diz Manuel para explicar a sua traição. "Perhaps you're human" responde Santiago. Tudo se ilumina e, aceitando-se como são (como o tal anjo os vê), podem caminhar para "as glórias do paraíso".

Foi este aspecto - a delicadeza e a ambiguidade dos três personagens - o que à época do filme, mais surpreendeu Truffaut que comparou essa relação a três com a do romance de Henri-Pierre Rouché, Jules et Jim. "The Naked Dawn é o primeiro filme que me dá a impressão que um Jules et Jim cinematográfico é possível". A partir dessa crítica, Rouché e Truffaut conheceram-se e o Jules et Jim foi mesmo possível.

The Naked Dawn ligou, assim, historicamente, o romantismo expressivo dos anos 20 alemães à expressão romântica da nouvelle vague. Através do oeste americano, da luz de Murnau, do psicologismo intimista de Lupu Pick e Jessner. Na procura da utopia, antiga e idêntica, da junção mística dos contrários e da percepção de um Bem fundamental que se não conhece, mas que a tudo preexiste.

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