sexta-feira, 9 de julho de 2021

HELL'S HINGES (1916)


Sem códigos, sem convenções e sem estruturas. Na Hollywood dos anos dez do século vinte talvez se possam encontrar mil possibilidades e mil caminhos para o futuro de uma arte ainda em plena infância, com criadores e operadores abertos quase a qualquer ideia e a qualquer risco motivados ora por uma paixão momentânea ora pela necessidade extrema. Belos trabalhos feitos “off-the-cuff” – na expressão muito utilizada pelo norte-americano Allan Dwan na sua grande entrevista a Peter Bogdanovich, bem como pelos muitos profissionais de cinema que foram talhando o caminho na direcção das formas e dos processos que são hoje em dia amplamente reconhecíveis e praticados – e que se pode traduzir mal como “ao improviso.” 
 
Hell's Hinges é uma produção Thomas Harper Ince para a Triangle Film Corporation protagonizada por William Surrey Hart, nova-iorquino apaixonado pela vida antiga do Oeste e pelos grandes exteriores que se tornou actor de cinema aos cinquenta anos por ter nascido bem antes de se inventar o cinematógrafo. Acabou a vida a escrever contos e romances ambientados no Oeste, depois de um último projecto muito acarinhado e produzido por si próprio, Tumbleweeds, de 1925, cuja carreira comercial ficou aquém do que era desejado devido à má promoção da United Artists, que Hart processou e só mais de dez anos depois lhe devolveu o dinheiro. É na apresentação já sonora desse último filme, feita a propósito do seu re-lançamento em salas, que Hart olha para trás e nos diz que “adorei a arte de fazer imagens em movimento. Para mim é como o alento da vida... o ímpeto do vento que nos corta a cara, os cascos latejantes de uma milícia perseguidora, e depois as nuvens de poeira! Pela nuvem de poeira surge a voz débil do realizador, “Ora, Bill, OK! Ainda bem que conseguiste! Grande material, Bill, grande material! Faz uma festa no nariz do velho Fritz por mim, está bem?” A sela está vazia, os rapazes ali à frente estão a chamar, estão à espera que eu e vocês os ajudemos a conduzir este último grande ajuntamento para a eternidade.” 
 
Esta pequena apresentação de Hart é certamente uma bela porta de entrada para o tempo dos nickelodeons, essas salas tão piolhosas e pulguentas que fizeram com que o pessoal sofisticado do teatro franzisse a testa e quisesse distância do cinema, da encenação de planos sem cortes nas câmaras até se descobrir por engano que se podia fazê-lo, das investidas e retiradas com a luz e com a distância, a velocidade de obturação, os cenários reais e artificiais, a manipulação da palavra pela imagem (quantos realizadores só descobriram a história na sala de montagem com os intertítulos, tendo até aí rédea solta) mas também da imagem pela palavra. Hell's Hinges foi escrito por C. Gardner Sullivan, argumentista muito célebre nesses anos (escolhido pela revista Story World como uma das dez pessoas que mais contribuíram para o progresso da indústria de cinema desde a sua génese, junto a David Wark Griffith, Charles Chaplin, Mary Pickford, Carl Laemmle, Charles Francis Jenkins, Wilfred Buckland e Thomas H. Ince), e que até ao “Produzir exactamente como está escrito” de Ince dava bastante azo ao seu poder, como se pode verificar neste excerto do argumento do filme, já quase na forma dos guiões que conhecemos e repleto de descrições técnicas e imperativos de interpretação, 
“CENA L: Plano Aproximado do bar de um Saloon do Oeste 
Um grupo de bons espécimes do Oeste do período antigo estão a beber no bar e a falar ociosamente – prevalece muito boa camaradagem e cada homem se sente à vontade com o próximo – um deles olha de relance para fora de plano e o sorriso esmorece-lhe do rosto para ser substituído pelo olhar tenso da preocupação -- os outros reparam na mudança e seguem o olhar dele – as caras deles reflectem as suas próprias emoções – certifiquem-se de fazer passar um bom contraste entre a leve boa disposição que prevalecia e o silêncio tenso e pouco natural que se segue – quando eles olham, corta.” 
Só que como palavras as leva o vento, e nem as garras de Ince ou a pena de Sullivan controlam os caprichos do sol, as depressões da lua ou o rosto esguio e o olhar enigmático de Hart, encarnação suprema das ambivalências das suas personagens, há algo que acontece nas últimas bobinas que guião algum poderia prever. Ímpetos nas imagens, explosões nas tintagens, uma dança infernal de multidões que quase tornam secundárias as retribuições e dogmas de Antigo Testamento por tanto acreditarem neles: a abstração em estado puro. Uma igreja em chamas, um saloon cercado, homens abatidos como cães, candeeiros atirados para o chão a chicotadas de balas. A destruição de uma cidade inteira. A solução formal para a chave temática das “dobradiças do inferno.” Nos anos dez de todo um outro século, antes dos abismos de Corbucci (O Grande Silêncio) ou de Eastwood (O Pistoleiro do Diabo, Imperdoável). O cinema.

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