sábado, 28 de setembro de 2024

ALICE'S RESTAURANT (1969)


por Arthur Penn

O Passado inverno de 1968 agora parece ter sido uma época romântica e inocente. A opinião sobre a guerra no Vietname parecia-se estar a consolidar numa oposição efectiva; o senador McCarthy fez soar a nota e os jovens preencheram a melodia com a resposta lírica deles à sua campanha. Robert Kennedy anunciou e LBJ retirou-se. Houve um sentido de poder doce e novo a encher os jovens.

Foi nessa altura que falámos pela primeira vez em fazer um filme de Alice's Restaurant. Na primeira noite, Arlo e um bando de miúdos da igreja reuniram-se na nossa casa. Fumámos alguns, e quando falámos sobre o recrutamento eles soltaram uma torrente de estórias sobre as suas experiências físicas e psicológicas nos exames de recrutamento. As suas "provocações" pareciam ter sido a sua arma mais eficaz. Tinham-nas armado aos pais, às escolas, aos polícias e aos avaliadores do recrutamento.

As provocações eram irreverentes, bizarras, grosseiras, mas, acima de tudo, solitárias. Cada miúdo contestava o direito de um governo que nunca formou a forçá-lo a combater uma guerra a que se opunha. Cada miúdo sozinho com a sua provocação.

A gravação de Arlo foi reconhecida pelos membros da sua geração como a balada das suas posições. As regras de uma sociedade restritiva podiam ser usadas contra essa sociedade. Era uma provocação maciça.
I'm sittin' here on the bench...
I mean I'm sittin' here on the
Group W bench, 'cause you want to know
if I'm moral enough to join the army,
burn women, kids, houses and villages
after bein' a litterbug.[1]
Era uma sociedade que era eminentemente digna de provocações.

Fumámos mais alguns, depois o Arlo tocou "Amazing Grace" durante cerca de duas horas e nós cantarolámos, cantámos, gritámos ou acompanhámos. Depois eles foram-se embora.

Eu fiquei com uma sensação de ter visitado a minha própria juventude, mas com algumas diferenças. A independência deles era mais flamejante do que a nossa tinha sido. Eles tocavam uns nos outros com uma tranquilidade e um prazer público que nos teria aterrorizado nos anos quarenta. Cada uma destas crianças tinha tido o seu encontro com a polícia. Alguns até tinham sido encarcerados, o que teria sido impensável nos meus anos de recrutamento. Afinal, teria entrado nos nossos cadastros, esses documentos sagrados e invisíveis que nos identificavam ao nosso governo.

Além disso, a minha juventude era de orientação urbana, e eu ansiava pela vida na cidade. A política também era muito mais clara nessa altura. O trabalho era bom, o capital era mau. Na altura ninguém imaginava alguma vez que o trabalho se poderia tornar abusivo, excludente e racista. A Espanha era a nossa dor constante. Finalmente, quando Hitler marchou, nós soubemos o nosso destino e marchámos contra ele. Foi tudo bastante simplista, quando se olha para trás. Claro que a forma dos nossos protestos era colectiva. A suspeita em relação a grupos não era forte. O ideal soviético era o único ideal, para o bem ou para o mal. Virou-se para o mal.

As canções de Woody Guthrie tinham enchido a minha juventude. Eram colectivas no sentimento, e deram-nos a sensação de que éramos muitos, por todo o país, enquanto as ouvíamos, cantávamos e fazíamos amor ao som delas.

Arlo e os amigos queriam estar fora da cidade. Queriam-se mover juntos à sua maneira e isso era para longe da política, das cidades, de exigências para aderir e ser convencionalmente identificado.
I don't want a pickle,
I just want to ride my motorcycle,[2]
diz Arlo.

"Alice's Restaurant Massacree" de Arlo era uma provocação musical. O som parecia-se com o de Woody mas a intenção era diferente. Onde Woody procurava militar, Arlo atacava através do ridículo:
Walk into the shrink wherever you are,
just walk in and say,
"Shrink, you can get anything you want
at Alice's Restaurant" and walk out.
    You know, if one person, just one
person does it they may think he's
really sick... and they won't take him.
And if two people do it, in harmony,
they may think they're both faggots
and they won't take either of them.
    And if three people do it... can
you imagine three people walkin' in
and singin' a bar of Alice's Restaurant
and walkin' out... they'd think it's
an organization!
    And can you imagine fifty people a day?
I said, "Fifty people a day!" walkin'
in and singin' a bar of Alice's Restaurant
and walkin' out?"
    Friends, they may think it's a movement.
And that's what it is, the Alice's
Restaurant Anti-Massacree movement.
And all you gotta do to join is to
sing it the next time it comes around
on the guitar... with feelin'.[3]
Um movimento!

As palavras ressoavam da minha juventude.

Aí estava o nosso filme, pensámos nós. O Venable e eu começámos no argumento e falámos com o Arlo, o Ray, a Alice, a mãe do Arlo, a mãe da Alice, amigos do Woody, miúdos na igreja, miúdos que tinham deixado a igreja. Os jovens falavam todos de um mundo caído em tempos maus. Não queriam ter nada que ver com ele. Mantiveram-se juntos na linguagem comum da Astrologia, o I Ching, cartas Tarot e a certeza de que a Califórnia ia para dentro do mar numa questão de meses. Faziam piqueniques nas pradarias. As vibrações pacíficas eram a essência e aconteciam onde quer que a gente curtida se reunisse. As portas da igreja estavam abertas; os seus braços estavam abertos.

No entanto, não era nenhum movimento.

O resto daquele ano trouxe os assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy, os polícias de Chicago a estourar cabeças jovens, a eleição de Richard Nixon para as cabeças velhas, e a explosão nos campi em Berkeley e na Colombia. A provocação tinha acabado.

Em Stockbridge, Ray e Alice estavam-se a divorciar; a propriedade futura da igreja estava em dúvida. As coisas tinham-se desmoronado. As pessoas tinham-se ido embora. O mundo parecia revoltante e a cena na igreja não se iria sustentar.

Os dias em que Arlo cantou sobre... aquela Acção de Graças... a cerimónia de casamento de Ray e Alice na sua própria igreja com os seus miúdos e família em redor, foram lembrados com nostalgia e amor. Mas era claro que esses dias tinham passado. E o mundo tinha-se tornado demasiado absurdo para a provocação. De facto, os eventos por que todos passámos nesse ano pareciam mais um cabaré gigante do que algo real.

A provocação morreu em 1968.

Não conseguíamos ver uma posição política a surgir da cena em Stockbridge. Estas pessoas tinham-se desligado e não se iam engajar novamente. Distanciaram-se. Insistiam que nunca tinha havido uma comunidade e portanto não se podiam estar a distanciar. Nós perguntámos, "O que é que tinha havido?"

"Uma família."

Não a família com que se nasce, mas a que se forma na imagem dos nossos sonhos. Uma família de formato livre com irmãos e irmãs escolhidos (ou nenhuns, de todo) e um pai—expansivo, exuberante, violento em fúrias, simpático e móvel, um pai que anda de mota! E uma mãe—cândida, linda, disponível—e não a nossa mãe.

"Exceptuando-se Alice." A frase ficou-nos nas mentes.

Eles tinham ido para a sua nova família mas começaram-se a formar figuras. Figuras antigas em novas roupagens, experiências às quais eles tinham tentado renunciar, insistiam em invadir a sua nova família. Eles amavam-se uns aos outros, mas as portas da igreja, sempre abertas, tinham permitido apenas um breve refúgio dos fantasmas detentores dos seus passados. Então vieram os fantasmas.

Esse era para ser o nosso filme. Miúdos de coragem a recusar a guerra. Um novo horror que não podia ser provocado. Uma família que tinha conhecido a graça, a desintegrar-se.

Não um movimento.

Isso ainda está para vir.

Vemo-nos quando as luzes se apagarem.

[1] "Estou sentado aqui no banco... / ou seja estou aqui sentado no / banco do Grupo W, porque querem saber / se sou moral o suficiente para me juntar ao exército, / queimar mulheres, miúdos, casas e aldeias / e depois ser um lixo." Alice's Restaurant de Arlo Guthrie. 
[2] "Eu não quero uma alhada, / só quero andar na minha motorizada,". "The Motorcycle Song" de Arlo Guthrie. 
[3] Entrem no psiquiatra onde quer que estejam, / entrem apenas e digam, / "Doutor, pode ter tudo o que lhe apetece / no Restaurante da Alice" e saiam de lá. / Sabem, se uma pessoa, apenas uma / pessoa o fizer eles podem pensar que ele é / mesmo doente... e não o aceitam. / E se duas pessoas o fizerem, em harmonia, / eles podem pensar que são os dois paneleiros / e não aceitam nenhum deles. / E se três pessoas o fizerem... conseguem / imaginar três pessoas a entrar / e a cantar um trecho do Restaurante da Alice / e a saírem... eles iam pensar que era / uma organização! / E conseguem imaginar cinquenta pessoas por dia? / Disse eu, "Cinquenta pessoas por dia!" a entrar / e a cantar um trecho do Restaurante da Alice / e a saírem?" / Amigos, eles podem pensar que é um movimento. / E é isso que é, o movimento / Anti-Massacre do Restaurante da Alice. / E a única coisa que têm de fazer para se juntarem é / cantá-lo da próxima vez que aparecer / na guitarra... com sentimento. Alice's Restaurant de Arlo Guthrie.

Nova Iorque
Abril, 1970.

in «Alice's Restaurant», Doubleday & Company, Nova Iorque, 1970.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

ALICE, RAY E ARLO


por Venable Herndon

Tentar lá chegar em conjunto. O cenário para a tentativa de Ray e Alice foi pouco comum: uma velha igreja numa estrada escura em Van Dusenville, no Massachusetts. Não muito longe de Stockbridge, onde Thornton Wilder passa tempo no Verão (veio pela primeira vez há três anos para actuar em A Nossa Cidade), e Lenox, onde fica a pequena casa vermelha de Nathaniel Hawthorne mesmo abaixo das vedações de Tanglewood e mesmo acima de um prado verde inclinado de Berkshire. Mais afastada do local, perto do mar do outro lado estado, em West Roxbury, está Brook Farm, onde mais de cem anos antes, de 1841 a 1847, um grupo de estudiosos e escritores brilhantes americanos tentaram lá chegar em conjunto.

Os homens e mulheres de Brook Farm tinham pensado bem no assunto antes de tentar. Alice, Ray, Arlo e os outros miúdos simplesmente se deixaram levar pela onda. Se eles pensarem no assunto, são todos demasiado porreiros para o admitir. E a igreja deles, que foi oficialmente des-santificada numa missa de desconsagração pela Diocese Episcopal antes deles se mudarem para lá, era mais um santuário no sentido medieval do que a experiência mais antiga, mais iluminada e transcendental. A igreja de Ray e Alice era um refúgio para miúdos que estavam em luta contra um sistema corrupto, ou a tentar contorná-lo. As grandes portas góticas ficavam abertas noite e dia. Podia-se arranjar algo para comer (algo bom—toda a gente incitou Alice a abrir um restaurante), abancar, foder, curtir música, tocar a nossa, rimar ou não rimar como se escolhesse. Façam o que quiserem! Fais ce que voudras! A Abbaye de Thélème de Rabelais.

Essa foi a forma de Ray e Alice tornarem a sua igreja novamente sagrada. Mas para muitos dos locais invernosos da Nova Inglaterra que espreitavam por detrás das suas cortinas para as idas, os acontecimentos e as vindas da igreja, a vida lá parecia assemelhar-se muito mais à tutelada pelo Bispo de Sens, que, no século dez, engraçou com a Abadia de São Pedro, expulsou os monges para os substituir por um bando de meretrizes, pôs os cães de caça no canil e instalou os seus falcões nos claustros. A igreja de Ray e Alice era um santuário para cães e gatos e coelhos e pássaros e ratos—e por vezes piolhos também.

Alice era a personificação da figura de anima de que fala Jung, a matriarca do clã, a mãe sagrada do subconsciente, a força Yin. À luz do seu espírito maravilhosamente tolerante e misericordioso, o estilo de vida da igreja percorreu um longo caminho até restaurar os danos causados aos corações e às mentes e às almas dos miúdos pelo peso de tantos séculos ocidentais de culpa imposta pelo patriarcado.

Portanto a igreja de Ray e Alice era uma espécie de válvula de segurança que aliviava a angústia que as repressões da moralidade da classe média tinham criado para os seus filhos. Os miúdos vieram porque estavam fartos da ética de trabalho puritana, de fazer em vez de ser, de obrigações em vez de escolhas, de todo o processo que uma sociedade avarenta (de agarrar a maçã e foder o jardim) utiliza para reduzir o organismo humano naturalmente auto-suficiente e independente a uma condição de dependência impotente no super-estado da profecia de Orwell.

Enquanto a igreja se formava, Arlo, que conheceu Alice e Ray antes deles terem a igreja (quando Alice era a bibliotecária, e Ray um professor de trabalhos manuais na escola preparatória super patriarcal da zona), estava para fora numa instituição de ensino "superior" no Midwest a conduzir a sua própria guerra privada e muito pessoal contra o Sistema. Os professores dele estavam a fazer o seu nivelado melhor para o nivelar à submissão tradicional de cala-te e dispara a Exército, Mãe, Tarte de Maçã, Bandeira e Computador. Mas ele não lhes ligou nenhuma. Porque de alguma forma ele acreditava que se estava a tornar em algo melhor do que aquilo que eles queriam que fosse mesmo que não soubesse ao certo o que é que queria ser. Portanto não precisava das muletas da sua música estéril, do seu racismo, da sua burocracia, os seus homicídios sacrificiais de populações súbditas no estrangeiro e em casa. No final disse que não a toda a experiência e procurou refúgio na igreja.

Alice e Ray e os miúdos deram-lhe apoio moral e emocional para a sua disputa com a lei por desordem e para a sua angústia com o Exército (encoberta de forma brilhante no seu humor de resistência especial) por não querer ir matar, queimar, violar, destruir e aniquilar.

E Alice abriu o seu restaurante e trabalhava de manhã cedo até muito tarde à noite e sem a sua presença constante na igreja a vida lá começou a recuar para os velhos padrões patriarcais tão profundamente enraizados na consciência caseira e essencialmente sulista de Ray. Ray viu-se a insistir na sua autoridade, dizendo aos miúdos que estavam a viver na "sua" igreja, insistindo que o comportamento deles não fosse para lá dos limites que ele tinha estabelecido. E lá estavam eles, os miúdos, de volta ao cenário de que tinham fugido, com Ray como dirigente da administração. E todas as suas declarações sobre liberdade tinham tanto sentido para eles como as de Thomas Jefferson para os escravos que possuía.

E assim outra microcósmica sociedade livre—em que durante um tempo as relações sociais-sexuais despreocupadas e joviais substituíram os rigores do dever conjugal e da ditadura paternal, em que a experiência real da própria natureza de uma pessoa substituiu as pseudo-viagens dos dogmas místicos e da fantasia política—entrou em colapso. E a igreja vai ser vendida e os miúdos estão a comprar os próprios terrenos, sobretudo com a massa dos paizinhos, e estão a assentar nas suas propriedades em relações de estilo casamento.

Mas não consigo deixar de pensar que eles estão todos melhor do que as pessoas que nunca tentaram combater o sistema de todo. E estou grato à Alice e ao Ray e ao Arlo, e a toda a gente da igreja, e a Arthur Penn, por me deixarem olhar para as suas vidas e viver com eles por algum tempo.

Nova Iorque
9 de Fevereiro, 1970

in «Alice's Restaurant», Doubleday & Company, Nova Iorque, 1970.

domingo, 18 de agosto de 2024

Entrevista com Arthur Penn


por Jean-Louis Comolli e André S. Labarthe

Cahiers Quando comparado tanto a Bonnie e Clyde como ao Left Handed Gun, The Chase pode parecer, mesmo ao nível do argumento, menos elaborado, e até desajeitado: a primeira sequência do filme, por exemplo, tem o efeito de uma peça anexada, que se mantém externa. Qual é a importância do seu trabalho nos argumentos?

Arthur Penn Para The Left Handed Gun, a história inicial era muito simples, e o meu trabalho foi enriquecê-la desenvolvendo primeiro as relações de Billy com os seus amigos (sobretudo o escocês), e trabalhando em seguida todos os outros aspectos do filme de forma sistemática com o argumentista. No início de Bonnie e Clyde, há um argumento que chega até nós bastante completo, totalmente escrito (era um argumento para o qual François Truffaut tinha contribuído um pouco). Mas, como é hábito meu, pedi aos autores para o re-trabalharem comigo e fazer nele algumas mudanças. Eles aceitaram, integraram as minhas ideias ao argumento deles, e tanto assim foi que, como com The Left Handed Gun, houve verdadeira colaboração entre mim próprio e os autores do argumento. O que não aconteceu com The Chase. A estória foi escrita por Lillian Hellman, mas apenas até um certo ponto, porque parecia que nunca mais a ia conseguir terminar, tanto que tive de intervir e vi-me obrigado a acrescentar ao trabalho dela tudo aquilo que forma o final do filme: a grande cena no ferro-velho e o homicídio final, à Kennedy. Para todo o resto do filme, tive de me contentar exclusivamente com o argumento que ela tinha escrito, de modo que The Chase não é um filme que me seja verdadeiramente pessoal.

Cahiers Porque é que não conseguiu colaborar com ela como com os seus outros argumentistas?

Penn Ela não quis considerar que pudéssemos sequer discutir aquilo que ela tinha escrito. É uma grande senhora, e não concebe que se toque naquilo que faz. A certa altura, o produtor, Sam Spiegel, chamou outra pessoa para re-escrever aquilo que ela tinha feito, apesar de tudo, mas aí já estávamos a filmar, o que fez com que tudo se tornasse muito rapidamente na maior das confusões: num dia tínhamos um pedaço do argumento de Lillian Hellman, noutro dia qualquer coisa escrita por Horton Foote, noutro ainda um fragmento re-trabalhado por Ivan Moffet e às vezes também, possivelmente, passagens que se deviam ao próprio Sam Spiegel. Uma mistura terrível! Eu não sabia que iriam acontecer mudanças destas. Isso começou com Brando, que queria certas modificações no seu papel e no do negro. A personagem que Brando interpreta tem essa particularidade de não poder fazer nada no filme, uma vez que é a Lei. Ora, aquilo que existe de mais difícil para um actor, é não fazer nada de todo, e isso incomodou Brando, que queria interpretar um homem de acção...

Cahiers O desempenho dele é espantoso na cena do espancamento: fica-se com a impressão de que dá e recebe mesmo os golpes, e o efeito de violência é ainda mais nítido...

Penn Brando teve algumas ideias para esse espancamento. Nós primeiro tínhamos rodado a luta normalmente, e depois rodámos em acelerado, a 16 imagens, e aí Brando acertou realmente nos seus adversários e levou com os golpes deles. Mas no entanto isso não está no filme: quando os montadores viram essa tomada, ficaram assustados e não a utilizaram porque lhes parecia insuportável. Mas eu um dia utilizo-a...

Cahiers Fale-nos de Mickey One...

Penn O filme foi rodado em Chicago, na sequência de um acordo especial com a companhia de produção, a Columbia. Os dirigentes da Columbia deram-me todo o dinheiro necessário e não se envolveram de todo no filme: além disso, contratualmente, nem sequer tinham o direito de ler o argumento. Realmente, esse devia ter sido melhor filme, porque tinha a mais total das liberdades.

Cahiers Em The Chase, pelo contrário, parece ter sido constrangido pela máquina hollywoodiana...

Penn Fui. É uma coisa terrível isto de fazer um filme com tantos técnicos à nossa volta, tanta gente muito qualificada e muito hábil: se temos uma ideia, ela vê-se imediatamente filtrada como o fumo pelo filtro de um cigarro. Cada um dos que nos rodeia sabe exactamente como é que a nossa ideia deve ser realizada, e aquilo que acaba por sair de todos esses esforços precisos, não é a nossa ideia, mas o arquétipo da ideia hollywoodiana, o lugar comum, o banal. Se quisermos evitar isso, é preciso dizer constantemente que não aos nossos colaboradores: recusar as propostas deles sistematicamente, de uma nuance na cor à escolha de uma gravata, é preciso mudar tudo! Se queremos que o resultado do nosso trabalho ainda nos pertença e que nos exprima pessoalmente, é preciso vigiar tudo, tudo, em cada cena, para nos assegurarmos que o mais pequeno detalhe é tal como o queríamos. Assim, muito rápido, já não se tem interesse nem sobretudo energia suficientes para poder fazer tudo sozinho, e eis porque, no final das contas, The Chase se tornou mais um filme de Hollywood do que de Penn.

Cahiers Com Mickey One e Bonnie e Clyde, rodou dois filmes com Warren Beatty. Como é que trabalha com ele, ele colabora no argumento ou na concepção das personagens?

Penn Para Mickey One, não. Para Bonnie e Clyde, Warren Beatty não só era o produtor, como tinha sido ele a comprar o argumento. Efectivamente, falámos de todos os problemas, e ele participou pouco na escrita definitiva do argumento. A única modificação importante, que tinha a ver com a personagem de Bonnie, veio da sua intérprete, Faye Dunaway: ela pensou que, mais para o final do filme, Bonnie e Clyde deviam conseguir fazer amor juntos. Ela falou-me disso, eu concordei, falei disso a Warren e ele também teve essa ideia, que então adoptámos. Quanto a Warren actor, ele interpretou o seu papel de forma muito séria, exactamente como lhe tinha pedido. Eu sei que ele tem a reputação de ser um jovem muito difícil de dirigir, mas nós somos muito próximos, muito amigos, e temos uma forma de falar um com o outro que evita qualquer problema: muito crua, muito directa e muito natural.

Cahiers Depois de Mickey One, houve um pequeno desacordo entre vocês?

Penn Sim. A nossa relação foi difícil: o Warren não queria interpretar o papel como eu queria que interpretasse, ele não o via como eu. E não nos entendemos bem. Mas antes de começar Bonnie e Clyde, concordámos em dizer muito francamente aquilo que pensávamos um do outro, e em dizê-lo de forma muito violenta se fosse necessário. Também concordámos que em caso de desacordo total, seria ele a ceder e faria aquilo que eu queria. Aí está. Na verdade, curiosamente, nós tínhamos as mesmas ideias. O único ponto sobre o qual divergimos um pouco, foi na escolha de Faye Dunaway para Bonnie: no início, ele não gostava dela e achava que não era a Bonnie que precisávamos. Depois de ter trabalho com ela, lá para o meio da rodagem, percebeu que era perfeita.

Cahiers A rodagem foi cronológica?

Penn Não. Eu queria, mas era impossível.

Cahiers Porque seguimos a mesma evolução que Beatty em relação a Faye Dunaway: ao princípio estamos contra, um pouco mais tarde a favor...

Penn Nós quisemos que essa evolução no espectador em relação a Faye Dunaway fosse assim. Era preciso que ela no início fosse um bocado vulgar, nem agradável nem simpática, para que em seguida, depois da primeira cena de amor com Clyde, quando se torna evidente que ele é impotente, nos pudéssemos dar conta de que fica comovida e tocada com essa fraqueza, e que a partir daí, a personalidade de Bonnie mudasse.

Cahiers Podem-se encontrar parentescos entre a personagem do Left Handed Gun e a de Clyde: a vida é para os dois um jogo, que eles jogam com uma arma, como crianças. E ambos morrem, mas tendo-se metamorfoseado e tendo mudado. Pode-se dizer que para si o pistoleiro canhoto também era impotente?

Penn Penso que não. Era muito jovem, de certa forma infantil, e a única mulher com quem tinha dormido era o do seu antigo amigo. Não lhe interessava verdadeiramente, isso de ter uma história de amor, e pode-se falar de um lado edipiano nele. Ele não era impotente, mas quase: talvez seja fazer psicologia primária, mas pode-se presumir que as pessoas que vivem muito de arma na mão têm um problema a nível sexual, que isso manifesta um complexo...

Cahiers Encontramos em Bonnie e Clyde - levada ao seu ponto extremo - a mesma tendência dos seus outros filmes: breves sequências justapostas que exploram ao máximo a violência das situações e conduzem ao paroxismo a representação dos actores...

Penn A razão deve-se ao facto de que eu queria um ritmo e uma montagem muito nervosos. As recordações que eu tinha de Bonnie e de Clyde, efectivamente, eram recordações de fotografias. Também não queria utilizar uma câmara móvel que seguisse uma cena durante muito tempo, mas de alguma forma uma técnica caleidoscópica.

Cahiers Parece então que cada plano do seu filme obedece a uma dupla função: integrar-se no movimento geral do filme, e fornecer ele próprio uma informação, uma ideia nova, em relação ao plano anterior, por um processo que lhe concede uma autonomia quase completa. Como se cada plano, ainda que participando da montagem geral que almeja a continuidade, contradissesse essa continuidade com o seu isolamento quase radical...

Penn A minha concepção do filme baseia-se em grande parte na noção de ironia. Muitas vezes, faço um plano para induzir o público a acreditar numa coisa, e no plano seguinte, inverto essa certeza. Por exemplo, no início do filme, quando o fazendeiro chega e afirma que o banco lhe tirou a casa, Bonnie e Clyde sabem que são ladrões, mas ainda não sabem do quê nem porquê. Portanto no final da cena temos um grande plano de Warren Beatty que diz: «Nós roubamos bancos». É aí que ele se apercebe daquilo que quer fazer, depois de o fazer, após o facto. É como se dissesse subitamente: «Descobri a minha causa, agora sou um ladrão de bancos, sei o que tenho de fazer». A ideia geral de Bonnie e Clyde era falar de uma inteligência muito obscura, não de alguém subtil ou complexo. É alguém que tem um grande desejo de acção mas que não sabe muito bem de que acção nem porquê. Também queria mostrar por contraste que as outras pessoas, pelo seu lado, estavam paralisadas pela Depressão, como durante a cena do acampamento, no final: há uma espécie de estilização na imobilidade, os outros estão atrofiados, congelados, apenas Bonnie e Clyde estão em movimento, funcionam, talvez por motivos idiotas e auto-destrutivos, mas agem.

Cahiers O que é que pediu à actriz para o último plano do filme, quando ela olha pela janela?

Penn Warren Beatty e ela não se davam nada bem, estavam muito chateados um com o outro, enquanto que eu e ela nos dávamos muito bem. Eu era um pouco protector, se não mesmo paternalista para com a minha actriz. Eu disse-lhe: «Olha para Clyde» - na direcção onde era suposto Warren estar. Mas no último segundo, descartei Warren e pus-me no lugar dele, tanto que ela tem um olhar muito doce, muito gentil, e esse olhar - embora ela tenha esboçado um gesto de surpresa que quebrou o plano - guardei-o, porque o queria e tinha-o procurado.

Cahiers Quando o vi a trabalhar em Hollywood, fiquei impressionado com facto de falar em voz baixa para os actores, enquanto a maior parte dos outros cineastas gritam frequentemente...

Penn Às vezes, faço apenas isso para os descontrair e lhes inspirar confiança, mas outras vezes com outra intenção: revelar-lhes por exemplo algo sobre a personagem de outro actor, e algo que o outro não saiba. Então, quando a cena começa, aquele que não está por dentro pergunta-se: «O que é que Penn lhe disse? O que é que ele lhe disse para fazer?» E para mim isso cria uma tensão, uma vivacidade e até uma inquietude de olhares que se acrescentam à cena como estava planeada e alimentam o seu interesse. Mas outras vezes, também, o que eu digo não se relaciona directamente, nem indirectamente, com a cena. É por exemplo: «Queres um cigarro, ou ir à casa de banho?», coisas simples que permitem a alguém recomeçar a trabalhar como um ser humano, não como uma máquina...

Cahiers No momento em que Clyde morre, há um plano em picado, ele vira-se, vêmo-lo de costas, o corpo dele sobe, como uma espécie de enxurrada, e depois muda-se de plano. Teve esta ideia antes ou durante a rodagem?

Penn Antes. Eu queria representar de alguma forma o espasmo da morte, e servi-me de quatro câmaras, cada uma a uma velocidade diferente: 24, 48, 72 e 96 imagens por segundo, creio eu, também com objectivas diferentes.

Cahiers E a morte de Bonnie?

Penn A verdadeira Bonnie foi electrocutada. Mas eu queria as duas formas da morte. A dela é um choque puramente físico, filmamo-la com várias câmaras, acrescentámos buracos de balas, e até há um pedaço da cabeça de Warren que salta, como a de Kennedy naquela imagem famosa da sua morte.

Cahiers O que é que pediu aos actores nesse momento?

Penn Apenas que representassem a morte, que caíssem, que obedecessem às simples leis da gravidade. Warren caiu num pequeno outeiro, depois vira-se. Ela, foi atingida atrás do volante do carro, amarrámos uma das pernas dela para que não caísse do carro, mas balançasse simplesmente de lado. Fiz com que se fizesse essa tomada três ou quatro vezes, mudando velocidades e objectivas, para conseguir essa espécie de variação no espaço e no tempo.

Cahiers E ao mesmo tempo, isso confere algo de um pouco irrealista à morte de Clyde...

Penn Sim, eu sabia que o filme iria terminar assim, portanto podia fazer com que fosse uma morte dura, vulgar, verdadeiramente obscena, com algo de terrível, mostrá-lo despedaçado pelas balas, mas isso não me parecia a forma certa de terminar: a morte do casal é uma conclusão lógica, prevista de antemão, incluída nas premissas da narrativa, era preciso fazer dela uma abstracção em vez de um objecto de reportagem...

Cahiers Isso introduz uma dimensão quase mítica no final do filme...

Penn Exactamente. Por sinal isso também é verdade para The Left Handed Gun, mas, infelizmente, o seu final foi acrescentado, e evidentemente não é meu. Depois de Billy cair, havia uma pequena procissão na aldeia, de mulheres com velas, que rodeavam o corpo e se sentavam junto dele... um pequeno ritual para encerrar o ciclo da lenda, mas acrescentaram aquele final idiota com a mulher do xerife que diz: «Agora pode regressar a casa», um final que não tem sentido nenhum.

Cahiers Será que - nessa óptica -, não teria sido preferível terminar Bonnie e Clyde com o plano de Beatty a virar-se para trás, em vez de fazer aqueles sobre a cidade com as pessoas que chegam?

Penn Eu pensei nisso tudo primeiro, mas depois pareceu-me demasiado abrupto. Tive a impressão de não estar a alcançar a última nota de uma sinfonia, que se desvanece, que se acalma a pouco e pouco, progressivamente. Obviamente que isso diz apenas respeito à forma. Quanto ao conteúdo, têm razão: o momento em que Warner se volta, é realmente o final da história. Mas isso correspondia à reportagem, severa, brutal. Eu queria um final de bailado, imaginário, lendário.

Cahiers Já que citou um termo musical, pensou na construção do seu filme em referência a uma ou a várias formas musicais?

Penn As duas pessoas que escreveram o guião são jornalistas: eles conheceram um músico que tocava banjo de cinco cordas e que é maravilhoso, e, quando escreveram o argumento, pensaram em utilizá-lo, e isso deu-nos a ideia do género de música que iríamos usar. Aí está a banda-sonora do filme. No que diz respeito à sua construção, de partida não o imaginei conscientemente sobre um modelo musical conhecido. Talvez essa referência exista, seja como for não é consciente da minha parte.

Cahiers Há outra diferença em relação a The Left Handed Gun, o facto de o tom ser ao início o do burlesco, que depois se torna patético. Essa diferença existia desde a fase do argumento?

Penn Apenas em certa medida. A minha intenção era começar por contar uma pequena crónica de uns jovens engraçados, divertidos, que não fazem coisas muito sérias. Então, quando Clyde não consegue sair do carro, porque o tinha estacionado de lado, e o homem salta para cima do carro e leva um tiro na cara, de repente, deixamos de nos rir: «Meu Deus, matei alguém, não o queria fazer, estava só a assaltar um banco». Tudo muda nesse momento.

Cahiers Todas as mortes são muito penosas e muito sangrentas...

Penn O meu próprio sentimento é que a morte violenta é verdadeiramente muito sangrenta. A quantidade de sangue surpreende-me sempre, há imenso. Penso sempre no verso de Shakespeare: «Quem poderia imaginar que o homem tinha tanto sangue nele». Parece-me que quando a mostramos no cinema, deve-se produzir esse efeito de choque. No final, no entanto, e como vos disse, dei à morte um carácter mais «abstracto», menos físico.

Cahiers Pratica essas mudanças constantes de tom para provocar sentimentos contraditórios nos espectadores?

Penn Para surpreender constantemente. Neste filme, nós não tínhamos personagens extremamente fortes. Elas são relativamente superficiais, bastante vazias, não necessariamente más, mas sem dilemas morais. Portanto, era preciso insistir mais no lado exterior, como nos desenhos animados em que cada quadro tem de mudar: aqui, devemo-nos rir, aqui devemos ficar surpreendidos, ali chorar e acolá rir novamente. Portanto montámos o filme desta forma, e as imagens foram concebidas com vista a permitir essa montagem, em vez de serem mais fluídas.

Cahiers O que concede a Bonnie e Clyde uma dimensão lúdica evidente...

Penn Absolutamente, mas isso não aconteceu nos meus outros filmes, The Left Handed Gun ou Mickey One por exemplo. Aí, interessava-me nos pensamentos das personagens, nas suas motivações, mesmo e sobretudo quando eram ilógicas. Mas aqui as personagens são assassinos, gangsters, pareciam ter apenas uma consciência obscura. Eu não lhes podia dar artificialmente uma vida interior profunda. Portanto decidi manter-me fora deles. O que não quer dizer que tenha querido privá-las de toda a consistência, criar seres teóricos, incorpóreos e sem profundidade. Espero ainda assim que se manifeste uma certa vida autêntica através delas, mesmo se o tom um tanto frio da crónica prevaleça sobre o da análise dos sentimentos.

Cahiers Mas não lhe parece perigoso poder dispor assim ao seu critério das reacções do público que, interessando-se menos nas personagens, se torne apenas sensível ao seu mecanismo?

Penn Sim, isso pode ser perigoso se não tivermos cuidado e se não desconfiarmos dos poderes do cinema. Mas aqui não penso que tenha «abusado» do espectador, mesmo que o manipule um bocado. Seja como for, penso que neste filme era a única forma de agir. Tinha de me servir do riso, para dar ao público a sensação de pertencer a este gangue e de viver as suas aventuras. Mais tarde, quando o tom muda, quando Bonnie diz: «Quero ver a minha mãe», o humor pára, e sobretudo quando a mãe lhe diz: «Tu não podes viver a três milhas de minha casa, porque morrias se vivesses perto de minha casa»: é o início da morte dos dois.

Cahiers Tem outros projectos de filmes?

Penn Estou a trabalhar numa nova história, a de um pele-vermelha americano. Vai ser um filme bastante engraçado, mas com cenas horríveis, sobre o que era verdadeiramente o destino do pele-vermelha na época do general Custer. Evidentemente, é grande a analogia com os negros. Mas neste momento, não saberia como fazer um filme sobre os negros, seria limitado, parcial ou romanceado. Ao passo que, por um processo análogo, me pudesse expressar melhor. De qualquer das formas, ainda estou em fase de projecto.

Cahiers Pode-nos explicar de forma mais pormenorizada o género de dificuldades que haveria, para si, ao fazer um filme sobre os negros?

Penn É um problema que eu próprio não percebo muito bem. Não tenho perspectiva suficiente, conheço certamente muitos factos e incidentes, mas não tenho um ponto de vista suficientemente vasto e completo. Se, por exemplo, relatasse factos, se mostrasse exemplos evidentes de injustiça, isso seria aterrador, duro de ver, mas não diria nada da essência do problema, que eu não compreendo. E pode ser que fazer um filme sobre os peles-vermelhas me ajude - colocando-me problemas de analogia e diferença - a dar alguns passos em frente, pelo menos assim o espero. Vou-vos relatar um episódio muito interessante: uma noite, mostrámos Bonnie e Clyde a cinco negros, e eles identificaram-se completamente com eles. Estavam encantados: «É assim que se faz, Baby, é assim que se chega lá! Bravo!» Num certo sentido o negro americano tem essa atitude, a de gente que não tem nada a perder. «Não quero saber se me matam, não tenho nada a perder». Os negros estão lá: «Sem distúrbios, sem rebelião. A Revolução!».

Cahiers Continua com a sua actividade teatral?

Penn Sabem, a situação nos Estados Unidos mudou muito. Noutros tempos, quando se trabalhava no teatro como artista «sério» e se partia para Hollywood, prostituíamo-nos mais ou menos, mas agora é o contrário. No cinema, pode-se fazer coisas mais sérias, mais verdadeiras, na Broadway, não se realizada mais nada sério, é tudo puramente distractivo.

Cahiers E na off Broadway?

Penn É a mesma coisa que «in» Broadway, também é caro, têm o mesmo público limitado, burguês, branco, de si próprio, e que não quereria ver mudar os seus hábitos de pensamento por nada deste mundo. Nos teatros da «off-off» Broadway, aí, pode-se fazer bom trabalho. Por exemplo no teatro do Massachusetts que eu dirijo, onde praticamente vivo, onde começámos a organizar peças, novas, mais próximas do cinema tanto pelos temas como pelas técnicas que empregamos... Eu trabalho na Broadway para viver, mas na verdade vivo neste pequeno teatro de Stockbridge que satisfaz mais a minha ideia e o meu gosto pelo teatro. 

in «Cahiers du Cinéma», nº 196, Dezembro de 1967.

Duas observações sobre Bonnie and Clyde


por André S. Labarthe

A crítica outra coisa não procura do que trazer à luz as analogias que o espírito espontaneamente cria. É de regra que ela cale a sua origem para apenas nos entregar o claro desenho de um espírito ocupado em captar o seu objecto. Assim, a luz que se faz deixa na sombra os motivos profundos que suscitam a crítica. Se, por exemplo, eu resolvesse, como estou tentado a fazê-lo, analisar aqui a forma e a função da montagem (ou da planificação) em Bonnie e Clyde, o que é verdade é que essa análise teria tido origem em duas imagens. Uma, a do nascimento e crescimento dos cristais (Bonnie e Clyde é para mim o filme desse crescimento, rodado em acelerado); a outra, a de um certo fogo de artifício de grande poder de que quase todo o cinema só sabe dar o declínio e que Arthur Penn nos mostra no seu esplendor.

Além disto, outra coisa: Bonnie e Clyde contesta a ideia feita que opõe cinema de montagem a cinema de actores, cinema de planos a exibição de artistas (e que diz que os bons directores de actores usam sempre planos longos). Já Welles e Becker tinham posto esta ideia em questão nalguns momentos. Penn acaba com ela de vez, quando pulveriza as suas cenas sem lhes cortar a continuidade e nos dá, num só plano rápido, de repente, todo o sentido do filme: aquele em que Bonnie revela o seu amor por Clyde quando tudo se move no silêncio ensurdecedor da morte mais violenta do cinema americano.

in «Cahiers du Cinéma», nº 196, Dezembro de 1967.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Arthur Penn e a Nouvelle Vague


por Luc Lagier (com a colaboração de Nicholas Franklin)

Nascido no início dos anos 20, Arthur Penn realizou o seu primeiro filme, The Left Handed Gun com Paul Newman, no final dos anos 50 pouco antes do surgimento da Nouvelle Vague. Penn foi então próximo de Truffaut e Godard. O seu interesse pelo cinema europeu sente-se em filmes como Mickey One com Warren Beatty, Um Lance no Escuro com Gene Hackman (com essa magnífica citação de A Minha Noite em Casa de Maud de Éric Rohmer, aqui) e sobretudo Bonnie e Clyde que Truffaut e Godard quase realizaram antes dele. 
 
Na altura de comemorar os 50 anos da Nouvelle Vague, Arthur Penn aceitou portanto imediatamente a nossa proposta de entrevista («Como é que poderia recusar?» disse-nos ele). Concedeu-nos então um encontro no seu apartamento nova-iorquino junto ao Central Park para evocar lembranças antigas, alguns meses antes do seu desaparecimento que aconteceu no mês de Setembro de 2010. 
 
Qual foi o primeiro filme da Nouvelle Vague que descobriu? 
Arthur Penn: Penso que foi Os Quatrocentos Golpes. Lembro-me de ter ficado muito emocionado com o filme e com o seu aspecto autobiográfico, a forma como Truffaut tinha concebido o filme como uma necessidade vital, uma forma de se salvar a si próprio de uma infância dolorosa. E depois, claro, o último plano com a imagem parada de Jean-Pierre Léaud na praia marcou-me muito. Foi o início de uma libertação em relação ao meio cinematográfico à qual não estávamos de todo habituados. Pouco tempo depois saiu O Acossado que também teve o efeito de uma revolução. A montagem, a forma de contar uma história, era completamente nova na altura… 
 
Nessa altura já tinha realizado The Left Handed Gun
Sim, eu tinha feito The Left Handed Gun em Hollywood no final dos anos 50 e aquilo tinha sido uma experiência terrível porque assim que a rodagem terminara, outra pessoa qualquer tinha-o montado e para mim isso era inaceitável. Portanto deixei Hollywood e regressei a Nova Iorque para trabalhar em teatro na Broadway. Pensei em parar de fazer filmes. E depois The Left Handed Gun teve muito boas críticas na Europa e especialmente em França. André Bazin defendeu muito o filme nos Cahiers du cinéma e creio que Godard e Truffaut também o tinham adorado. Eles tinham gostado que o filme não respeitasse totalmente os esquemas hollywoodianos tradicionais. Havia lá um aspecto um pouco bruto, um pouco ingénuo em The Left Handed Gun que talvez tenha influenciado os futuros cineastas da Nouvelle Vague. Essa recepção tocou-me imenso e o filme tinha encontrado finalmente o seu público em França e na Europa. 
Algum tempo depois, realizei O Milagre de Anne Sullivan e o filme teve algum sucesso. Como resultado, para o meu filme seguinte, coloquei-me a questão: «quero fazer filmes originais ou apenas ganhar dinheiro?». Cometi o erro de querer antes ganhar dinheiro, aceitei o guião de O Comboio com Burt Lancaster, comecei as audições, escolhi inclusivamente Jeanne Moreau de quem tinha gostado em Jules e Jim e nos filmes de Louis Malle, mas alguns dias antes do início das rodagens abandonei a produção. Em suma, nessa altura, travei muitas batalhas contra o sistema hollywoodiano e perdi-as a todas. Por isso, é inútil dizer-vos que depois destas experiências dolorosas, os filmes de Truffaut ou de Godard eram para mim o exemplo a seguir. 
 
Nessa altura, sentiu que o próprio cinema americano estava num momento de viragem, que tinha chegado a altura para tentativas cinematográficas mais originais ? 
Sim, sem dúvida. O cinema americano estava a atravessar uma crise de identidade. Os estúdios continuavam a produzir filmes ultrapassados que já não queríamos ver. Havia um apetite por filmes mais originais, mais aventurosos, em todo o caso diferentes mesmo se ainda não se soubesse exactamente o quê. De qualquer das formas, os filmes da Nouvelle Vague, por serem mais pessoais, pareciam-nos ser os modelos a seguir. 
 
Há uma cena célebre em O Acossado, Belmondo diante de uma fotografia de Bogart ou ainda em Os Quatrocentos Golpes, Jean-Pierre Léaud a roubar uma fotografia de Mónica e o Desejo de Bergman. Os filmes da Nouvelle Vague não foram os primeiros filmes cinéfilos da História do cinema, a citar abertamente os filmes do passado? 
Com certeza. Mas isso, era apenas a superfície. Porque a originalidade desses filmes ia muito mais longe do que essas simples citações. Havia uma dimensão quase anárquica no cinema deles, como se nos estivessem a dizer: «estou-me bem a marimbar para saber se isso foi feito antes, é assim que eu quero contar a minha história e não de outra forma». Então é claro que havia inúmeras referências explícitas ao passado, mais subjacente a isso, também havia essa dimensão iconoclasta que parecia justamente varrer com o cinema do passado. 
 
Nunca foi tão próximo de Truffaut e de Godard como na altura de Bonnie e Clyde no final dos anos 60. Pode-nos contar a génese desse filme que Truffaut e depois Godard quase realizaram ? 
O argumento tinha sido escrito por David Newman e Robert Benton e eles na altura foram muito influenciados por Jules e Jim e Disparem Sobre o Pianista de Truffaut. No início dos 60, eles mandaram-me o argumento para saber se eu estava interessado mas já me tinha comprometido com The Chase, uma produção bastante pesada com Marlon Brando. Para mais, o argumento não estava totalmente concluído. Então, eles enviaram-no a François Truffaut que estava interessado. Ele encontrou Newman e Benton, fez-lhes inúmeras sugestões, acho que a cena do poema, quando Bonnie recita a sua prosa a Clyde e o poema vai parar aos jornais e depois à esquadra foi ateada por Truffaut. Truffaut hesitou muito, não se conseguia decidir. Finalmente disse que não, mas disse a Benton e Newman: «Porque é que não se propõe o filme a Godard?». Os dois argumentistas ficaram bastante entusiasmados, os produtores um pouco menos. Godard teve uma reunião com a produção e disse-lhes: «OK, rodamos o filme imediatamente em pleno Inverno, em duas semanas, no Texas». Os produtores ficaram assustados, responderam-lhe que não era possível, que o argumento era suposto desenrolar-se no Verão. Godard respondeu então: «Eu falo-vos de cinema, vocês falam-me de meteorologia. Adeus». Basicamente eram dois mundos radicalmente diferentes. E depois um dia Warren Beatty veio a Paris, nessa altura ele estava com Leslie Caron. Eles jantaram com Truffaut que lhes falou do argumento de Benton e Newman. De volta a Hollywood, Warren Beatty pediu uma cópia e comprou os direitos. Benton e Newman insistiram de novo para que Truffaut ou Godard realizassem o film. Também creio que houve um encontro entre Warren Beatty e Godard. Mas Beatty depois disse a Benton e a Newman que a partir do momento em que tinham um guião muito Nouvelle Vague, definitivamente que não precisavam de um cineasta francês mas antes americano. E o Warren, com quem tinha rodado Mickey one, propôs que eu o realizasse e desta vez aceitei. Eis toda a história. 
 
Na sua opinião, porque é que Truffaut acabou por não realizar Bonnie e Clyde
Não há dúvida nenhuma que ele desconfiava imenso dos produtores. Suspeitava certamente que o sistema americano não combinaria com ele, que nunca iria encontrar a liberdade que tinha em França. 
 
Falou com ele sobre Bonnie e Clyde, na altura ? 
Não. Uma vez que aceitei realizá-lo, decidi fazê-lo à minha maneira sem me preocupar com aquilo que se tinha passado. E no final não sei o que é que Truffaut achou do filme terminado. Sei que Godard não gostou nada… 
 
Isso dito nessa altura, poucos filmes encontravam favor aos seus olhos… 
Sim, foi o que me foi dado a entender… 
 
Assim que aceitou realizar Bonnie e Clyde, alterou muito o argumento ? 
Sim, porque o argumento era um bocado complexo demais, sofisticado demais, elaborado demais. Faltava-lhe algo de rústico, de natural. Apesar de tudo, aquilo falava de gente simples, Bonnie e Clyde não eram intelectuais. Então, introduzi um estilo mais directo ao filme e simplifiquei as personagens. No argumento havia uma espécie de relação a três inspirada por Jules e Jim. Warren Beatty e Michael Pollard estavam os dois apaixonados por Faye Dunaway, o que na verdade já não está no filme terminado. O fim também era diferente. Bonnie e Clyde eram simplesmente abatidos como num filme de gangsters clássico e eu não queria fazer exactamente um filme de gangsters clássico. Queria algo mais emblemático da nossa época, mais alinhado com a violência que vivíamos na América no final dos anos 60. Portanto deitei fora o final previsto e impus outro enquanto poucas pessoas me apoiavam e compreendiam aquilo que queria fazer. E isso resultou no final sangrento que vocês conhecem. 

Em que é que Bonnie e Clyde é um filme inspirado pela Nouvelle Vague ? 
Sabem que no final dos anos 60, a Nouvelle Vague quase tinha entrado na linguagem comum. A Nouvelle Vague já não era assim tão nova quanto isso. Toda a gente a começava a absorver nos Estados Unidos e noutros lugares. E não só a Nouvelle Vague, aliás, mas também o cinema de Bergman ou o do neo-realismo italiano no mesmo período. Portanto, é difícil dizer hoje em dia quais são especificamente os aspectos de Bonnie e Clyde inspirados pela Nouvelle Vague. Praticamente tudo, sem dúvida. Mais uma vez, estávamos em 1967, havia um sentimento de revolta que iria explodir na América e na França por volta do ano de 68. Era o advento de uma nova juventude, de movimentos contestatários contre a guerra do Vietname. Nessa altura já não se podia dizer que tal elemento vinha de um filme de Truffaut ou de Godard, esse cinema já tinha sido admitido e integrado por toda a gente. 
 
Pode falar-nos da sequência de abertura de Bonnie e Clyde com aquela série de grandes planos sobre o rosto de Faye Dunaway sem nenhum diálogo. É uma abertura quase experimental… 
Sim, lembro-me disso, claro. Vi-me naquele quarto pequeno com pouco espaço à minha disposição para rodar. Então perguntei-me «como é que se apresenta esta rapariga?». Disse a mim mesmo que era preciso mostrar o apetite dela, a sua sede de liberdade. Foi por isso que optei por uma série de grandes planos da boca dela, dos olhos, etc. e depois não parei de fazer a minha câmara mexer. Sem dúvida, era uma forma pouco habitual de começar um filme em Hollywood. E é curioso porque essa sequência de abertura foi muito bem aceite. Foi antes o final sangrento que provocou debate e suscitou fortes críticas, o que era evidentemente ridículo. Estávamos em plena guerra do Vietname e a violência invadia todos os ecrãs de televisão. Que hipocrisia, querer escondê-la nos filmes! 
 
Há um detalhe engraçado. Em Bonnie e Clyde, a personagem de Michael Pollard passa o polegar por cima dos lábios, imitando Belmondo que já imitava Humphrey Bogart como se, para a vossa geração, fosse preciso fazer um desvio pela Europa para encontrar algo de tipicamente americano… 
Sim, eu lembro-me bem desse detalhe e foi muito intencional da parte do Michael. Mas é normal, nessa altura todos os actores roubavam maneiras, atitudes e tiques aos outros. E claro que os actores viam os filmes da Nouvelle Vague. Faye Dunaway gostava imenso de Jeanne Moreau e tomou-lhe a sua forma de fumar, etc. Toda a gente tomava emprestadas pequenas coisas dos filmes dos outros. 
 
Para si, o final dos anos 60 nos Estados Unidos corresponde a uma idade de ouro comparável ao que se passou em França dez anos antes? 
Sim, mudou tudo no final de 60. Os estúdios perderam o poder em favor das televisões. Começaram tornar-se cautelosos e já não sabiam que género de filmes era preciso fazer. O velho sistema dos anos 50 já não funcionava. Apesar de os estúdios produzirem, os filmes eram fracassos, o público preferia ficar em casa a ver televisão. Na altura em que realizava Bonnie e Clyde, Jack Warner estava em Nova Iorque para vender o estúdio. Então não havia mais ninguém no comando para controlar Bonnie e Clyde e Warren Beatty, que era um tipo muito esperto, fez a ligação entre nós e o estúdio. Pudemos partir para rodar no Texas e fazer o filme que queríamos fazer. Foi por isso que Bonnie e Clyde se tornou um filme de autor, não tinha o estúdio às costas. 
 
Porque é que, durante essa idade de ouro, os cineastas americanos como o senhor, Coppola, Altman e os outros não formaram por vossa vez um colectivo comparável à Nouvelle Vague? 
Porque isso simplesmente não era possível na América. Alguns cineastas vivem em Los Angeles, outros em Nova Iorque ou noutros sítios. Não há proximidade nenhuma, nenhuma oportunidade de se encontrarem, de se reunirem, de partilharem. A América é um país grande demais para esse género de movimento. Temos apenas o Francis Coppola que tentou formar um colectivo com George Lucas e outros estudantes da USC na Califórnia ou o grupo que se formou com Michael Wadleigh, Scorsese, De Palma em torno da New York University. Mas isso nunca durou muito tempo e eles dispersaram-se rápido pelos quatro cantos da América. Em Paris, era diferente. Toda a gente se podia encontrar, discutir, debater, ir ao cinema em conjunto, etc. Mas aqui é impossível. Eu gostava de Monte Hellman mas nunca o via. O mesmo com William Friedkin que não vejo há trinta anos. Portanto aqui não temos a possibilidade de formar um grupo. Jonas Mekas tentou com o New American Cinema em Nova Iorque mas manteve-se um colectivo bastante marginal sem grande influência sobre o público. 
 
Finalmente, 50 anos depois, que imagem é que guarda da Nouvelle Vague? 
A imagem de filmes em acordo com a juventude do seu tempo. Filmes novos, refrescantes. Uma certa insolência também, o que deu filmes que inventaram novas regras. Era uma forma de afirmar: «eu sei como é que os filmes se faziam até aqui, então agora vamos fazê-los como queremos e não temos regra alguma para respeitar».

in «Arthur Penn et la Nouvelle Vague», entrevista com Arthur Penn, Blow Up, 2010.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

BONNIE E CLYDE (1967)


1967 – USA (111') ● Prod. Tatira-Hiller Production/Warner ● Real. ARTHUR PENN ● Gui. David Newman e Robert Benton ● Fot. Burnett Guffey (Technicolor) ● Mús. Charles Strouse ● Int. Warren Beatty (Clyde Barrow), Faye Dunaway (Bonnie Parker), Michael J. Pollard (C. W. Moss), Gene Hackman (Buck Barrow), Estelle Parsons (Blanche Barrow), Dub Taylor (Ivan Moss), Gene Wilder (Eugene Grizzard), Denver Pyle (Frank Hamer), Evans Evans (Velma Davis). 
 
A odisseia sangrenta de Bonnie Parker e de Clyde Barrow começa no Texas nos anos 30. Bonnie ficou fascinada com Clyde a partir do momento em que o viu e deixou o bar onde trabalhava por ele. Ele tinha estado na prisão. Rouba uma loja à frente dela, para a impressionar, depois desaparecem de carro. Ele avisa-a logo que se interessa pouco no amor (de qualquer forma, é impotente). Ensina-a a servir-se de uma arma. Encontram uma família de camponeses despojados da sua quinta por um banco. Convidam o camponês a disparar sobra a sua antiga casa, para descomprimir. Clyde quer assaltar um banco, mas – cúmulo dos azares – foi à falência. Um gasolineiro, o jovem C. W. Moss, encontrado na estrada, deixa a sua estação de serviço para acompanhar Bonnie e Clyde nas suas viagens e nos seus saques. Depois de um assalto, Clyde mata um homem agarrado ao seu carro que lhes obstruía a fuga. O trio vai-se juntar ao irmão de Clyde, Buck, acabado de sair da prisão, e a sua esposa Blanche na sua quinta. A polícia cerca a casa e, durante o tiroteio, Buck mata um polícia. O grupo consegue escapar. No carro deles, que agora é a sua verdadeira casa, os gangsters lêem com orgulho os artigos abundantes que a imprensa lhes dedica. No Missouri, capturam um ranger do Texas, Frank Hamer, e obrigam-no a posar com eles. Depois de outro assalto, apoderam-se do carro de um desconhecido que se tornará amigo deles durante algumas horas. Mas, quando descobrem que é agente funerário, abandonam-no na natureza. O grupo vai depois a casa da mãe de Bonnie, que a quer ver uma última vez. Piquenique familiar. Moss e Blanche fazem recados e são detectados pela polícia. No tiroteio geral. Buck é ferido mortalmente. Blanche, igualmente ferida, é capturada. Bonnie, Clyde e Moss vão refugiar-se em casa do pai deste último, Malcolm Moss. Frank Hamer questiona Blanche de forma engenhosa na clínica. A ferida dela deixou-a cega. Ela dá a identidade de Moss, até aí desconhecida pela polícia. Bonnie e Clyde conseguiram fazer amor pela primeira vez. Clyde quer-se casar com a companheira. Numa estrada, não longe da quinta de Malcolm Moss, Bonnie e Clyde são abatidos por atiradores postados em emboscada. 
 
► Em 1958, num pequeno filme B nervoso e crepuscular, William Witney tinha contado a história de Bonnie Parker (The Bonnie Parker Story). Bonnie aparecia como uma verdadeira fúria libertária, desprezando os homens da sua comitiva (o seu marido e os seus amantes), comandando-os pela sua astúcia, a sua determinação, a sua audácia. Sob o plano estritamente narrativo, o filme de Penn, mais rico e mais trabalhado, não traz nenhum elemento novo (e Faye Dunaway parece-se muito com Dorothy Provine, a Bonnie de Witney, menos violenta). Não é verdadeiramente superior ao filme de Witney e é frequentemente mais convencional. A sua principal originalidade, que deve em parte ao imortal Gun Crazy de Joseph H. Lewis, é descrever a saga de dois fora-da-lei sangrentos como uma história de um casal : um casal vacilante formado por um impotente e uma mulher frustrada (que o era, parece, mesmo antes de conhecer o seu parceiro). Na altura do seu lançamento, o filme já estava um pouco desactualizado na sua concepção de personagens, herdada de Kazan, de quem Penn sempre foi uma espécie de sucessor menos criativo : a saber, dois neuróticos cheios de problemas psicológicos e sexuais procuram exorcizá-los de forma confusa pela violência. Foi sobretudo a imaturidade das duas personagens que parece ter fascinado Arthur Penn. Ele pintou-os como duas crianças degeneradas, sem objectivos, revoltadas contra uma sociedade de adultos que só lhes tem para oferecer a sua incoerência, a sua fraqueza, a sua ordem absurda e injusta. Os agricultores são arruinados pelos bancos que por sua vez vão à falência. Bonnie e Clyde colhem a sua parte ao passar, opondo-se a um sistema, não a indivíduos. O imenso sucesso do filme (lançado em França no início de 1968) veio em grande medida da sua actualidade sociológica. A crise dos anos da Depressão descrita aqui com humor e um grande sentido do absurdo dizia também respeito, de uma certa maneira, à década que nessa altura terminava, tanto pelo seu conteúdo como pelo tom com o qual ela foi abordada. O filme agradou igualmente pela sua violência barroca, coreográfica, estetizante e bastante complacente, adiantado mais de um ano em relação a A Quadrilha Selvagem que precedeu pelos seus movimentos sangrentos em câmara lenta da sua última sequência mostrando os solavancos e a queda dos dois heróis crivados de balas. 
 
N.B. Os dois argumentistas, David Newman e Robert Benton passaram rápido para a realização. Robert Benton assinou vários filmes interessantes. Mais do que o sobrevalorizado Kramer vs Kramer (1979), convém assinalar Bad Company (1972), o seu primeiro filme, western na veia da crueldade, essa veia em que se encontram nos anos 70 os raros filmes de valor de um género em vias de extinção (cf. A Gunfight, Um de Nós Tem de Morrer de Lamont Johnson, 1971; Ulzana's Raid, Ulzana, O Perseguido de Robert Aldrich, 1972; The Spikes Gang de Richard Fleischer, 1974). 

BIBLIO. : guião e diálogos in «The Bonnie and Clyde Book» editado por Sandra Wake e Nicola Hayden, Lorrimer, Londres, 1972. O volume contém entrevistas aos principais colaboradores e artigos críticos. Igualmente no volume «Best American Screenplays» editado por Sam Thomas, Crown Publishers, Nova Iorque, 1987.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire des films. **De 1951 à nos jours Suivi d’Écrits sur le cinéma», Robert Laffont, Paris, 2022.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

BONNIE E CLYDE, de Arthur Penn


por Nuno de Bragança

Houve quem perguntasse que espécie de filme pretendeu fazer o autor de Bonnie and Clyde. Tratava-se de uma pessoa muito ponderada e que parecia inquieta, não só por ter o vício das arrumações como por se encontrar baralhada com o filme.

Como eu estava perto, ouvi a resposta. E porque me pareceu uma boa resposta, fixei as linhas gerais e vou tentar reproduzi-la:

«Meu velho», disse o respondente. «Você lembra-se da novidade de filmes como The Roaring Twenties, do Walsh, ou The Asphalt Jungle, do Huston? Pois sabe o que isso quer dizer? Muito simplesmente que você tem mais anos em cima do pêlo do que pensa, porque essa novidade, hoje, é passado.

«Você viu neste Bonnie and Clyde coisas dignas dos melhores filmes negros norte-americanos (todas as cenas de violência e perseguição, por exemplo; toda a montagem delas; e a movimentação de objectos dentro dos planos de grande conjunto filmados para as cenas de perseguição). Por outro lado, encontrou ligeireza ritmada do vaudeville fílmico com que os americanos, por razões de sobrevivência, entre outras, satirizam e satirizarão (espera-se) o american way of life.

«Você vem positivamente chocado por esbarrar num verdadeiro filme negro verdadeiramente colorido, e adivinho que está quase a dizer asneiras como «que história é essa de abordar figuras do milieu como quem está frank-capreando uma família quase inglesa?»

«Poderia responder-lhe com palavras duras e difíceis, tais como «quem é bandido é homem (e vice-versa)». Poderia recordar-lhe a irrupção de certo cinema europeu nas ex-coutadas de Hollywood (lembra-se de Touchez pas au Grisbi, do Becker?). Poderia - em resumo - arremessar-lhe com este bule à testa, e talvez devesse fazê-lo, porque pressinto o cartesianismo aos saltos dentro do seu bojo.

«Limitar-me-ei, contudo, a chamar a sua atenção para o final de outra obra desconcertante: Jesse James, de Nicholas Ray. Assim como, no final a que me refiro, se passava directamente (no mesmo plano, com movimento de câmara) da cena da morte do Jesse para o cantar dessa morte por interposto cego de guitarra, e se demonstrava desse modo que a era dos pistoleiros do Oeste só podia já ser re-vivida (em balada, entenda-se; assim, digo eu, Bonnie and Clyde assinala que é já só em mito recreado que hoje se pode fazer algo em louvor e simplificação do significado moral de certas personagens dos assaltos dos anos 30.

«Não franza a alma e não transpire. Reveja a conversa cinematográfica do jovem casal com a família desapossada pelo BANCO. Reveja o recurso - por parte dos bandidos em fuga e feridos - ao pão e água a que a conjuntura keynesiana condenava alguns migrantes. Recorde o alcance de planos desses quando cotejados com certas obras com relevo na cultura americana (U.S.A., As Vinhas da Ira - que importa que Dos Passos e Steinbeck hoje estejam tão mortos que até cheiram mal?). Tenha presentes as personagens que, no filme em questão, encarnam A LEI, e releia o primeiro livro do Chessman ou a Epístola aos Hebreus de S. Paulo.

«Deixe-me acabar, que é para já. A última coisa que lhe queria assinalar é a primeira que eu assinalei: Bonnie and Clyde, reune numa mesma fórmula os frutos de toda uma tradição de comédia e violência que até há pouco os cineastas americanos mantinham dormindo em canteiros separados, para gáudio solitário do tio Buñuel. Deste canteiro de casal resulta uma criança excelente, que dá sinal de vida num cinema que passa a vida a fingir que morre. E se você me objectar que talvez Arthur Penn não premeditou a fecundação a que me refiro, disparo contra si as palavras de Renoir, mais ou menos isto: «Comment arrive-t'on à un enfant magnifique? Bien, on va dejeuner dans un champ, on boit un peu, on chante beaucoup et on finit par se rouler sur l'herbe. Et soudain, le voilà qui est fait, l'enfant magnifique!»

«Desculpe, deixe-me acrescentar um último pormenor, como diria o meu velho amigo Vítor. Bonnie and Clyde, na certeira e adequada juventude de que se reveste, consegue ainda sublinhar que a onda de crime que hoje obriga os nova-iorquinos a irem para a cama às oito da noite nada tem de comum com o excesso de energias históricas que foi a explicação de alguns pistoleiros do Oeste, e de alguns gangsters. Boa noite e pazoviet, como se diz ou devia dizer na Ucrânia.»

in «O Tempo e o Modo», n.º 56, 1.ª Série, Janeiro de 1968.

Flashback a The Chase, 1965


por Robin Wood

Este ensaio representa um flashback em dois sentidos. O sentido secundário: escrevi um capítulo sobre The Chase num pequeno livro dedicado a Arthur Penn publicado há cerca de quinze anos, nos dias da minha inocência crítica (ou ignorância culposa, como quiserem)—inocência, acima de tudo, de conceitos de ideologia, e de qualquer tipo de posição política claramente definida. O sentido maior: o filme foi lançado alguns anos antes do período com que este livro [Hollywood from Vietnam to Reagan] se preocupa. A minha avaliação de The Chase não mudou, mas o meu sentido do tipo de importância a atribuir-lhe mudou um bocado: vejo-o agora como um trabalho seminal, que antecipa muitos dos grandes desenvolvimentos que ocorreram no cinema de Hollywood durante a década que se seguiu à sua produção, portanto um ponto de partida apropriado para esta investigação. O presente relato vai diferir do anterior, não só na abordagem mas na ambição. Aí o objectivo (no âmbito de um estudo descomplicadamente autorista) era fornecer uma apreciação de The Chase como “um filme de Arthur Penn,” apesar da natureza obviamente colaborativa do projecto e apesar das próprias reservas explícitas do seu autor, marcando uma fase num desenvolvimento pessoal. Aqui, reafirmando ao mesmo tempo a minha admiração pelo filme (e pela obra de Penn em geral—Night Moves está entre os mais belos filmes de Hollywood dos anos 70), utilizo-a em parte como pretexto para um conjunto de questões mais alargadas que são fundamentais para este livro: estabelecer uma atitude muito mais complexa em relação à teoria do autor; introduzir alguns conceitos críticos/teóricos fundamentais à minha posição actual, que se vai reflectir particularmente em suposições sobre “realismo” e o “realista”; iniciar uma discussão sobre as diferenças (especificamente, as diferenças ideológicas, embora obviamente todas as diferenças num sentido mais amplo sejam ideológicas) entre o cinema clássico de Hollywood e o moderno (pode-se tomar 1960 como um ponto de referência conveniente, embora de certa forma arbitrário). 

Pode-se começar com a atitude do próprio Penn para com o filme e com o mito burguês do “artista” que nos faria atribuir-lhe uma importância definitiva: o mito do artista como um ser superior, doando ao mundo obras que são o resultado das suas intenções conscientes e sobre as quais (pelo menos se forem bem sucedidas) se assume que tem controlo. Pode parecer supérfluo, depois de duas décadas de estruturalismo, semiótica e psicanálise, atacar mais uma vez “a falácia da intencionalidade”, mas ela não morre facilmente, como estará ciente qualquer pessoa envolvida em educação cinematográfica. Se o realizador diz que o filme dele é mau, como é que o crítico pode afirmar que é bom? Se o realizador alega total desconhecimento de certas camadas de significado no seu trabalho, então como é que essas camadas de significado podem existir sem ser na imaginação do crítico? Se o realizador (“o artista”) diz que não teve controlo nenhum sobre um dado filme, então como é que pode valer a pena defender esse filme? Uma das principais preocupações da estética do século vinte tem sido responder progressivamente, e de facto descartar, tais questões: primeiro, através da utilização “primitiva” da psicanálise (o artista não se apercebe dos seus próprios impulsos inconscientes), uma utilização que se mostrou perfeitamente compatível com (e assimilável na) estética tradicional; depois, através de conceitos de ideologia marxistas (onde se separam a estética moderna e a tradicional), revelando toda uma gama de pressupostos culturais, tensões, e contradições que actuam através de códigos, convenções, e géneros, largamente fora do alcance do controlo do artista; finalmente, através da utilização sofisticada da teoria psicanalítica que procura explicar, não apenas o “caso” individual, mas a própria ideologia, a construção do sujeito dentro dela, a relação entre sujeito e espectáculo.

No entanto mantém-se um sentido importante em que a produção de uma obra é um acto intencional—(claro que podem estar envolvidas as intenções de vários ou de muitos)—e a presença perceptível de "impressões", “assinaturas,” “toques” autorais, etc., permanece um dos símbolos mais nítidos da especificidade de um texto em particular. O erro do autorismo primitivo residia na sua redução do potencial interesse de um filme à sua assinatura autoral, de forma a que um filme só merecia uma análise se pudesse ser mostrado que era característico (estilisticamente, tematicamente) de Ray, Mann, ou Hawks, por exemplo: o resto era “interferência,” “um argumento insanável,” atribuíveis à imposição de projectos inadequados ou ao mercantilismo desorientado de produtores. Ao discutir agora filmes de Hollywood, eu prefiro falar da “intervenção” de um realizador num dado projecto (mesmo que o projecto tenha sido da sua escolha, mesmo que também tenha escrito o argumento), vendo-o mais como um catalisador do que um criador. Há um nível no qual The Chase é palpavelmente “um filme de Arthur Penn”: o nível da representação. O âmago da obra de Penn, a fonte da sua energia, sempre foi o seu trabalho com os actores, e a vivacidade à superfície do filme, e muita da sua intensidade e complexidade emocional, resulta da capacidade de resposta à sua intervenção de um elenco magnífico. Reconheço isto desde já porque não é um nível com o qual a presente discussão se vá preocupar explicitamente, devendo no entanto afectar certamente qualquer leitura do filme de formas que podem ser demasiado oblíquas para serem definidas com precisão. Basta dizer que se The Chase tivesse sido realizado por um Michael Winner ou um J. Lee Thompson, por mais ressonante que fosse o projecto, é provável que nunca teria chamado a minha atenção. 

Quando à rejeição parcial de The Chase por parte de Penn, a perspectiva do crítico sobre um filme é provavelmente muito diferente da do cineasta. Penn trabalhou em colaboração estreita na elaboração do argumento, primeiro com Lillian Hellman, depois com Horton Foote; estabeleceu e manteve uma relação maravilhosa com os actores. Aquilo que tornou a experiência do filme desagradável ao ponto de ele ainda estar quase traumatizado pela sua memória foi o facto de lhe ter sido negado o direito de montar. Ele atribui uma importância concreta à montagem—o processo de “extrair” o filme do “material em bruto.” Do ponto de vista dele, negar-lhe o direito a montar é efectivamente destruir o filme, fazer com que já não seja verdadeiramente seu: torna-se, nas suas próprias palavras, “um filme que não posso assumir.” Ele tem duas queixas específicas. Para começar, na primeira tomada os actores seguiam o guião; depois, ao entrar nos seus papéis, tornavam-se mais livres e mais espontâneos e (especialmente no caso de Marlon Brando) começavam a improvisar, para que as tomadas posteriores fossem muito mais desenvolvidas, com Brando em particular a dar uma interpretação aparentemente extraordinária. O montador (agindo presumivelmente sob instruções de Sam Spiegel, o produtor) regressava ao guião e às primeiras tomadas na maior parte dos casos, descartando o resto (embora alguns dos impromptus de Brando permaneçam na montagem final). Em segundo lugar, o efeito pretendido do final foi destruído pela mudança das duas últimas cenas feita pelo montador: a cena em que Anna (Jane Fonda), à espera fora do hospital, é informada da morte do amante era suposto anteceder a cena em que Calder (Brando) e a esposa Ruby (Angie Dickinson) se vão embora de carro. 

Regressarei mais tarde à questão do final. Quanto à primeira queixa, The Chase tal como o temos é acima de tudo um filme de conjunto; se o papel de Brando se destaca dos restantes, é devido à posição da sua personagem no interior da diegese (a sua autoridade e o seu isolamento como xerife). A interpretação de Brando nas tomadas descartadas era sem dúvida notável, mas as interpretações de Brando tendem a ser muitas vezes tão notáveis que desequilibram seriamente o filme. Isto acontece, na minha opinião, em O Último Tango em Paris e em The Missouri Breaks do próprio Penn; embora Penn não concorde, eu acho que isto pode ter acontecido em The Chase. Em termos mais gerais, Penn queixa-se que o montador escolheu tomadas inferiores do início ao fim: “Não é do conteúdo verbal das improvisações que eu sinto tanto a falta mas da qualidade de interpretação que estava presente nas tomadas 'improvisadas' interpretadas de forma mais solta. A falha nas escolhas do montador não está na aderência dele ao texto—escrito pelo menos por três e talvez por quatro pessoas—está na escolha cega e cerrada dele da tomada mais convencional em vez daquelas que são excêntricas, bizarras e pouco ortodoxas.” Uma vez que o material que Penn rodou está inacessível (e talvez já inexistente) eu não posso comentar sobre isto, para além de dizer que o filme tal como o temos demonstra efectivamente que as piores tomadas e as "mais convencionais" de Penn são dez vezes mais empolgantes que as melhores de muitos realizadores. 

Também se deve ter em conta a atitude de Penn em relação a Hollywood. Um intelectual de Nova Iorque com um olho na Europa, ele mostra pouco interesse positivo nos géneros de Hollywood por si próprios: na melhor das hipóteses são veículos para fazer “afirmações significativas,” na pior obstruções para serem atacadas e destruídas. Mostra pouca noção de que os géneros—o western, o melodrama, o filme de terror—são inerentemente ricos em significado potencial. O seu comentário de que The Chase é “um filme de Hollywood, não um filme de Penn” foi obviamente pretendido como depreciativo. Eu acho que diz bem mais do que ele pretendia—que as camadas de significado que Penn parece desconhecer no filme estão intrinsecamente vinculadas, determinadas, ao seu lugar na evolução dos géneros e às alterações ideológicas que essa evolução decreta. É como filme de Hollywood que vou discutir aqui The Chase

No sentido de alcançar o tipo de perspectiva sobre os filmes que é impossível (ou pelo menos altamente improvável) para quem os faz, quero introduzir conceitos extraídos do trabalho de dois esteticistas distintos mas influentes de várias formas. 

Em Art and Illusion, E. H. Gombrich apresenta uma das afirmações clássicas sobre a representação—sobre a relação entre a arte e a realidade. Ele cita, com autorização qualificada, a definição de obra de arte de Zola como “um canto de natureza visto através de um temperamento” e prossegue a “investigá-la melhor.”[1] É insuficiente tratar a representação como realidade mediada simplesmente pelo artista individual: há muitos outros factores que contribuem para a mediação. Básica é a escolha de ferramentas e materiais. Dois paisagistas, tentando reproduzir fielmente a mesma cena, um utilizando um lápis duro, outro trabalhando a óleo, vão oferecer duas versões muito diferentes da realidade diante deles; os seus diferentes suportes vão influenciá-los a vê-la de forma diferente, o primeiro vendo tudo em termos de linhas e formas, o segundo em termos de massa e de cor. É fácil extender isto ao cinema e à sua tecnologia disponível. A realidade que o ecrã oferece de forma tão sedutora é mediada em todos os pontos pela escolha da câmara, das lentes, e da focagem; pode-se desenvolver o argumento para incluir a montagem e o movimento de câmara. Mas isto também não é só uma questão de disponibilidade: igualmente importantes são as convenções dominantes dentro de um dado período. Mesmo ao nível da tecnologia e do método de rodagem/montagem, O Caçador (1978) não pode ser My Darling Clementine (1946); tente-se fazer um filme clássico de Hollywood a preto e branco nos anos setenta, e a impressão global será de afectação (A Última Sessão, 1971). 

Mas aquilo que mais me interessa aqui, pela sua relação com os géneros, tipos de personagens e convenções narrativas de Hollywood, é a percepção de Gombrich do grau a que a arte depende da disponibilidade de “esquemas” (padrões estabelecidos, fórmulas, estereótipos), e o grau a que a natureza do trabalho em particular é determinada pelo esquema particular à disposição do artista. Gombrich fornece inúmeros exemplos da história da arte, dos quais selecciono dois. 
A primeira ocorrência deste tipo talvez date de há mais de três mil anos, dos inícios do Império Novo no Egipto, quando o faraó Tutemés incluiu na sua crónica desenhada da campanha na Síria um registo de plantas que tinha trazido para o Egipto. A inscrição, embora um pouco mutilada, diz-nos que o faraó declara que estas imagens são “a verdade.” Mas os botânicos acharam difícil concordar sobre que plantas se possam ter concebido com estas representações. As formas esquemáticas não são suficientemente diferenciadas para permitir uma identificação segura.[2] 
A implicação é que as ilustrações, embora extraídas intencionalmente da vida, foram altamente influenciadas pelos esquemas dos desenhos de plantas disponíveis. 
Quando Dürer publicou a sua famosa xilogravura de um rinoceronte, teve de se apoiar em testemunhos em segunda mão que preencheu com a própria imaginação, coloridos, sem dúvida, pelo que tinha descoberto sobre a mais famosa das bestas exóticas, o dragão com o seu corpo blindado. No entanto foi demonstrado que esta criatura semi-inventada serviu como modelo para todas as representações do rinoceronte, mesmo em livros de história natural, até ao século dezoito.[3]
Gombrich passa a citar a afirmação de James Bruce de que a sua ilustração de 1789 de um rinoceronte, “concebida a partir da vida,” contrasta com a de Dürer (“maravilhosamente mal executada em todas as suas partes”) e para mostrar que a imagem de Bruce ainda deriva, no entanto, da tradição de Dürer e não da “natureza.”[4] Gombrich conclui que “aquilo que é familiar vai permanecer sempre o ponto de partida para a rendição do que não é familiar... Sem algum ponto de partida, algum esquema inicial, nunca conseguiríamos controlar o fluxo da experiência. Sem categorias, não conseguimos classificar as nossas impressões.”[5] 

A utilidade disto—devidamente alterado e expandido para englobar movimento e narrativa, sendo o termo “esquemas”, que cobre personagens e padrões narrativos com termos como “géneros” e “ciclos”, substituído pelas "categorias" de Gombrich—ao explorar uma arte tradicional como o cinema de Hollywood devia ser clara. Acima de tudo, oferece uma correcção inestimável a todas essas noções ingénuas do “realista” (seja de forma meramente descritiva ou, como é quase invariavelmente o caso, valorativa) que ainda perduram teimosamente. Sempre que cineastas ou críticos reivindicam um novo realismo, faríamos bem em lembrar o rinoceronte do Sr. Bruce, adoptar um certo cepticismo, e examinar a obra em questão em relação aos esquemas disponíveis. Um conhecido (não um espectador casual, mas uma pessoa com uma posição de responsabilidade na cultura do cinema) informou-me uma vez com confiança que Mandingo (1975) tem de ser um mau filme porque mostrava uma plantação e mansão sulista em estado de degradação, e “na realidade” elas eram extremamente bem preservadas. Deixando de lado o pressuposto de um absolutismo que não permite qualquer excepção (todas as mansões sulistas?), um comentário destes confunde de forma ingénua o género altamente convencionado do melodrama (em relação ao qual, somente, o filme pode ser devidamente compreendido) com uma qualquer noção vaga de reconstrução documental, assumindo, com a mesma ingenuidade, a superioridade deste último método. A mansão degradada de Mandingo relaciona-se com um dos esquemas mais importantes e duradouros da cultura americana, a “casa terrível,” cuja linha de descendência pode ser traçada de Edgar Allan Poe (“A Queda da Casa de Usher”) a Tobe Hooper (Massacre no Texas, 1974).[6] O filme para a televisão The Day After (1983) representa uma instância imediatamente tópica deste equívoco no momento de redacção. Foi amplamente publicitado, e geralmente recebido, como se oferecesse um retrato “realista” do rescaldo da guerra nuclear. Pode ser exacto o suficiente (embora por certo repreensivelmente discreto) na informação que oferece sobre os efeitos físicos do ataque nuclear; como narrativa, no entanto, baseia-se extensivamente nos filmes-catástrofe dos anos 70, tanto na estrutura geral como em estratégicas narrativas específicas e detalhadas. Os críticos que repararam nisto vêem-no como invalidando o filme, na minha opinião de forma bastante injustificada: “aquilo que é familiar vai permanecer sempre o ponto de partida para a rendição do que não é familiar.” O próprio The Chase foi brutalmente estraçalhado pela maior parte dos críticos no seu lançamento devido aos seus alegados exageros: “o Texas não é mesmo assim”—uma percepção que é tão desorientada como irrelevante. 

Neste momento vou listar alguns dos esquemas tradicionais que estruturam The Chase, utilizando como marco conveniente Young Mr. Lincoln (1939) de Ford—conveniente porque é provável que seja familiar para os leitores, porque partilha tantos dos esquemas do filme mais recente, e porque não há obviamente questão nenhuma de qualquer ligação directa entre os dois filmes, indo a noção dos esquemas muito para além de qualquer questão de influência. 
1. “A Lei,” personificada numa figura de autoridade masculina, o indivíduo superior e carismático (Lincoln; o xerife Calder). 
2. A Mulher como suporte e inspiração do herói (Ann Rutledge; Ruby). 
3. Os jovens inocentes, acusados de homicídio, carecidos da protecção e da defesa da figura de autoridade (os irmãos Clay; Bubber Reeves). 
4. Os linchamentos públicos—os habitantes da cidade, normalmente “cidadãos respeitáveis”—que tentam invadir a cadeia. 
5. A mãe do(s) acusado(s) (Sra. Clay; Sra. Reeves) e a ansiedade dela pela segurança do(s) filho(s). 
6. A jovem mulher do acusado (Hannah; Anna), também preocupada com a sua segurança. 
7. A Religião (o apelo de Lincoln à Bíblia na cena do linchamento; A Sra. Henderson e o seu reiterado “Estou a rezar por ti”). 
8. A imagética fálica que liga a violência à sexualidade (o aríete do grupo de linchamento; os jogos repetidos e explícitos com as conotações das pistolas—”Com as pistolas todas que tens para aqui, Emily, não me parece que houvesse espaço para a minha”).
9. Os livros e a aprendizagem como emblemas do progresso (o Blackstone de Lincoln; o modelo da universidade apresentado a Val Rogers no seu aniversário). 
10. O emblema de uma felicidade/inocência perdida (a memória de Ann Rutledge; o edifício em ruínas de The Chase. Como o paralelo aqui é um tanto frágil e impreciso, aduzirei dois exemplos para além de Young Mr. Lincoln: o “Rosebud” de O Mundo a Seus Pés [1941] e “o rio” de Escrito no Vento [1956]). 
Por esta altura torna-se claro que Gombrich não é suficiente. Antes de examinar em detalhe as implicações da recorrência destes esquemas por mais de um quarto de século (claro que eles se podem remontar a tempos anteriores e adiante no presente), temos de passar para além dele, expondo as suas limitações. Talvez se possa dizer que elas se expõem a si mesmas, na passagem que vem directamente no seguimento da última frase que eu citei: “Sem categorias, não conseguimos classificar as nossas impressões. Paradoxalmente, revelou-se que importa relativamente pouco quais são estas primeiras categorias.”[7] 

Se aqui a ausência de qualquer dimensão política, de qualquer conceito de ideologia e de esquemas enquanto personificações concretas, não é imediatamente óbvia, isso é porque Gombrich limita inteiramente os seus exemplos à flora e à fauna; se ele tivesse incluído exemplos de representações da forma humana (o nu, por exemplo), a ausência não podia ter sido tão facilmente coberta com o pressuposto da neutralidade. Para Gombrich, aparentemente, os esquemas não têm significado inerente de importância, são marcadores abstractos que o artista pode usar como quiser. A insustentabilidade de uma posição destas torna-se ainda mais óbvia quando a aplicamos a formas narrativas mais amplas como o romance e o cinema. De facto, a tendência de Gombrich, geralmente, é despolitizar a arte e a estética. Ele acaba o capítulo a que eu tenho recorrido (“Truth and the Stereotype”) observando que “a forma de uma representação não se pode divorciar do seu propósito e dos requisitos da sociedade em que dada linguagem visual se dissemina,” mas nunca dá continuidade às implicações de tal percepção de forma eficaz. Está na altura de nos virarmos para Roland Barthes, o Barthes de Mitologias

O conceito de "mito" em Barthes pode ser definido por meio do famoso exemplo que ele oferece. Numa barbearia, na altura das revoltas argelianas e das tentativas de supressão, ele pegou numa cópia da Paris-Match; na capa estava um soldado negro, de uniforme, a olhar para cima, presumivelmente para a bandeira francesa, e a fazer a continência. Uma simples imagem que transmite, à superfície, uma simples afirmação: aqui está um soldado negro a fazer a continência à bandeira. Mas para além da simples afirmação (o nível de denotação), este simples significante contém uma abundância de significado sub-reptício (o nível de conotação): os negros têm orgulho em servir a mãe-pátria, a França; eles são dignificados e enobrecidos, e as suas vidas ganham sentido, com este serviço; o imperialismo é justificado, mesmo admirável, já que traz ordem, civilização, e disciplina (incorporados no uniforme) às vidas das raças súbditas (sendo os “nativos” desleixados, indisciplinados e infantis por definição). Por outras palavras, a imagem simples, aparentemente inocente, e “real” (os soldados negros, no fim das contas, fazem realmente a continência à bandeira do país que servem) comunica de forma insidiosa e a um nível inconsciente uma afirmação política (aqui profundamente reaccionária).[8] 

Assim, é necessário acrescentar o conceito de mito de Barthes ao inestimável conceito de esquemas de Gombrich—grosso modo, esquemas com a sua dimensão política restituída, a imagem como fomentadora de ideologia. Aplicando a noção de mito aos esquemas recorrentes do cinema de Hollywood, reconhece-se o pleno significado da questão óbvia de que não existe relação directa entre Young Mr. Lincoln e The Chase. Aquilo que está em jogo é muito mais do que uma semelhança específica baseada no acaso ou na influência entre dois filmes feitos com cerca de vinte e cinco anos de diferença: os esquemas pertencem à cultura e contêm significados culturais que os dois filmes inflectem de formas variadas, sendo as inflecções determinadas não apenas por dois autores mas pela rede histórico-cultural complexa no seio da qual eles trabalham. 

Podemos considerar agora os dez esquemas, partindo da posição de que ambos os filmes (veículos de mito dos períodos clássico e pós-clássico, respectivamente) se preocupam centralmente com a América. 
 
1. A figura de autoridade masculina, o Pai simbólico, depositário e aplicador da Lei, combina mitos de individualismo e supremacia masculina que são centrais para a democracia capitalista, adoptando as funções de controlo e de contenção. No filme de Ford, Lincoln reprime o grupo de linchamento (que não assalta a prisão), resolve posteriormente o crime e salva as vidas dos irmãos Clay, reconstitui a família, e sai do filme para se tornar presidente dos Estados Unidos. Em The Chase, Calder não consegue controlar a multidão (os cidadãos respeitáveis descontrolados assaltam a prisão e fazem-no em picadinho), não consegue salvar a vida do jovem, e sai de carro da cidade derrotado em todas as frentes. Lincoln sabe desde o início por uma espécie de Graça Divina que vai ser bem sucedido, apresentando-se a si mesmo com confiança (apesar da sua inexperiência total) à Sra. Clay como “o seu advogado, minha senhora”; todas as asserções de confiança de Calder se revelam infundadas (por exemplo, a sua garantia a Lester da segurança da prisão, onde “não vamos ter nenhum dos nossos cidadãos a incomodar-te”: Lester é brutalmente espancado na sua cela pelo cidadão soberano da cidade, Val Rogers). Lincoln, acima de tudo, mantém o controlo sobre si próprio; Calder até isso perde, sucumbindo finalmente à histeria e violência que tudo permeiam no seu espancamento do homem que abate Bubber Reeves. O colapso da confiança na autoridade patriarcal também é inflectido de várias formas na apresentação de Val Rogers e do Sr. Reeves, cuja tentativa ineficaz e de última hora para estabelecer contacto com o filho tratando-o por “Charlie” proporciona um dos momentos mais comoventes do filme. 

2. Em Young Mr. Lincoln, Ann Rutledge morre mas perdura como o apoio mortal do protagonista (é a decisão “dela”—o galho que cai na direcção da sepultura—que o manda estudar Direito). O mito da mulher como apoiante/inspiração/redentora do homem é obviamente de longa data; The Chase não a desafia explicitamente, apresentando Ruby como inteligente, compreensiva, e (acima de tudo e suficientemente) uma esposa. No entanto, o mito apenas faz sentido em relação com o mito do patriarca: se a autoridade carismática e legal do herói se torna inválida ou ineficaz, o mito da mulher-como-apoiante desaba com ele. Daí a ênfase no desamparo de Ruby: trancada fora da cela onde Val Rogers espanca Lester, ela é posteriormente trancada fora da sala onde os cidadãos respeitáveis lhe espancam o marido e no final é incapaz de conter Calder quando ele se rende à epidemia de violência inútil. Quando Lincoln abandona o filme sob a orientação espiritual de Ann para se tornar presidente, Calder abandona a cidade sob a supervisão de Ruby (“Calder. . . . vamos embora”) para conduzir—para nenhures. A própria última fala de Ruby relaciona-se de forma significativa com um motivo obstinadamente recorrente do cinema americano, a fala (dita invariavelmente pelo homem à mulher) de “Vamos para casa” (ou variações da mesma: “Eu vou-te levar para casa,” “Podemos ir para casa,” etc.). Aqui, o homem já não tem a autoridade para a proferir, e já não resta casa alguma para onde ir. 

3. Em Young Mr. Lincoln, a inocência dos jovens acusados é inequívoca: os irmãos, representando simples virtudes “varonis”, são centrais para a idealização da família de Ford, sendo a celebração da vida em família central para o filme. A inocência de Bubber é bem mais equívoca: se ele escapa à fealdade e à corrupção generalizadas da sociedade, a sua principal característica é confusão a todos os níveis, como demonstrado por Emily a descrever o seu olhar “como se tudo estivesse a correr mal e ele não consegue simplesmente perceber porquê.” Se Matt Clay representa a confiança nos valores do passado pioneiro americano, Bubber, embora entre as personagens mais positivas do filme, representa uma incerteza em relação aos valores de qualquer futuro americano possível. 

4. Ford apresenta o grupo de linchamento essencialmente como bons cidadãos cujas energias (que arranjam escape, inicialmente, nas celebrações do Dia da Independência) ficam temporariamente fora de controlo. Precisam de ser lembrados do que está “certo”—de um conjunto fixo e absoluto de valores ratificado por texto bíblico—diante do qual se reafirma a sua inteireza básica. A violência deles é um dado adquirido, um facto da natureza que não exige explicação, tão inquestionável como a moralidade que a reprime. Este dualismo tão simples tornou-se impossível em The Chase: a violência é apenas a eclosão lógica da corrupção, da frustração e do aprisionamento da sociedade. Efectivamente, já não se pode dizer aos cidadãos para irem para casa para a cama (eles dificilmente saberiam para que cama ir); não há textos nem moral absoluta alguma aos quais se possa recorrer. Além disso, a constituição do grupo de linchamento é agora bastante diferente. Em Lincoln é composto por um proletariado terra-a-terra e vigoroso ainda em contacto espiritual próximo com os construtores de cabanas originais; em The Chase é composto pelas classes dominantes, a média-alta afluente e a média em ascensão, com o patriarca abastado Val Rogers (que é virtualmente dono da cidade) entre elas. A própria posição de Calder, ao contrário da de Lincoln, está também comprometida: ele deve a sua nomeação como xerife a Rogers e, por mais que possa lutar para preservar a sua integridade pessoal, nunca lhe é permitido esquecer o facto. 

5.  A idealização da maternidade por Ford é central para Young Mr. Lincoln e para a ideologia que encarna. A mãe é reverenciada como o pilar sobre o qual a família, e portanto a civilização, se constrói, e nunca tem de se perguntar a si mesma, como a Sra. Reeves, “Onde é que eu errei?” Ao mesmo tempo, não tem voz, nem potência, no mundo do dinheiro, da lei e da autoridade dominado por homens. A sua simplicidade (a garantia da sua sacralidade e força moral) é várias vezes sublinhada: não sabe ler ou escrever. Pela altura de The Chase, a confiança neste papel central de apoio esfacelou-se. Dado o número enorme de personagens com todas as idades no filme, é espantoso que haja apenas uma mãe: a Sra. Reeves, histérica, ineficiente, sistematicamente irracional e finalmente rejeitada pelo filho. Esta queda da confiança na figura da Mãe (o núcleo espiritual da civilização, para Ford) aponta directamente para uma queda de confiança na estrutura familiar e, além disso, nas relações sexuais tradicionais em geral. 

6. Decorre da veneração da mãe por Ford que não haja nada em Young Mr. Lincoln a questionar a rectidão e a santidade do casamento: Hannah, esperando de forma ansiosa, obediente e passiva pelo desfecho do julgamento, é apenas a Abigail Clay da geração seguinte. Podemos colocar contra isto Anna Reeves e a incerteza em relação aos laços de casamento tradicionais introduzidos através da relação dela tanto com Bubber como Jake Rogers. O eventual compromisso dela com Bubber carrega uma força moral considerável (tal como a sua participação activa e contundente nos acontecimentos), mas não tem nada que ver com a santidade dos laços de casamento: ela percebe que é Bubber quem precisa mesmo dela. 

7. Em Young Mr. Lincoln, a Bíblia (e o seu posterior substituto, o Farmer’s Almanac—Deus e a Natureza concebidos como um só) é a sanção derradeira, e a autoridade de Lincoln é vista como concedida por Deus; em The Chase, a religião é reduzida aos murmúrios desamparados, absurdos e irritantes da menina Henderson, que é representada como louca. Já não sustenta nem valida o sistema; tornou-se marginal ao ponto da irrelevância. 

8. A ligação entre a violência e a sexualidade masculina, que é implícita e provavelmente inconsciente em Young Mr. Lincoln, é totalmente explícita em The Chase. A obra de Ford está constantemente preocupada com as maneiras pelas quais as energias “em excesso” podem ser controladas de forma segura (trabalho comunitário, danças e celebrações comunitárias, brigas cómicas comunitárias), advindo muita da sua complexidade do facto de tanto a energia como as formas de controlo serem altamente valorizadas. Pela altura de The Chase, todo o sentido do valor da cultura em nome da qual o controlo é aplicado foi posto em causa, e as energias em si são vistas como corrompidas. Oponham-se às danças de Ford—celebração de energia e comunidade—as três festas de The Chase, que culminam e se fundem com o caos destrutivo do espectáculo de fogo-de-artifício num ferro-velho: jogos sexuais, eclodindo em jogos de violência, que escalam por sua vez para verdadeira violência que acaba em colapso total e irreparável.

9. O progresso de Lincoln no filme de Ford é estimulado pela sua aprendizagem a partir de livros que lhe foram cedidos pela família Clay: ele é guiado para o seu destino como presidente por Ann Rutledge e pelos Comentários de Blackstone, pelas mulheres e pela natureza, a lei e a aprendizagem. Em The Chase, o conceito de progresso pela aprendizagem foi rebaixado a demonstrações de caça ao estatuto (as bolsas financeiras competitivas para a universidade) e hipocrisias (a afirmação de que “só através da aprendizagem é que o progresso é possível” proferida como um lugar comum vazio). 

10. Os emblemas de Hollywood por uma perda de inocência/felicidade sugerem uma descida constante para o desencanto. Ainda que morta, Ann Rutledge torna-se no amparo espiritual da carreira de Lincoln; o “Rosebud” de Kane simboliza não só uma infância perdida mas também uma vida alternativa e talvez mais gratificante não corrompida pelo poder. Em 1956 “o rio” de Escrito no Vento representa apenas a ilusão de uma felicidade passada (mesmo em crianças, as personagens nunca foram realmente felizes). Em The Chase, o emblema de uma inocência infantil vista de forma nostálgica transformou-se numa cabana esquelética e irreparavelmente em ruínas. 

The Chase equivale a uma das afirmações mais completas e que tudo embarcam do colapso da confiança ideológica que caracteriza a cultura americana durante todo o período do Vietname e torna-se um factor determinante fundamental do cinema de Hollywood no final dos anos 60 e nos anos 70. Alcança isto como filme de Hollywood: o deslocamento ideológico registado na utilização dos dez esquemas que apresentei vai muito para lá de quaisquer comentários sócio-políticos evidentes (sobre a posição dos negros, etc.), que, tal como Penn, eu acho um tanto grosseiros e óbvios (embora eles dêem o seu contributo à estrutura como um todo). É o primeiro filme do “apocalipse americano”, o primeiro filme em que a desintegração da sociedade americana e da ideologia que a sustenta (representada em microcosmo pela cidade) é apresentada como total e definitiva, sem esperança ou reconstrução possíveis. A força ideológica de todos os dez esquemas disponíveis assumidos por Ford em Young Mr. Lincoln (e nele celebrados como mitos) é aqui posta em causa a título definitivo. 

No entanto, o trabalho do filme não é meramente negativo: a partir do colapso, há um novo movimento positivo, ainda que extremamente vulnerável e tentativo, que se começa a manifestar. Isto vê-se de forma mais clara na atitude que o filme define em relação à sexualidade e à organização sexual. A questão “Acreditas na revolução sexual?” é explicitamente levantada no diálogo, e parece apropriado concluir uma discussão sobre The Chase tentando definir a resposta que o filme proporciona. São dramatizadas três atitudes para com as relações sexuais em The Chase, duas das quais são definidas de forma muito clara, permanecendo a terceira provisória e um tanto confusa. 

1. A monogamia patriarcal tradicional: os Calders, o Sr. e a Sra. Briggs, o Sr. e a Sra. Reeves. A relação dos Calder parece ser endossada pelo filme—é apresentada como forte, estável, e mutuamente apoiadora. Mas se a autoridade patriarcal é destronada, a força ideológica da relação cai logicamente com ela. O filme estabelece paralelos fascinantes entre os Calders e os Briggs: enfatiza-se a monogamia de ambas as relações, juntamente com a subordinação da mulher ao homem; a esterilidade de ambos é tornada explícita (Ruby pergunta-se se deviam ter adoptado crianças, a Sra. Briggs pergunta-se se é pior ter filhos ou não os ter); Calder e Briggs são os dois únicos que respeitam a lei (O cáustico “assim somos dois” de Calder). Os Calders são apresentados de forma positiva, os Briggs de forma negativa—pólos opostos da estrutura de valores do filme. Isto torna ainda mais interessante a sensação de que os segundos são uma reflexão sombria dos primeiros. Há um momento maravilhoso em que os dois principais mundos sexuais do filme fazem um contacto passageiro, o momento em que Briggs (com a mulher a reboque, como habitualmente, segurada ao braço dele) comenta a Emily fora de casa dela sobre o comportamento “permissivo” da sua festa (“Mudar de parceiros?”) e acrescenta “Mas nós somos antiquados, eu e a minha esposa.” Quando o diz, a Sra. Briggs olha fixamente para ele com um semblante que beira o ódio patológico: isto simboliza de forma brilhante a repressão da monogamia patriarcal e as frustrações das mulheres no seu interior. O casal Reeves parece oferecer o inverso disto com a mulher como parceiro dominante mas é mais precisamente uma variação do mesmo: toda a energia emocional da Sra. Reeves foi deslocada para cima do seu filho varão, daí a sua histeria quando ele “dá para o torto.” Se os Calders são vistos como heróicos, o sentido geral do filme revela-os como defensores de um sistema que se tornou obsoleto. No final, a única coisa que conseguem fazer é conduzir para longe das ruínas. 

2. Permissividade: a “revolução sexual” como é entendida pelos Fullers, Stuarts, etc., tomando a forma de intriga adúltera esquálida e furtiva levada a cabo como um fim em si mesma, por aborrecimento, frustração, ou um desejo de ajustar contas com o próprio cônjuge, com uma forte insistência no falocentrismo (Edwin “não tem uma pistola”; Damon obviamente tem). Se é verdade que o filme rebaixa implicitamente a monogamia tradicional, também ataca abertamente esta permissividade como meramente destrutiva e motivada pela destrutividade, mais do que por quaisquer impulsos de preocupação, ternura ou generosidade. A permissividade, no entanto, não passa claramente do reverso da moeda (sugerido pela troca entre Briggs/Emily a que nos referimos anteriormente)—o resultado lógico do desmoronamento das proscrições repressivas e artificiais. 

3. A atitude dramatizada no triângulo Bubber-Anna-Jake. Durante o episódio no ferro-velho, tentam os três elaborar o que é potencialmente uma nova moralidade (é significativo que o filme coincida aproximadamente com o crescimento do movimento hippie): uma nova moralidade genuína, por oposição à imoralidade fomentada (“permitida”) pela antiga moralidade. Central para isso é o reconhecimento por parte de Anna de que é capaz de amar dois homens ao mesmo tempo, a sua relativa autonomia de escolha, decisão e acção (única entre as mulheres do filme), e a aceitação por Bubber dela e de Jake (a sua esposa e o seu melhor amigo) como amantes. Isto tanto vai contra a monogamia tradicional, ao rejeitar a sua repressão legalizada e imposta artificialmente, como contra a permissividade, ao rejeitar a sua crueldade e falocentrismo egoístas. A monogamia e a permissividade baseiam-se ambas numa obsessão com a sexualidade (uma com a sua contenção, a outra com a sua expressão supostamente livre): em ambos os acordos, o sexo torna-se o critério central pelo qual é julgado o comportamento, ficando restringida a noção de fidelidade ou infidelidade ao simples acto do concúbito. A história Bubber-Anna-Jake aplica o destronamento tentativo do acto sexual, sem diminuir de todo a importância da sexualitidade como comunicação humana. Sugere que a sexualidade não é incompatível com a amizade, com a partilha e com uma preocupação humana sem restrições. Significativo em relação a isto é a incapacidade total da geração mais velha em compreender ou prever o comportamento e a motivação das personagens mais jovens. Daí que Val Rogers assuma sem hesitação que Bubber vai matar Jake quando descobrir que ele e Anna são amantes; daí que a Sra. Reeves não consiga encontrar outra palavra para Anna que não seja “puta.” Anna—a sua actividade, a sua autonomia e a sua recusa em permitir a si própria ser definida por uma relação com um homem—está na essência do movimento positivo tentativo e incerto do filme. 

Aqui reside a adequação do final tal como está, mesmo que não sancionado pelo realizador do filme, uma adequação tanto no interior como no exterior da ficção. Os Calders vão-se embora de carro, derrotados. O filme abandona-os para terminar em Anna Reeves, a personagem, ainda capaz de aprender, reflectir, evoluir, e Jane Fonda, a actriz, a ir na direcção da sua problemática carreira futura, tanto cinematográfica como política. Como o jovem Sr. Lincoln, ela sai do enquadramento, deixando para trás um filme e uma sociedade que já não a conseguem conter facilmente.

[1] E. H. Gombrich, «Art and Illusion: A Study of the Psychology of Pictorial Representation» (Nova Iorque: Pantheon/Bollingen Foundation, 1960), 64. Inédito em Portugal.
[2] Ibid., 78. 
[3] Ibid., 81. 
[4]. Ibid., 80–81. 
[5] Ibid., 82, 88. 
[6] Para um tratamento mais abrangente, veja-se a análise de Andrew Britton de Mandingo in «Film: The Complete Film Criticism of Andrew Britton», editado por Barry Keith Grant (Detroit: Wayne State University Press, 2009), 252–72. O ensaio apareceu originalmente in «Movie 22» (Primavera de 1976): 1–22. Inédito em Portugal.
[7] Gombrich, «Art and Illusion», 88. 
[8] Roland Barthes, “Myth Today,” in «Mythologies», traduzido e editado por Annette Lavers (Nova Iorque: Hill and Wang, 1972), 116. Editado em Portugal pela Edições 70 em 1979, com tradução e prefácio de José Augusto Seabra.

in «Hollywood from Vietnam to Reagan», Columbia University Press, Nova Iorque, 1986.