quinta-feira, 20 de setembro de 2018

RAOUL WALSH


por Edmond T. Gréville

«Ele era zarolho, mas genial»

VICTOR HUGO

Em Março de 1950, tinha acabado de terminar Noose para a Warner inglesa, quando o meu amigo Gerry Blattner me informou que Raoul Walsh se preparava para rodar Captain Hornblower na Europa, e mais particularmente na Côte d'Azur.

Depois de três anos de vida em Londres, eu tinha a nostalgia do sol e desse interior agradável que, para mim, representa toda a alegria de viver. Portanto prestei ouvidos de forma egoístamente complacente a Blattner, que se queixava de não ter com ele alguém que conhecesse bem o sul da França, os técnicos franceses e os labirintos da co-produção.

Blattner ficou um bocado surpreendido por um cineasta se prestar a passar de forma tão rápida para o outro lado da câmara para se dedicar às tarefas áridas da organização. A bem dizer, o que me atraiu, foi sobretudo aproximar-me e ver trabalhar aquele que há trinta anos representava para mim um certo cinema excitante e apaixonante, o homem a quem devia tanto entusiasmo e boas noites, esse zarolho clarividente, Raoul Walsh. Objective Burma, White Heat, Colorado Territory sempre ocuparam um lugar de destaque na minha cinemateca pessoal.

Algumas semanas mais tarde, encontrava-me na presença de um sexagenário com busto de actor principal (Walsh tira de bom grado não só o casaco, mas também a camisa, para trabalhar), de cara marcada e maravilhosamente bronzeada pelo sol. Uma faixa preta através do olho ausente dava-lhe o ar de um pirata brigão. Ia descobrir em breve que as brigas eram a paixão suprema do realizador de What Price Glory (de que John Ford fez um remake). No entanto, não devia ser a única, já que estava acompanhado de uma loira «explosiva» encantadora, de pernas longas e graciosas, boca carnuda e suave, por baixo de um pequeno nariz que gostaríamos todos de pôr numa pulseira.

A Sra Walsh tinha vinte e quatro anos e fazia alguma publicidade à verdura do velho e simpático flibusteiro.

Era preciso vê-lo, no dia em que recebeu a fragata cuja construção eu tinha «supervisionado» nos canteiros de obras de Bernard Voisin, em Villefranche-sur-Mer, a escalar pelos cabos, a correr ao longo das vergas e a assobiar no posto de vigia... Eu acho que a vitalidade e o dinamismo dos filmes de Walsh vêm antes de tudo da sua grande forma física (ele ficava feliz como um rei nas cenas de tempestade, enquanto que toda a gente ficava doente). Isso confere-lhe obrigatoriamente o gosto pelas intrigas em que a acção tem precedência sobre a paixão. Daí o seu pendor pelos filmes de guerra e também pela guerra (só falava de aventuras que lhe tinham acontecido durante a guerra de 1914 e desejava apaixonadamente ir lutar contra a Rússia... Como é que conseguiu realizar um filme tão anti-militarista como Os Nus e os Mortos?). Adora fazer falar a pólvora e vive como herói de um western.

Quando o Capitão Hornblower (Gregory Peck) fazia os galanteios a Virginia Mayo por necessidades do argumento, Walsh desinteressava-se da cena, assistia a tudo com um olho aborrecido e contentava-se em dar algumas indicações esquemáticas aos seus actores. Não se entendia muito bem com Gregory Peck, que achava sério demais, e teria preferido Robert Mitchum ou Clark Gable, mais desenvoltos, mais lúdicos.

Mas se Peck tinha de chacinar alguns piratas, se os mastros se desmoronavam sob os projécteis; se fosse preciso atirar ao mar patifes que se rasgavam uns aos outros com punhais em cascatas de hemoglobina, então Walsh libertava-se, levantava-se como uma águia e multiplicava-se por dez. Encorajava os figurantes com gestos e com a voz, não hesitava em servir-se das dez palavras de francês que tinha aprendido... ou que achava ter aprendido. Foi assim que um dia gritou «Parem» convencido que isso queria dizer «Continuem»[1]. Ficou completamente boquiaberto ao ver os combatentes a suspender as suas acções e perguntou-me porque é que os meridionais eram tão indolentes...

Como muitos grandes cineastas, Raoul Walsh exibe uma certa predilecção pelo sadismo. Tinha imenso prazer em amontoar areia com as próprias mãos em torno de «mexicanos» (nativos de Bornes-les-Mimosas) que tinham de ser enterrados vivos, e amarrou ele próprio os pés de um torturado, pendurado de cabeça para baixo. Não era raro tirar o pincel das mãos do maquilhador para desenhar ele mesmo as cicatrizes, e fazer gotejar o sangue dos membros feridos.

Nas noites de batalha, Walsh tinha sono; a mulher dele anunciava em vão a sua vontade de ir dançar. Mas de manhã, dormia enquanto Walsh estava no terraço, entregue às alegrias de tirar o fôlego da cultura física à frente desse Mediterrâneo que o maravilhava a ele, o apaixonado do Pacífico.

Alguns realizadores franceses orgulham-se de ter aprendido tudo sobre o cinema num quarto de hora. Pela minha parte, eis trinta e cinco anos em que descubro nele mistérios e segredos desconhecidos todos os dias.

Aprendi uma grande lição ao lado de Walsh. Até aí era partidário de uma composição precisa da imagem. Realizar, era dispor cada actor e cada figurante como um peão, fazendo-os interpretar de uma forma precisa, comandando cada um dos seus movimentos e dos seus gestos. Três quartos dos realizadores franceses fazem o mesmo.

Ora, Walsh atira-os literalmente para a imagem, numa confusão inaudita, de preferência sem repetições. Conta com o instinto, com a espontaneidade das reacções humanas: «Se dermos em cima deles, vão ser mesmo forçados a defenderem-se» proclamava ele. E, de repente, improvisava um movimento de câmara, uma panorâmica, um enquadramento. Os operadores de câmara e os directores de fotografia caíam como moscas e foi Guy Green quem conseguiu terminar sozinho as filmagens. As cenas rodadas desta maneira terão erros, imperfeições? Walsh não recomeça. Prefere rodar planos de continuidade que permitam eliminar os pedaços duvidosos na montagem e conservar a frescura inicial da acção. De qualquer forma, ele «via» a maneira como ia montar uma sequência enquanto a filmava.

Nunca recomeça mais de duas ou três vezes, achando que para lá disso o actor se torna um mecânico e a sua interpretação estereotipada.

Esta mise en scène «instintiva», intuitiva e intencionalmente sem método, só é válida para filmes de acção, dir-me-ão vocês, e não para sequências intimistas em que tudo é psicologia e atmosfera... Realmente...

Já disse que Walsh tem um certo desprezo por esse género de cinema. Com ele, mesmo o amor tem de ser acção, o que confere sensualidade a um bom número das suas realizações. Sensualidade e indecência: beija-se com a boca toda, devora-se com os olhos a mulher que se deseja, faz-se amor com paixão. Ele evita as cenas sentimentais ou, se o argumento as tiver, prefere deixar os actores entregues a si próprios. Isto é sem dúvida uma reacção de cineasta americano que tem a sorte de ter Burt Lancasters e Clark Gables à sua disposição. Com os nossos actores (?), era outra história...

Seja como for, não julguemos Walsh pelas suas «teorias» (ele nega tê-las), mas pelos seus filmes.

Há quarenta anos que isto dura e que este zarolho nos enche a vista. Daqui a trinta anos será centenário e eu aposto que, desembarcando de um foguete, ainda vai rodar westerns estratosféricos gritando «Parem» em marciano para que os habitantes de Vénus cortem os de Plutão aos bocados, ou para que uma cow-girl lunar se faça violar por um gangster qualquer da via láctea.

in «Présence du Cinéma» nº 13,  Maio de 1962, pp. 8-10.

[1] «Arrêtez» e «Allez-y» no original.

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