segunda-feira, 30 de junho de 2025

A Surrupiar — Robin Wood sobre The Missouri Breaks


The Missouri Breaks levanta com particular vivacidade os problemas de se discutir a autoria no cinema comercial americano. É realizado por Arthur Penn, que tem por hábito assumir projectos aparentemente heterogéneos, geralmente numa fase tardia da elaboração do guião (The Chase, Bonnie e Clyde), e convertê-los, apenas com uma alteração estrutural mínima, em marcos num desenvolvimento incrivelmente consistente. O argumento original desta vez é de Thomas McGuane, e nas suas linhas gerais segue de muitíssimo perto o do recente Rancho Deluxe (1975), também escrito por McGuane mas realizado por Frank Perry. Além disto, o filme deve ser visto no contexto da evolução global do western, do cinema de Hollywood, e da civilização americana—do processo social/cultural/ideológico em que a obra individual e os artistas individuais estão envolvidos. 

As semelhanças de enredo entre os dois filmes podem ser indicadas rapidamente; ajudam a salientar as diferenças. O conflito primário em ambos é entre um barão do gado e um grupo de ladrões. Em ambos, os ladrões tentam enganar o rancheiro instalando-se a si próprios mesmo debaixo do seu nariz (em Rancho Deluxe recrutando dois dos seus homens e em The Missouri Breaks comprando um rancho contíguo). Depois de uma afronta em particular (o rapto de um touro premiado para resgate, o homicídio por vingança de um capataz), o rancheiro traz um especialista reconhecido—no filme de Perry um “detective de gado” (Slim Pickens) e no de Penn um “Regulador” (Marlon Brando). Desenvolve-se um triplo conflito à medida que as tentativas pelos ladrões de gado e pelo especialista em se superarem uns aos outros são acompanhadas pela tensão crescente entre o especialista e o rancheiro. Em ambos os casos, o especialista parece ser ou ocioso ou incompetente e antagoniza o seu empregador com a sua arrogância; em ambos, quando o conflito irrompe, o especialista expressa a sua indiferença em relação ao salário mas insiste em levar o seu trabalho até ao fim, como uma questão de orgulho pessoal e profissional. 

A característica geral comum mais saliente dos dois guiões é a tendência de McGuane para conceber cada episódio em termos de uma ideia deliberadamente nova ou excêntrica. Perry, cujo trabalho anterior (e.g., Diary of a Mad Housewife, 1970) tem sido consistentemente vulgar, fácil e oportunista, executa Rancho Deluxe precisamente a esse nível. Cada cena se desenrola pela sua gracinha potencial, e o filme não gera qualquer tensão moral ou qualquer ressonância: os ladrões de gado são jovens amigáveis, o detective um velho encantadoramente engenhoso, e o filme não tem ambições para lá do divertimento casual. O argumento de The Missouri Breaks é mais sério por si mesmo (o filme abre com um enforcamento e culmina numa série de mortes violentas; ninguém morre em Rancho Deluxe para perturbar o tom predominantemente cómico); o grau pelo qual Penn se infiltrou e tornou seu aquilo que é claramente um padrão estrutural de McGuane permanece notável. 

A tensão central na obra de Penn sempre foi a que existe entre o impulso e o controlo: uma tensão central à condição humana, pode-se argumentar, mas Penn sempre a investiu de uma intensidade particular e, nos primeiros filmes, de um equilíbrio preciso de afinidades (a oposição Billy the Kid/Pat Garrett de The Left Handed Gun, o casamento do instinto e da razão em Annie Sullivan em O Milagre de Anne Sullivan, a valorização equitativa de Bubber Reeves e do xerife Calder em The Chase). The Chase (nas palavras de Penn, “mais um filme de Hollywood do que um filme de Penn”) marca um ponto de viragem tanto na sua obra como no desenvolvimento do cinema americano: um dos primeiros filmes “apocalípticos” de Hollywood, apresenta a desintegração da sociedade capitalista americana como irrevogável. Daí em diante, Penn tem-se movido consistentemente pelas margens da sociedade estabelecida para procurar grupos alternativos (e sempre extremamente vulneráveis) que encarnem valores de liberdade, generosidade, espontaneidade, uma capacidade de resposta humana mútua: o bando Barrow de Bonnie e Clyde, a comunidade hippie de Alice’s Restaurant, os Cheyenne de O Pequeno Grande Homem, os ladrões de gado de The Missouri Breaks

Esta mudança de ênfase foi acompanhada por uma mudança de atitude correspondente em relação às figuras que encarnam a consciência e o controlo e dedicadas à preservação da ordem estabelecida. A última destas personagens a ser apresentada de forma empática num filme de Penn foi o Calder de Brando em The Chase; é particularmente ajustado que a prorrogação desta relação afortunada entre actor e realizador coloque Brando praticamente na mesma posição dentro da estrutura simbólica de Penn mas visto agora de forma inequívoca como um monstro. 

No entanto, seria errado ver este desenvolvimento exclusivamente em termos pessoais. Os últimos três filmes de Penn preocuparam-se todos em inverter os mitos centrais de Hollywood: o papel da cavalaria como justos defensores da civilização e agentes do Destino Manifesto (O Pequeno Grande Homem), o detective privado infalível moral e profissionalmente a dar luzes sobre as sombras da selva urbana (Night Moves), o pistoleiro como paladino heróico da lei e da ordem (The Missouri Breaks). A tendência (que não se limita de forma alguma a Penn—pense-se, entre muitos outros, nos filmes de Robert Altman) deve-se ver menos como o desejo de dizer finalmente “a verdade” e mais como um reflexo de alterações significativas nos valores americanos e na consciência nacional. 

The Missouri Breaks apresenta uma revisão concisa do mito do western do desenvolvimento da civilização americana: o rancheiro Braxton trouxe milhares de cabeças de gado e centenas de volumes de literatura inglesa para a natureza selvagem, junto com os valores civilizados do lar, família, lei e ordem. É-nos contado que a sua mulher, depois de três anos de “pesar cada palavra,” partiu com “o primeiro homem insensato que conseguiu encontrar.” O enforcamento que abre o filme marca o momento em que a lei e a ordem se endurecem em repressão; depois disso, Tom Logan (Jack Nicholson), líder dos ladrões de gado, sente “algo novo no ar.” Esse “algo novo” depressa assume a forma corpórea de Robert E. Lee Clayton, o regulador contratado. 

Clayton é uma criação extraordinária. Entre os três, Penn, McGuane e Brando levaram à sua conclusão lógica, ao seu reductio ad absurdum, a figura mítica do herói solitário da natureza selvagem, defensor da civilização, rectificador de injustiças. De Hopalong Cassidy a Shane, esta figura tem de ser desapegada, sobretudo em relação às mulheres e aos grilhões do lar, psicologicamente inexplicado e inexplicável, superior e carismático. Clayton, super-humano e sub-humano ao mesmo tempo, não tem identidade—apenas uma sucessão de roupas extravagantes e uma série de sotaques. A “única mulher que alguma vez amou” é a sua égua (que, de modo apropriado, urina durante a sua canção de amor para ela à harmónica). A definição de Tom Logan de um regulador é “alguém que mata pessoas e nunca se aproxima delas.” Clayton estabelece a sua distância da humanidade em todos os pontos, recusando qualquer contacto pessoal: a sua primeira aparição insólita de baixo do pescoço de um cavalo é imediatamente seguida pela sua exibição teatral sobre o caixão do capataz. O seu domínio depende da distância: os seus binóculos e a sua espingarda Creedmore que consegue matar a quinhentas jardas[1]—daí o cabimento da sua morte, consigo e com Logan em espaço confinado, filmados em extremo grande plano. 

Cada uma das suas matanças enfatiza a sua própria omnipotência distante e a vulnerabilidade humana das suas vítimas: uma abatida durante a cópula, uma enquanto defeca, etc. Ambos castrados (“nem sequer estás aí,” diz Logan, a espreitar para a espuma do banho de Clayton) e castradores, ele próprio termina (na grande tradição dos monstros do ecrã) vulnerável e patético mesmo continuando detestável. Em contraste com ele colocam-se, com uma hesitação comovente, como a vida contra a morte, as tentativas de Tom Logan em inventar por si próprio a jardinagem—o seu orgulho em salvar macieiras de pragas e em conceber um sistema primitivo de irrigação: uma façanha criativa simples que, para Clayton, “não vale um cuspo.”

[1] 457 metros. [N.d.t]

in «Times Educational Supplement», 23 de Julho de 1976.

terça-feira, 3 de junho de 2025

FUGA DAL BRONX (1983)


Os estúdios da Cinecittà foram inaugurados a 21 de Abril de 1937, depois de dois anos de obras sobre uma área de 600.000 metros quadrados ao longo da via Tuscolana, a nove quilómetros da cidade de Roma. Com 73 edifícios, entre os quais vinte e um estúdios fechados de várias dimensões, dezenas de escritórios e centrais eléctricas, augurou-se que seria “il gioiello che tutta l'Europa invidierà”. Ainda nos anos 30 e 40, serviu de cenário para os grandes épicos de Carmine Gallone, Guido Brignone, Alessandro Blassetti e Riccardo Freda. Apropriada pelos nazis como campo de detenção durante a Segunda Guerra Mundial, saqueada, atacada e bombardeada, operou depois como campo de refugiados durante dois anos, albergando três mil pessoas de várias nacionalidades, sendo então reconstruída pelos americanos e transformando-se na “Hollywood sobre o Tibre,” onde se rodaram épicos como Quo-Vadis, Ben-Hur ou A Queda do Império Romano, mas também comédias como A Pantera Cor-de-Rosa ou Férias em Roma e até filmes sobre o próprio cinema como A Condessa Descalça, de Joseph L. Mankiewicz, e Two Weeks in Another Town de Vincente Minnelli. Entre muitos outros. 
 
“A viagem parece-me muito longa,” escreveu Enzo Girolami Castellari na sua recente e preciosa auto-biografia[1] sobre a primeira visita com o pai aos míticos estúdios da cidade de Roma nos anos quarenta. “Com o comboio suburbano, que se apanha quase ao amanhecer em San Giovanni, chega-se ao campo latino: extensões verdes e os arcos do aqueduto romano que as atravessam; mais ruínas cobertas de trepadeiras. Uma viagem extraordinária. Há muitos balões no céu, um sistema antiaéreo, explica-me o papá. Ao chegar à última estação, em pleno campo, surgem os muros que rodeiam um grande terreno, no qual se vêem pavilhões enormes a sobressair. A porta parece-me colossal, com um gigantesco letreiro: CINECITTÀ.” 
 
Enzo G. Castellari nasceu um ano depois de se inaugurarem os estúdios da Cinecittà, mas cresceu dentro das suas instalações e acompanhou parte muito significativa da história do cinema italiano enquanto se fazia. Filho de Marino Girolami, pugilista tornado cineasta que realizou 78 filmes entre 1950 e 1982, sobrinho de Romolo Guerrieri, que quando fazia westerns assinava Rod Gilbert, Castellari conheceu a mulher, Mirella Casini, nas salas de montagem da cidade do cinema e aprendeu tudo sobre o ofício daquela que devia ser a única maneira. Trabalhando, começando como figurante, passando a actor e a duplo, aderecista, faz-tudo, assistente dos assistentes, assistente de realizador e por fim realizador de cinema, com uma noção perfeitamente abrangente de todo o processo. Em 1966, aos vinte e oito anos, teve finalmente a sua oportunidade como assistente de León Klimovsky, realizando não creditado a maior parte de Poucos Dólares para Django
 
A sorte favorece os audazes, escreveu Virgílio. Outro italiano. Quando as coisas não estão a funcionar, quando os problemas se vão acumulando a cada hora que passa e alguém apresenta com sucesso uma solução informada apenas com as ferramentas de trabalho à sua disposição, poupando tempo e dinheiro a toda a gente, o mais provável é começar a ser ouvido. Para Acaba Com Eles e Volta Só, de 1968, o actor principal do filme, Chuck Connors, estava magoado, não conseguia andar a cavalo e comunicou isso a Castellari. “Chuck, não te preocupes,” disse-lhe o realizador. “Eu preciso da tua cara, das tuas expressões, das tuas frases, dos teus rasgos, da tua presença, da tua actuação... Deixemos a parte física para o duplo...” E com uns ângulos de câmara e uma montagem altamente inventivos, no ecrã, podíamos jurar que nada disto tinha acontecido. 
 
Foi também nesse filme de 1968 que conheceu o mago espanhol dos efeitos especiais e das miniaturas Emilio Ruiz Del Río[2], que para o filme seguinte do cineasta italiano, La battaglia d'Inghilterra, materializou a batalha de Dunkerque e os destroços e os bombardeamentos com uma miríade de maquetas, miniaturas, vidros pintados e bonecos animados dispostos à frente da câmara e iluminados de forma a criar grandes ilusões de óptica. O talento de Ruiz Del Río, que trabalhou em centenas de filmes em todo o mundo, de As Legiões de Cleópatra a Conan, o Bárbaro, para mencionar apenas um par deles, foi determinante também em Quel Maledetto Treno Blindato, com os aviões que se vêem do buraco no telhado na barraca em que o pelotão de Bo Svenson se refugia e na cena final do filme, uma combinação muito engenhosa de miniaturas e modelos reais, que envolveu ainda um descarrilamento com uma locomotiva inclinada, efeito conseguido com a inclinação do cenário e da câmara para o lado esquerdo, inspiração de última hora do realizador. 

Na rodagem de La polizia incrimina la legge assolve, de 1973, Castellari, o actor principal Franco Nero e o chefe de produção Antonio Mazza tiveram de reunir com Don Vincenzo «Pummarola», conhecido como “il capo” de Génova e segundo Castellari uma das inspirações para o Vito Corleone de Marlon Brando, para conseguir filmar no bairro de Prè, na zona portuária da cidade. Ele ofereceu-lhes os meios e a segurança necessários, desde que garantissem que a polícia não aparecia no bairro. O filme abre com dez minutos de perseguição frenética primeiro a pé por ruelas e depois de automóvel por túneis e pela auto-estrada, com música dos irmãos De Angelis, contando ainda com outra sequência, totalmente louca, sob plataformas num cais, em que um grupo de homens luta com ganchos e se perseguem quase agachados por pequenos barcos e tábuas de suporte em suporte, intercalada com planos dos reflexos deles na água e de uma velocidade e de uma elegância estonteantes. Um prodígio de encenação, um prodígio de montagem. 

Entre meados e finais dos anos setenta, praticamente só os americanos e Fellini é que filmavam na Cinecittà, e os americanos com muito menos regularidade. A televisão e a publicidade começaram a invadir os estúdios praticando preços com que o cinema não podia competir e os produtores italianos procuraram alternativas mais baratas em Itália ou noutros países. A partir desses anos, Castellari filmou dentro dos estúdios apenas numa barraca abandonada para Quel Maledetto Treno Blindato e, já nos anos oitenta, nos restos de um cenário de O Nome da Rosa para uma série de televisão que nem sequer era realizada por ele. As ruínas e os escombros, as fábricas abandonadas e os destroços que tinha sempre preferido e que tinha usado em tantos filmes, transformavam-se agora em realidade, até já se usavam máquinas de nevoeiro para disfarçar o estado decrépito de alguns dos cenários, quase que como achados arqueológicos da queda de um novo império ao lado das ruínas com milhares de anos do outro império. O género que tinha ajudado a construir em Almería, deixava de interessar ao público, depois de centenas de westerns, westerns zapata, paródias e outras derivações, mas o cineasta ainda aí viu um pôr-do-sol para onde ir a cavalo e fez Keoma, uma alegoria para o fim dos tempos, uma elegia não só do western mas de toda uma indústria e de um modo de fazer cinema encarnados nesse Cristo índio interpretado por Franco Nero, que sofre e acaba por fazer sofrer os outros apenas por querer um lugar ao sol. 

Enzo G. Castellari trabalhou com Gilbert Roland, Van Johnson, Fernando Rey, Vittorio De Sica, Philippe Leroy, Jack Palance, Franco Nero, Sterling Heyden, Martin Balsam, Michael Sarrazin, Ursula Andress, Fabio Testi, William Berger, Woody Strode, David Hemmings, Fred Williamson, Vic Morrow, Christopher Connelly, Henry Silva, Dionne Warwick, Kabir Bedi, Giuliano Gemma, Vittorio Gassman e Claudia Cardinale. Mas é alguém que nos voltou a lembrar, como Roger Corman, que é preferível produzir cem filmes de um milhão de dólares do que um filme de cem milhões de dólares, que é possível fazer imenso quase sem nada, que é possível fazer grandes filmes com pouquíssimo dinheiro, que é até possível fazer imenso dinheiro nestes termos e abalar o status quo que prefere que pensemos que se tem de gastar rios e rios de dólares para se criar produtos de qualidade. E que há uma elite bem paga e bem instruída para fazer isso tudo por nós. E pagou o preço com uma acção injustíssima em tribunal pela justiça do capitalismo dos Estados Unidos da América. Provavelmente não queriam que se soubesse que é possível fazer cinema só com espelhos, janelas partidas, frechas das portas, das escadas e das paredes, corrimões, grades, cercas, crachás baleados, chamas de velas, vinho derramado sobre a mesa, caixotes, portas que abanam ao vento, pernas, caras, olhos ou os cinco dedos de uma mão. 

1990: I guerrieri del Bronx foi proposto a Castellari pelo produtor, realizador e argumentista Fabrizio De Angelis, responsável pela Fulvia Film[3]. Ambientado numa Nova Iorque do futuro, em que o bairro do Bronx é disputado por gangues como os Riders, os Skaters, os Zombies, os Tigers ou os Scavengers, descreve a fuga de Ann (interpretada pela filha de Enzo, Stefania Girolami), filha do presidente da Manhattan Corporation (interpretado por Castellari), para o Bronx, onde é salva por Trash (Marco De Gregorio, a.k.a. Mark Gregory, um desconhecido encontrado pelo realizador no ginásio que frequentava), o líder dos Riders. A Manhattan Corporation contrata o mercenário Hammer (Vic Morrow) para a resgatar, mas ele parece mais interessado em limpar totalmente o Bronx, virando ainda os gangues uns contra os outros. Depois de tentar unir todos os líderes contra o exército de Hammer, Trash não consegue evitar o massacre nem a morte de Ann, vingando-se de tudo e de todos acorrentando Hammer à sua mota e arrastando-o pelo asfalto até ser congelado em freeze frame. E assim os deixamos. 

Tal como o primeiro filme, Fuga dal Bronx foi rodado entre a Itália e os Estados Unidos. Castellari pôde contar com grande parte dos seus colaboradores preferidos, como Tito Carpi no argumento, Gianfranco Amicucci na montagem, Francesco De Masi na banda-sonora e Giancarlo Prete (a.k.a. Timothy Brent), o irmão Enio Girolami (a.k.a. Thomas Moore) e o primo Massimo Vanni como actores, reservando para si próprio o papel de operador de rádio, qual disc jockey que troca as cenas e comanda as operações. Mark Gregory regressa para o papel de Trash, que desta feita luta com muito menos aliados contra as forças da General Construction Corporation enquanto esta incumbe Floyd Wangler (grande, grande Henry Silva, secundário de Budd Boetticher, Henry King e Jim Jarmusch) de despejar por todos os meios ao seu alcance os habitantes do Bronx. “Goddamn hard to kill,” como diz sobre eles o próprio Wangler. Punks, metaleiros, grafiteiros, skaters, motards, desordeiros, ogres, tigres, guerreiros, príncipes e princesas de biqueiras de aço e casacos de cabedal que se recusam a viver como a sociedade quer que vivam. 

Fuga dal Bronx não pára por um momento desde que ouvimos os “You are ordered to leave the Bronx. I repeat, you are ordered to leave the Bronx” da personagem de Castellari. Encadeado praticamente a uma ideia por segundo, o que equipara a urgência da rodagem à urgência da missão das personagens, mostra-nos entre muitas outras coisas um helicóptero a tentar encurralar o Trash de Mark Gregory que se refugia em condutas e é recortado por elas nos enquadramentos, uma escada que balança por cima dele depois de um desabamento e é explorada sob vários planos e pontos de vista de forma altamente imaginativa, cortes de Itália para os Estados Unidos e dos Estados Unidos para Itália como se de um só cenário se tratasse, conversas a três em que todos se movem e a câmara os enquadra e re-enquadra a cada passo do caminho, panorâmicas e travellings de presas para caçadores que no fim dos planos se transformam também em presas, explosões em que homens fardados com fatos espaciais brancos voam em câmara lenta entre o fumo e o fogo e caem de braços abertos e contorcidos do alto de prédios, gestos com as mãos de miúdos e graúdos que anunciam essas detonações, a morte do presidente que vendeu a morte e o genocídio por progresso num plano que se afasta do seu rosto para revelar o seu assassino entre os escombros, um bailado final em câmara lenta já nos limites do absurdo que transforma a violência em modo de vida e que mais uma vez só pode ser interrompido por um freeze frame. Ilhas, descampados, esgotos, edifícios abandonados e em ruínas, obstáculos e refúgios para os três sobreviventes que se despedem tão rápido como se conheceram, com gestos e olhares decididos mas enigmáticos, deixando Trash entre o ferro e o fogo amansados, dificilmente pronto para outra aventura.

[1] «Il bianco spara», Bloodbuster, Milão, 2016. Publicado em Espanha com o título «El cineasta se rebela» pela Applehead Team Creaciones, Benalmádena, Málaga, em 2023 (tradução de Santiago Alonso). Todas as citações de Castellari e quase toda a informação neste texto vêm desta fonte.
[2] Veja-se o filme El último truco, de Sigfrid Monleón, em que se mostra o trabalho deste artesão fabuloso que trabalhou nas grandes produções de Hollywood em Itália e com realizadores como Manuel Mur Oti, Michael Powell, Vittorio Cottafavi, Sergio Leone, David Lean, Robert Siodmak, Luis Buñuel, John Milius ou Richard Fleischer.
[3] A Fulvia Film foi uma produtora italiana activa entre o final dos anos setenta e o início dos anos noventa. Além de produzir três filmes de Castellari, 1990: I guerrieri del Bronx (1982), I nuovi barbari (1983) e Fuga dal Bronx (1983), também permitiu a Lucio Fulci realizar a sua obra-prima, …E tu vivrai nel terrore! L'aldilà (1981), e alguns dos seus melhores trabalhos, como A Casa do Cemitério (1981), O Estripador de Nova Iorque (1982) e Manhattan Baby (1982).


texto escrito para o catálogo dos Encontros de Cinema do Fundão de 2025. [belíssima edição com filmes de Pedro Ruivo, Gus Van Sant, H.C. Potter, Enzo G. Castellari, Pablo García Canga, Mikio Naruse e Alejandro Pereyra. Por pior que os tempos estejam, há sempre alguém pronto a enfrentá-los e a revertê-los com coragem, paixão e entusiasmo. "One for the ages."]