The Missouri Breaks levanta com particular vivacidade os problemas de se discutir a autoria no cinema comercial americano. É realizado por Arthur Penn, que tem por hábito assumir projectos aparentemente heterogéneos, geralmente numa fase tardia da elaboração do guião (The Chase, Bonnie e Clyde), e convertê-los, apenas com uma alteração estrutural mínima, em marcos num desenvolvimento incrivelmente consistente. O argumento original desta vez é de Thomas McGuane, e nas suas linhas gerais segue de muitíssimo perto o do recente Rancho Deluxe (1975), também escrito por McGuane mas realizado por Frank Perry. Além disto, o filme deve ser visto no contexto da evolução global do western, do cinema de Hollywood, e da civilização americana—do processo social/cultural/ideológico em que a obra individual e os artistas individuais estão envolvidos.
As semelhanças de enredo entre os dois filmes podem ser indicadas rapidamente; ajudam a salientar as diferenças. O conflito primário em ambos é entre um barão do gado e um grupo de ladrões. Em ambos, os ladrões tentam enganar o rancheiro instalando-se a si próprios mesmo debaixo do seu nariz (em Rancho Deluxe recrutando dois dos seus homens e em The Missouri Breaks comprando um rancho contíguo). Depois de uma afronta em particular (o rapto de um touro premiado para resgate, o homicídio por vingança de um capataz), o rancheiro traz um especialista reconhecido—no filme de Perry um “detective de gado” (Slim Pickens) e no de Penn um “Regulador” (Marlon Brando). Desenvolve-se um triplo conflito à medida que as tentativas pelos ladrões de gado e pelo especialista em se superarem uns aos outros são acompanhadas pela tensão crescente entre o especialista e o rancheiro. Em ambos os casos, o especialista parece ser ou ocioso ou incompetente e antagoniza o seu empregador com a sua arrogância; em ambos, quando o conflito irrompe, o especialista expressa a sua indiferença em relação ao salário mas insiste em levar o seu trabalho até ao fim, como uma questão de orgulho pessoal e profissional.
A característica geral comum mais saliente dos dois guiões é a tendência de McGuane para conceber cada episódio em termos de uma ideia deliberadamente nova ou excêntrica. Perry, cujo trabalho anterior (e.g., Diary of a Mad Housewife, 1970) tem sido consistentemente vulgar, fácil e oportunista, executa Rancho Deluxe precisamente a esse nível. Cada cena se desenrola pela sua gracinha potencial, e o filme não gera qualquer tensão moral ou qualquer ressonância: os ladrões de gado são jovens amigáveis, o detective um velho encantadoramente engenhoso, e o filme não tem ambições para lá do divertimento casual. O argumento de The Missouri Breaks é mais sério por si mesmo (o filme abre com um enforcamento e culmina numa série de mortes violentas; ninguém morre em Rancho Deluxe para perturbar o tom predominantemente cómico); o grau pelo qual Penn se infiltrou e tornou seu aquilo que é claramente um padrão estrutural de McGuane permanece notável.
A tensão central na obra de Penn sempre foi a que existe entre o impulso e o controlo: uma tensão central à condição humana, pode-se argumentar, mas Penn sempre a investiu de uma intensidade particular e, nos primeiros filmes, de um equilíbrio preciso de afinidades (a oposição Billy the Kid/Pat Garrett de The Left Handed Gun, o casamento do instinto e da razão em Annie Sullivan em O Milagre de Anne Sullivan, a valorização equitativa de Bubber Reeves e do xerife Calder em The Chase). The Chase (nas palavras de Penn, “mais um filme de Hollywood do que um filme de Penn”) marca um ponto de viragem tanto na sua obra como no desenvolvimento do cinema americano: um dos primeiros filmes “apocalípticos” de Hollywood, apresenta a desintegração da sociedade capitalista americana como irrevogável. Daí em diante, Penn tem-se movido consistentemente pelas margens da sociedade estabelecida para procurar grupos alternativos (e sempre extremamente vulneráveis) que encarnem valores de liberdade, generosidade, espontaneidade, uma capacidade de resposta humana mútua: o bando Barrow de Bonnie e Clyde, a comunidade hippie de Alice’s Restaurant, os Cheyenne de O Pequeno Grande Homem, os ladrões de gado de The Missouri Breaks.
Esta mudança de ênfase foi acompanhada por uma mudança de atitude correspondente em relação às figuras que encarnam a consciência e o controlo e dedicadas à preservação da ordem estabelecida. A última destas personagens a ser apresentada de forma empática num filme de Penn foi o Calder de Brando em The Chase; é particularmente ajustado que a prorrogação desta relação afortunada entre actor e realizador coloque Brando praticamente na mesma posição dentro da estrutura simbólica de Penn mas visto agora de forma inequívoca como um monstro.
No entanto, seria errado ver este desenvolvimento exclusivamente em termos pessoais. Os últimos três filmes de Penn preocuparam-se todos em inverter os mitos centrais de Hollywood: o papel da cavalaria como justos defensores da civilização e agentes do Destino Manifesto (O Pequeno Grande Homem), o detective privado infalível moral e profissionalmente a dar luzes sobre as sombras da selva urbana (Night Moves), o pistoleiro como paladino heróico da lei e da ordem (The Missouri Breaks). A tendência (que não se limita de forma alguma a Penn—pense-se, entre muitos outros, nos filmes de Robert Altman) deve-se ver menos como o desejo de dizer finalmente “a verdade” e mais como um reflexo de alterações significativas nos valores americanos e na consciência nacional.
The Missouri Breaks apresenta uma revisão concisa do mito do western do desenvolvimento da civilização americana: o rancheiro Braxton trouxe milhares de cabeças de gado e centenas de volumes de literatura inglesa para a natureza selvagem, junto com os valores civilizados do lar, família, lei e ordem. É-nos contado que a sua mulher, depois de três anos de “pesar cada palavra,” partiu com “o primeiro homem insensato que conseguiu encontrar.” O enforcamento que abre o filme marca o momento em que a lei e a ordem se endurecem em repressão; depois disso, Tom Logan (Jack Nicholson), líder dos ladrões de gado, sente “algo novo no ar.” Esse “algo novo” depressa assume a forma corpórea de Robert E. Lee Clayton, o regulador contratado.
Clayton é uma criação extraordinária. Entre os três, Penn, McGuane e Brando levaram à sua conclusão lógica, ao seu reductio ad absurdum, a figura mítica do herói solitário da natureza selvagem, defensor da civilização, rectificador de injustiças. De Hopalong Cassidy a Shane, esta figura tem de ser desapegada, sobretudo em relação às mulheres e aos grilhões do lar, psicologicamente inexplicado e inexplicável, superior e carismático. Clayton, super-humano e sub-humano ao mesmo tempo, não tem identidade—apenas uma sucessão de roupas extravagantes e uma série de sotaques. A “única mulher que alguma vez amou” é a sua égua (que, de modo apropriado, urina durante a sua canção de amor para ela à harmónica). A definição de Tom Logan de um regulador é “alguém que mata pessoas e nunca se aproxima delas.” Clayton estabelece a sua distância da humanidade em todos os pontos, recusando qualquer contacto pessoal: a sua primeira aparição insólita de baixo do pescoço de um cavalo é imediatamente seguida pela sua exibição teatral sobre o caixão do capataz. O seu domínio depende da distância: os seus binóculos e a sua espingarda Creedmore que consegue matar a quinhentas jardas[1]—daí o cabimento da sua morte, consigo e com Logan em espaço confinado, filmados em extremo grande plano.
Cada uma das suas matanças enfatiza a sua própria omnipotência distante e a vulnerabilidade humana das suas vítimas: uma abatida durante a cópula, uma enquanto defeca, etc. Ambos castrados (“nem sequer estás aí,” diz Logan, a espreitar para a espuma do banho de Clayton) e castradores, ele próprio termina (na grande tradição dos monstros do ecrã) vulnerável e patético mesmo continuando detestável. Em contraste com ele colocam-se, com uma hesitação comovente, como a vida contra a morte, as tentativas de Tom Logan em inventar por si próprio a jardinagem—o seu orgulho em salvar macieiras de pragas e em conceber um sistema primitivo de irrigação: uma façanha criativa simples que, para Clayton, “não vale um cuspo.”
[1] 457 metros. [N.d.t]
in «Times Educational Supplement», 23 de Julho de 1976.