terça-feira, 13 de maio de 2025

1990: I GUERRIERI DEL BRONX (1982)


Como é bom regressar aos filmes com mais títulos que planos, aos contratos assinados em guardanapos, às filmagens à socapa nos Estados Unidos, aos processos judiciais por direitos de autor, à exploração exaustiva e enciclopédica dos géneros, aos actores e realizadores com pseudónimos, às triplas ou quádruplas filmagens paralelas, às bandas-sonoras mirabolantes e belíssimas de Francesco De Masi, dos irmãos De Angelis ou de Riz Ortolani e à terra de ninguém e aos destroços onde os “Bastards are a race apart, goddamn hard to kill…”, como diz Henry Silva na sequela deste 1990: i guerrieri del Bronx, Fuga dal Bronx
 
O género diz-se ser o postatomico, a que Castellari regressou com I Nuovi Barbari, feito entre os dois filmes do Bronx, mas que também viu exemplares feitos por Lucio Fulci, Sergio Martino, Joe D'Amato, entre outros. Mas para Castellari, foi só uma desculpa para fazer mais westerns, como antes tinha sido o poliziottesco (“O western é belíssimo por ser simples: há bons e maus, heróis e vilões. Espaços abertos e cavalos. Depois, basta trocar os cavalos pelo Alfa Romeo Giulia e tem-se o poliziottesco”, nas palavras do próprio[1]). E foi ele quem melhor os fez. 
 
Desde muito novo que Enzo Girolami Castellari está ligado ao cinema, através do pai, Marino Girolami. Como explica numa entrevista concedida nos anos 90 a Peter Blumenstock e Christian Kessler[2], "mesmo no começo, era actor. Só tinha 5 ou 6 anos na altura. Sempre que estava de férias da escola, envolvia-me em produções de filmes. Foi um tempo maravilhoso para mim. Sempre fui muito bom em desporto portanto mais tarde comecei a trabalhar como duplo em diversas produções. Como devem saber, o meu pai era um campeão europeu de boxe, portanto eu e o irmão Enio interessámo-nos por desporto desde muito novos.” 
 
“Eu fiz o trajecto habitual dos realizadores italianos,” continuava o cineasta. “Tornei-me assistente do assistente do assistente e subia a escada a cada nova produção. Quando me tornei primeiro assistente do realizador, trabalhava como director de montagem ao mesmo tempo. Era motivadíssimo e curioso por aprender tanto quanto fosse possível sobre todos os aspectos técnicos do cinema, uma vez que compreendi muito cedo que se tem que saber como um filme deve ser montado para se ser um bom realizador (...)". É então este percurso pela escada que o conduz a Poucos Dólares para Django, de que realiza algumas sequências, e Sette Winchester per un Massacro, primeiro filme realizado a solo e que marca o início da sua colaboração com o compositor Francesco De Masi. Westerns como Quella Sporca Storia nel West, elegantíssima variação sobre o Hamlet de Shakespeare, e que em Portugal, nos Estados Unidos e noutros países, se estreou precisamente com o título de “Johnny Hamlet”, título preferido pelo cineasta ao que os produtores escolheram para o lançamento em Itália em 1968. 
 
O que mais impressiona em Castellari, particularmente em Johnny Hamlet, La polizia incrimina la legge assolve, Il cittadino si ribella, Il grande racket, Keoma, Quel Maledetto Treno Blindato, os dois filmes do Bronx e o tardio Jonathan degli Orsi, é mesmo a elegância visual (há ideias belíssimas de composição e de montagem espalhadas por todos estes filmes) e o sentido económico (já dizia Allan Dwan a Peter Bogdanovich que "a arte é económica, quem quer que tenha inventado o gastar-se milhões de dólares arruinou completamente o negócio do cinema"[3]). Uma inteligência que o aproxima do Jack Arnold de O Monstro da Lagoa Negra e do Edward Ludwig de O Escorpião Negro, o primeiro postatomico, para não citar Carpenter e os suspeitos do costume. E, dando agora a palavra a Fred Williamson (que também trabalhou com Arnold nos anos setenta), falando sobre os produtores americanos[4], "eles acham que um tipo que faz filmes de baixo orçamento não pode fazer filmes de grande orçamento. Mas isso é estúpido, é exactamente ao contrário, os tipos que fazem filmes de grande orçamento é que não têm a mais pequena ideia de como se faz um filme de baixo orçamento. Se há uma cama e duas cadeiras e o guião pede uma cama e nove cadeiras, eles não sabem como fazer essa mudança. Esperam, empatam, 'Quer dizer, gastem dinheiro, tragam mais oito cadeiras, temos que ter aqui nove cadeiras'. E o realizador de baixos orçamentos diz, 'Não, hey, nós conseguimos fazer isto, trazemos aquilo para aqui, conseguimos fazer aquilo parecer ter nove cadeiras, podemos pôr aquela ali e pendurá-la aqui. E quando filmarmos naquele lado do quarto, pegamos nas mesmas duas cadeiras e pomo-las deste lado do quarto, filmamos naquela direcção e assim temos quatro cadeiras…" 
 
No primeiro filme do Bronx (como no segundo, e talvez nesse até mais, mas uma coisa de cada vez), Castellari dá uso a todo o seu talento, estendendo a acção e inscrevendo quase que uma anatomia do género em cada sequência. Porque por muito que esteja por cá para se divertir a ele e a nós, Castellari sabe mesmo como é que se monta uma cena. Inventou pelo caminho, certo, mas ia para a sala de montagem todos os dias a seguir às rodagens e tinha as coisas planeadas de antemão e por isso é que, por todos os problemas de calendários, actores ausentes, cenas filmadas alternadamente entre dois continentes, um actor principal sem grande brilho, entre muitos outros problemas, o tempo e o espaço são tão precisos nos seus filmes. Senão olhe-se para uma das primeiras cenas, quando Ann (Stefania Girolami, filha do realizador) chega a uns claustros durante a noite e é abordada pelo gangue dos Skaters, e quando vemos Trash pela primeira vez. As sombras ameaçadoras nas paredes, os raccords exemplares, a chegada dos Riders e a batalha pelos olhos de Ann. Mais uma vez, Castellari: “Tudo pode ser resolvido com saber técnico. Tem que se saber o que é uma câmara e qual vai ser a aparência da batalha depois no grande ecrã. A preparação não é sempre a mesma, mas depende de onde se põe a câmara. Também penso que o talento ajuda com certeza quando se filmam cenas de acção. Muitos realizadores têm medo destas sequências e põem a câmara no canto, simplesmente. Isso é muito aborrecido. Temos que conhecer bem o nosso trabalho, onde pôr a câmara, quando se tem que fazer um corte e, claro, tem que se pensar antes das rodagens sobre o que se quer, e não depois, na sala de montagem. Eu normalmente filmo estas cenas com duas câmaras e mudámos-lhes as posições para cada nova tomada. Leva muito tempo e é bastante difícil mas acho que é a melhor maneira de as fazer.” 
 
Logo a seguir a esta cena, vem o encontro na ponte, talvez o cume absoluto da arte de Castellari. Quando, durante a pré-produção, a equipa chegou a Nova Iorque para escolher locais para a cena, o realizador viu um homem a tocar desenfreadamente numa bateria. Quando depois foram lá filmar, não o viram e a produção, a pedido do italiano, também não o conseguiu encontrar. Por isso, pediu a alguém da equipa técnica que soubesse tocar bateria para tomar o seu lugar e, como alguém que sabe que a realidade é mais estranha que a ficção, simula aquele encontro estranhíssimo em que a bateria, imperturbável, impossível, desmesurada, acompanha e relaciona as mudanças de ângulos, pontos de vista e escalas de planos, ora fixos ora em movimento, com a maior das classes e das elegâncias. "Azione, azione, azione", equivalente italiano da máxima walshiana, "they're called motion pictures, so let's make them move". 
 
"Sim, nós tivemos um orçamento à volta de $1 Milhão, que é realmente uma grande quantidade de dinheiro para uma produção deste tipo aqui em Itália. Fabrizio De Angelis é um produtor muito interessante. Ele percebia que cenas precisavam de muito dinheiro para a coisa toda ser mais credível e interessante. Fiquei muito surpreendido. Quando pedi mais dois ou três dias de rodagens para criar uma cena especial, não houve problema absolutamente nenhum para ele. Pedi mais carros, mais motas, mais figurantes, nenhum problema. Ele compreendeu-me como realizador e estava mesmo interessado em ter um filme com bom aspecto. É mesmo um produtor incrível, formidável. (…) Infelizmente não há mais produtores como ele no negócio de cinema italiano. A profissão 'produtor' está quase a desaparecer. Hoje em dia há uns magnatas estranhos da TV a juntar dinheiro para filmes. Põem 40 por cento do orçamento no seu próprio banco, mais 40 por cento nas contas dos filhos e o resto pode ser usado para o filme. É nojento." E quem produziria hoje um filme de Enzo Girolami Castellari? A partir de meados dos anos oitenta, foi raro ele encontrar uma casa de produção que não falisse antes do final da rodagem ou que não lhe impusesse exigências impossíveis ao longo dos trabalhos, encontrando as condições ideais ou no mínimo aceitáveis apenas em Jonathan degli Orsi e na série de televisão “Detective Extralarge”, protagonizada por Bud Spencer. Acalentando sempre o sonho de um último western com Franco Nero e esperando entre o silêncio e as conversas sobre os “good old days”, por “better days”, Castellari fez segunda unidade, foi celebrado por Tarantino e escreveu uma auto-biografia em 2016. Verdadeiro cineasta de profissão que aprendeu o ofício ao trabalho, tem as memórias e deixa-nos os filmes, peças de artesanato que nos ensinam que o engenho pode vencer o capital. 
 
E fale-se ainda da última cena de I guerrieri del Bronx, em que Fred Williamson morre à Jimmy Cagney com um charuto na boca, da cavalgada e do assalto a ferro e fogo àquele castelo em ruínas, de Vic Morrow, de Christopher Connelly, das cores do filme, dos zooms, da organização competentíssima na ligação entre exteriores e interiores (que, para além de ser da ordem do formal, foi também um puzzle de produção), dos fumos, das fogueiras, das lixeiras, das poças e deste Bronx imaginado que noutros tempos não andaria muito longe do verdadeiro.

[1] in «Castellari: come nei western anch'io usavo la pistola, Tarantino mi chiama ancora maestro», Giovanni Bogani, Quotidiano Nazionale, 7 de Dezembro de 2020. Disponível em: https://www.scrignodipandora.it/intervista-a-enzo-g-castellari-regista-cult-del-cinema-italiano/ (consultado a 13 de Maio de 2025)
[2] in «Enzo G. Castellari: an interview conducted by Peter Blumenstock & Christian Kessler», European Trash Cinema, vol. 2, números 9 e 10, 1993 e 1994. As outras citações do realizador presentes neste texto são desta entrevista.
[3] in «Allan Dwan: The Last Pioneer», Peter Bogdanovich, Praeger Editions, Boulder, 1971.
[4] Numa entrevista conduzida por William Hellfire e gravada por Christian Alexander Morán para o lançamento em DVD de I guerrieri del Bronx pela distribuidora norte-americana Media Blasters em 2003. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o4sTVkDiA1I (consultado a 13 de Maio de 2025).


[Texto publicado originalmente no À Pala de Walsh, aqui, a 25 de Novembro de 2013, revisto consideravelmente este ano motivado pela vinda do maestro a Portugal, durante os Encontros de Cinema do Fundão, que se realizam entre 28 de Maio e 1 de Junho. O programa completo pode ser consultado aqui. Ronald Perrone, castellariano extraordinário, também vai estar presente. O Bruno Andrade, o Vasco Teles de Menezes e o Christofer Pallu gravaram vídeos de apresentação, aquiaqui e aqui. O José Oliveira e a Marta Ramos entrevistaram Castellari em Roma. A entrevista pode-se ler aqui.
Dedico o texto a Ted Kotcheff, falecido o mês passado. Sem que ninguém tivesse reparado, conseguiu realizar dois filmes em 2014 e 2017, na juventude da sua oitava década de vida. Num mundo ideal, já se teriam seguido o último western de Castellari e Franco Nero, "Ondas" de Manuela Serra e "Pedro Páramo" de Margarida Cordeiro. Lest we forget.]

sábado, 3 de maio de 2025

NIGHT MOVES (1975)


por Miguel Marías

O momento-chave do penúltimo filme de Arthur Penn, Night Moves (1975), tem lugar significativamente numa sala de projecção: o protagonista, o detective privado Harry Moseby (Gene Hackman), contempla, ou antes perscruta – tenso, perplexo e preocupado – duas séries de imagens confusas, desconexas, desordenadas. 
 
Por um lado, as rushes de um filme em plena rodagem; por outro, alguns planos documentais, em 16 mm., filmados por uns estudantes. Na primeira série de imagens, que ilustram uma perseguição de carros típica, com ladrões e polícias, não vemos mais senão a acção fictícia reconstruída no plateau; na segunda, uma câmara vacilante mas oportuna regista o que aconteceu nos bastidores, fora de campo da Mitchell pesada que filmava o filme de gangsters: o “acidente” que causou a morte de Delly (Melanie Griffith). Este momento é crucial em vários sentidos: em termos narrativos, marca o início do terceiro movimento do filme, aquele em que, habitualmente, as ramificações da trama convergem e se resolvem, explicando-se mutuamente num clímax final que nos permite abandonar o cinema com a sensação de que a história terminou de forma satisfatória em termos psicológicos, este instante para Harry Moseby é o de máxima desorientação, pois só aí se apercebe de que tudo o que tinha descoberto ou “resolvido” até ao momento não significa nada, sem que mesmo assim tenha conseguido aperceber-se do que raio está a acontecer à sua volta; o chão desaba-se-lhe debaixo dos pés, a sua bússola vital torna-se louca, e não tem outra saída que não lançar-se de forma cega à acção – a sua investigação, e portanto o filme de Penn, começam de novo a partir do zero, mas com dois cadáveres às costas –, o que desencadeia uma nova série de assassinatos; para o espectador, por fim, esta cena é a chave do filme – não da intriga que parece narrar, mas sim do próprio filme –, uma vez que nos insinua a forma adequada para o contemplar: de forma activa, como um detective, fazendo-nos superar o nosso desnorteamento, tomando consciência de que não é isso que, de forma trabalhosa e convencional, tentamos reconstruir – isto é, a intriga policial – o que realmente importa, mas algo muito mais próximo, mais imediato, mais para cá das aparências e muito mais próximo da nossa própria experiência quotidiana. 
 
Efectivamente, não é a trama – mero pretexto ou suporte do filme – o que nos deve interessar nem o que interessa a Penn, evidentemente, nem muito menos as pesquisas do detective Moseby, mas antes, precisamente, a investigação que Harry resiste a realizar – tirando quando, de forma casual e esporádica, o impõem as circunstâncias – sobre si próprio (a sua identidade, o pai, a profissão) e sobre as suas relações pessoais, tanto com Paula (Jennifer Warren) como sobretudo com a sua esposa, Ellen (Susan Clark). É certo que a intriga criminal não é clara o suficiente para ficar em segundo plano, como um andaime invisível, e que é demasiado obscura – ainda que, com base em algumas suposições, se possa reconstruir provisional e hipoteticamente – e aparatosa para nos desinteressarmos dela de forma tão cómoda e inconsciente como durante a projecção de À Beira do Abismo (Hawks, 1944), mas parece-me inquestionável que o filme não tem como tema a investigação de Harry sobre o que andam a tramar umas personagens que nem ele nem nós chegamos a conhecer – e que são aquilo que Hitchcock chama um MacGuffin – mas que tem como assunto (activo no filme; passivo do filme) Harry Moseby e, por extensão, o seu ambiente (Ellen, Paula, Los Angeles, os Estados Unidos em 1973), Night Moves não é, portanto, a crónica clássica de uma investigação, mas a investigação levada a cabo por Penn (não Moseby) através do filme, e para a qual nos convida a participar como espectadores. 
 
Como a maior parte dos filmes americanos verdadeiramente interessantes dos anos setenta – Pat Garrett & Billy the Kid (Sam Peckinpah, 1973), Charley Varrick (Siegel, 1973), Amor Entre Ruínas (Cukor, 1974), Mandingo (Fleischer, 1975), etc. –, Night Moves é um filme decepcionante e imperfeito, mas vivo; deliberadamente insatisfatório, mas apaixonante. Esta característica, comum a quase todo o cinema proveniente de Hollywood que ainda nos pode realmente interessar, tem os seus antecedentes em algumas das obras mais lúcidas da década anterior, tanto dos antigos mestres (Sete Mulheres, 1965, de Ford; Cortina Rasgada, 1966, e Topázio, 1969, de Hitchcock; Red Line 7000, 1965, e El Dorado, 1966, de Hawks) como dos jovens mais cépticos (sobretudo Jerry Lewis), e as suas raízes na perda de confiança no destino e no “papel” do seu próprio país que sacudiu os norte-americanos mais sensíveis através dos assassinatos de John e Robert Kennedy (aos quais se alude em Night Moves) ou Martin Luther King, da guerra do Vietname, do caso Watergate e a demissão forçada de Richard Nixon, das investigações do Senado sobre as actividades do F.B.I. e da C.I.A. O desconcerto que Night Moves produz tem muito que ver com o processo paulatino de perda de confiança em si mesmos que os americanos sofreram, e que sacudiu os fundamentos ideológicos da sua cultura. O cinema americano passou de ser assertivo a ser ambíguo, da solidez à vacilação, da satisfação à instabilidade, da epopeia à desmistificação, do espírito construtivo dos pioneiros à desconfiança e ao desmoronamento; não é, portanto, nada estranho, que as estruturas narrativas se desintegrem, nem que as imagens nítidas e precisas se tenham tornado – com a ajuda do zoom e da teleobjectiva – cada vez mais difusas e esbatidas, nem que o seu ímpeto narrativo tradicional tenha dado lugar à dispersão e à fragmentação. O espelho, deformador ou não, fez-se em pedaços, e agora os seus reflexos são forçosamente parciais e incisivos; a vitalidade e o entusiasmo cederam o seu lugar à catatonia e à taxidermia ou, no melhor dos casos, ao desespero e à angústia, à amargura e à esquizofrenia, se não a uma paranóia suicida que, em última instância, se pode revelar reconfortante (O Exorcista, Terramoto, A Torre do Inferno, The Taking of Pelham One Two Three, The Laughing Policeman, Tubarão, Skyjacked, A Aventura do Poseidon, Juggernaut, Aeoroporto 1975, etc.). Os géneros tradicionais perderam o seu centro moral, e a sua crise como imagem desejada e aceite da América (da sua historia – o musical –, etc.) desencadeou uma corrente revisionista (A Quadrilha Selvagem, Dirty Little Billy, McCabe & Mrs. Miller, The New Centurions, O Imenso Adeus, etc.) e outra, retrospectiva, que – nos seus expoentes mais sérios – procura no passado mais ou menos recente as causas dos presentes males da América, começando a duvidar que os felizes anos 50 de Eisenhower tenham sido assim tão felizes, ou que as esperanças da New Frontier de Kennedy tivessem fundamento (American Graffiti, por exemplo, as duas partes de O Padrinho, mesmo The Way We Were ou A Última Sessão). No conjunto, o cinema americano escurece, torna-se mais sombrio e a visão dos cineastas torna-se cada vez mais negra, como no pós-guerra anterior; se acrescentarmos a isso a importância que todo o tipo de investigadores está a ganhar nos Estados Unidos – desde a comissão Warren ou Mark Lane aos “canalizadores” do Watergate, ou os jornalistas que descobriram as suas actividades ilícitas, ou as comissões senatoriais que as provaram ou se encarregam de fiscalizar as investigações do F.B.I. e da C.I.A. –, não podemos estranhar o ressurgimento, pelo menos quantitativo, do film noir (para além dos já citados anteriormente, Klute, The Parallax View, Os Homens do Presidente, Chinatown, The Drowning Pool, Farewell, My Lovely, The Black Bird, Yakuza, Os Três Dias do Condor, etc.). 
 
Pois bem, o desconforto – para o espectador – de Night Moves provém da sua inscrição ambígua no género do film noir; ambígua porque, sendo deliberada e extremamente consciente (não esqueçamos que o seu argumentista é um escocês, Alan Sharp, que antes tinha escrito The Hired Hand, The Last Run, Ulzana’s Raid e Billy Two Hats) e apesar de recorrer a uma série de estruturas e convenções básicas do género – das relações rarefeitas do detective e da sua esposa à cena em que uma mulher incumbe Moseby da missão clássica de encontrar uma herdeira desaparecida; da opacidade da intriga primordial (Los Angeles) à independência solitária do investigador privado; sem que faltem, além do mais, algumas alusões a Hammett, Chandler ou Macdonald e às suas adaptações cinematográficas –, esquiva-se e nega, prescindindo dela, a própria matéria de que são feitos estes filmes de The Maltese Falcon a Chinatown, passando por À Beira do Abismo, Dead Reckoning, Somewhere in the Night, Harper ou O Imenso Adeus, ou seja, os atributos do protagonista (cfr. o meu artigo a propósito de Chinatown, em Ojo al Cine nº 3-4, pp. 58-63) e, sobretudo, o seu incessante vaguear, preferivelmente nocturno – ao qual parece aludir o título original do filme, Movimentos nocturnos, a menos que se refira à paixão de Moseby pelo xadrez, e signifique Jogadas nocturnas –, de uma testemunha para outra, de um lugar para outro, de uma hipótese para outra, de uma suspeita para outra, em busca da verdade, e apresentando-nos, de passagem, a uma série de personagens marginais ou pitorescas, uma sucessão de cenários sujos ou opulentos, algumas biografias fustigadas e secretas, uma longa viagem de carro ou a pé – por becos sórdidos e sem saída – carregado de mistério e de ameaças, de mentiras e de perigo. Porque, efectivamente, Harry Moseby já não é o durão cínico e o "olho privado" auto-suficiente da tradição, “comum mas extraordinário”, intuitivo e corajoso, inteligente e honrado, intimamente convencido da validez do código moral pelo qual se rege em qualquer momento sem pensar duas vezes. Harry é comum, mas não extraordinário; nem sequer parece cínico, nem tem grande sentido de humor, não é “relativamente pobre”, mas antes acomodado – os seus honorários subiram, trabalha com continuidade e não despreza os casos de divórcio; e a sua mulher ganha um salário, numa loja de antiguidades –; não está na fronteira difusa da legalidade, mas é um burguês, e a sua profissão para ele não é uma missão moral, mas um trabalho como outro qualquer (é um ex-jogador de futebol americano, não é um ex-polícia nem um ex-delinquente juvenil); como detective, não parece muito brilhante, nem dotado de uma intuição excessiva, ainda por cima, é um homem “perdido”, indeciso, inseguro, que não tem um código moral a que se agarrar para sobreviver sem ficar louco num mundo em decomposição, num matrimónio que se está a desintegrar; a sua vida – como a das restantes personagens, sobretudo Paula, Ellen, Delly, Arlene, Tom e Joey, as principais – carece de rumo e de objetivo, e a sua forma de viver revela incerteza, entorpecimento, desilusão e cansaço. 
 
No entanto, este exemplar precário de detective poderia ter sustentado, ainda, uma trama tradicional, seguindo os caminhos habituais e impedindo que “a ilusão de ficção” (mais pertinente aqui que a “Ilusão de realidade”, já que ninguém entra para ver um filme do género à espera de assistir a um documentário, mas sim disposto a que se narre una história interessante e misteriosa) se despedaçasse. Prova disso é que o Philip Marlowe (Elliot Gould) de O Imenso Adeus, ainda que despojado por Altman de muitos dos seus míticos atributos e convertido num extravagante Rip Van Winkle, nascido com 30 anos de atraso, permitia uma narração sem fissuras, nada descontínua, que se entrelaçava com a melhor tradição do género. Ou seja, que o filme de Altman funcionava como filme negro, enquanto que o de Penn funciona, realmente, à margem do género, aproximando-se em vez disso, curiosamente, da estrutura – mais reflexiva e introspectiva do que narrativa e descritiva – dos contes moraux de Éric Rohmer (e mais de Amor à Tarde, 1972, do que do citado A Minha Noite em Casa de Maud, 1969), o que não é nada estranho quando se sabe que, ao contrário de Moseby, Penn é um admirador de Rohmer. Mas, deixando de lado o subjectivismo objetivo (o protagonista omnipresente, seguido sempre de perto, mas de fora sem impor a sua visão redutora) que Night Moves e os “contos morais” de Rohmer partilham, bem como as relações triangulares “de ida e volta” das personagens centrais (Harry-Ellen, Ellen-Marty, Harry-Paula, Ellen-Harry), o que realmente choca no último filme de Penn, afastando-o do género que elegeu como marco e convertendo-o numa obra de difícil acesso e estreia incómoda, é a sua estrutura brutalmente elíptica e portanto descontínua que extirpa sem cerimónia as digressões que representam o atractivo, a essência e quase a razão de ser do film noir mas que, para alcançar os objectivos a que Penn se propunha, eram desnecessárias e até contraproducentes. 
 
Parece – e isto é uma hipótese de trabalho que não me interessa verificar, porque a sensação seria a mesma tanto se se confirmasse como se fosse desmentida pelo próprio Penn – como se, numa primeira fase, o autor de The Left Handed Gun tivesse rodado um filme de 4 (ou 6, ou 8) horas de duração, narrando absolutamente tudo – cada ramificação da trama, do princípio ao fim –, com todas as explicações e transições – ou seja, com a continuidade e a claridade a que o cinema americano clássico nos habituou –, e depois, na montagem definitiva, com um sentido crítico implacável e com plena consciência dos seus fins e dos meios necessários para os alcançar, tivesse cortado tudo o que não era estritamente imprescindível, tudo o que fosse imaginável ou deduzível, tudo o que fosse convencional (e, portanto, conhecido ou inferível a partir da nossa experiência como espectadores de film noir), todas as transições de tempo e de lugar (os típicos planos que mostram Harry a descer uma escada, a entrar num carro, a percorrer estradas, a tocar às portas, a tentar ultrapassar a desconfiança das pessoas que questiona, à procura de pistas, a tirar conclusões, a contar como chegou a elas, etc.), todas as cenas de exposição – de apresentação de personagens, de relações entre elas ou de lugares – ou explicativas (ou seja, meramente narrativas ou esclarecedoras mas tematicamente supérfluas ou reiterativas). 
 
O resultado final é um filme que, apesar da sua aparência e do género em cujo manto se abriga, não é narrativo, nem aspira à perfeição dos clássicos, nem à sua coerência. No final, nada se resolveu – nem o “caso”, que simplesmente se “encerrou” pelo falecimento de todos os implicados; nem as relações entre Harry e Ellen, que atravessam um período de tréguas, mas estão pendentes de esclarecimento; nem o problema de identidade do detective –, a “história” ficou por concluir (girando sem rumo sobre si mesma, como o protagonista, ferido e sozinho, a bordo do Point of View); ou seja, nada nos foi contado, nada foi narrado. Transmitiu-se-nos apenas uma série de emoções e sensações parciais, confusas, contraditórias, que nos cabe a nós tratar de reconstruir, como se fosse um puzzle, para descobrir uma imagem da instabilidade da América. O que Penn fez – coisa nada estranha num cineasta tão físico, tão sensível e tão pouco intelectualizado depois de se ter soltado com Mickey One (1965) – foi fugir do discurso explícito, das manifestações verbais, da narração alegórica – que raiou em The Chase (1966) e nalgumas cenas de Bonnie e Clyde (1967), Alice’s Restaurant (1969) e Pequeno Grande Homem (1970) –, e até mesmo, se possível, daquilo que agora se costuma chamar de “prática significante” ou “produção de sentido”, voltando-se, mais do que à nossa inteligência ou à nossa capacidade de raciocínio, aos nossos sentidos e aos nossos sentimentos, isto é, mantendo-se a um nível – mais primário, mais elementar, se preferirmos, ainda que também mais directo, mais imediato, menos interferente – puramente visceral, contando – como Fuller – com o impacto que produzem no espectador as cores, as luzes e sombras, os movimentos e gestos, os sons e a música ou o mero decurso do tempo no ecrã, para nos comunicar, sem que nos apercebamos, enquanto tentamos descobrir de forma errada – como Harry – aquilo que acontece (quando seria mais imperioso determinar aquilo que nos acontece), a sua visão desencantada da América, o colapso do American Way of Life e o desvanecimento – ou a sua transformação em pesadelo – do American Dream, do longo sonho americano de que agora, tardiamente e com má consciência, alguns americanos começam a acordar. Parece evidente que, para tal, era necessário impedir que os espectadores se agarrassem às convenções, ao mistério, ao dinamismo, ao ímpeto vitorioso, ao encanto, ao pitoresco e à mitologia do film noir ou que fossem vítimas do fascínio narrativo de um relato “total”, coerente, contínuo, absorvente, significativo. Era preciso, pelo contrário, reproduzir na mente do espectador a confusão, a perplexidade, as dúvidas, os temores, as frustrações, as suspeitas, a desorientação das personagens. Era necessário, até, fazer com que os cinéfilos reproduzissem a desilusão de Harry Moseby – e, de forma mais consciente, de Penn – com os Estados Unidos de 1973 (em relação a como eram, recorda-os ou sonhou-os noutros tempos), ainda que fosse à custa do próprio filme, isto é, através da decepção que Night Moves – ou o cinema americano de 1975 – pode representar em relação às obras-primas do género, as que se fizeram durante a idade de ouro do cinema americano. 
 
Night Moves não é – nem quer ser – uma obra-prima. Arthur Penn limita-se a construir o labirinto, sem indicar uma porta, sem sequer dizer que existe uma saída. A menos que Harry Moseby, caso sobreviva às suas feridas no carrossel marinho, e não se desmoralize por completo nem fique maluco, se decida juntar à luta sem esperanças – por vezes desesperada – dos protagonistas habituais de Penn e se transforme num outsider, um rebelde, ou pelo menos, um drop-out.


in «Ojo al cine» nº5, 1976. Recuperado aqui [aproveita-se ainda para agradecer ao Carlos Cano o trabalho fabuloso e imprescindível que tem vindo a fazer tanto nos seus blogs, Miguel Marías e Rayon de Soleil, como nas suas páginas do letterboxd e do twitter.]

«Night Moves», uma fuga para a frente


por Philippe Garnier

Toda a chocante sequência final de Night Moves (Um Lance no Escuro) ­ geralmente considerado um filme-chave dos anos sombrios que começam com Nixon -­ ocorre num barco a motor, no Golfo do México na Flórida. Mas se a personagem principal se chama Harry, e se a história pisca o olho ao final de Ter ou Não Ter de Howard Hawks, a comparação termina aí. Só o nome do barco, o Point of View, sugere que Night Moves, realizado por Arthur Penn e estreado em salas em 1975, é tanto um filme de escritor como de cineasta. Ou mais. 
 
A época era a da meta-literatura, do meta-cinema: visitava-se muito os plateaux de cinema nos romances (em Didion, Wurlitzer, Stone). Aqui, o antigo profissional de futebol americano tornado detective (Gene Hackman) tem de encontrar a jovem fugitiva Delly, que salta de duplo em duplo para ajustar contas com a mãe, uma antiga actriz sem talento da Universal. Mas Night Moves, de uma forma sugerida por uma cena em que Moseby mostra a Paula (Jennifer Warren) uma jogada de xadrez com os cavalos («knight moves»), é sobretudo a história de um detective privado que tropeça mais sobre a verdade do que a deduz, e que, ao fazê-lo, descobre mais coisas sobre a própria vida do que sobre as dos seus clientes. Metafísica diabólica, portanto, sob a capa de um policial. 
 
Grande decepção. Ficaremos surpreendidos ao ler o que pensa do filme o seu criador Alan Sharp, mas esta severidade explica em parte os momentos em que as cenas não fluem tão bem como deveriam. Sharp é uma ave rara, um romancista escocês que, no início dos anos 70, começou a escrever argumentos derivativos para Hollywood, com um sucesso de que foi o primeiro a ficar surpreendido (Billy Two Hats, The Hired Hand, A Última Fuga, Ulzana, o Perseguido)­ de filmes que o levaram a trabalhar com Nicholson, Rafelson, Aldrich, Lancaster, Peckinpah e outros. Mas Night Moves era segundo ele o melhor argumento que tinha escrito durante este período: o mais negro e o mais ambicioso. O filme é também a sua maior decepção profissional. 
 
Provocante. «Diz-se que Night Moves é mal conhecido mas na minha opinião é o contrário. Encontrou o seu público, que toma o filme generosamente por aquilo que é: provocante, bem feito, interpretado de forma soberba, com muitas coisas que não funcionam. Como se as pessoas vissem em filigrana aquilo que podíamos ou devíamos ter feito com ele. E por uma vez, este fracasso artístico é inteiramente culpa nossa; não há forma de atirar as culpas ao produtor, ao distribuidor ou ao público. Toda a gente lutava para entrar no filme, toda a gente estava motivada.» James Woods como mecânico, Melanie Griffith na flor dos seus 15 anos, por trás de um estendal como em E Deus Criou a Mulher... 
 
«Eu tive a oportunidade de reescrever com Arthur Penn durante seis meses. Pensei para comigo que uma história tão em ressonância com o país lhe iria agradar. Mas nesta fase, o Arthur precisava de um sucesso comercial. O meu guião era tudo o que ele tinha à mão e não se prestava nada a isso, porque era ainda mais negro e radicalmente deprimente do que o que fizemos no final.» 
 
Penn era demasiado artista para tomar as rédeas e fazer o próprio filme. Coisa que, comicamente, Sharp irá ao ponto de lhe reprovar. «Nunca o confrontei em relação a este assunto. O Arthur é demasiado simpático para isso. O que lhe interessava, a ele, era o casal Moseby e a mulher (Susan Clark)­ por razões pessoais, penso eu: ele estava em processo de divórcio. Enquanto que eu fazia girar tudo à volta de Paula, uma mulher do género de Claire Trevor ou Ida Lupino. O problema, é que o Arthur era demasiado perspicaz para não reconhecer que Paula era a personagem interessante. Mas não teve estômago suficiente para se livrar de Paula e fazer o filme que queria fazer, simplesmente a apagou, sem ter mais nada no seu lugar.» 
 
O centro do filme é uma longa cena de sedução, impactante e vacilante ao mesmo tempo. «Vemos apenas uma fracção dela. Era um longo monólogo sobre os Kennedy e tudo isso, como o país tinha perdido a fé em si mesmo. Essa sequência era o coração do filme, dava o tom. E o Arthur rodou-a, na Flórida, um momento grandioso; Jennifer Warren está magnífica. Mas removeu-a na montagem, a conselho dos seus comparsas, Beatty, Nicholson e Rafelson, que lhe disseram que ele ia à vida com uma cena tão no limite.» 
 
Cenas de acção impressionantes. «Ela estava no limite, mas fazia o filme. O Arthur acobardou-se. Aldrich nunca teria feito isso, mudar qualquer coisa para tornar o filme mais comercial. No entanto, entre Bob Aldrich e Arthur Penn, qual é que é considerado um artista? Não o Bob, que era mais produtor que cineasta. Mas ele teria seguido o seu instinto. O Bob não teria cedido.» 
 
A ser revisto (a Warner acaba de lançar o DVD), o trabalho de Arthur Penn nas cenas de acção continua impressionante. E Gene Hackman no final eleva a parada. As reservas de Alan Sharp são portanto, como tinha escrito sobre o barco, uma questão de ponto de vista. 
 
in «Libération», 26 de Agosto de 2005.