Como é bom regressar aos filmes com mais títulos que planos, aos contratos assinados em guardanapos, às filmagens à socapa nos Estados Unidos, aos processos judiciais por direitos de autor, à exploração exaustiva e enciclopédica dos géneros, aos actores e realizadores com pseudónimos, às triplas ou quádruplas filmagens paralelas, às bandas-sonoras mirabolantes e belíssimas de Francesco De Masi, dos irmãos De Angelis ou de Riz Ortolani e à terra de ninguém e aos destroços onde os “Bastards are a race apart, goddamn hard to kill…”, como diz Henry Silva na sequela deste 1990: i guerrieri del Bronx, Fuga dal Bronx.
O género diz-se ser o postatomico, a que Castellari regressou com I Nuovi Barbari, feito entre os dois filmes do Bronx, mas que também viu exemplares feitos por Lucio Fulci, Sergio Martino, Joe D'Amato, entre outros. Mas para Castellari, foi só uma desculpa para fazer mais westerns, como antes tinha sido o poliziottesco (“O western é belíssimo por ser simples: há bons e maus, heróis e vilões. Espaços abertos e cavalos. Depois, basta trocar os cavalos pelo Alfa Romeo Giulia e tem-se o poliziottesco”, nas palavras do próprio[1]). E foi ele quem melhor os fez.
Desde muito novo que Enzo Girolami Castellari está ligado ao cinema, através do pai, Marino Girolami. Como explica numa entrevista concedida nos anos 90 a Peter Blumenstock e Christian Kessler[2], "mesmo no começo, era actor. Só tinha 5 ou 6 anos na altura. Sempre que estava de férias da escola, envolvia-me em produções de filmes. Foi um tempo maravilhoso para mim. Sempre fui muito bom em desporto portanto mais tarde comecei a trabalhar como duplo em diversas produções. Como devem saber, o meu pai era um campeão europeu de boxe, portanto eu e o irmão Enio interessámo-nos por desporto desde muito novos.”
“Eu fiz o trajecto habitual dos realizadores italianos,” continuava o cineasta. “Tornei-me assistente do assistente do assistente e subia a escada a cada nova produção. Quando me tornei primeiro assistente do realizador, trabalhava como director de montagem ao mesmo tempo. Era motivadíssimo e curioso por aprender tanto quanto fosse possível sobre todos os aspectos técnicos do cinema, uma vez que compreendi muito cedo que se tem que saber como um filme deve ser montado para se ser um bom realizador (...)". É então este percurso pela escada que o conduz a Poucos Dólares para Django, de que realiza algumas sequências, e Sette Winchester per un Massacro, primeiro filme realizado a solo e que marca o início da sua colaboração com o compositor Francesco De Masi. Westerns como Quella Sporca Storia nel West, elegantíssima variação sobre o Hamlet de Shakespeare, e que em Portugal, nos Estados Unidos e noutros países, se estreou precisamente com o título de “Johnny Hamlet”, título preferido pelo cineasta ao que os produtores escolheram para o lançamento em Itália em 1968.
O que mais impressiona em Castellari, particularmente em Johnny Hamlet, La polizia incrimina la legge assolve, Il cittadino si ribella, Il grande racket, Keoma, Quel Maledetto Treno Blindato, os dois filmes do Bronx e o tardio Jonathan degli Orsi, é mesmo a elegância visual (há ideias belíssimas de composição e de montagem espalhadas por todos estes filmes) e o sentido económico (já dizia Allan Dwan a Peter Bogdanovich que "a arte é económica, quem quer que tenha inventado o gastar-se milhões de dólares arruinou completamente o negócio do cinema"[3]). Uma inteligência que o aproxima do Jack Arnold de O Monstro da Lagoa Negra e do Edward Ludwig de O Escorpião Negro, o primeiro postatomico, para não citar Carpenter e os suspeitos do costume. E, dando agora a palavra a Fred Williamson (que também trabalhou com Arnold nos anos setenta), falando sobre os produtores americanos[4], "eles acham que um tipo que faz filmes de baixo orçamento não pode fazer filmes de grande orçamento. Mas isso é estúpido, é exactamente ao contrário, os tipos que fazem filmes de grande orçamento é que não têm a mais pequena ideia de como se faz um filme de baixo orçamento. Se há uma cama e duas cadeiras e o guião pede uma cama e nove cadeiras, eles não sabem como fazer essa mudança. Esperam, empatam, 'Quer dizer, gastem dinheiro, tragam mais oito cadeiras, temos que ter aqui nove cadeiras'. E o realizador de baixos orçamentos diz, 'Não, hey, nós conseguimos fazer isto, trazemos aquilo para aqui, conseguimos fazer aquilo parecer ter nove cadeiras, podemos pôr aquela ali e pendurá-la aqui. E quando filmarmos naquele lado do quarto, pegamos nas mesmas duas cadeiras e pomo-las deste lado do quarto, filmamos naquela direcção e assim temos quatro cadeiras…"
No primeiro filme do Bronx (como no segundo, e talvez nesse até mais, mas uma coisa de cada vez), Castellari dá uso a todo o seu talento, estendendo a acção e inscrevendo quase que uma anatomia do género em cada sequência. Porque por muito que esteja por cá para se divertir a ele e a nós, Castellari sabe mesmo como é que se monta uma cena. Inventou pelo caminho, certo, mas ia para a sala de montagem todos os dias a seguir às rodagens e tinha as coisas planeadas de antemão e por isso é que, por todos os problemas de calendários, actores ausentes, cenas filmadas alternadamente entre dois continentes, um actor principal sem grande brilho, entre muitos outros problemas, o tempo e o espaço são tão precisos nos seus filmes. Senão olhe-se para uma das primeiras cenas, quando Ann (Stefania Girolami, filha do realizador) chega a uns claustros durante a noite e é abordada pelo gangue dos Skaters, e quando vemos Trash pela primeira vez. As sombras ameaçadoras nas paredes, os raccords exemplares, a chegada dos Riders e a batalha pelos olhos de Ann. Mais uma vez, Castellari: “Tudo pode ser resolvido com saber técnico. Tem que se saber o que é uma câmara e qual vai ser a aparência da batalha depois no grande ecrã. A preparação não é sempre a mesma, mas depende de onde se põe a câmara. Também penso que o talento ajuda com certeza quando se filmam cenas de acção. Muitos realizadores têm medo destas sequências e põem a câmara no canto, simplesmente. Isso é muito aborrecido. Temos que conhecer bem o nosso trabalho, onde pôr a câmara, quando se tem que fazer um corte e, claro, tem que se pensar antes das rodagens sobre o que se quer, e não depois, na sala de montagem. Eu normalmente filmo estas cenas com duas câmaras e mudámos-lhes as posições para cada nova tomada. Leva muito tempo e é bastante difícil mas acho que é a melhor maneira de as fazer.”
Logo a seguir a esta cena, vem o encontro na ponte, talvez o cume absoluto da arte de Castellari. Quando, durante a pré-produção, a equipa chegou a Nova Iorque para escolher locais para a cena, o realizador viu um homem a tocar desenfreadamente numa bateria. Quando depois foram lá filmar, não o viram e a produção, a pedido do italiano, também não o conseguiu encontrar. Por isso, pediu a alguém da equipa técnica que soubesse tocar bateria para tomar o seu lugar e, como alguém que sabe que a realidade é mais estranha que a ficção, simula aquele encontro estranhíssimo em que a bateria, imperturbável, impossível, desmesurada, acompanha e relaciona as mudanças de ângulos, pontos de vista e escalas de planos, ora fixos ora em movimento, com a maior das classes e das elegâncias. "Azione, azione, azione", equivalente italiano da máxima walshiana, "they're called motion pictures, so let's make them move".
"Sim, nós tivemos um orçamento à volta de $1 Milhão, que é realmente uma grande quantidade de dinheiro para uma produção deste tipo aqui em Itália. Fabrizio De Angelis é um produtor muito interessante. Ele percebia que cenas precisavam de muito dinheiro para a coisa toda ser mais credível e interessante. Fiquei muito surpreendido. Quando pedi mais dois ou três dias de rodagens para criar uma cena especial, não houve problema absolutamente nenhum para ele. Pedi mais carros, mais motas, mais figurantes, nenhum problema. Ele compreendeu-me como realizador e estava mesmo interessado em ter um filme com bom aspecto. É mesmo um produtor incrível, formidável. (…) Infelizmente não há mais produtores como ele no negócio de cinema italiano. A profissão 'produtor' está quase a desaparecer. Hoje em dia há uns magnatas estranhos da TV a juntar dinheiro para filmes. Põem 40 por cento do orçamento no seu próprio banco, mais 40 por cento nas contas dos filhos e o resto pode ser usado para o filme. É nojento." E quem produziria hoje um filme de Enzo Girolami Castellari? A partir de meados dos anos oitenta, foi raro ele encontrar uma casa de produção que não falisse antes do final da rodagem ou que não lhe impusesse exigências impossíveis ao longo dos trabalhos, encontrando as condições ideais ou no mínimo aceitáveis apenas em Jonathan degli Orsi e na série de televisão “Detective Extralarge”, protagonizada por Bud Spencer. Acalentando sempre o sonho de um último western com Franco Nero e esperando entre o silêncio e as conversas sobre os “good old days”, por “better days”, Castellari fez segunda unidade, foi celebrado por Tarantino e escreveu uma auto-biografia em 2016. Verdadeiro cineasta de profissão que aprendeu o ofício ao trabalho, tem as memórias e deixa-nos os filmes, peças de artesanato que nos ensinam que o engenho pode vencer o capital.
E fale-se ainda da última cena de I guerrieri del Bronx, em que Fred Williamson morre à Jimmy Cagney com um charuto na boca, da cavalgada e do assalto a ferro e fogo àquele castelo em ruínas, de Vic Morrow, de Christopher Connelly, das cores do filme, dos zooms, da organização competentíssima na ligação entre exteriores e interiores (que, para além de ser da ordem do formal, foi também um puzzle de produção), dos fumos, das fogueiras, das lixeiras, das poças e deste Bronx imaginado que noutros tempos não andaria muito longe do verdadeiro.
[1] in «Castellari: come nei western anch'io usavo la pistola, Tarantino mi chiama ancora maestro», Giovanni Bogani, Quotidiano Nazionale, 7 de Dezembro de 2020. Disponível em: https://www.scrignodipandora.it/intervista-a-enzo-g-castellari-regista-cult-del-cinema-italiano/ (consultado a 13 de Maio de 2025)
[2] in «Enzo G. Castellari: an interview conducted by Peter Blumenstock & Christian Kessler», European Trash Cinema, vol. 2, números 9 e 10, 1993 e 1994. As outras citações do realizador presentes neste texto são desta entrevista.
[3] in «Allan Dwan: The Last Pioneer», Peter Bogdanovich, Praeger Editions, Boulder, 1971.
[4] Numa entrevista conduzida por William Hellfire e gravada por Christian Alexander Morán para o lançamento em DVD de I guerrieri del Bronx pela distribuidora norte-americana Media Blasters em 2003. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o4sTVkDiA1I (consultado a 13 de Maio de 2025).
[Texto publicado originalmente no À Pala de Walsh, aqui, a 25 de Novembro de 2013, revisto consideravelmente este ano motivado pela vinda do maestro a Portugal, durante os Encontros de Cinema do Fundão, que se realizam entre 28 de Maio e 1 de Junho. O programa completo pode ser consultado aqui. Ronald Perrone, castellariano extraordinário, também vai estar presente. O Bruno Andrade, o Vasco Teles de Menezes e o Christofer Pallu gravaram vídeos de apresentação, aqui, aqui e aqui. O José Oliveira e a Marta Ramos entrevistaram Castellari em Roma. A entrevista pode-se ler aqui.
Dedico o texto a Ted Kotcheff, falecido o mês passado. Sem que ninguém tivesse reparado, conseguiu realizar dois filmes em 2014 e 2017, na juventude da sua oitava década de vida. Num mundo ideal, já se teriam seguido o último western de Castellari e Franco Nero, "Ondas" de Manuela Serra e "Pedro Páramo" de Margarida Cordeiro. Lest we forget.]