quinta-feira, 27 de agosto de 2020

ERROL FLYNN: GALANTERIA A TODA A SELA


por João Bénard da Costa

Dentro de um mês (mais precisamente a 14 de Outubro) fará 30 anos que Errol Flynn morreu. Há cerca de um mês (mais precisamente a 20 de Junho) fez 50 anos que Errol Flynn nasceu. E há 50 anos (o ano da guerra) Errol Flynn era, aos 30 anos, o mais popular dos astros de Hollywood. Se 1939, em termos de cinema americano, foi o ano de todos os milagres, para ninguém foi mais milagroso do que para ele. «The Perfect Specimen», como lhe chamava o título de uma das suas fitas de 1937.

Não sei se Errol Flynn foi ou não the perfect specimen. Todas as lendas, todos os relatos, lhe atribuem facetas contraditórias e nalguns casos chegam mesmo a atribuir-lhe uma personalidade sinistra. Em 1980, Charles Higham publicou um livro explosivo: Errol Flynn, the Untold Story, onde baseado em muita documentação e testemunhos ditos insuspeitos, tentou provar que o actor fora espião ou, pelo menos, agente duplo, pago pelos nazis e pelo FBI. Incidentalmente, jurava também que o «macho» fora bissexual e tivera histórias, entre outros, com Howard Hughes e Tyrone Power.

The Untold Story ou The Very, Very, Told Story serviu já para um telefilme que passou na RTP há uns anos e deu pasto a não sei quantos artigos, livros, defesas e ataques. Talvez o mais fidedigno seja o das memórias que escreveu com a ajuda de um ghost-writer e foram publicadas postumamente. Título: My Wicked Wicked Ways. Em epígrafe, São Paulo, Isaías e o livro dos Salmos são convocados para amaldiçoar os danados (wicked), jurando-lhes que jamais terão paz, e que as dores de todos os mundos cairão sobre as cabeças deles. Errol Flynn diz detestar particularmente aquele género de livros que começa com coisas do género: «Ah, que alegria e felicidade houve na graciosa casa do professor Flynn quando se ouviram os primeiros vagidos do pequenino Errol.» A «graciosa casa» ficava em Hosbart, na Tasmânia (Austrália) e Flynn, que detestou convocá-la, amou recordar o sarcophilus ursinus, um marsupial carnívoro, conhecido pela sua extrema ferocidade, e, por isso mesmo, chamado «o demónio da Tasmânia».

Pode ser que Flynn tenha sido um demónio, mas, trocando a biografia pela filmografia, nenhuma imagem lhe convém menos do que a de sarcophilus ursinus. Se houve, alguma vez, no cinema um leal cavaleiro, ele chamou-se Errol Flynn, e como lhe rezava o epitáfio na Carga da Brigada Ligeira (The Charge of the Light Brigade, de Michael Curtiz, 1937) nunca um homem morreu tão galantemente como ele, quando, à frente da 27ª Divisão dos Lanceiros, atirou a cavalaria contra a artilharia russa, no Vale da Morte, na Crimeia. E com os seus «onward, men!» matou Surat Khan antes de morrer ele próprio, com os seus homens todos, os seus cavalos todos, ao som de Max Steiner e de Tennyson. Ninguém que tenha visto essa carga de cavalaria deixará para sempre de amar Flynn, na primeira dessas mortes heróicas with his boots on, que continuariam até ao filme que glosou esse título, realizado por Raoul Walsh em 1942 e que em Portugal se chamou, literalmente, Todos Morreram Calçados.

Errol Flynn não teve grande reputação como actor, junto de gente séria, nos 17 anos (1935-1952) da sua máxima glória e popularidade. Nunca percebi porquê. Jack L. Warner, um dos irmãos da firma que o teve sob contrato nesses Flynn years, também o achava de medíocre talento. Mas verificava que, para todos os Walter Mitty do mundo, « he was all the heroes in one magnificent, sexy, animal package... Actor or no actor, he showered an audience with sparks when he laughed, when he fought or when he loved». E chamou-lhe, em hora mais lúcida, «one of the most charming and tragic men I have known».

Precisamente, essa mistura de encanto e tragédia deu a Errol Flynn o lugar único entre tantos dos seus émulos da altura, talhados no mesmo molde: o bigodinho, a insolência, a virilidade, a natural autoridade. Só que Flynn foi sempre, não mais vulnerável do que os outros, mas mais fremente, mais marcado pela aura da marginalidade. Não sei porque se espantaram tanto aqueles que descobriram que o homem tinha duas caras e fazia jogo duplo. Acaso não as teve sempre, acaso não o fez sempre nos seus filmes mais célebres? Acaso Robin Hood não era um bandido, mesmo que em floresta célebre, e não assaltava inocentes antes de escolher tomar partido por Ricardo contra João? Acaso o capitão Thorpe não era mesmo torpe, antes de resolver servir Isabel de Inglaterra contra os espanhóis em The Sea Hawk (O Gavião dos Mares) de Curtiz, em 1941? Acaso todos os feitos que fez no mar os não fez como pirata - deste o mítico Captain Blood do mesmo Curtiz, em 1935? Acaso todos os feitos que fez em terra os não fez ou como vilão a pouco e pouco enobrecido ou como militar a pouco e pouco indisciplinado?

A mítica carga resultou de uma desobediência qualificada. Só foi parar ao Dakota e a Little Big Horn (They Died With Their Boots On), porque bebia de mais. Os personagens de Flynn, os heróis de Flynn, são sempre os mais excessivos, os mais crispados, os mais neuróticos. E apanhavam-no sempre por um visível calcanhar de Aquiles (geralmente whisky muito velho ou mulheres muito novas) a ele que nessa guerra de Hollywood - que, como a de Tróia, durou dez anos - foi sempre mais parecido com Ajax do que com qualquer outro dos heróis de Agamémnon.

Comparem-se os dois lendários filmes de piratas do ano de 1935, o ano em que ele nasceu como big star. Captain Blood e Mutiny on the Bounty (Frank Lloyd). Na Bounty, o imediato Fletcher (Clark Gable) teve todas as razões, até segundo os códigos navais, para acabar por se revoltar contra o despótico Laughton. Se falhou nalguma coisa, foi na demora e por isso o tribunal o absolveu, no fim. Nenhum tribunal do mundo teria absolvido o capitão Blood que, se veio a ter razão política (escolheu Guilherme de Orange contra o legítimo Jaime II), nunca teve razão moral. A não ser a que lhe deu Olivia de Havilland no primeiro dos oito filmes que fez nos braços dela.

No segundo (A Carga), pressentia-se que era mais pela coita de amor com Olivia e por orgulho ferido do que por nobres razões que se lançava - ligeiramente - para o massacre da morte mais grave. No remake de The Dawn Patrol (Goulding, 1938), cantava que «This world is a world of lies ! ... Hurrah for the next man who dies». Em Dodge City (Vida Nova de 1939), seu primeiro western e sexto dos onze filmes em que foi dirigido por Michael Curtiz, era um irlandês a que nada de humano fora estranho, no pior e no pior sentido. Diz-se que foi depois do êxito desse filme que a Warner desistiu de lhe ensinar maneiras, percebendo que o fascínio de Flynn provinha de não ter nenhumas.

Bette Davis nunca se consolou de o ter a ele e não a Olivier como Essex da sua Isabel de Inglaterra de 1939 (sétimo Curtiz), mas achou que «Errol was someting to watch», e achou-o a ponto de lhe mandar cortar a cabeça para não ver demais. Em Virginia City (oitavo Curtiz), era um evadido da prisão, que roubava qualquer coisa como cinco milhões e se apaixonava por uma corista duvidosa (Miriam Hopkins).

Em 1941, acabou a fase Curtiz da carreira de Flynn e começou a fase Walsh. Nunca duas forças da natureza se combinaram tão bem como nos sete filmes que fizeram juntos: They Died With Their Boots On (1942). Desperate Journey (1942) - e quem como Flynn podia acabar um filme em que andou a matar nazis a clamar: «Now for Australia and a crack at the Japs!»? - Gentleman Jim (1942); Northern Pursuit (1943 - em que há aquele plano em que jura a Julie Bishop que nunca amou outra mulher e depois se vira para a câmara - para nós - pisca o olho e diz: «What am I saying?» - Uncertain Glory (1944); Objective, Burma! (1945); Silver River (1948).

É o septeto mais irridente - mais irrisório - com o papel mais espantoso em Gentleman Jim, como foi conhecido Jim Corbett, o homem que venceu John L. Sullivan (Ward Bond) e impôs o boxe como nobre arte.

Se ninguém morreu mais galantemente do que ele na Crimeia, ninguém recebeu o aviso do destino mais tragicamente do que Errol quando, no fim, lhe aparece ao espelho o fantasma do adversário a felicitá-lo pela vitória. Flynn respondeu-lhe que, quando a sua hora chegasse, esperava retirar-se com metade dos amigos de Sullivan e metade do respeito que este conseguira. E acrescenta: «Nunca mais haverá outro John L. Sullivan

Acredito que, nesse dia, ele tenha pensado que nunca mais haverá outro Errol Flynn. E não há. Quase todos os outros ídolos da época encontraram - mais ou menos - sucessores. Só ele - e Bogart - foram rigorosamente inimitáveis. Bogart nunca decaiu, como Flynn, entre tanta coisa pesada, nos anos 50. Mas, até na decadência irrecusável, manteve o ar de audácia que, como o Durward de Walter Scott, o fez sempre figurar entre os vencedores e jamais entre os vencidos. Principalmente - muito principalmente - nas grandes derrotas.

Hollywood fechou-se sobre o corpo dele e de alguns mais. Em 1957, morreu Bogey. Em 1958, Tyrone Power. Em 1959, Errol Flynn. Em 1960, Clark Gable. Em 1961, Gary Cooper. Em seis anos sucessivos «foram-se pouco a pouco amortecendo» os astros «que nestes sonhos nos guiaram» «olhos fitos nos quais até contávamos.» Tanta coisa, tanta coisa que contávamos.

Hoje, sem Flynn nem galanteria, morremos «with our boots off». On ficou ele. Ou os outros, como ele, que voltaram nas transparências finais, a recapitular, ressuscitados, a arte de bem cavalgar a toda a sela.

in «Muito Lá de Casa», Assírio & Alvim, Lisboa, 1993.

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