terça-feira, 14 de março de 2023

TRÊS MILAGRES


por Nat Segaloff

“Sempre que me meto com esta estória,” diz o autor de The Miracle Worker, “sinto que estou na presença de qualquer coisa de sobrenatural.” A peça de William Gibson foi celebrada durante meio século  como uma fábula de amor, devoção e compreensão. Começou na televisão, foi um triunfo nos palcos, e tornou-se um clássico no cinema antes de se retirar para o reportório dos departamentos de teatro dos liceus. Aquilo que geralmente não se sabe é que a estória de Annie Sullivan e Helen Keller começou a vida como um ballet. 

Começou quando Gibson andava a encenar peças com pacientes no Riggs Center em Stockbridge, no Massachusetts, onde a esposa, a psiquiatra Margaret Brenman-Gibson, fazia parte da equipa. “Nessa altura, nós tínhamos um menestrel folk que se chamava Richard Dyer-Bennett,” afirma Gibson. “Ele e a mulher, Mel, apareceram—ela era dançarina, só que tinha tido algum tipo de acidente com a perna portanto estava reformada. She was a very uma miúda esperta. A Margaret dizia que ela era uma bruxa porque conseguia olhar para a forma como as pessoas se mexiam e tinha um retrato psicológico dessa pessoa. A Margaret pediu ao Riggs para contratar a Mel como fisioterapeuta como parte do programa de actividades. Eu tinha um grupo de teatro, e pensei que podíamos fazer um serão original de actos únicos. Achei que conseguia arranjar um guião para a dança.” 

Anos antes, Gibson tinha-se deparado com uma colecção das cartas que Anne Sullivan tinha escrito para casa em Boston quase todos os dias quando estava em Tuscumbia, no Alabama, a tentar educar a jovem Helen Keller. Keller tinha-se tornado mundialmente famosa por superar a surdez e a cegueira que a tinham atingido na infância. Mas pouca a gente sabia que tinha sido Annie Sullivan, uma licenciada de vinte anos do Perkins Institute for the Blind em Boston, ela própria com dificuldades de visão, a tornar-se a educadora de Keller. 

Gibson leu The Story of My Life[1] de Helen Keller pela primeira vez na escola primária, sem saber que a maior parte do manuscrito tinha sido suprimido. “O livro verdadeiro,” descobriu ele mais tarde, “consistia de três grandes secções: a primeira era a Story of My Life de Hellen; a parte do meio era um ensaio longo de John Macy[2] sobre as técnicas pedagógicas de Annie Sullivan na educação de Helen Keller; a terceira secção eram todas as cartas que Annie tinha escrito para o Perkins Institute. Não sei se alguém terá os materiais para desmentir isto, mas isto foi editado por John Macy, que era um homem letrado, portanto o livro deve ter sido ideia dele. E isso quer dizer que estas cartas, que são perpetuadas neste livro, tinham passado pelas mãos dele. Ora, pode-se lembrar de um escândalo em que se revelou que as cartas entre Sacco e Vanzetti talvez tivessem sido escritas por um jornalista de Boston. Para mim, é pouco provável que as cartas [de Sullivan] sejam puras. O John deve ter ‘ajudado.’ Mas retratam uma rapariga extraordinária numa estória extraordinária.” 

Aqui Gibson—um irlandês negro esguio que favorece a frontalidade—amolece. “Pensei várias vezes,” diz ele, quase relutantemente, “que a única prova na minha vida que me convence que existe um Deus é esta estória. Aqui temos esta criança aleijada em Tuscumbia—aqui temos esta jovem aleijada, com vinte anos, em Boston—e são precisas estas duas meias-vidas para fazer uma vida. Isto não podia ter acontecido se não fosse a intercessão de Jeová, certo? Isto veio tudo dessas cartas, quer sejam da Annie ou não. E os factos da vida dela são extraordinários, portanto eu acredito nas cartas. Foi isso que me motivou.” 

Sem The Miracle Worker, poucos iriam saber da contribuição de Sullivan, mas o triunfo de Keller sobre a adversidade continuava a fazer da sua a melhor estória. Efectivamente, como notou Annie causticamente quando aceitou um grau honorário da Temple University em 1932 e a imprensa se amontoou em torno de Helen, “Mesmo na minha coroação, a Helen é a rainha.”[3] 

Helen Adams Keller nasceu a 17 de Junho, 1880, na herdade do seu pai em Tuscumbia. O pai, o Capitão Arthur Keller, tinha feito parte do exército da Confederação, e a mãe, Kate Adams, era da família de Robert E. Lee. É desconhecida a enfermidade exacta que privou a rapariga da vista e da audição aos dezanove meses—as fontes sugerem meningite, escarlatina, ou difteria—mas o pai estava prestes a interná-la numa instituição quando a mãe assumiu o comando. Os Kellers—graças à intervenção de um médico de Baltimore e mais tarde de Alexander Graham Bell—entraram em contacto com a Perkins School em Boston. O director da escola, Michael Anagnos, sugeriu a recém-licenciada Annie Sullivan como a professora indicada para Helen, que tinha acabado de fazer sete anos. 

Aos vinte anos, Annie Sullivan já era uma sobrevivente. Quando tinha cinco anos apanhou tracoma, uma infecção crónica que marca progressivamente a córnea a cada reincidência dolorosa. Pela altura em que fez oito anos a mãe tinha morrido, e quando o pai, Thomas, não a pôde suportar a ela e ao irmão, Jimmie, ele entregou-os aos dois a uma casa de correcção em Tewksbury, no Massachusetts. Jimmie morreu no espaço de três meses, deixando Annie não apenas perturbada mas também desamparada, porque ele era os olhos dela. 

Quando tinha catorze anos, Annie assumiu o controlo do seu próprio destino. Alguns membros de uma comissão de estado tinham ouvido falar de condições na Tewksbury Almshouse, e durante a visita, Annie andou atrás deles. Quando estavam prestes a sair, abriu caminho até ao inspector-chefe e anunciou—há quem diga que exigiu—“Eu quero ir para a escola!” Numa resposta compreensiva rara ao pedido de uma jovem sob a tutela do Estado, a Bay State inscreveu-a em Perkins. Aí teve uma cirurgia ocular que lhe melhorou a visão ao ponto de ser capaz de ver texto. Quando chegou o pedido dos Kellers, Anagnos sabia que a aguerrida Sullivan seria a pessoa ideal para ajudar Helen. Em Março de 1887, enviou-a para Tuscumbia e para o encontro que mudaria inúmeras vidas. 

Gibson ficou fascinado com as cartas que Sullivan escreveu a Anagnos durante o seu período com Helen. Considera o dramaturgo, “foi como tirar doces a uma criança; a acção estava toda traçada nas cartas de Annie.” Os direitos para as cartas de Annie, no entanto, eram controlados pelo biógrafo dela, Nella Braddy Henney, um editor na casa de publicação Doubleday. Gibson enviou Seesaw para Henney, e Henney, impressionado, desimpediu os direitos. 

O momento foi fortuito; o ordenado combinado dos Gibson no Riggs estava-se a revelar insuficiente, portanto o escritor fez uma chamada apressada a Arthur Penn em Nova Iorque, onde este realizava "Philco Playhouse", para perguntar se a NBC precisava de material. Quando Penn disse que sim, Gibson enviou a dúzia de páginas de notas que tinha escrito para o bailado Dyer-Bennett que não se produziu. Intrigado, Penn juntou-se a Gibson, e delinearam juntos uma estrutura. Penn: “Eu dizia, ‘Aqui vamos parar para intervalo’ e ‘Aqui vamos parar para intervalo’ e inevitavelmente, como resultado de o adaptar aos requisitos da televisão, emergiu uma forma que era essencialmente uma peça em três actos, só que era em cinco ou seis actos para a televisão.” Os homens conceberam dois dispositivos narrativos que, embora simples, são apropriados: utilizar as cartas de Annie para Anagnos, e ter Annie a falar para si própria com a garantia de que a criança surda não a consegue ouvir. 

Penn conseguiu um adiantamento de $500 para Gibson e entregou orgulhosamente as páginas à NBC. “E depois,” suspira Penn, “eles disseram, ‘Nã; quem é que vai ver uma peça sobre uma rapariga cega e muda?’ Portanto eu disse, ‘Bom, vão-se foder—vou à CBS.’ A mesma resposta! Foi só na altura em que Martin Manulis teve o "Playhouse 90" e houve uma inteligência muito mais luminosa e mais receptiva e disse, ‘O que é que tens?’ que eu lha enviei e ele pegou nela.” 

A opção de $500 mudou para $10,000 assim que Manulis deu luz verde ao projecto, e Gibson viajou para a costa para rever o guião, consistente com o processo colaborativo de Penn e com a política pró-escritores de Manulis. A produção iminente forçou Penn e Gibson a focarem-se finalmente sobre aquilo que a peça era realmente. Acima e para além do óbvio—de que “o seu trabalho na vida era redimir uma vida perdida,” como Gibson o coloca—também era, de forma mais importante, constatou ele, sobre o poder que vem da linguagem. Sendo-lhe negada, Helen ficava isolada; sendo-lhe ensinada por Annie, ela ressurgia. Por isso mesmo é essencial ver (como muitos não vêem) que The Miracle Worker é sobre Annie Sullivan, e não Helen Keller. “De outro modo,” brinca Gibson, “chamar-se-ia The Miracle Workee.” 

Gibson aprendeu rapidamente os truques da televisão ao vivo, como estender uma cena entre intérpretes secundários para que a personagem principal pudesse correr pelo estúdio para a próxima cena começar, permitindo por vezes uma mudança de guarda-roupa durante o percurso. “Tal como para montar uma peça de teatro,” compara ele, “o período de ensaios era-me muito familiar, mas a mecânica física efectiva de os filmar era bastante recente. O Arthur estava sentado na sala de controlo a falar com os tipos das câmaras. Lembro-me que uma vez era suposto alguém subir um lance de escadas e o Arthur disse, ‘Falhámos!’ A câmara não tinha chegado lá a tempo. A televisão ao vivo era assim; era muito empolgante.” 

Ciente da simbiose entre "Playhouse 90" e Hollywood, Manulis escolheu Teresa Wright para o papel de Annie Sullivan e Patricia (Patty) McCormack, que tinha interpretado de forma memorável a personagem titular no filme de 1956 The Bad Seed, para o de Helen. “Tinha onze anos,” diz McCormack, que continuou a representar, “o que foi resultado de ainda parecer uma criança. Logo no ano seguinte, mudou tudo em mim, e parecia uma jovem mulher. Patty [Duke, que interpretaria Helen nos palcos e no filme] na verdade é um ano mais nova do que eu, mas é minúscula, portanto nessa altura podia fazer de menina para sempre.” (Duke tinha quinze anos quando fez o filme.) 

McCormack nota que este "Playhouse 90" era diferente de outros em que apareceu. “Nós começámos antes do período normal de ensaios porque aprendemos linguagem gestual. Também rodámos [em película] galinhas a chocar numa quinta.” Indo para o ar a 7 de Fevereiro de 1957, o programa também era protagonizado por Katharine Bard (Sra. Manulis) como Sra. Keller; Burl Ives como o Capitão Keller; John Barrymore Jr. como o irmão de Helen, James; e Akim Tamiroff como Anagnos. Logo no início, Penn coloca o espectador ao ponto de vista de Helen enquanto os pais e o doutor se debruçam sobre o berço dela maravilhados com a forma como ela recuperou da sua misteriosa febre cerebral. Mas não; os Kellers descobrem depressa que a filha deles nem sequer consegue ouvir os gritos deles ou ver um candeeiro agitado diante dos seus olhos. “Ela não te consegue ouvir!” lamenta-se a Sra. Keller. Combinado com um efeito de íris para baixo que estrangula o plano, é um começo económico e aterrador que nunca dá tréguas. 

Não é muito frequente que um programa de televisão, agora visto apenas em cinescópio rudimentar nos museus, retenha a sua força meio século depois de ir para o ar, só uma vez, a 7 de Fevereiro de 1957, mas The Miracle Worker mantém-se à altura. “Foi um enorme sucesso,” nota Penn. “Por uma das primeiríssimas vezes a CBS recebeu um volume de chamadas de todo o país sobre o programa.” 

É instrutivo constatar que a produção altamente competente não era inusitada, mas antes o nível normal de profissionalismo para os programas das cadeias de televisão da altura. Para as pessoas que trabalharam nele, The Miracle Worker era apenas outro trabalho. 

Mas não por muito tempo. Seis meses depois de Two for the Seesaw estrear e de Henry Fonda deixar o espectáculo, Penn e Gibson ficaram exultantes quando viram que a descoberta deles, Anne Bancroft, era capaz de carregar a peça sozinha. Tinha-se tornado uma estrela. Isto agradou a Gibson que, enquanto Seesaw estava em digressão para ensaios, chamou Penn de parte e anunciou-lhe que ia transformar The Miracle Worker numa peça de teatro. A resposta céptica de Penn foi “Estás maluco da puta da cabeça. O clímax da tua peça são duas mãos num palco grande, como é que vamos projectar o sentido disso para o público?” Gibson tranquilizou-o, “Confia em mim.” 

Veio à tona outra razão para o entusiasmo de Gibson quando Penn descobriu que o dramaturgo já tinha oferecido o papel de Annie a Bancroft: tinha ficado embeiçado por ela. “Estava de certa forma apaixonado pela Annie [Bancroft],” admite ele. “Nunca tivemos nenhum caso, mas tínhamos uma espécie de ligação intelectual que era como um caso, mas intelectual—e eu assimilei isso.” 

Coe foi contratatado como produtor, e a equipa de Seesaw ficou completa. Então surgiu outro problema. Gibson contou: “Quando Anne deixou Seesaw e foi directamente para os ensaios para The Miracle Worker, interpretou Annie Sullivan como se fosse Gittel, e eu disse ao Arthur, ‘Cometi um erro terrível.’ E ele disse, ‘Eu trato do assunto.’ Deu-lhe uma pronúncia irlandesa, um sotaque, que Annie Sullivan não tinha. Mas agora a Annie Sullivan tem um sotaque pelo mundo inteiro porque o Arthur estava a tentar livrar-se da Gittel em Anne Bancroft.”[4] 

A escolha de Patty Duke, que iria ser lançada para a fama com a peça, começou com um encontro pro forma no escritório de Penn. “Nós sentámo-nos e ele quis saber o que é que eu sabia sobre Helen Keller,” escreveu Duke na sua autobiografia. “Bom, o pobre homem, disse-lhe logo tudo o que havia para saber. Parecia ser uma criança extraordinariamente articulada que sabia tudo sobre frustrações e psiques e tudo o mais. Ele não fazia ideia de quão intensamente me tinha andado a preparar para essa questão durante um ano e meio. Ele perguntava-me, ‘O que é que dirias se fosses Helen Keller’ e eu retornava com ‘Não dizia nada.’ Penn provavelmente estava a pensar, ‘Esta miúda foi bem programada.’ Era caloroso e encantador e eu já tinha uma paixoneta por ele. 

“Depois de uma audição e duas chamadas, chegou o telefonema: ‘Okay, mas se ela crescer mais duas polegadas está fora.’” 

Duke admitiu a sua paixoneta de adolescente. “Achava que ele era simplesmente o homem mais elegante e mais atraente de sempre. Até adorava as roupas que ele vestia: calças caqui e uma camisa branca, e a forma como se apoiava com os sapatos de ténis brancos com um pé um bocado virado.[5] Passava por mim e o meu pequeno coração palpitava em absoluto. Eu costumava estragar tudo só para que ele viesse falar comigo e dar-me um bocado mais de direcção.”[6] 

Duke reparou que Penn usava sussurros e humor delicado  (“Duke, tu não és má para uma rapariga”) para a ajudar a encontrar a personagem e ganhar confiança. Pela estreia de 19 de Outubro de 1959 no Playhouse Theatre de propriedade independente (tal como a NBC, os dominantes irmãos Shubert não achavam que uma peça sobre uma rapariga muda e cega pudesse vender), Duke e Bancroft eram grandes amigas e perfeitamente compatíveis. The Miracle Worker desfrutou de uma carreira de vinte e um meses e 719 representações. 

A peça de teatro transforma poderosamente o drama televisivo numa experiência imediata e intimista. Depois do seu prólogo angustiante a história salta seis anos em frente para encontrar Helen como uma criança selvagem mimada pela família. Numa última acção para evitar o internamento num asilo, a mãe dela contrata Annie Sullivan, cuja vista foi recentemente recuperada, como professora de Helen. Annie assume o comando, para grande irritação do pai de Helen, e exige controlo absoluto sobre a rapariga altamente resistente. Num jantar de família em celebração da proeza de Helen em comer com uma colher e em dobrar o guardanapo—algo que Annie suspeita ter sido aprendido mas não entendido—Helen reverte de forma teimosa, e Annie limpa a sala de jantar. O confronto da “cena da mesa” transformou-se num evento celebrado todas as noites entre duas actrizes empenhadas, Bancroft e Duke. 

“Leva nove minutos—a maior parte das noites levava nove, por vezes talvez dez, às vezes onze—o que era a determinação total da oposição,” recorda o realizador. “É aí que se entra mesmo no cerne da coisa. A coreografia segue das profundezas da intenção e da intensidade, e o posicionamento no palco é interessante. Nessa cena, a Annie expulsa a família inteira. Fica sozinha com Helen. Eu tinha esta mesa enorme que tinha acomodado seis ou sete ou oito pessoas, agora apenas com duas pessoas. Dei-lhe início com a Anne a encarar o público, e parecia simplesmente flácido, sabes. E pensei, ‘Espera um minuto, espera um minuto, assim estou a falar sobre o público. Deixem-me falar sobre elas as duas.’ Portanto pus a Anne de costas viradas para o público. Helen começava ao lado dela. A Helen recusava-se a comer devidamente e arrastava-se para baixo da mesa, e a Annie ia a correr, apanhava-a, trazia-a de volta, e isso deu-nos uma espécie de energia elástica que fazia a cena andar. Se fôssemos capazes de ver as expressões todas desde o primeiro momento, isso iria revelar demasiado. Tínhamos de estar naquele modo do ‘Como é que resolvo esta?’, e a melhor forma era não ver a Annie a criar soluções. Ela observava simplesmente aquela criança, e se atirasse o guardanapo ao chão agarrava nele e punha-o no sítio. O Bill escreveu essa cena com muito cuidado. O crédito total para essa cena vai para ele. Ainda por cima, tivemos a bênção destas duas actrizes mesmo fantásticas, e elas não poupavam esforços nenhuns. Andaram com negras e feridas durante grande parte do tempo. Nunca faziam a mesma coisa duas vezes—nunca! Aquele pequeno arremesso subtil do guardanapo. Aquilo é uma pequena insurreição. Como é que vai ser respondida? E esse é o começo do final da peça.” 

É no penúltimo momento que, nas palavras de Gibson, “acontece o milagre.” Testando mais uma vez a têmpera de Annie, Helen esvazia de forma desafiadora um cântaro com água. Em resposta, Annie arrasta-a para a bomba no jardim para a voltar a encher. Enquanto Helen espera que o líquido corra, recorda-se subitamente das profundezas da memória de uma palavra que disse antes da doença lhe reclamar a audição: “waa-waa.” De forma milagrosa, liga o conceito do alfabeto que Annie lhe tinha andado a soletrar na mão com a realidade do mundo em seu redor. Em pouco tempo está a arrastar Annie ao longo do pátio a absorver a linguagem a velocidade relâmpago: Chão. Bomba. Degrau. Treliça

“Sra. Keller! Sra. Keller!” grita Annie, chamando os pais de Helen, “ELA SABE!” Helen corre até aos braços da mãe enquanto se chega a Annie para a palavra: “M-Ã-E.” Depois até ao pai para Annie soletrar “P-A-P-Á.” Finalmente Helen aponta para Annie, que soletra, “P-RO-F-E-S-S-O-R-A.” 

O público respondeu com lágrimas e aplausos, e The Miracle Worker foi um triunfo da Broadway. Nos Tonys de 1960 no Hotel Astor a 24 de Abril, sentado na mesa de Helen Hayes, Arthur Penn venceu o prémio para Melhor Direcção. Aceitou, dizendo sucintamente, “Sem polimentos, muito obrigado a todos.” Também aceitou o prémio de William Gibson para Melhor Peça com um gracioso “Queria que este fosse mesmo o meu prémio. É para William Gibson que não pôde estar cá esta noite, mas ele pediu-me para expressar um pensamento, que era que não podia certamente aceitar este prémio sem expressar primeiro a sua grande dívida para com as duas pessoas que realmente viveram o drama: Annie Sullivan e Helen Keller.” 

Anne Bancroft ganhou o prémio de Melhor Actriz numa peça de teatro, dizendo, “Há três razões porque acho que mereço isto, e elas são Fred Coe, Bill Gibson e Arthur Penn.” John Walters também ganhou o prémio de Melhor Técnico de Palco, e Patty Duke recebeu um Tony como Helen. George Jenkins foi nomeado como cenógrafo. 

No entanto, é como filme que The Miracle Worker perdura de forma mais memorável. Como reentrada ponderada de Penn para os filmes, a sua produção fornece uma pista em relação a como afirmava o seu poder sobre um sistema que iria manter sempre a uma certa distância. 

É também a única ocorrência em que o mesmo realizador orientou o mesmo material através de três meios diferentes, ajustando a sua visão para acomodar cada um deles e obtendo sucesso em todos no final. Isto é possível, disse Penn vivazmente à Variety enquanto se rodava o filme, “se se tiver um bom conteúdo e tempo de descanso entre as várias versões para trabalhar noutros projectos.”[7] 

O filme não era um dado adquirido. A boa notícia era que a United Artists estava interessada. A UA desfrutava do respeito dos cineastas porque lhes permitia fazer os seus filmes à sua maneira assim que a administração tivesse dado luz verde à produção. A má notícia era que a luz verde da UA especificava que Anne Sullivan devia ser interpretada ou por Elizabeth Taylor ou Audrey Hepburn. 

“Por essa altura,” diz Penn, “o Bill e o Fred e eu dissemos, ‘Escolhemos a Bancroft.’ A UA disse, ‘Oh, não, isso é impossível.’ Nós resistimos. O Bill foi firme como uma pedra. Aceitou menos dinheiro—consideravelmente menos—e nós resistimos por ela.” A lealdade de Gibson a Bancroft era igualada pela sua lealdade a Sullivan e a Keller, que ainda estava viva (morreu em 1968 com oitenta e sete anos de idade). Para fazer o filme à sua própria maneira, o trio montou a Playfilm Productions e rejeitou as escolhas da UA de Taylor ou Hepburn, pelas quais o estúdio teria garantido $2 milhões. Com Bancroft, a oferta caiu para $500,000.[8] O financiamento modesto tornou-se um problema, como Penn revelaria mais tarde num seminário do American Film Institute: “Quando excedemos, efectivamente, o orçamento muito modesto mesmo por uma pequena margem, as primeiras verbas saíram dos nossos salários ao ponto da Annie, o Fred Coe, e o Bill Gibson e eu, cada um de nós, penso eu, acabarmos com metade do salário para fazer o filme. Os salários não eram maus de início—eram $75,000 para cada um—acabámos com $37,500.”[9] 

O filme foi rodado em Middleton, Nova Jérsia, e no Big Sky Ranch em Simi Valley, na Califórnia, cuja combinação fez as vezes de Tuscumbia, com interiores no Hyde-Brown Studio na Twenty-third Street na baixa de Manhattan. A rodagem não decorreu sem algumas tensões, principalmente dentro do realizador, que ainda carregava as cicatrizes de ver The Left Handed Gun arrancado das mãos. No entanto, nesses três anos em diante, esse filme tinha conquistado reconhecimento na Europa e ele tinha desfrutado de cinco êxitos na Broadway, portanto sentiu-se seguro em desafiar os limites cinematográficos com The Miracle Worker

“Onde tínhamos vozes no palco vindas do passado de Annie,” descreve ele, “eu agora queria algo visualmente equivalente. Foi feito através de um processo muito complicado. Ampliámos a imagem até ao ponto em que a emulsão se decompunha até mal se discernir uma figura. Tínhamos que a ampliar trinta e duas vezes, portanto, para filmar um grande plano, utilizámos uma lente muito ampla do outro lado do estúdio e cortámos um ponto numa matte à frente do nosso visor, e esse ponto foi o que nós usámos. Sabíamos que esse ponto iria eventualmente preencher o ecrã quando o ampliássemos até essa altura. Construímos uma série de mattes para conseguir este plano ou aquele plano, e ampliávamos tudo para onde a imagem estava prestes a desaparecer.”[10] 

Tal como na Warner, a equipa da Playfilm também precisava de persuasão ocasional. “Eu aparecia para um plano e dizia, ‘Aqui vamos estar com uma dolly mas eu quero um braço giratório... ’ 

“‘Oh, não pode fazer isso, senhor.’ 

“‘Porquê?’ 

“‘Simplesmente não se faz; punha o público maluco.’ 

“‘Vamos pô-los malucos. Vamos fazer isso.’” 

Como resultado, The Miracle Worker torna-se a obra mais comovente de Penn. No entanto, traduzir a catártica “cena da bomba” para cinema, a princípio, angustiou o realizador. “Tinha-a visto uma centena de vezes em teatro,” explica ele, “e arrasou-me sempre ver que o público inteiro ficava em lágrimas. Quando a fui rodar, pensei, ‘não te precipites. Puxa a câmara para trás tal como estava. Mostra-nos a acção toda e vai estar distante—como estava no teatro.’ 

“Portanto fazemos isso, e eu consegui ver as rushes, e ficou terrível. Absolutamente terrível. Algo com que estava tão familiarizado como qualquer pessoa pode estar. E eu pensei ‘Porque é que ficou terrível?’ Porque nos pressionava para um papel de espectador em vez de um papel de participante. Aquilo que eu percebi nessa altura, pela primeira vez, foi que tinha de entrar e fragmentar aquele acontecimento. A mente de Helen, o rosto de Helen, o rosto de Annie, as reacções de Annie, ver qualquer coisa no rosto de Helen, água a pingar para a mão da criança, outro movimento na direcção dela, et cetera—fazer disso uma espécie de ‘quadros rebentados.’[11]

“Portanto voltei no dia seguinte e disse, ‘Amigos, vamos a isto. Vamos talhar isto em todos os momentos sensórios e vamos filmar isso por si só.’ Tínhamo-lo filmado originalmente num plano de cobertura em que ela atirava a jarra fora e dizia, ‘Waa-waa.’ Depois iam directas para o chão. Essencialmente, essa foi a experiência cinematográfica que me ensinou mesmo alguma coisa sobre filmes.” 

Penn e o director de fotografia Ernesto Caparrós decidiram que os espectadores deviam ficar com Annie e Helen movendo a câmara com elas à medida que descobrem o mundo através dos sentidos recentemente despertados de Helen. “Quando voltei para a rodar novamente a equipa estava à volta em pé e começaram a chorar,” diz Penn. “Esta equipa dura. Houve lágrimas, e por essa altura Caparrós percebeu que isto talvez se fosse tornar nalguma coisa. Quer dizer, estavam homens crescidos ali a chorar. De repente o Ernie, um cubano bastante cínico, teve a ideia—Prémio da Academia!—e desse momento para a frente foi, ‘Oh, tenho de iluminar as chombras—chiaroscuro.”[12] 

O montador Aram Avakian não só fez questão de ler o guião como de assistir às sessões de leitura para ganhar uma percepção mais orgânica do projecto. Ele lembrou que “Patty, então com 14 anos, como Helen Keller, tem apenas uma fala, ‘Wa-wa . . . ’ mas seja como for está presente. Ela preenche os pequenos papéis, de pessoas mais velhas, às vezes com sotaques carregados, uma grande mímica, e entre estar deitada ou sentada no chão, passando por exercícios incríveis, nunca ociosa, ocupando-se com tarefas físicas difíceis, com as pernas torcidas por baixo da anca, enlaçando as botas altas dela literalmente por trás das costas, os olhos cegos dela a fitar um canto escuro, alcançando tudo, os olhos vazios dela a nunca desviar-se daquele canto escuro. Entretanto, os outros lêem, toda a gente de forma literal, excepto Anne Bancroft, tendo criado e interpretado o papel durante mais de um ano, que se senta a tricotar, sem um guião à frente, audível por pouco mas firmemente articulada como Annie Sullivan.” Ele acrescenta, “No final da leitura: lágrimas nos meus olhos.”[13] 

Avakian, que antes tinha montado notícias e documentários, abordou The Miracle Worker com o cinismo de um jornalista. “Ele disse, ‘Este filme é sobre o quê?’” lembra Penn, “e eu entrei numa longa conversa sobre como é essencialmente linguagem, e a linguagem é a essência da civilização em que depois se pode expressar a experiência que nos ocorreu que se pode transmitir a outra pessoa que não esteve lá, e foi assim que a civilização se conseguiu construir... ’ et cetera. E ele disse, ‘Ah, queres fazer um bom filme!’O Aram era assim!” 

Penn usou o filme para redescobrir o meio do cinema. “Numa peça, quase tudo tem de ser articulado oralmente,” salienta ele. “Quando apareci para rodar o filme nunca me ocorreu que não precisávamos daquelas coisas todas; só precisávamos de o mostrar.” 

A banda sonora do filme reforça a experiência emocional. Tinha sido pedido ao compositor Laurence Rosenthal para criar música incidental para a versão teatral, mas Penn considerou que a peça não precisava disso e retirou-a durante as apresentações em Filadélfia. “Eles dispensaram-me,” brinca Rosenthal, acrescentando rapidamente, “quando decidiram fazer o filme, o Fred e o Arthur acharam que, embora se possa fazer uma peça de teatro sem música, não se pode realmente fazer um filme como este sem música.” Rosenthal voltou para musicar o filme: “O Arthur estava absolutamente determinado em nunca ceder a qualquer impulso que produzisse uma impressão de sentimentalismo. Não queria chorar as pedras da calçada; queria manter a coisa objectiva e verdadeira sob o pressuposto completamente correcto de que a própria estória está tão carregada de impacto emocional que não se tem de ceder a isso.” 

De forma instrutiva, a banda-sonora de Rosenthal simboliza o arco narrativo de Helen e Annie. “Aquilo que eu estava mesmo a tentar fazer era, de alguma forma, capturar o sentimento de viver num mundo de silêncio e escuridão,” diz ele, representando as duas mulheres pelo “vazio daqueles dois clarinetes e a série de progressões decrescentes e urdidoras que faz parte do tema.” Notavelmente, enquanto professora e discípula se unem no final do filme, os seus dois temas fundem-se. “Quando ela deixa os pais e volta para Annie e aponta para ela e quer saber, ‘Quem és tu?’ ‘Professora,’ nesse momento pode-se ver só a centelha duma lágrima a sair do olho de Helen. Lembro-me de Aram Avakian dizer, ‘Aquilo é uma lágrima de 1 milhão de dólares.’ É a primeira vez que se sente este tipo de emoção a vir da criança. O público fica sempre absoluta e completamente despedaçado com toda essa cena.” 

Que era exactamente o que Penn queria evitar, segundo Rosenthal. “Senti realmente que o Arthur estava tão absorto na ideia de que o filme não se devia tornar sentimental que continuava a segurar as rédeas da música,” diz ele, “e mesmo na cena da bomba, fiz da forma que ele queria; marcámo-la, e eu não concordei totalmente com a marcação. Ele disse, ‘Vamos tirar a música aqui.’” Fizeram-no, e a cena—tal como da primeira vez que Penn a rodou—ficou morta. Apercebendo-se disto, os criadores do filme agendaram outra sessão de composição e gravaram uma ponte musical. Os resultados, apesar do voto ascético de Penn, comoveram o público durante décadas. Mas primeiro tinha de se comover a United Artists. 

“A UA foi ambígua,” diz Penn. “Quando terminássemos a montagem, o cerimonial era mostrarmo-la a Arthur Krim e Robert Benjamin e a David Picker. Assim o fizemos, e eles disseram, ‘Dêem-nos uns cinco minutos.’ Eles saíram para a sala de entrada e voltaram e disseram, ‘Muito bem, vamos distribui-lo.’ Não muito depois disto, Penn e Gibson marcaram uma projecção para a estrela deles, que trouxe com ela o homem que se tornaria seu marido depois de uma corte de dois anos: Mel Brooks. 

The Miracle Worker foi vendido no modo de plataforma da altura: uma estreia em Nova Iorque a 23 de Maio de 1962, seguida de cidades-chave, e depois uma estreia alargada em cinemas de bairro a 28 de Julho de 1962. 

A conversa dos Prémios da Academia começou quase imediatamente e continuou até ao final do ano. Duke and Bancroft venceram, efectivamente, Óscares, e Penn, Gibson e a figurinista Ruth Morley receberam nomeações. Bancroft, no entanto, não pôde aceitar o dela em pessoa. Ia aparecer nos palcos em Nova Iorque em Mother Courage e viu a cerimónia na televisão com o noivo, Mel Brooks. A estatueta de Bancroft statuette foi aceite na sua ausência por Joan Crawford. 

Há, no entanto, uma nota de rodapé ignominiosa para a tripla coroa de The Miracle Worker. Em 1979, a NBC e a companhia de Melissa Gilbert, a Half-Pint Productions, refizeram a propriedade como um filme para a televisão. Desta feita Patty Duke, com trinta e dois, interpretou Annie, e Gilbert, da série popular da televisão "Little House on the Prairie", interpretou Helen. Foi realizado por Paul Aaron e produzido nominalmente por Fred Coe, embora rapidamente se tenha tornado aparente que Coe tinha sido contratado pelo nome, não pela competência. “Trouxeram o Fred e humilharam-no,” diz Penn categoricamente. “O Fred dizia, ‘Não, a cena não é assim,’ e eles diziam, ‘Então, o que raio é que ele está aqui a fazer?’ Ele era um homem muito orgulhoso e um produtor maravilhoso, e eles quebraram-lhe o espírito.” 

A 29 de Abril, com menos de uma semana para rodar o filme para a televisão, Coe foi levado para o hospital com um aneurisma da aorta. Morreu no dia seguinte, depois de nomear o produtor executivo Raymond Katz para o substituir. Tinha sessenta e quatro anos. 

Penn acredita que foi a forma como o pessoal da televisão tratou Coe que levou à sua morte. Mas a triste verdade é que ele já estava morto, destroçado pelo álcool, por um coração debilitado, e por ser relegado à sombra por uma indústria que tinha ajudado a criar e que já não reconhecia a dívida que tinha para com ele. Efectivamente, quando Cecil Smith do Los Angeles Times entrevistou Coe no exterior de Simi Valley para The Miracle Worker, o outrora dominante produtor avançou que a indústria tinha mudado ao ponto de “já não a reconhecer muito.”[14]

[1] Helen Keller, The Story of My Life (Nova Iorque: Doubleday, Page, 1903). 
[2] John Albert Macy casou-se com Anne Sullivan em Maio de 1905, e eles os três—Anne, John e Helen—viviam juntos em Wrentham, no Massachusetts. Geraram-se tensões com este acordo e as suas interdependências inconstantes são dramatizadas por Gibson em Monday After the Miracle (ver capítulo 15). 
[3] Dorothy Herrmann, Helen Keller: A Life (Chicago: University of Chicago Press, 1999). 
[4] Wood, Arthur Penn (revisto). 
[5] Os sapatos de ténis característicos de Penn foram o resultado de uma vez deslizar para fora do palco enquanto ensaiava uma peça. Daí em diante, o realizador favoreceu a tracção em relação à tradição. 
[6] Patty Duke, Call Me Anna (Nova Iorque: Bantam, 1987) 
[7] Weekly Variety, 16 de Agosto de 1961. 
[8] Sem saber que Penn e Gibson estavam a fazer o filme, François Truffaut tinha tentado comprar os direitos. Rejeitado, fez um filme similar em termos de temperamento, The Wild Child, em 1970, reclamando a Charles Thomas Samuels em Encountering Directors (1 e 3 de Setembro de 1970) que o filme de Penn era inferior à autobiografia de Keller porque Gibson o tinha escrito e produzido simultaneamente, enquanto defendia Penn por “traduzir a ideia de outro homem.” 
[9] Seminário no American Film Institute, 30 de Janeiro de 1970. 
[10] A juventude aterradora de Annie no asilo é evocada por material aumentado super-granuloso e áudio ecoante.
[11] Entrevista Schickel-Penn (interpolado). 
[12] Interpolado de Gary Crowdus e Richard Porton, “The Importance of a Singular, Guiding Vision,” Cineaste (1993). 
[13] Ross Baker, com Fred Firestone, eds., Movie People: At Work in the Business of Film (New York: World, 1972). 
[14] Citado in Krampner, Female Brando.

in «Arthur Penn - American Director», de Nat Segaloff, The University Press of Kentucky, Lexington, 2011.

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