sábado, 30 de setembro de 2023

SENHORA DA SERRA (2023)


Entre as frases que se repetem com nuances e novos sentidos no último filme de João Dias, também modelados pelos ventos e pelas sombras que se abatem sobre as suas personagens, está a pergunta “mas quando penso nos erros que cometeu ao longo da sua vida, o que faria ele se pudesse começar tudo de novo?” Não é coincidência que isso aconteça, pensando na mudança radical que o realizador e montador levou a cabo nos últimos dois anos. Abandonou Lisboa e as suas tropelias, abandonou métodos de trabalho antigos e concedeu a si próprio um recomeço artístico e pessoal nos sopés da Serra da Gardunha, em Atalaia do Campo. Quando nos falou disso e reviveu o momento, confessou-nos “uma vontade muito grande de começar outra vez. As primeiras duas ou três tentativas falharam. Tudo falhou, vinte anos sob o signo do fracasso. Agora dei-me a mim mesmo uma espécie de segunda vida. Este é o novo cenário e em breve poderei dizer que é meu, que sou de cá, e quando vou à janela da sala vejo o décor.” 
 
A Serra da Gardunha tem uma extensão de vinte quilómetros de comprimento por dez quilómetros de largura e chega à altura de 1227 metros, situando-se entre as cidades do Fundão e de Castelo Branco. Além de abarcar a aldeia histórica de Castelo Novo, ter sido palco de rituais pré-cristãos, conter os vestígios da antiga capela da Senhora da Penha e uma escadaria que dá até ao cimo da montanha, despontam nela uma série de pedras com formas muito intrigantes e misteriosas conhecidas como as morfologias graníticas da serra da Gardunha. Descritas como blocos fendidos, de fissuração poligonal, pias ou bolas de granito, chamadas até de “padarias” ou “côdeas de pão”, têm tantas formas como a imaginação lhes quiser dar. Caras e bustos, mesas e quartos, baleias e pássaros. Até quadros de Gustav Courbet. Portanto não é surpreendente que João Dias tenha escolhido os milenares mistérios da Gardunha como tema e como casa. 
 
E isto foi o que ele fez. Mudou-se com a companheira e o filho para uma casa na aldeia com vista privilegiada e assombrosa para a serra que ao longo dos séculos foi palco de peregrinações religiosas, políticas e bandoleiras. Mesmo ao lado de Póvoa da Atalaia, terra de Eugénio de Andrade. Convocou essas memórias lendárias e históricas, as figuras de Maria, Senhora da Serra, meninas crescidas de Alcongosta, delegados e militantes de partido, ladrões e ermitões, e reclamou a serra como o seu estúdio. Concorreu a uma bolsa de criação, conseguiu o apoio e arranjou o resto onde pôde para levar a cabo a sua produção. Graças a Leonor Noivo, realizadora de A Raposa, encontrou Patrícia Guerreiro, actriz principal desse filme que se retirara do cinema depois de trabalhar com João Botelho e Marco Martins, e fez dela a mãe de Jesus, perdida entre pedras em busca dos homens. Fê-la contracenar com Elsa Vaz, João Figueira, Vasco Rolão Preto e Lucas Melo, requisitando ainda os serviços do Coro da Soalheira e das Adufeiras do Paul. 

 Houve muitas tentativas teóricas e práticas, ao longo dos anos, de conciliar o comunismo e o cristianismo. Porque as palavras do Novo Testamento e a revolta de Karl Marx, no papel, não parecem de todo irreconciliáveis. As aventuras e o despojamento material de São Francisco de Assis e dos seus seguidores no século treze, contra a propriedade e contra os títulos, em comunidade itinerante e a pregar a palavra de Deus, também parecem estar de acordo com os preceitos do comunismo. No século XIX, o padre John Humphrey Noyes, influenciado pelas ideias do chamado Segundo Grande Despertar e pelas noções de “perfeição cristã” e “casamentos complexos”, fundou a comunidade de Oneida, baseada na partilha de toda a propriedade e em que todos os homens eram casados com todas as mulheres e os filhos eram de todos os membros da comunidade. Apesar de todos os erros, talvez seja possível ver nisto os germes duma mudança qualquer. 
 
E isto foi o que João Dias fez. Sempre com a menina de Alcongosta de Elsa Vaz a garantir a cada provação de Maria que a “humanidade perdura”, sempre com a senhora da serra de Patrícia Guerreiro a passar por cada homem repreendendo-o, “com palavras que eu não conhecia, mas que Deus semeava directamente nos meus lábios,” três grandes blocos narrativos que depois se entrecruzam nos rochedos e nas florestas. Um ermitão desiludido com a humanidade que deambula pelos montes em busca da Nossa Senhora e passa a ser o seu emissário. Um ladrão só com certezas que renuncia a toda a espiritualidade trocando-a pela carne e pelo que é palpável, concreto e imediato. Um grupo de comunistas que discute o futuro do seu partido e um delegado que, com as certezas ditadas pela sobrevivência política, só parece ter dúvidas. Filmados do raiar do dia ao cair da noite escura, pautados com canções e ritmos populares a solo ou em coro, introduzidos e encerrados pela lembrança da pequena máquina que os anima – o cinema – sobre os genéricos. 
 
Se tudo nos é negado, o que fazemos? A resposta de alguns, perseguidos pela autoridade mas abraçados pelo povo, foi renegar quem os negava. Fizeram o que não temos coragem ou desespero suficientes para fazer e simbolizaram a revolta e o tumulto interior de multidões reprimidas pelas chagas e pelas amarras do poder. Talvez fossem bastante menos como seres humanos do que aquilo que os fizemos ser – mitos – mas levaram nomes como Robin dos Bosques, José do Telhado, Jesse James, Corisco, Billy the Kid, Dadá, Jacques Mesrine, Lampião, Calamaty Jane, Ned Kelly, Claude Duval, Mary Frith ou Pancho Villa. E, na serra da Gardunha onde tudo conflui, Cireneu. Eles são o que quiçá nem o cristianismo nem o comunismo puderam prever ou controlar, a hipótese de dar corpo aos cânticos negros e ser uma peça solta na engrenagem, andar à vara larga do livre arbítrio sob pena de morte, não papar grupos nem partidos. Não acatar doutrinas. Baseado talvez nestas figuras, João Dias representou-as com o ladrão que anuncia a chegada do novo homem. 
 
E isto foi o que ele fez: enquadrou as suas personagens de forma trabalhada nos seus rochedos amórficos, usando o movimento e o espaço e os olhares dos actores como instrumentos para refazer esses enquadramentos, como na dança e discussão a três pela serra acima que culmina com o colapso de Maria. Filmou as árvores a balançar com o vento como se dum cataclismo incógnito se tratasse, encerrando em mistério e em elipse o plano daquela mão que se envolve no branco das roupas de Maria, meros planos à frente disposta a iniciar a revolução com sangue. E há uma repetição kuleshoviana das árvores ao vento, agora por definição com um novo significado. Fez de adufeiras um coro grego que comenta uma violação com ritmos primordiais e pagãos, fechando o quadro e a própria acção para não vermos nada mas sentirmos tudo. Antes de fazer cair a noite profunda mais profunda e sacar aquele que é provavelmente o mais belo plano do seu filme: o de Elsa Vaz encostada ou diluída na pedra dando finalmente corpo à voz hipnótica que nos tinha vindo a garantir ao longo destes sessenta e sete minutos que a vida continuava e que nós continuávamos, mas à qual ainda não tínhamos associado um grande pesar e um grande luto. A realização de que não houve nada mais justo nem mais triste do que descobrir um dia há milhares de anos que é possível dizer “isto é meu.” E que esse paradoxo talvez seja irresolúvel.

texto escrito para o Jornal dos Encontros Cinematográficos de 2023, também publicado no site do Jornal do Fundão.

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