sábado, 28 de setembro de 2024

ALICE'S RESTAURANT (1969)


por Arthur Penn

O Passado inverno de 1968 agora parece ter sido uma época romântica e inocente. A opinião sobre a guerra no Vietname parecia-se estar a consolidar numa oposição efectiva; o senador McCarthy fez soar a nota e os jovens preencheram a melodia com a resposta lírica deles à sua campanha. Robert Kennedy anunciou e LBJ retirou-se. Houve um sentido de poder doce e novo a encher os jovens.

Foi nessa altura que falámos pela primeira vez em fazer um filme de Alice's Restaurant. Na primeira noite, Arlo e um bando de miúdos da igreja reuniram-se na nossa casa. Fumámos alguns, e quando falámos sobre o recrutamento eles soltaram uma torrente de estórias sobre as suas experiências físicas e psicológicas nos exames de recrutamento. As suas "provocações" pareciam ter sido a sua arma mais eficaz. Tinham-nas armado aos pais, às escolas, aos polícias e aos avaliadores do recrutamento.

As provocações eram irreverentes, bizarras, grosseiras, mas, acima de tudo, solitárias. Cada miúdo contestava o direito de um governo que nunca formou a forçá-lo a combater uma guerra a que se opunha. Cada miúdo sozinho com a sua provocação.

A gravação de Arlo foi reconhecida pelos membros da sua geração como a balada das suas posições. As regras de uma sociedade restritiva podiam ser usadas contra essa sociedade. Era uma provocação maciça.
I'm sittin' here on the bench...
I mean I'm sittin' here on the
Group W bench, 'cause you want to know
if I'm moral enough to join the army,
burn women, kids, houses and villages
after bein' a litterbug.[1]
Era uma sociedade que era eminentemente digna de provocações.

Fumámos mais alguns, depois o Arlo tocou "Amazing Grace" durante cerca de duas horas e nós cantarolámos, cantámos, gritámos ou acompanhámos. Depois eles foram-se embora.

Eu fiquei com uma sensação de ter visitado a minha própria juventude, mas com algumas diferenças. A independência deles era mais flamejante do que a nossa tinha sido. Eles tocavam uns nos outros com uma tranquilidade e um prazer público que nos teria aterrorizado nos anos quarenta. Cada uma destas crianças tinha tido o seu encontro com a polícia. Alguns até tinham sido encarcerados, o que teria sido impensável nos meus anos de recrutamento. Afinal, teria entrado nos nossos cadastros, esses documentos sagrados e invisíveis que nos identificavam ao nosso governo.

Além disso, a minha juventude era de orientação urbana, e eu ansiava pela vida na cidade. A política também era muito mais clara nessa altura. O trabalho era bom, o capital era mau. Na altura ninguém imaginava alguma vez que o trabalho se poderia tornar abusivo, excludente e racista. A Espanha era a nossa dor constante. Finalmente, quando Hitler marchou, nós soubemos o nosso destino e marchámos contra ele. Foi tudo bastante simplista, quando se olha para trás. Claro que a forma dos nossos protestos era colectiva. A suspeita em relação a grupos não era forte. O ideal soviético era o único ideal, para o bem ou para o mal. Virou-se para o mal.

As canções de Woody Guthrie tinham enchido a minha juventude. Eram colectivas no sentimento, e deram-nos a sensação de que éramos muitos, por todo o país, enquanto as ouvíamos, cantávamos e fazíamos amor ao som delas.

Arlo e os amigos queriam estar fora da cidade. Queriam-se mover juntos à sua maneira e isso era para longe da política, das cidades, de exigências para aderir e ser convencionalmente identificado.
I don't want a pickle,
I just want to ride my motorcycle,[2]
diz Arlo.

"Alice's Restaurant Massacree" de Arlo era uma provocação musical. O som parecia-se com o de Woody mas a intenção era diferente. Onde Woody procurava militar, Arlo atacava através do ridículo:
Walk into the shrink wherever you are,
just walk in and say,
"Shrink, you can get anything you want
at Alice's Restaurant" and walk out.
    You know, if one person, just one
person does it they may think he's
really sick... and they won't take him.
And if two people do it, in harmony,
they may think they're both faggots
and they won't take either of them.
    And if three people do it... can
you imagine three people walkin' in
and singin' a bar of Alice's Restaurant
and walkin' out... they'd think it's
an organization!
    And can you imagine fifty people a day?
I said, "Fifty people a day!" walkin'
in and singin' a bar of Alice's Restaurant
and walkin' out?"
    Friends, they may think it's a movement.
And that's what it is, the Alice's
Restaurant Anti-Massacree movement.
And all you gotta do to join is to
sing it the next time it comes around
on the guitar... with feelin'.[3]
Um movimento!

As palavras ressoavam da minha juventude.

Aí estava o nosso filme, pensámos nós. O Venable e eu começámos no argumento e falámos com o Arlo, o Ray, a Alice, a mãe do Arlo, a mãe da Alice, amigos do Woody, miúdos na igreja, miúdos que tinham deixado a igreja. Os jovens falavam todos de um mundo caído em tempos maus. Não queriam ter nada que ver com ele. Mantiveram-se juntos na linguagem comum da Astrologia, o I Ching, cartas Tarot e a certeza de que a Califórnia ia para dentro do mar numa questão de meses. Faziam piqueniques nas pradarias. As vibrações pacíficas eram a essência e aconteciam onde quer que a gente curtida se reunisse. As portas da igreja estavam abertas; os seus braços estavam abertos.

No entanto, não era nenhum movimento.

O resto daquele ano trouxe os assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy, os polícias de Chicago a estourar cabeças jovens, a eleição de Richard Nixon para as cabeças velhas, e a explosão nos campi em Berkeley e na Colombia. A provocação tinha acabado.

Em Stockbridge, Ray e Alice estavam-se a divorciar; a propriedade futura da igreja estava em dúvida. As coisas tinham-se desmoronado. As pessoas tinham-se ido embora. O mundo parecia revoltante e a cena na igreja não se iria sustentar.

Os dias em que Arlo cantou sobre... aquela Acção de Graças... a cerimónia de casamento de Ray e Alice na sua própria igreja com os seus miúdos e família em redor, foram lembrados com nostalgia e amor. Mas era claro que esses dias tinham passado. E o mundo tinha-se tornado demasiado absurdo para a provocação. De facto, os eventos por que todos passámos nesse ano pareciam mais um cabaré gigante do que algo real.

A provocação morreu em 1968.

Não conseguíamos ver uma posição política a surgir da cena em Stockbridge. Estas pessoas tinham-se desligado e não se iam engajar novamente. Distanciaram-se. Insistiam que nunca tinha havido uma comunidade e portanto não se podiam estar a distanciar. Nós perguntámos, "O que é que tinha havido?"

"Uma família."

Não a família com que se nasce, mas a que se forma na imagem dos nossos sonhos. Uma família de formato livre com irmãos e irmãs escolhidos (ou nenhuns, de todo) e um pai—expansivo, exuberante, violento em fúrias, simpático e móvel, um pai que anda de mota! E uma mãe—cândida, linda, disponível—e não a nossa mãe.

"Exceptuando-se Alice." A frase ficou-nos nas mentes.

Eles tinham ido para a sua nova família mas começaram-se a formar figuras. Figuras antigas em novas roupagens, experiências às quais eles tinham tentado renunciar, insistiam em invadir a sua nova família. Eles amavam-se uns aos outros, mas as portas da igreja, sempre abertas, tinham permitido apenas um breve refúgio dos fantasmas detentores dos seus passados. Então vieram os fantasmas.

Esse era para ser o nosso filme. Miúdos de coragem a recusar a guerra. Um novo horror que não podia ser provocado. Uma família que tinha conhecido a graça, a desintegrar-se.

Não um movimento.

Isso ainda está para vir.

Vemo-nos quando as luzes se apagarem.

[1] "Estou sentado aqui no banco... / ou seja estou aqui sentado no / banco do Grupo W, porque querem saber / se sou moral o suficiente para me juntar ao exército, / queimar mulheres, miúdos, casas e aldeias / e depois ser um lixo." Alice's Restaurant de Arlo Guthrie. 
[2] "Eu não quero uma alhada, / só quero andar na minha motorizada,". "The Motorcycle Song" de Arlo Guthrie. 
[3] Entrem no psiquiatra onde quer que estejam, / entrem apenas e digam, / "Doutor, pode ter tudo o que lhe apetece / no Restaurante da Alice" e saiam de lá. / Sabem, se uma pessoa, apenas uma / pessoa o fizer eles podem pensar que ele é / mesmo doente... e não o aceitam. / E se duas pessoas o fizerem, em harmonia, / eles podem pensar que são os dois paneleiros / e não aceitam nenhum deles. / E se três pessoas o fizerem... conseguem / imaginar três pessoas a entrar / e a cantar um trecho do Restaurante da Alice / e a saírem... eles iam pensar que era / uma organização! / E conseguem imaginar cinquenta pessoas por dia? / Disse eu, "Cinquenta pessoas por dia!" a entrar / e a cantar um trecho do Restaurante da Alice / e a saírem?" / Amigos, eles podem pensar que é um movimento. / E é isso que é, o movimento / Anti-Massacre do Restaurante da Alice. / E a única coisa que têm de fazer para se juntarem é / cantá-lo da próxima vez que aparecer / na guitarra... com sentimento. Alice's Restaurant de Arlo Guthrie.

Nova Iorque
Abril, 1970.

in «Alice's Restaurant», Doubleday & Company, Nova Iorque, 1970.

Sem comentários: