"A maior parte da crítica passou como cão por vinha vindimada pelo último Carpenter, genericamente considerado remake pouco inspirado e pouco imaginativo do filme de 1981 Escape from New York. Quase toda a gente pareceu pensar que uma das réplicas finais do Presidente (fabuloso Cliff Robertson) a Snake Plissken (Kurt Russell) “Estás-te a tornar insuportavelmente repetitivo”, se aplicava melhor ao próprio Carpenter. Já se tinha repetido nos dois filmes de 1995 (In the Mouth of Madness e Village of the Damned), repetia-se agora com esta obra de 1996 decalcada a papel químico do êxito de 1981.
Pois é. Como escreveu Robert C. Cunbow em 1990: “The auteur theory is out of fashion today”. E o que era elogio há trinta anos (“os grandes autores fazem sempre o mesmo filme”) tornou-se
Hitchcock e Hawks repetiram-se sempre? Repetiram. Mas, sendo sempre o mesmo, de cada vez era tudo novo. Por isso, tanto se pode dizer que fizeram sempre o mesmo filme como que fizeram sempre coisas que nunca tinham feito antes. Como, de resto, mais modestamente, disse Carpenter dele próprio, em entrevista de 1987: “I try to do things that I haven't done before.”
Volto ao ponto de partida (volto sempre) e ao tal diálogo com o presidente. A partir daí, o que era predictable deixou de o ser. Em vez de se contentar com o gag sonoro das trocas de bandas, como fazia em Escape from New York, quando descobriu que tinha sido levado com a história da coisa que lhe tinham metido no corpo, Snake (“call me Plissken”) socorreu-se da caixinha preta sofisticada para estourar com um mundo. Não o comove nada o patético aviso do Presidente de que, se o fizesse, rebentaria com todo o progresso técnico acumulado ao longo dos últimos cinquenta anos. A acção do filme passa-se em 2013. Fizeram as contas? Com o que ele estoura é com a chamada “revolução informática”, computadorias e derivados, cujos inícios são mais ou menos datáveis em 1963. Depois, puxa de um maço de Virginian's (“the smell of America”), mete vagarosamente um cigarro na boca, acende-o com um fósforo (no princípio, tinham-lhe dado uma caixa deles, dizendo que “podem sempre servir para alguma coisa”) e puxa uma bem saboreada passa. “Back to humanity” é a última frase que diz, antes de ficarmos no escuro com o genérico e a música do último grande compositor de filmes, John Carpenter chamado. Desde Bogie que não via uma tão arrogante expressão do “politicamente incorrecto”, com a vantagem de ser muito mais incorrecto (e muito mais subversor) do que nos tempos de Bogie.
Se comecei por este ponto (um diálogo, e um diálogo perto do fim) foi apenas para tentar ser mais didáctico. Porque penso exactamente o que Carpenter pensa quando declarou, ao tempo da estreia de Escape from New York: “Os filmes não devem ser uma série de grandes planos sobre rostos de personagens a falar. Não acho que o diálogo tenha muita importância. Penso que o Cinema é um meio de comunicação visual e que a câmara deve, pois, cobrir visualmente tudo o que se passa. O diálogo existe para sustentar o que se vê, mas é o que se vê que conta.”
Se se soubesse ver, e não só olhar, ninguém falava de repetição, no sentido pejorativo que lhe deram. Porque o facto da acção mudar de Nova Iorque para Los Angeles muda tudo, uma vez que ambos os filmes se articulam em torno de um décor e não há décors mais diferentes do que Nova Iorque e Los Angeles, a cidade vertical e a cidade horizontal, a cidade em altura e a cidade em largura.
De certo modo, como Escape from New York era um filme sobre a arquitectura, Escape from L.A. é um filme sobre o Cinema.
E é também a cidade-catástrofe de tantos, tantos filmes. Por isso é em torno dela que o efeito de repetição é mais alucinante. No princípio, estamos em 1997, ou seja, estamos simultaneamente nos dias de hoje e estamos no tempo do futuro distante de Escape from New York (que em Portugal se chamou Nova Iorque 1997). Uma suave voz off feminina descreve Los Angeles com pequena décalage em relação ao “real”, um exagero ligeiro mas não muito acentuado. É um efeito estranho, porque, simultaneamente, parece que se está a falar de uma data longínqua (tão longínqua como 1997 era em relação a 1981) e se usam imagens e elementos que todos vimos na televisão, há dois ou três anos, quando os negros tomaram conta de alguns bairros da cidade. Depois, dá-se a ver, sempre em tom documental, o grande terremoto do ano 2000, que não difere muito do que também vimos em 1994 ou do que todos os San Francisco ou Earthquake nos mostraram. Finalmente, chega-se a 2013 e chega-se a um presidente que não só cortou L.A. do mapa americano como trocou Washington e a Casa Branca por uma cidadezinha de um rancho qualquer (private joke que um americano saboreará melhor). Ou seja, aboliu a monumentalização do passado, aboliu a história da América, quer aquele que, em Washington, reenvia aos founding fathers e ao mito do império americano, quer aquela que,
Quem se lhe opõe? Um revolucionário de pacotilha (Georges Corraface), caricatura grotesca do “Che”, em revisionismo “correto e aumentado” dos fantasmas dos anos 60. Ao lado dele, vestida de punk anos
Porque o “back to humanity” final não implica, da parte do herói monocular, maior simpatia para com os zombies e marginais de Los Angeles do que para com o mundo do presidente e dos seus acólitos.
Numa das mais belas seqüências do filme, o apelo à “radicalidade revolucionária” é tão varrido como o apelo à “radicalidade fundamentalista” do Presidente. É a sequência
Se o filme se indecidissesse entre os dois “discursos” contraditórios que o atravessam (o de Talisma e o do Presidente) a moral da fábula não seria hawksiana, como sempre em Carpenter o é, nem este seria, como todos os filmes de Carpenter são, um “western urbano”.
No cinema, as consciências mudam-se. E, pelo que viu na cidade do cinema, aqui também e predominantemente cidade-esmeralda, Snake mudou. Volta muito menos Clint Eastwood do que foi. O Back to America final é Back to Hollywood (o grande classicismo de Hollywood), back to the great masters (dos heróis da América aos heróis dos filmes americanos) eback to a classical order (ordem que o cinema de Carpenter é dos únicos a continuar a proclamar).
Por isso, se alguma razão assiste a Nicolas Saada quando vê o filme como versão moderna da Ópera dos Três Vinténs de Brecht-Weil, devemos vê-lo mais e vê-lo melhor como a apologia do herói (gênero Gary Cooper, James Stewart ou Henry Fonda) que, sozinho, derrota todos os programas do mal. Mesmo monocular e coxo, esse herói recupera a virgindade e volta a permitir-nos “the smell of america”.
Escape from L.A. é um dos grandes filmes dos anos 90."
1 comentário:
É, sim..
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