quinta-feira, 1 de junho de 2017

A postura e o trabalho necessários da revista FOCO


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Foram lançados vários artigos da FOCO - REVISTA DE CINEMA em livro, numa edição conjunta da A.23 Edições e da Associação Luzlinar, que coordena os Encontros Cinematográficos do Fundão. Além de uma antologia de textos dos vários números da revista (da primeira edição dedicada a Samuel Fuller e João Bénard da Costa à última edição dupla dedicada a Jean-Claude Brisseau, Marc C. Bernard e ao monumental texto de Louis Skorecki que dá pelo nome de Contre la Nouvelle Cinéphilie), o livro contém ainda vários artigos, críticas, crónicas, apontamentos e entrevistas da nova edição, ainda inédita e também dupla (e que ocupa quase metade do livro), dedicada a Sergio Sollima, Richard Fleischer e às Duas Vanguardas, que, pelo que consegui perceber, são a dos americanos do Anthology Film Archives ou da Film Culture de Jonas Mekas e a de Godard, Danielle Huillet e Jean-Marie Straub, entre outros.

Philippe Garnier disse há uns meses, a propósito da reedição (e também revisão extensiva) do seu livro sobre o grande David Goodis, que "não gostava da abordagem crítica" nem da sua propensão para a interpretação, preferindo tentar descobrir como "as coisas são feitas". Mas se os livros e os artigos dele (de resto como o seminal livro de Bernard Eisenschitz sobre Nicholas Ray, as buscas incessantes e obsessivas de Kevin Brownlow e David Gill ou as reportagens do já falecido Grover Lewis - em Portugal, e que saiba, acho que só o tradutor e escritor Paulo Faria trabalha assim) exploram realmente a fundo a forma como as coisas são feitas, com uma liberdade delimitada pelos processos criativos (ou o pouco que se pode apurar sobre eles) e pelos factos biográficos revelados pelos seus meses de investigação, e permanecem excepções dentro das múltiplas formas (boas ou más) de falar sobre cinema hoje em dia, também o trabalho que Bruno Andrade, Matheus Cartaxo, Lucas Baptista e, no seu tempo, Felipe Medeiros (sem esquecer Marlon Krüger, André Barcellos, João Gabriel Paixão e Luan Gonsales), têm vindo a tentar fazer, pelo menos, é delimitado pelas especificidades formais do cinema, com as quais brincam muito pouco às interpretações, e com resultados que são também fruto de meses de investigação e continuam a ser uma excepção no panorama crítico mundial, que assentiu há já muito tempo em funcionar como relações públicas de festivais ou de realizadores e produtores cotados, sob a falsa égide do "jornalismo", da "objectividade" e da "isenção".

Como se escreve sobre um filme? Dependendo da situação pode parecer importante enquadrar a biografia de um autor, situar o filme num género, fazer analogias com as outras artes, com a vida, imaginar um diálogo poético e impossível com um amigo que já não está entre nós, descrever certas práticas e expô-las ao ridículo, falar sobre temas recorrentes numa obra, se fizer sentido, e coibir-se de o fazer, se não fizer (nem todos os realizadores são autores, nem todos os autores fizeram só grandes filmes, nem todos os realizadores banais ou medíocres fizeram só maus filmes), falar do acto de filmar como acto político, questionar certas formas e certas maquinações, enraizadas tão fundo dentro de nós que não temos como não participar delas de uma maneira ou de outra, escrever um manifesto, uma carta de amor ou um tratado estético informado e consequente (na medida do possível), ser construtivo ou destrutivo (destroem-se argumentos sendo construtivo, constroem-se alternativas e hipóteses vislumbradas nas cinzas sendo destrutivo), dar a palavra a outros, se fizer sentido e se enquadrar, ou não dar, se não fizer e não enquadrar. Na FOCO, além de se questionar certos filmes também se questionam certas críticas ou certos modos de fazer crítica. "Os críticos conformam-se em reafirmar velhas verdades amareladas pelo tempo. Tanto é que mesmo os textos traduzidos de críticos célebres, vindos de países mais maduros no desempenho da actividade crítica, e que se poderiam relacionar com cineastas, movimentos e escolas que não pertencem ao circuito contemporâneo do fetichismo mediático, convidam à absoluta desconfiança quanto às boas intenções dos tradutores," escrevia-se no editorial da terceira FOCO, texto assinado por Bruno Andrade e Felipe Medeiros que também está presente no livro.

Numa mesa redonda do The Dick Cavet Show, nos anos setenta, Robert Altman e Frank Capra concordavam (!) que ainda não se tinha feito um grande filme que fosse puramente um filme e sem dever nada às outras artes, que usasse o que lhe era intrínseco formalmente para se expressar como uma música ou um poema ou uma pintura o faziam com as suas ferramentas próprias. Não tenho poderes de adivinhação e não sei o que seria um filme assim, nem sou capaz de conceber que o cinema se calhar ainda nem tenha filmado o seu D. Quixote ou a sua Capela Sistina. Mas concordo que estamos numa época de transição (não só no cinema e que, como todas as transições, demora o seu tempo), como escrevia há pouco tempo o Sérgio Alpendre no seu blog. Tendo visto pela primeira vez um filme como o Bang Bang de Andrea Tonacci, mesmo que já do longínquo ano de 1971, só posso acreditar que o potencial e as ideias para o cinema não se esgotaram para os séculos vindouros e a viagem está só no princípio. A FOCO sabe isto, sabe que há um passado e um futuro, bases e fundações para se conhecerem, rumos e direcções para se seguirem. E a discussão vai passar por lá, certamente, de Samuel Fuller às Duas Vanguardas, às quais admito ter começado por torcer o nariz, quando soube que iam fazer parte da nova pauta da revista, mas que agora acredito estarem a ser abordadas e estudadas com a curiosidade e o interesse certos, numa tentativa de discutir isto mesmo, como na viragem do século XIX para o século XX se discutia a música e os becos sem saída da harmonia e a literatura e a nova fronteira do fluxo de consciência. É possível continuar a fazer o cinema que Hawks, Ford, Walsh, Capra ou Lang ajudaram a cimentar até à perfeição nos anos 40 e 50 ou há-mesmo-que fazer como o muito decidido Adriano Aprà (tomou a decisão há cinquenta anos) e indagar no underground e nas vanguardas para ter um vislumbre do futuro?

Mas o mais importante, e o que se calhar distingue mesmo a FOCO das outras revistas (sejam electrónicas ou impressas e principalmente pelo que se escreve mas também pelo que se traduz e volta a publicar por lá) é a tentativa editorial corajosa (e que imagino que não lhes dê propriamente muita fama no Brasil) de escolher alguns cineastas em detrimento de outros e, nas palavras de João Bénard da Costa, dar "testemunho do que vai durar contra o que parece que está para durar".

O primeiro lançamento da colectânea da revista FOCO foi no Fundão, durante os Encontros Cinematográficos, com a presença dos editores e de Luís Miguel Oliveira, que também lá escreve. No próximo dia 6 (Terça-Feira) estarão presentes noutro lançamento na livraria Linha de Sombra, na Cinemateca Portuguesa, que terá também música a cargo da Marta Ramos e do João Parreira. Longa vida à FOCO!
 

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