sábado, 20 de março de 2021

Ele Inveja os Actores - E Perante a Mais Pequena Provocação Raoul Walsh Pára de Dirigir e Junta-se a Eles


por Herbert Cruikshank

Ele rabiscava diligentemente num pedaço de papel do tamanho de uma mão, não importando quão pequena essa mão pudesse ser. Quando um dos lados ficava coberto de hieróglifos ininteligíveis, ele fazia-se ao outro, passando a mão pelo cabelo como fazia tantas vezes, e humedecendo a ponta do lápis como um miúdo de escola sem grandes certezas sobre o que escrever a seguir. Em breve também este lado estava arruinado para posterior utilização. E o realizador Raoul Walsh fez sinal a June Collyer, outra villager de Nova Iorque que se deu bem na Cidade do Cinema.

"Olha, June," disse Raoul, "gostava que tomasses conta disto por mim, podes?" Ele atirou-lhe o borrão amarrotado. "E por amor de Mike, não o percas!"

June examinou o papel. Mas os seus segredos mantiveram-se enterrados numa mixórdia de arabescos. "O que é" perguntou ela. "Diz onde está enterrado o tesouro, ou onde se pode encontrar o corpo?"

"Não," murmurou Raoul impressionantemente. "É o guião de 'Me, Gangster.'"

E era mesmo.

E enquanto rodaram o filme, não houve outro.

É assim que Walsh trabalha. Em todo o caso às vezes.

Além do mais, era tanta a certeza sobre aquilo que estava a fazer, e sobre aquilo que tinha conseguido, que nunca via nenhuma das dailies. As dailies, sabem, são as sequências feitas durante o dia e mostradas assim que possam ser reveladas.

Raoul impressiona-nos como não sendo nem tão alto nem tão largo como o seu irmão George. Nem tão elegante, também. Ainda assim, é reconhecido como um lutador férreo perfeitamente capaz de deitar abaixo três ou quatro rufias de seguida sem esforço aparente. E parece haver qualquer coisa na masculinidade robusta das suas feições, a amplitude de sorriso melancólico, a atracção inquietante dos seus olhos irlandeses, que o torna um leão entre as senhoras. Porque diz-se em Hollywood que mais do que uma estrela cintilante terá descido do seu lugar nos céus do cinema para espelhar a sua beleza nesses mesmos olhos.


Sobre e Sob Água Guente

Mas se ele as adora, abandona-as. Consegue evitar alianças comprometedoras, e manteve-se casado durante muito tempo com a mesma senhora. Há pouco tempo fez um segundo casamento em sua casa, voando até Agua Caliente, no velho México, para a cerimónia. Agua Caliente quer dizer água quente. Pessoalmente, devia considerá-lo um local um tanto sinistro para dar um mergulho matrimonial. Mas essas coisas não incomodam Raoul. Na verdade, até se diz que depois do evento, fez uma pausa longa o suficiente nas mesas de jogo para arrecadar uns dezoito mil desses grandes dólares de prata com que os vizinhos sulistas recompensam os poucos gringos felizardos que escolhem o número da sorte. Tal fortuna num dia de casamento é suficiente para fazer um mórmon de um homem.

Mas essa é a sorte dos irlandeses. E este macho das calçadas de Nova Iorque teve a sua quota-parte. Assegura-se ele próprio disso.

Walsh está nos filmes há muito tempo. Interpretou o papel de John Wilkes Booth, o carrasco de Lincoln, em O Nascimento de Uma Nação. Aí era um actor. Ainda é. Ou acredita que é. Nunca recuperou totalmente. Claro, foi ideia de Gloria que ele interpretasse o papel de Handsome[1] em Sadie Thompson. Mas não consta que tivesse hesitado demasiado. Talvez o nome da personagem o tenha atraído. Ouvi afirmar que neste papel ele fez tudo, ou quase tudo, que, como realizador, desaprovaria. Mas deixou-o lá na mesma. Dêem crédito ao rapaz. É esperto.

Dêem-lhe crédito, também, por algumas longas-metragens que tiveram mesmo algum significado no ramo dos surdos e mudos. Que é o que os mastigadores de pipocas chamavam aos filmes antes de se tornarem barulhentos e eloquentes. E ele fez mais do que a sua quota-parte de bons filmes. Houve muitas reputações que se construíram a partir de uma base menos sólida.


Re-Glorificar Gloria

Há The Wanderer, por exemplo. E O Ladrão de Bagdad. Ambos estes filmes comprovam a sua aptidão para o espectacular, o seu apreço pela beleza, e a sua habilidade para exprimir esse apreço no ecrã. Ele fez What Price Glory? e demonstrou a sua habilidade como realista, o seu engenho, e uma certa virilidade mental que não era aparente nos seus filmes bonitos. Perdoamos-lhe Carmen. Quanto mais não seja por traduzir a história antiga em termos cinematográficos, ele revelou uma independência de espírito, uma disposição para talhar novos caminhos e uma indiferença por anteriores, o que é tão necessário e raramente encontrado na indústria de celulóide.

Eles não achavam que Rain pudesse ser adaptado a longa-metragem. Tinham medo de tentar. Mas Walsh resolveu o problema. E lembrem-se que foi tão encurralado com restrições que nem sequer pôde utilizar o nome da peça como título. No final das contas, ele deu-nos um filme dramático admiravelmente fiel, perfeitamente memorável. Um filme que resgatou a grande Gloria do lamaçal de Sunya, e a voltou a colocar no pináculo alto de popularidade que outrora fora seu.

Ora Walsh dirigiu cerca de cento e vinte e cinco filmes durante a sua carreira. Destes todos, os quatro que foram mencionados são algo da natureza do épico, tal como essa palavra muito abusada é entendida na terra do cinema. Uma percentagem pequena, dizem vocês? Bom, quem fez melhor? Quem é que fez quatro longas-metragens verdadeiramente excepcionais durante um período dedicado a moê-las às centenas? Von Stroheim ou Griffith ou DeMille ou Lubitsch ou Brenon? Digam-no vocês, eu balbuciava. Acrescentem o nome de Walsh a esses cinco, e têm-se os seis realizadores que dizem alguma coisa ao público. Que atraem apoios pelos seus filmes. E dos seis, Walsh não é de forma alguma o último.


Um Actor Incurável

Walsh é um nova-iorquino, nascido e criado. Quando vai à Grande Cidade, há luz na janela para ele na velha casa dos West Nineties. É aí que mora o irmão George. E a irmã, antiga mulher de Hoppe, o campeão de bilhar. E o pai, um tipo pequeno para gerar dois filhos tão robustos, e um dos poucos irlandeses com bom senso o suficiente para ter seleccionado um sócio judeu. Fizeram tanto dinheiro juntos, que agora o Pai Walsh está reformado, e tem prazer e capacidade para desfrutar de um companheirismo orgulhoso e caloroso com os rapazes.

Raoul andou na escola na margem de Jersey do Hudson, em Seton Hall. Quando se formou, o velho desafiou-o para uma viagem à volta do mundo. E depois de dois anos de excursões, o maldito imbecil foi para os filmes. A culpa foi de Paul Armstrong. Foi o dramaturgo que o apresentou a D.W. Griffith. E foi D.W. que tentou fazer dele um actor. Se o Velho Mestre tivesse sabido da séria concorrência que estava a induzir na indústria, teria-o mantido um actor. Nas actuais circunstâncias, as pintas do leopardo são visíveis pela coloração projectada do realizador.

Por exemplo, Raoul trabalha para a Fox. O dispositivo sonoro da Fox é o Movietone. Vão haver muitos filmes sincronizados com ele. Portanto aqueles que mais sabem sobre as suas várias ramificações vão ser os rapazes de cabelo branco. Para se familiarizar a si próprio com a técnica do cinema sonoro, Raoul determinou fazer um filme rápido de duas bobinas. Para a história, seleccionou uma daquelas tramas enganosas escritas por O. Henry. Depois de começar a rodar, ficou-lhe impresso na consciência que estava a desperdiçar material narrativo. Não com muita expansão, tinha um enredo para uma longa. Nunca lhe ocorreu ser picuinhas, de todo, ou incerto em relação à sua habilidade para fazer um filme falado.

Portanto foi ter com Sheehan, o árbitro dos destinos na Fox, e vendeu a ideia de fazer um filme de longa-metragem. Antes de acabar pode-se transformar num especial, ou num super-especial, ou num super-super-especial.

Só houve uma pergunta que Sheehan fez.

"Quem vai interpretar o bandido?"

"Quem acha?" piou Raoul, "Vou interpretá-lo eu!"


Para os Nascidos com Maneiras das Cavernas

E assim fez. Deixou crescer um bigode para o papel, para se parecer mais com Pancho Villa. E a parte engraçada é que nas sequências com diálogo ele fala inglês com um sotaque espanhol decidido, tal como fazem por baixo da fronteira. Anda-se a sussurrar sobre o filme, agora. A dizer que é um espanto. Que vai transformar a pequena señorita Maria Alba, uma estrela munto grande. Julguem por vocês próprios quando virem A Caballero's Way.

Alguém disse que a humanidade devia ser o estudo do homem. No entanto, a maior parte dos homens acham o estudo da mulher muito mais fascinante. Portanto talvez seja interessante registar as filosofias puramente impessoais de um que apoiou uma variedade de beldades (na tela, claro; não sejam parvos!) e foi habilitado a impor a lei com perfeita impunidade a uma galáxia de feminilidade temperamental. Além disso, sabem, Walsh mostrou ter uma grande claridade de visão em dotar os seus filmes com um romantismo que proporciona um estalo à prova de censura, uma emoção vicariante, às Judy O'Gradys e às mulheres do coronel[2] que pagam o custo da bilheteira na indústria do cinema.

Sam Goldwin é conhecido por ter respondido a um pedido em duas palavras, "Im-possível." Walsh resolve o problema feminino em três, "Mantém-nas na dúvida." Ele declara que não há lugar no coração de uma donzela para o macho amansado cujas reacções todas possam ser sistematizadas de antemão. As nossas senhoras gostam do homem que a pode beijar, ou que pode deitar abaixo.

Estas são as ideias de Walsh em relação ao tema. Pergunto-me se as porá em prática no seu novo empreendimento.

[1] Pode-se traduzir por qualquer coisa como Bonitão.
[2] "Judy O'Gradys and the Colonel's ladies" no original. referência ao poema "The Ladies" de Rudyard Kypling.

in «Motion Picture Classic», Janeiro de 1929, p. 33 e 78.

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